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Lógica
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1
SENTIDOS E MODOS DA EXISTÊNCIA EM FREGE*
Resumo
A tese de Frege sobre a Existência apresenta nítidas afinidades com a de Kant. No
entanto, Frege não considera apenas a noção de existência como um predicado de predicados,
mas reconhece um outro sentido que é requerido pela própria ontologia pressuposta na
semântica de Frege. A ideia de que não só são reais os objectos, mas também os conceitos,
funções e pensamentos, leva Frege a pensar numa esfera do objectivo, real, além do âmbito
daquilo que é efectivamente. O primeiro sentido de existência, como predicado de 2º nível,
traduzido pelo quantificador existencial não é suficiente para uma semântica da existência que
abarque outros modos possíveis de existir. E, apesar de Frege ter rejeitado as modalidades, por
não afectarem os conteúdos conceptuais dos juízos, a sua visão do mundo integra diferentes
modos de existir: os objectos singulares, os conceitos e funções, os pensamentos, o verdadeiro
e o falso. A estes diferentes modos de existir correspondem diferentes modos de os exprimir na
linguagem: a existência, o ser, não são termos unívocos, mas tão pouco equívocos ou
ambíguos, a sua plurivocidade requer uma semântica que tenha em conta a consideração
analógica destes mesmos termos predicativos.
Palavras - chave: Frege, Existência, Modalidades, Predicados, Nomes próprios.
* Maria Luísa Couto Soares
Universidade Nova de Lisboa
2
Introdução
O conceito de existência foi discutido com pormenor por Frege num escrito anterior a
1884, “Dialog mit Pünjer über Existenz”, publicado postumamente. 1 Neste escrito, Frege
rejeita o sentido de frases como ‘A existe’ ou ‘A é’, porque o conceito de existência ou o de ser
não são determinações de um objecto, ou seja, nada dizem do objecto e por isso não permitem
distinguir entre qualquer um objecto e outro. Além disso, ‘A existe’, pode traduzir-se
simplesmente por ‘A tem uma referência’ e um juízo negativo de existência da forma ‘A não
existe’, não faz qualquer sentido: se ‘A’ for um nome próprio, pressupõe a referência e
pronunciar um nome próprio para de seguida negar que tenha referência é o mesmo que riscar
esse nome da linguagem (da linguagem logicamente bem construída, na qual cada nome deve
ter um e só um referente).
Mas é fundamentalmente nos Grl, que Frege desenvolve a noção de ‘existe’ como um
predicado de 2º nível, um predicado de predicados, e não um predicado de objectos. A
argumentação de Frege mostra claramente até que ponto as teses de Kant sobre a existência e
sobre as modalidades influenciaram até certo ponto Frege. No entanto, no que diz respeito à
existência, Frege não se deixa condicionar pelas exigências puramente lógicas, que só admitem
a tradução do predicado ‘existe’ pelo quantificador existencial. Além deste sentido do
predicado de existência, Frege distingue um outro sentido da existência que não pode
confundir-se com o primeiro.
A partir dos Grl, pode seguir-se o percurso das teses de Frege sobre a existência: as
afinidades com as passagens da Crítica da Razão Pura são bem nítidas, mas também as
distâncias. O que se pretende mostrar é a ambivalência no pensamento de Frege no modo de
tratar esta questão: ambivalência que radica, por um lado no projecto lógico de Frege, por
outro, no reconhecimento da inefabilidade da semântica e nos pressupostos ontológicos da sua
filosofia da linguagem.
1. Modalidades e Existência
Na sua primeira obra de lógica, Begriffsschrift 2, Frege exclui radicalmente do seu
programa as noções modais, por considerá-las não de ordem lógica mas epistémica e poderem
ser traduzida, na simbologia lógica, pelos quantificadores.
A diferença entre um juízo apodíctico e um juízo assertórico radica simplesmente no
facto de existir ou não um juízo universal a partir do qual a proposição é inferida; ele existe no
juízo apodíctico, e falta no juízo assertórico. Portanto, afirmando uma proposição como
necessária, estamos apenas a apresentar um sinal (Wink) relativo ao fundamento epistémico
desse juízo. Conclui Frege:
“Uma vez que isso não afecta o conteúdo conceptual do juízo, a forma do juízo apodíctico não tem
nenhum significado para nós .3
Se uma proposição é apresentada como possível, ou o locutor está a suspender o juízo, sugerindo que ele
desconhece qualquer lei a partir da qual a negação da proposição poderia ser inferida, ou diz que a generalização
da negação é falsa. Neste último caso temos o que se costuma chamar um juízo particular afirmativo.”. 4
3
Como exemplo do primeiro caso, Frege apresenta: «É possível que a Terra venha,
alguma vez no tempo, a colidir com outro corpo celeste)”; como exemplo do segundo caso:
«Uma gripe pode provocar a morte.» Neste breve e único texto em que refere as modalidades,
Frege dá por concluída a sua lógica modal, enclausurando-a entre duas fronteiras:
a) a redução do modal ao epistémico, com a afirmação de que o carácter de
necessidade e possibilidade não significa nada que diga respeito ao conteúdo conceptual dos
juízos; indica apenas o modo como o sujeito se relaciona com o objecto ou o conteúdo do
juízo: apreendendo-o como um caso assente numa proposição universal, no caso do apodíctico,
ou captando-o como um caso particular para o qual se desconhece unia proposição universal
que o subsuma;
b) a redução do modal ao extensional, uma vez que, do ponto de vista lógico, os
operadores modais podem reconverter-se em operadores quantificacionais. «É necessário
que...» tem um significado e um valor lógico equivalente a «Sempre que...», ou «Todas as
vezes que...».
A primeira redução não é mais do que uma réplica (não sei se assumida ou meramente
tácita da parte de Frege) da tese de Kant sobre as modalidades tal como é exposta no conhecido
texto da Kritik der reinen Vernunft. 5
As categorias da modalidade nada acrescentam como determinações do objecto, afirma
Kant, tese que em Frege é expressa pela afirmação de que não afectam o conteúdo conceptual
do juízo, sendo portanto externas a esse conteúdo; acrescentam apenas a maior ou menor força
epistémica dessa proposição se, logicamente, constituir uma inferência a partir de uma
proposição universal, ou não. É, por conseguinte, a relação do objecto ao sujeito o que
exprimem as categorias modais, confirmando-se a sua inspiração kantiana. São, de facto,
categorias cognitivas que indicam apenas, relativamente ao conceito «a ação da faculdade de
conhecimento que o origina». 6
Segundo esta concepção kantiana, a própria existência é neutralizada ao ser considerada
uma modalidade do juízo que o determina como a «posição absoluta do ser perante o
pensamento», contrariamente aos juízos de relação, nos quais a cópula «é» ocorre apenas como
sinal de atribuição lógica e não implica de modo nenhum a existência.4
Frege teria presente, como fonte e horizonte do seu próprio pensamento, esta
concepção kantiana das modalidades e da existência e, por isso, ao apresentar, na Bs, o plano
de construção de uma linguagem lógica, não vê necessidade de apresentar símbolos para os
operadores modais, nem mesmo símbolo lógico para o predicado «existe»: os juízos
afirmativos particulares não envolvem existência . 7
Daí a segunda redução do modal ao extensional, que motivou a ausência de uma lógica
modal na Bs. O extensionalismo de Frege, no entanto será posteriormente repensado e
contrabalançado por perspectivas nitidamente intensionais, no âmbito da lógica filosófica.
Do mesmo modo, há razões e provas suficientes para concluir que Frege, depois da Bs,
se afasta substancialmente da primeira redução e apresenta das noções modais e da existência
perspectivas irredutíveis a esta primeira concepção epistémica, ou cognjtiva (segundo
expressão de Vuiliemin). É nos Grl que Frege explicita o seu pensamento sobre a noção de
existência: apresentando inicialmente uma concepção da existência aparentemente concordante
com a de Kant, pode detectar-se também no texto uma profunda divergência, latente, quer
desenvolverá em textos posteriores (Grg, Ged, sobretudo).
2. Existência como predicado
Tal como vem formulada no §53 dos Grl, a noção fregeana de existência é análoga à de
Kant. A comparação dos textos dos dois autores faz ressaltar com nitidez essa afinidade. Diz
Kant:
4
“No simples conceito de urna coisa não se pode encontrar nenhum carácter da sua existência. Embora
esse conceito seja de tal modo completo, que nada lhe falte para pensar a coisa com todasas4etermi- nações
internas, a existência nada tem a ver com tudo isso: trata-se apenas de saber se a coisa nos é dada, de tal modo que
a sua percepção possa sempre preceder o conceito.” 8
O texto de Frege introduz a noção de existência a partir da distinção entre propriedades
e notas de um conceito:
“Quando me refiro às propriedades que se atribuem a um conceito, não quero dizer evidentemente as
notas que cornpõem o conceito. Estas são propriedades das coisas que caem sob o conceito, não do próprio
conceito. Por exemplo «rectângulo» não é uma propriedade do conceito «triângulo rectângulo». Mas a proposição
que afirma não haver triângulo rectângulo rectilíneo equilátero enuncia uma propriedade do conceito « triângulo
rectângulo, rectilíneo equilátero»; atribui-lhe o número zero.
Neste aspecto a existência é análoga ao número. Afirmar a existência, com efeito, não é senão negar o
número zero.” 9
Torna-se patente a semelhança das concepções kantiana e fregeana: as «determinações
internas» (na terminologia de Kant) podem analogar-se às «notas características» (Merkmale)
do conceito (na terminologia de Frege); entre estas «notas», que são as propriedades dos
objetos que o referido conceito subsume, não podemos encontrar a existência (Nada tem a ver
com isso») que, segundo Frege, é um predicado de segundo nível, uma propriedade do conceito
que indica se ele subsume ou não algum objecto. Em Kant, de modo semelhante, a existência
indica se a coisa nos é dada de modo que a sua percepção possa preceder o conceito:
“Se o conceito precede a percepção, isto significa a mera possibilidade da coisa; mas a percepção, que
fornece a matéria para o conceito, é o único carácter de realidade.” 10
A possibilidade identifica-se, para Kant, com a coisa meramente pensada, e opõe-se à
realidade, ao facto de ser real, ou seja, de se dar ‘à percepção. A existência não é um atributo
do possível, mas alguns predicados do possível podem atribuir-se correctamente ao existente,
quando este for objecto da percepção sensível. Esta é a tese já apresentada por Kant em Der
einzig mögliche Beweisgrund zu einer Demonstration des Daseins Gottes: de acordo com esta
noção, não devemos dizer que existem na natureza hexágonos regulares, mas que a algumas
coisas da natureza, tal como as colmeias, pertencem os predicados incluídos no conceito de
hexágono.11
A percepção, «o único carácter de realidade», é simplesmente o conhecimento
empírico do facto (perfeitamente contingente para a caracterização da coisa enquanto pensada)
de que essa coisa existe. Além de pensada pelo entendimento, é «posta» perante a sensibilidade
que a percepciona como existente. Por isso, a existência nada acrescenta ou determina à coisa
pensada que, enquanto possível, inclui já por definição a totalidade dos seus predicados.
Frege diverge de Kant exactamente nesta fronteira tão radicalmente estabelecida entre
possível e real. Embora a sua afirmação de que a existência é um predicado de segundo nível
possa coincidir no início com a de Kant, segundo a qual a existência não é um predicado real,
tal coincidência radica apenas na exclusão do predicado da existência do conjunto de
determinações ou notas características de um conceito. Daqui Kant concluirá que não é um
predicado real; porém a conclusão fregeana. de que não é um predicado de primeiro nível não
implica que não seja real: trata-se de um predicado de predicados, que, em Frege, como
veremos, é também real. Outra afinidade inicial nas duas teses, que conduzirá a teses
divergentes, é o contra-exemp1o que ambos os autores apresentam para ilustrar a exclusão da
existência das determinações de um conceito: o argumento ontológico da existência de Deus.
A distinção de Frege entre propriedade e notas é reinvocada: um conceito é feito com as
suas notas características (Merkmale), não com as suas propriedades. No entanto, Frege
acrescentará de imediato que isto não quer dizer que seja completamente impossível deduzir,
5
das notas características de um conceito, alguma das suas propriedades. Em certas condições,
isto é possível: por exemplo, podemos inferir quanto demora construir uma casa, conhecendo o
tipo de pedra usado. Portanto, seria ir demasiado longe afirmar que não podemos inferir das
características de um conceito a sua unicidade ou existência; na verdade, isto não pode ser tão
direto como a atribuição a um objecto que cai sob um conceito de um carácter componente
desse conceito, como uma propriedade desse objecto.12
Como está patente no texto de Frege, a evocação do mesmo argumento ontológico é
coincidente, mas não de modo tão radical como em Kant. Frege admite ser possível (sem
especificar) deduzir, a partir das notas características de um conceito, uma propriedade desse
conceito, distinguindo porém esta inferência possível da atribuição directa de uma nota do
conceito a um objecto por ele subsumido, como sendo sua propriedade.
Estas circunstâncias particulares nas quais seria possível deduzir uma propriedade a
partir das notas características de um conceito parecem ser as que se dão no caso de uma
proposição ser analítica, considerada em si mesma, e portanto ontologicamente necessária,
embora esta necessidade não implique necessidade epistémica. Esta distinção, entre
necessidade ontológica/necessidade epistémica é assimilada por Dummett13 à distinção tomista
de uma proposição per se nota e nota quoad nos. Segundo São Tomás, a proposição «Deus
existe» é exemplo de urna proposição per se nota mas não nota quoad nos ou, em terminologia
atual, é analítica e ontologicamente necessária, mas não analítica para nós e, portanto, não
epistemicamente necessária.
Esta aproximação da argumentação tomista é permitida pela distinção que Frege
desenvolverá posteriormente, em Ged. entre o verdadeiro e a captação de uma proposição
verdadeira, entre o carácter epistémico das noções de necessidade e verdade e uma
consideração não epistémica, e portanto a admissão, pelo menos tácita, de noções não
epistémicas de necessidade e de verdade.
As condições em que seria possível deduzir das notas características de um conceito,
alguma das suas propriedades são também evocadas por Frege no parágrafo 49, em que, para
responder a Espinosa (que afirma ser impossível dizer propriamente que Deus seja uno e único,
porque não podemos, abstraindo, conceptualizar a sua essência), defende que a abstração a
partir de um número de objetos não é de forma alguma o único modo de adquirir conceitos;
podemos também alcançar um conceito, partindo das suas próprias notas características, sendo
nesse caso possível que nada caia sob esse conceito. Esta possibilidade é que permite, conclui
Frege, negar ou afirmar a existência. Neste texto, portanto, Frege prevê a possibilidade de,
mediante a apreensão de certos conceitos através das suas notas características, inferir a
existência ou não existência de algo que esse conceito possa subsumir.
A afinidade da noção de existência em Kant com a da existência como predicado de
segundo nível em Frege é, pois, uma afinidade parcial, ou iniciai; ambas as teses seguirão
itinerários muito diferentes. A divergência procede fundamentalmente do contexto teórico em
que estão integradas: a de Kant num contexto teórico epistémico, a de Frege na elaboração de
uma teoria lógica da predicação.
O objectivo principal de Frege é o de estabelecer uma teoria da predicação que garanta
a distinção radical entre conceito e objeto e seus correspondentes níveis de linguagem;
condição essencial para essa distinção é a garantia de que os predicados de objetos não se
prediquem dos conceitos, e que os de conceitos não se atribuam aos objetos. A existência é um
predicado de um conceito que por isso não se pode predicar, com sentido, de um objecto. Por
isso, a afirmação «Há Júlio César» não é verdadeira nem falsa, mas simplesmente sem sentido,
enquanto «Há um homem cujo nome é Júlio César» tem sentido . 14
Os predicados de segundo nível (entre os quais a existência) são radicalmente
diferentes dos de primeiro nível, e tal diferença manifesta-se na distinção — sempre sublinhada
por Frege — entre a relação de um objecto com um conceito de primeiro nível sob o qual ele
cai e a relação de um conceito de primeiro nível com um conceito de segundo nível. Frege
6
apresenta um exemplo em que se vê claramente que ser um conceito de segundo nível não
significa de modo nenhum não ser real ou ser meramente um ens rationis: podemos dizer que
2 é um número positivo, inteiro e menor que 10 (estamos a atribuir as propriedades a um
objecto, o número 2); mas podemos também considerar essas propriedades do objecto 2 como
notas do conceito número inteiro positivo menor que dez: Por sua vez, este conceito não é nem
positivo nem um número inteiro, nem menor que dez. Está subordinado ao conceito número
inteiro, mas não cai sob ele .15
Esta diferença radical da relação estar subordinado a e cair sob (relação entre conceitos
e relação entre um indivíduo e a respectiva classe a que pertence) está em causa na análise do
predicado de existência no referido parágrafo 53 dos Grl. Por ser um predicado de segundo
nível, Frege quer sublinhar bem que nenhum objecto pode cair sob esse predicado, mas alguns
conceitos estão-lhe subordinados, por exemplo, a não-vacuidade, que é propriedade de alguns
conceitos.
O conceito de todos os conceitos sob os quais cai um só abjecto tem como nota
característica a unidade. Sob esse conceito cairia, por exemplo, o conceito «Lua da Terra», mas
não este planeta em si. Portanto, podemos fazer cair um conceito sob outro conceito mais
elevado, mas esta relação de subordinação é muito diferente da relação de um objecto
subsumido por um conceito. Assim, existência seria um conceito de nível mais elevado.,, ao
qual pertenceriam todos os conceitos no vazios. Mas este predicado de existência não se pode
atribuir diretamente aos objetos que caem sob esses conceitos.
Frege considera portanto a existência como um predicado de predicados, um conceito
de conceitos; evita assim identificar a existência com um conceito simplesmente geral, uma
espécie de summum genus de todos os objetos existentes. Um conceito de extensão tão vasta é
rejeitado por Frege: ao referir-se à unidade como sendo hipoteticamente um conceito, Frege
afirma:
“Seria incompreensível porque é que havíamos de atribuir expressamente (a unidade) a alguma coisa. É
só em virtude de a possibilidade de alguma coisa não ser sábia que faz sentido dizer «Sólon é sábio».
O conteúdo de um conceito diminui na medida em que aumenta a sua extensão; se a sua extensão é
omniabarcante, o seu conteúdo deve desaparecer imediatamente. “16
Esta concepção resolverá alguns problemas da semântica da existência, mas suscita
duas questões fundamentais:
1)como podemos conhecer e referir-nos à existência de objetos singulares, dos objetos
subsumidos pelos conceitos do primeiro nível?
2) como conhecemos a existência? Sempre via conceito? Haverá outro modo de
conhecer a existência?
Kant, ao excluir a existência do conjunto das determinações do possível, do conceito da
coisa, remete o conhecimento da existência para a percepção sensível. Mas, justamente, Frege
não situa a fronteira do real entre o possível e o existente, donde não tem necessidade de
remeter o conhecimento da existência para a mera constatação empírica do facto de algo
existir. Pelo contrário: a existência, tal como a temos vindo a considerar, apreende-se a um
segundo nível de predicação. Porém, este modo de apreensão da existência não parece tão
pouco abarcar todos os casos de juízos de existência.
Para encontrar uma resposta à primeira questão, algumas análises dos Grl fornecem
elementos valiosos permitindo antever um outro sentido de existência, que Frege explorará
mais tarde nos Grundgesetze: de atualidade (Wirklichkeit).17
A segunda questão implica a elucidação da noção de possível e suas relações com o
existente e o real, de que tratamos adiante (p. 62).
7
3. Existência e actualidade (Wirklichkeit)
A principal contribuição da análise da noção de existência
nos Grundlagen é talvez a aproximação da noção de número, com a qual Frege faz ver a
semelhança entre a afirmação da existência e a negação do número. A existência é assim
identificada com a não vacuidade de um conceito.
Ao analisar a noção de número (algo que se diz de um conceito também), Frege
encontra uma dificuldade para definir a unidade 18, que nas definições dadas por Euclides surge
umas vezes como um objecto para ser contado, outras vezes como uma propriedade desse
objecto, e outras ainda corno o número um. Para resolver esta aparente ambiguidade, Frege
distingue entre o termo ‘unidade’ e o número um 19: o artigo definido indica aqui claramente
que se trata de um objecto. Não há diferentes números um, mas um só um. Um não tem plural,
pois trata-se de um nome próprio, tal como «Frederico o Grande» ou «o elemento químico
ouro». Pelo contrário, o termo ‘unidade’ designa um conceito. Assim, Frege apresenta um
primeiro critério de distinção entre a ‘unidade’ sinónimo de um e a unidade como conceito.
Uma dificuldade persiste porém: a palavra ‘unidade’ como conceito subsume os «diversos
objetos a enumerar» e, por isso, não poderemos definir o número como um conjunto de
unidades. Se unidade, pelo contrário, subsumisse apenas o número um, seria igualmente
impossível definir o número. O problema a resolver é o de conciliar a identidade das unidades
com a sua discernibilidade. Sem identidade não obteremos nunca o conceito de número, mas
apenas uma mera diversidade impossível de subsumir sob um mesmo conceito; sem
discernibilidade não haveria multiplicidade nem possibilidade de enumerar. Para enumerar é
absolutamente necessário distinguir um a um os elementos que se contam.
Depois de ensaiar várias soluções 20 , Frege considera que a questão se resolve
exatamente a partir da concepção de número como algo que se atribui a um conceito; mais
especificamente, o número é a determinação da extensão do conceito, daqueles conceitos que
permitem isolar determinadamente o que subsumem, ou os objetos que sob eles caem. Neste
caso os conceitos podem ter a propriedade de ser vazios (não existe nenhum objecto subsumido
por esse conceito), de no ser vazios (existe pelo menos um objecto subsumido pelo conceito);
neste último caso podem ainda subsumir um só objecto (unicidade), ou vários (multiplicidade),
ou seja, existe um só objecto, que, no entanto, não ‘deve ser confundido com o próprio
conceito, ou existem vários objetos. Assim se esclarece a afinidade entre existência e número.
A compatibilidade entre a identidade e a discernibilidade das unidades resolve-se com a
distinção de dois diferentes sentidos do termo ‘unidade’:
A palavra «unidade» é utilizada num duplo sentido. Por um lado, as unidades são
idênticas no sentido explicado (...) (enquanto subsumidas por um mesmo conceito). Na
proposição «Júpiter tem quatro luas», a unidade é «lua de Júpiter». Sob este conceito caem os
satélites 1, II, III, IV. Pode dizer-se: a unidade à qual se refere 1 é idêntica àquela a que se
refere II, etc. Aí temos à identidade. Mas, por outro lado, quando se fala da distinção das
unidades, entender-se-á .a capacidade de distinção das coisas contadas . 21
O primeiro sentido de unidade (a unidade das coisas que caem sob um mesmo conceito
e, portanto, são idênticas) é análogo à noção de existência enquanto predicado de segundo
nível. Trata-se de enunciar a propriedade de um conceito, a de que subsume pelo menos um
objecto, não este ou aquele objecto determinado, mas um apenas, que é só um caso do conceito
em questão. Mas, como assinala Frege, a própria ação de contar remete para outro sentido de
unidade que não envolve unicamente o sentido de unidades iguais, de objetos pertencentes a
um mesmo conceito, mas que permite considerá-las como discerníveis entre si.
Enquanto o primeiro sentido de unidade apresenta uma nítida analogia com a
existência como quantificador existencial (existência no sentido estritamente lógico), este
segundo sentido remete para um outro sentido de existência: aquele que se predica, não dos
8
conceitos, mas dos próprios objetos reais que sob eles caem, a existência de cada coisa, não
considerada como um caso de uma generalidade, mas como coisa em si mesma única e
irrepetível.
Nos Grundlagen, Frege distingue apenas dois sentidos do termo ‘unidade’ e não
estabelece qualquer analogia com os sentidos do predicado de existência. No entanto, a
distinção entre os dois sentidos da existência, que correspondem aos da unidade, é
expressamente indicada nos Grundgesetze (Introdução p. 25), onde Frege distingue o sentido
de existência expresso em “há...” do sentido de existência como actualidade.
O sentido a que se refere Frege, expresso usualmente nos juízos da forma «há...»
corresponde ao sentido lógico da existência traduzido pelos quantificadores e, como foi já dito,
indica que existem objectos pertencentes à extensão do referido conceito. Neste caso, o
predicado «existe» atribui-se a objectos concretos, mas indeterminadamente, isto é, sem referir
nenhum em particular, sem isolar ou discriminar um objecto determinado. Frege exprime-o ao
dizer que, quando se afirma «há raízes quadradas de 4», não estamos a nomear expressamente
nem 2 nem —2. Este o sentido da existência como predicado de segundo nível, noção que se
aproxima da tese de Kant, segundo a qual a existência não é um predicado real.
O outro sentido a que se refere Frege neste texto é o da existência quando atribuída
também aos objectos, não enquanto casos que indeterminadamente preenchem a extensão de
um conceito ou enquanto membros de uma classe, mas sim na sua individualidade concreta,
enquanto existentes realmente actuais. A actualidade (Wirklichkeit) é constituída pelo universo
dos seres realmente existentes na sua individualidade concreta, imersos num processo
temporal, submetidos à acção de outros existentes actuais e podendo também exercer uma
acção determinada sobre eles (cfr. «Der Gedanke», onde Frege desenvolve esta noção de
actualidade’ em contraposição ao domínio do pensamento, que é real, mas não actual).
Confundir a existência do actual (wirklich) com a mera, existência lógica, para a qual
Frege introduzirá um neologismo (Esgibtexistenz), é considerado um erro «grosseiro»
originado pelo desconhecimento dos diferentes níveis de predicação.
Outra confusão enganadora, que Frege denuncia na Introdução aos Grundgesetze, é a
de actualidade e objectividade. A tarefa que se propõe prosseguir neste texto é a de esclarecer e
defender esse domínio do objectivo não actual constituído pelos objectos lógicos como os
números, as classes, os valores de verdade, os conceitos, as funções e as relações. O principal
resultado dos Grl foi precisamente o de ter mostrado que os números, não sendo objectos
concretos, físicos, nem propriedades ou atributos desses objectos, são no entanto objectos
lógicos que não podem ser captados pelos sentidos, mas são apreendidos pela mente; não se
confundem nem se identificam tão-pouco com os signos sensíveis com os quais lhes fazemos
referência, os. numerais. A dificuldade está em entender que nem só o que pode ser percebido
pelos sentidos é que existe propriamente.
Frege pretende garantir a atribuição de existência também a este domínio do objectivo
não actual, não captável pelos sentidos, insistindo no facto de a perceptibilidade, e portanto a
ostensibilidade, não serem critérios exclusivos da existência.22 É atribuível o predicado da
existência também a um domínio do que é objectivo mas não actual (objektiv, nicht wirklich),
que não se pode reduzir ao domínio do subjectivo, do mental, da representação ou
conceptualização individual (como pensam os lógicos psicologistas que são o objecto da crítica
de Frege ao longo desta Introdução). Neste caso, o predicado «existe» terá um outro sentido,
diferente dos anteriormente referidos, que se aplicam a objectos.
Este novo sentido da noção de existência vem reforçar a ideia de que o universo de
Frege não é apenas constituído por objectos concretos, individuais, nem tão-pouco por
conjuntos de qualidades, de predicados agrupados de modo mais ou menos arbitrário:
além do actual, existe também como constitutivo desse universo o objectivo não actual, que
inclui, além dos objectos lógicos os conceitos, os sentidos, o pensamento (cfr. Ged.). Este
9
domínio é tão real como o primeiro, o que prova que a fronteira entre real e não real, segundo
Frege, não separa radicalmente o actual do objectivo, a Wirklichkeit da Objektivität.
Urna tal hierarquia do próprio universo real tem evidentes reflexos na linguagem: a
existência não pode ser atribuída univocamente ao que é actual e ao que pertence ao objectivo
não actual.
A admissibilidade da predicação analógica da existência parece estar pois plenamente
justificada nestes textos de Frege.
4. Ambiguidades da noção de possível
Partamos de novo de uma referência retrospectiva da filosofia de Frege à de Kant, desta
vez para uma elucidação da noção de possibilidade. Para compreender bem o pensamento de
Kant quanto às modalidades, é de grande utilidade o enquadramento das noções de
possibilidade, necessidade e realidade na tese radical de Kant sobre o «Ser como posição»,
cujas consequências e implicações Heidegger revela magistralmente: possibilidade, realidade e
necessidade são as posições dos diferentes modos da relação pura da objectividade dos
objectos à subjectividade dó conhecimento humano.23
Na Kritik, Kant define o possível como «o que está de acordo com as condições formais
da experiência (quanto à intuição e aos conceitos)» ou seja, o que está “apenas no eu
entendimento em ligação com as condições formais da experiência.» 24
Assim, a distinção entre as coisas possíveis e as coisas reais é uma distinção que tem
apenas um valor meramente subjectivo para o entendimento humano, pois que podemos
sempre pensar alguma coisa, mesmo que não exista, ou. representar alguma coisa como dada,
se bem que não tenhamos ainda nenhum conceito.
Ao fazer radicar a distinção das modalidades nas suas relações com as próprias
faculdades do conhecimento, Kant reafirma, de modo claro e explícito, a sua tese do «Ser
como posição»: o possível significa somente a posição (Position) da representação de uma
coisa relativamente ao nosso conceito e em geral à faculdade de pensar, enquanto o real
significa o acto de posição (die Setzung) da coisa em si mesma (fora deste conceito).
A referência ao interno/externo do conceito como ponto de partida para a definição do
possível e do real ocorre também no Apêndice à Kritik der reinen Verrzunft com o título «Von
der Amphibolie der Reftexionsbegriffe». Partindo sempre da perspectiva do Ser como posição,
a elucidação do ser possível manifesta a sua relação com as condições formais da experiência,
enquanto o real manifesta a relação com as condições materiais da experiência; e,
analogamente, o possível relaciona-se com o interno, as determinações internas de uma coisa
que procedem do entendimento, enquanto o real se relaciona com o externo, as determinações
externas que surgem no espaço e no tempo como as relações externas das coisas entre si,
enquanto fenómenos.
No final deste Apêndice, Kant apresenta uma transposição da gradação do possível ao
impossível para a gradação de algo a nada:
O conceito mais elevado, pelo qual é uso iniciar uma filosofia transcendental, é, vulgarmente, o da divisão
em possível e impossível. Como porém, toda a divisão pressupõe um conceito dividido, deverá indicar-se outro,
ainda superior, e esse é o conceito de um objecto em geral (considerando em sentido problemático, sem decidir se
é alguma coisa ou nada). (Kritik, B 347, A 290).
Com base. na polarização algo/nada, Kant distingue quatro divisões:
10
1. conceito vazio sem objecto (ens rationis): não são possibilidades, ser considerados como
impossibilidades;
2. objecto vazio de um conceito (nihil privativum);
3. intuição vazia sem objecto (ens imaginarium);
4. objecto vazio sem conteúdo (nihil negativum).
O primeiro, o ser de razão, é considerado por Kant como «apenas ficção», embora não
contraditória, e é excluído do mundo dos possíveis, sem lhe ser no entanto oposto; o último
opõe-se à possibilidade, pois é uma contradição. Ambos são conceitos vazios. O nihil
privativum e o ens imaginarium são dados vazios para conceitos.
É algo — e não nada — o que se pode apresentar como objecto, o que tem a
objectualidade ou a característica de poder ser dado como objecto. Para que algo seja uma
realidade objectiva, é necessária a «coisidade» posta como objecto, que nos é acessível como
objecto da experiência. Possibilidade e realidade são pois dois modos de posição do ser pelo
pensamento que se contra- põem: o possível é não real, o real não é o possível. Em Kant não se
poderá falar de uma possibilidade real ou de uma real possibilidade.
Desta tese diverge profundamente o pensamento de Frege sobre a possibilidade.
Nos Gla 25 afirma que, pelo facto de não existirem objectos que caiam sob um
determinado conceito, esse mesmo conceito, embora vazio, não deixa de existir. Existe não
«apenas no entendimento», como condição formal do conhecimento possível, e não exige a
condição da percepção precedente do abjecto. Além do conceito vazio, o próprio conceito
contraditório existe também, embora isso indique imediatamente que não subsume nenhum
objecto. Para Frege, portanto, como comprovam estes dois parágrafos dos Grl, pode atribuir-se
um certo sentido de existência a um conceito, mesmo na ausência de qualquer dado da
percepção anterior ao próprio conceito Existem os conceitos vazios e os contraditórios.
Esta última acepção do predicado da existência implica, sem dúvida, uma nova
formulação da noção de possibilidade. Assim como é clara em Frege a atribuição de um
sentido de existência como predicado de conceitos, mas que incide sobre os objectos por ele
subsumidos, e de um outro sentido para os conceitos em si mesmos considerados (o que
permite afirmar que «o conceito ‘conceito vazio’, tem a propriedade de existir», ou «existe o
conceito ‘conceito vazio’»), assim também deverá haver uma correspondente modulação na
noção de possibilidade. Com efeito, Frege parece distinguir claramente entre possibilidade
lógica (ou possibilidade de ser um conceito) e possibilidade real (ou possibilidade de ser um
objecto), distinção que se segue da radical separação entre conceitos e objectos.
Tomando posição contra os matemáticos, formalistas, Frege nega a tese clássica
segundo a qual a possibilidade lógica significa não contradição: só é impossível, para o
matemático, o que é logicamente impossível, isto é, o que envolve contradição. Para tanto,
apresenta como contraexemplo o conceito de objecto diferente de si mesmo, que serve para a
definição de conjunto vazio. É absurdo querer fundar a existência sobre a ausência de
contradição, como se a ausência de contradição fosse já a existência da coisa.
O argumento que Frege apresenta para a pensabilidade da contradição é o de que, se
não fosse pensável, corno se poderia provar que um conceito não contém contradição? A
ausência de contradição nem sempre é óbvia, mas exige uma prova. Antes da prova, pensa-se a
contradição. A prova indeclinável de que um conceito está livre de contradição é a existência
de algo, algum objecto que caia sob esse conceito. Esta afirmação parece problemática, pois
exige-se o recurso à existência como prova de não contradição de um conceito, o que parece
indicar que seria impossível uma prova estritamente lógica. No entanto, na argumentação de
Frege, uma vez mais se torna patente a sua atribuição analógica da existência (aqui predicada
11
de objectos lógicos) e a sua noção peculiar de objecto. Para mostrar que um conceito não é
contraditório, basta provar a existência de algum objecto, mesmo de um objecto lógico como
os números ou as classes.
O que não fica claro em toda esta argumentação é o critério fregeano de distinção entre
vazio e contraditório: se é a existência de algo o que prova, em última análise, tanto a não
vacuidade como a não contradição de um conceito, parece não haver uma possibilidade de
distinguir, logicamente, se um conceito não subsume nenhum objecto por ser vazio, ou por ser
contraditório. Os limites do pensável parecem esfumar-se na linha do horizonte, onde uma
névoa encobre a demarcação nítida entre o possível (pensável) e o impossível (impensável).
A noção de possível em Frege é, pois, uma noção alargada, que não se opõe
simetricamente a impossível. O que é o impossível? O que não é nem será nunca? O que não é
nem será nunca, se no entanto pode ser pensável, é também possível. O que é contraditório
consigo mesmo também pode ser pensado (ainda que provisoriamente), portanto também não
será completamente impossível.
Também não se opõe simetricamente a existente, pois o possível existe também,
embora se trate de um modo de existir diferente do da actualidade.
Possível opõe-se a actual (wirklich — noção que Frege desenvolve no escrito “Der
Gedanke”): é possível tudo o que é mas não é actual, o modo de ser actual envolvendo uma
referência ao processo temporal. O possível identifica-se, portanto, com esse terceiro reino dos
pensamentos atemporais, invariantes.
A caracterização e o estatuto deste domínio do objectivo não actual, do possível,
levanta no entanto muitas questões, que Frege não ignorou, mas às quais não se propôs
responder, talvez por considerar que ultrapassavam as fronteiras do seu próprio campo de
trabalho: não deixa porém de as referir de passagem ( “O que seria para mim um pensamento,
se ele nunca fosse apreendido por mim? ») 26. O pensamento, com efeito, é possível enquanto
apreensível, captável. Qual o estatuto de um pensamento não pensado? Existe qua pensamento
qua possível, mesmo que nunca venha a ser captado? Mas se esse pensamento não é nem será
nunca, pertence à categoria do impossível, e não do possível. Além de que um pensamento
jamais pensado é a própria impensabilidade. Se, pelo contrário, todo o pensamento possível é
ou será pensado, não haverá nenhum possível pensamento que não seja ou venha a ser pensado,
e neste caso é necessariamente pensado.
É difícil justificar porque é que um pensamento, ao ser captado, passa a pertencer ao
mundo da actualidade. A relação do possível ao existente, do objectivo ao actual, é
problemática quando vista a partir da própria possibilidade: o mundo actual parece, com efeito,
emergir de um mundo de objectividades, um mundo ambíguo de possíveis necessários.
5. Para uma semântica da existência
Vamos destacar alguns pontos da filosofia da linguagem de Frege que fornecem
alicerces seguros para uma semântica da existência, resolvendo com sagacidade alguns dos
«paradoxos referenciais» do predicado «existe».
São sobretudo duas as teses da semântica de Frege que se relacionam directamente
com a questão da existência: a teoria dos níveis da linguagem, e a semântica dos nomes
próprios.
12
5.1. Teoria dos níveis da linguagem
Na Bs (p. 17), Frege refere já uma certa ordem (Rang) entre os conceitos, mas é nos Grl
que, a par da teoria do número, desenvolve e explora a sua distinção, entre conceitos de
primeira e segunda ordem, como foi referido. 27 Como vimos, devido ao princípio de absoluta
separação entre objectos e conceitos, Frege não pode considerar que a relação entre um
predicado de primeiro nível e os objectos (argumentos) seja análoga à relação entre um
predicado de segundo nível e predicados de primeiro nível; estes últimos são a expressão de
um conceito e por isso não podem nem lógica nem gramaticalmente ser tomados como
abjectos. No seu ensaio «Über Begriff und Gegenstand», em resposta às críticas de Kerry,
Frege desenvolve esta distinção entre a relação de um objecto com um conceito sob o qual cai
e a relação de subordinação de um conceito a outro conceito. Essas duas relações, que a
linguagem natural por vezes exprime de modo semelhante, são nitidamente diferenciadas por
Frege: assim, na frase «todos os mamíferos são terrestres», o sujeito gramatical «todos os
mamíferos» não traduz adequadamente o sujeito lógico ao qual se atribui o predicado «são
terrestres»: a negação desta proposição não é «todos os mamíferos não são terrestres», mas sim
«nem todos os mamíferos são terrestres». Todos pertence pois logicamente ao predicado.
Assim se vê com clareza que a proposição logicamente exprime que «o conceito mamífero está
subordinado ao conceito terrestre», que se nega dizendo «o conceito mamífero não está
subordinado ao conceito terrestre», ou, em linguagem corrente, «nem todos os mamíferos são
terrestres».
Esta relação de subordinação de um conceito a outro conceito esteve na raiz da
principal tese dos Grl sobre a existência como propriedade de um conceito. Frege utiliza aí a
expressão «conceito de segunda ordem», enquanto nos escritos posteriores empregará
«conceito de segundo nível». A distinção de níveis leva à afirmação fundamental da semântica
fregeana:
“o que aqui se predica de um conceito nunca pode ser predicado de um objecto, pois um nome
próprio nunca pode ser uma expressão predicativa, embora possa ser parte dela.” 28
E Frege sublinha que predicar de um objecto um conceito de segundo nível, um
conceito de conceitos, não é propriamente uma proposição verdadeira nem falsa, mas
meramente sem sentido:
A sentença “Há Júlio César” não é verdadeira nem falsa, mas em sentido, embora a
sentença “Há um homem cujo nome é Júlio César» tenha sentido; mas aqui temos novamente
um conceito, como o mostra o artigo definido (ibid.).
De modo semelhante, o que ocorre na proposição «Há apenas uma Viena»: neste caso,
«Viena» é um termo conceptual, e não o nome próprio de uma cidade única. Trata-se de
considerar o conceito «cidade imperial», ao qual pertence apenas um só objecto, a cidade
chamada Viena.
Embora a noção dos níveis da linguagem tenha sido desenvolvida por Frege neste
ensaio para resolver os problemas da insaturação, 29 esta estratificação da linguagem em
diferentes níveis permite uma tradução lógica adequada da noção de existência, através dos
quantificadores. Na hierarquia fregeana, as expressões completas são os nomes próprios
(termos singulares ou expressões complexas designando um objecto determinado) e as
proposições, e constituem a base de toda a hierarquia de níveis, juntamente com algumas
expressões incompletas, como os operadores de um ou dois argumentos, predicados com um
lugar para um argumento ou predicados de primeiro nível, e ainda a categoria das expressões
relacionais para dois argumentos. O passo seguinte consiste em introduzir as expressões de
segundo nível: os predicados de segundo nível são aqueles que têm um lugar para um
argumento que deve ser preenchido com um predicado de primeiro nível: o exemplo deste tipo
de expressões é precisamente o quantificador, que é a versão lógica mais trabalhada da
13
existência como predicado de segundo nível . 30 Neste sentido, pode-se predicar «existe» de um
predicado de primeiro nível, cuja extensão se possa determinar quantitativamente, isto é, um
predicado de contornos nítidos, que isole definidamente o que pertence ou não pertence à sua
extensão, definindo um âmbito bem delimitado de quantificação.
Só estes termos nos proporcionam, portanto, um critério de identidade para os objectos
que caem sob o conceito que significam. Esta condição é traduzida por Geach 31 na sua tese da
identidade relativa, segundo a qual a identidade é sempre relativa a um critério deste tipo; só se
pode identificar por relação a uma espécie de coisa, assim como só se pode contar alguma
espécie de coisa. Esta noção de identidade está intimamente relacionada com a de existência,
como Geach o traduz, dizendo que «não há entidade sem identidade» (no entity without
identity).
Frege considera, no entanto, a possibilidade de captar um conceito, não só pela via da
abstracção, a partir dos objectos, mas também apreendendo as suas notas características,
directamente, sendo possível que não caia nenhum objecto sob esse conceito. A admissão desta
outra via para a apreensão dos conceitos é mesmo considerada por Frege como uma condição
de possibilidade da afirmação e negação da existência. Com efeito, como poderíamos negar a
existência de algo se não tivéssemos apreendido já antes o conceito (isto é, as notas
características) de esse algo, sem ser pela via dos objectos que subsume, uma vez que é vazio?
Frege admite portanto um modo de afirmar ou negar a existência daquelas «entidades»
que não são subsumíveis por um género, ou que não formam parte de uma extensão
quantitativamente determinada de um dado conceito. Há outros modos de existir para além do
de «ser um valor para uma variável», ou de ser um objecto subsumido por um conceito. Para
estes casos, é evidente que o predicado de segundo nível não resolve a questão da tradução
semântica do predicado de existência, nem o quantificador se pode apresentar como a
formalização lógica adequada para todos os juízos de existência.
A teoria dos níveis da linguagem permite assim tão-só a tradução lógico-semântica de
um sentido de existência, através dos quantificadores. A própria restrição da aplicação do
quantificador existencial não é, no entanto, identificada por Frege com a redução da noção da
existência a este único sentido.
No parágrafo 1, vimos que Frege capta um outro sentido de existência, o da existência
própria dos objectos concretos, individuais, através da solução do problema da conciliação no
conceito de unidade, do igual e do diverso. Ao sentido de existência relativo à unidade
enquanto conjunto de iguais corresponde o sentido de existência traduzido pelo quantificador
existencial, como predicado de segundo nível. Qual a formulação semântica que permitirá uma
tradução adequada desse outro sentido de existência que se predica das coisas individuais,
únicas e irrepetíveis?
5.2. Semântica dos nomes próprios
Frege distingue entre sentido e referência dos nomes próprios: o sentido é o «modo de
dar-se» do objecto, o aspecto sempre parcial segundo o qual designo o objecto. A mesma
referência pode ser designada segundo vários sentidos: «o discípulo de Platão», «o mestre de
Alexandre», «o filósofo de Estagira» são nomes próprios que designam o mesmo indivíduo,
«Aristóteles».
A atribuição de sentido aos nomes próprios é a principal inovação da semântica
fregeana dos nomes próprios. Russell considera a distinção fregeana entre sentido e referência
como urna «confusão inextricável» (an inextricable tangle)32, e defende que o significado de
14
um nome próprio é o seu referente; por isso, o acto de nomear implica um conhecimento
directo (acquaintance) da sua denotação. Assim, corno nenhum de nós tem um conhecimento
directo de Rómulo, é evidente que, para Russell, «Rómulo» não é logicamente um nome
próprio. Um nome próprio, em sentido estrito, apresenta a sua denotação através do
conhecimento directo (acquaintance) do seu referente. Para Frege, o nome apresenta-nos a sua
referência através de um sentido que exprime um aspecto, sempre parcial, do objecto
designado. Não há nenhum problema referencial no caso de um nome próprio (signo ou
expressão designatória) não ter referência; por esse facto não deixa de ter significado. Em
«Über Sinn und Bedeutung», Frege apresenta alguns exemplos de nomes próprios sem
qualquer referência: «o corpo celeste mais afastado da Terra», “a série que converge menos
rapidamente». Como o seu significado não consiste na sua referência, a falta desta não implica
um sem sentido.
Pelo contrário, para Russell, a ausência de referência envolve um sem sentido. A
ausência ‘de referência não pode ser substituída por um sentido porque, segundo Russell, uma
frase não fala sobre o sentido das palavras que contém, mas sobre as suas referências. Frege
concordaria com esta afirmação, mas considera que, em certos casos, as palavras referem, não
a sua referência habitual, mas o seu sentido: é o caso das palavras em discurso indirecto, citado
por Frege em «Über Sinn und Bedeutung». E seria o caso dos juízos negativos de existência
sobre singulares.
A ocorrência, num determinado contexto, de um nome próprio sem referência envolve,
segundo Russell, a falta de sentido dessa frase, como é o caso dos juízos existenciais negativos
sobre um ser individual. «A não existe» (A = nome próprio), de acordo com as teses de
Russell, é ou falso ou sem sentido: no caso de «A» ser realmente um nome próprio, «A» tem
necessariamente um referente e, portanto, é falso afirmar a sua não existência; se não é
efectivamente um nome próprio, a frase torna-se sem sentido. Para resolver o paradoxo
referencial, Russell apresenta duas soluções . 33
1) A primeira é a sua distinção entre existence e being. Being é um atributo que
pertence a qualquer possível objecto de pensamento, tudo o que possa ocorrer numa
proposição, verdadeiro ou falso. Portanto, being é um atributo geral de tudo, e mencionar seja o
que for é mostrar que isso é (being). Por isso, «A não é» é sempre falso ou sem sentido. Mas
existence não deve ser confundido com being e, portanto, «A não existe» pode ser verdadeiro,
pois A pode ser (being), mas não existir. A distinção russelliana tem os seus antecedentes em
Brentano e Meinong, que propunham objectos que não existem, objectos inexistentes, para
explicar a intencionalidade dos actos mentais. Como ficou dito, Frege resolve a questão através
da noção de sentido, evitando assim o recurso a esses estranhos objectos inexistentes; além
disso, a sua gradação dos modos de existir, desde os vários sentidos do possível até ao
existente actual, apresenta uma distinção mais aguda e mais precisa dos vários sentidos da
existência, evitando a solução referida de Russell, no fundo uma réplica da dicotomia de tudo o
que existe em possível (being) e real (existence).
2) A outra solução apresentada por Russell é a assimilação dos nomes próprios a
descrições definidas: o nome é substituído por uma «definição em uso» de uma descrição,
sendo uma descrição um símbolo incompleto que não designa nada em si mesmo, mas cujo uso
é definido no contexto de uma frase completa. Não há, portanto, referência a indivíduos, mas
sempre a predicados ou «feixes de predicados», e por conseguinte, não há nomes para
indivíduos inexistentes, o que resolve o problema da negação da existência: «O actual rei de
França não existe» é substituído por «Não há nenhum x para o qual é verdade que: x é
actualmente rei de França, e qualquer y que seja actualmente rei da França é idêntico a x » . 34
A teoria das descrições definidas de Russell encontra-se na sequência lógica da referida
tese de Kant sobre a existência. A consideração da existência como predicado não real limita as
proposições existenciais a afirmações (ou negações) sobre predicados reais. A noção das
descrições definidas é uma extensão desta mesma acepção de existência (como predicado não
15
real) às próprias proposições sobre singulares, assimilando os nomes próprios a uma
construção feita de predicados gerais e quantificadores. (Sócrates existe» significa que «há um
indivíduo que satisfaz uma série de predicados, predicados que se encontram abreviados e
representados pelo nome «Sócrates» que, em última análise, não é um nome próprio.) O
resultado da tese de Russell será pois uma linguagem construída por quantificadores e termos
puramente predicativos gerais, da qual se eliminam os nomes próprios.
É radicalmente diferente a unicidade expressa na formalização das descrições definidas
(“existe um x e só um, tal que X é F»), que remete para um só indivíduo que satisfaz esta
predicação. A indicação da unicidade através do quantificador faz-se mediante uma regra geral,
para a qual há um só caso que a preenche. Com os nomes próprios (em sentido estrito), estes
referem imediatamente um indivíduo particular e determinado que é precisamente este — o
próprio Sócrates — e não qualquer outro, insubstituível e irrepetível na sua individualidade.
Para salientar a heterogeneidade das descrições definidas em relação aos nomes
próprios, Kripke considera que estes são autênticas denominações essenciais, designadores
rígidos que se referem necessariamente a esse mesmo indivíduo em qualquer «mim- do
possível», isto é, em qualquer situação fáctica ou contrafáctica. Poderia dizer-se talvez que as
descrições definidas são designações de dicto, enquanto os nomes próprios são designações de
re.35
Qual a posição da semântica de Frege relativa aos nomes próprios? Terá partilhado a
tese de Russell, identificando os nomes com descrições definidas abreviadas, ou considerar-se-
á mais próximo da noção de Kripke de «designador rígido»?
Por um lado, ao tentar explicar o sentido de um nome próprio, Frege é levado
naturalmente a citar essas descrições definidas: o sentido de «Afla» corresponde ao sentido
expresso numa descrição da forma «A montanha vista pelo viajante A em tal data, a sul, na
linha do horizonte». Mas, como nota Dummett, isto não quer dizer que se identifique sempre o
nome com uma descrição definida; apenas deve haver um meio de reconhecer um objecto
como sendo o mesmo referente de dois nomes diferentes .36
É mais. plausível, portanto, que Frege tenha considerado a descrição definida apenas
como um dos modos de dar o sentido do nome, fornecendo um critério de identidade do
referente. Por outro lado, Frege não limita a categorização de nome próprio aos nomes
logicamente simples, o nome no sentido corrente, uma palavra simples que designa
imediatamente o seu objecto. Segundo a caracterização aristotélica, um nome não pode ser
decomposto em partes que signifiquem separadamente . 37 Pelo contrário, para Frege, são
nomes próprios também as expressões complexas; ou seja, as «descrições definidas», são
também nomes próprios, por designarem ou referirem um objecto determinado, e não, como
pensa Russell, um predicado ou conjunto de predicados. Na semântica de Frege, os predicados,
os atributos, as propriedades são traduzidas por «expressões incompletas» pertencentes a uma
categoria diferente e têm por isso um modo de referir diferente também.
Na verdade, a teoria das descrições definidas conduziria a situações paradoxais dentro
do próprio pensamento de Frege: se uma descrição definida é um modo de introduzir um nome,
dando-lhe o seu sentido e fornecendo-lhe um critério de identificação do referente, a descrição
assimilaria e dissolveria em si mesma as duas noções semânticas que Frege cuidadosamente
tenta distinguir. A descrição definida é, ela mesma, uma expressão referencial, um nome
próprio, no sentido fregeano. Não pode um nome próprio, constituir o sentido de outro nome
próprio, pois cairíamos numa cadeia infinita de nomes, dando-se indefinidamente os sentidos
uns aos outros. Não condiz esta formulação com a noção fregeana de nome próprio: palavra,
sinal ou expressão que designa um objecto. A expressão do sentido de um nome através, de
uma descrição definida é considerada por Frege como uma justificação epistémica permitindo
dar conta do que é saber o significado de um nome ou, simplesmente, dar uma via para o
conhecimento do seu significado.
16
Porém, falta à semântica dos nomes próprios de Frege o fundamento de uma lógica
analógica permitindo urna ordenação ou hierarquização dos predicados capaz de evitar o
igualitarismo ou nivelação dos possíveis sentidos, que vai pôr em causa a noção de objecto ou
de indivíduo. Os diferentes sentidos, como modos de dar-se de um objecto, são sempre partes
do mesmo objeto; não fornecendo um critério para a captação de um sentido primeiro
(equivalente à atribuição da essência ou da predicação da substância segunda à substância
primeira), Frege deixa desprotegida a noção de indivíduo. A nenhum sentido é atribuída a
função de fixar a referência. Assim, a referência identifica-se remotamente com o objecto, mas
este não determina decididamente o sentido. A referência-objecto não se apresenta nunca de
um modo totalmente fechado, como opacidade perante a mente, mas como foco irradiador de
sentidos. Frege garante assim que todos os nomes têm um sentido (o aspecto parcial que
exprimem do objecto denominado), ao preço de enfraquecer a potencialidade referencial de
todos os nomes. Neste ponto, Frege aproxima-se um pouco de Russell, na medida em que
nenhum nome é realmente, logicamente, próprio, mas sempre uma descrição definida, parcial,
não completamente referencial, ou frouxamente referencial. Dá-se um relaxamento na
linguagem, que é admitido e consentido pelo próprio Frege, na flutuação dos diversos sentidos
captados e expressos por diferentes pessoas, em diferentes situações, em relação a um mesmo
referente. Não se referem nunca propriamente os indivíduos em direto, mas sempre
obliquamente; a unicidade do indivíduo, na sua existência actual, perde-se de vista numa
floresta de predicados sem raízes.
Em conclusão, a semântica de Frege proporciona, com a teoria dos níveis de
linguagem, uma formulação adequada para a expressão do sentido lógico da existência —
existência enquanto predicado de segundo nível, ou predicado de predicados. Esta teoria é a
transposição semântica da, noção de quantificador; que constitui a melhor formalização lógica
do predicado da existência.
O modelo estratificado da linguagem, que aqui se apresenta, mostra bem a restrição
deste sentido de existência como predicado atribuível apenas a outros predicados de primeiro
nível, mas nunca, em via direta, a nomes de objetos. Esta restrição da formulação lógico-
semântica da existência está presente rio espírito de Frege e não lhe serviu de base para reduzir
a noção da existência a este sentido, apesar de ser o único logicamente formalizável.
Podemos considerar que as margens da noção de existência (no sentido de es gibt
‘há...’) assim expressa são: a) a existência do atual, Individual, concreto, único e irrepetível,
que pertence ao âmbito da atualidade (Wirklichhkeit). Para designar os existentes atuais, a
‘linguagem possui a categoria dos nomes próprios; b) o domínio do objectivo não atual, do
possível em sentido lato, que tem uma forma de existir encaixado no atual, constituindo o
universo real. A noção de «insaturação» aplicada às expressões incompletas e o
desenvolvimento de um modelo referencial adequado a esta categoria linguística constituem as
bases de uma formulação adequada para uma semântica do possível.
Estabelecer uma semântica dos nomes próprios, defender a noção de nome próprio
como expressão forte, real e diretamente referencial, implica reformular uma ontologia que dê
a primazia ao ser individual, concreto, mediante um regresso ou um sucedâneo à noção de
substância. Assim, a lógica do nome próprio reintroduz a noção de existência como predicado
próprio do que é actual, que é conhecido, captado e, portanto, atribuído, não pela via do
conceito, mas de alguma forma imediata na percepção sensível, ou mesmo na apreensão
intuitiva intelectual — possibilidade remota que Frege deixa no entanto entrever.
A teoria dos nomes próprios de Frege oscila entre esta última perspectiva, que seria a
base de uma formulação da semântica da actualidade, e uma perspectiva mais flutuante, na
qual os nomes se multiplicam indefinidamente e o próprio se esfuma entre a pluralidade de
possíveis nomes São duas teses antinómicas, em tensão no pensamento de Frege, que revelam
bem a dificuldade de conhecer e de dizer o indivíduo.
17
1 Este texto está publicado em Posthumoeus Writings, pp. 53-57. Haaparanta, L. Em “Frege on
Existence” in Frege Synthesized discute Frege, tendo como ponto de partida a tese da ambiguidade do
verso ‘ser’, que tanto pode significar existência, identidade, ou servir de cópula na predicação. A
ambiguidade foi detectada por Russell, partilhada por Frege, Wittgenstein e originou uma vasta
bibliografia sobre o assunto. Embora Frege, em vários escritos, se tenha ocupado das distinções entre
predicação e identidade, predicação e existência, não vou tratar aqui destas questões. Foram objeto de
análise em Couto Soares, Maria Luísa, Teoria Analógica da Identidade, Lisboa, Imprensa Nacional-
Casa da Moeda, 2001, sobretudo I Parte Identidade e Predicação.
2 Begriffsschrifft, eine der aritmetischen nachgebildete Formelsprache des reinen Denken (Halle) (1-
82), 1879. Trad. ing. Stefen Bauer-Mengelborg, in Heijenoort, J. van, From Frege to Gödel. A source
book in mathematical logic (1879-1931), Harvard University Press, Cambridge Massachussetts,
London, 1967 (Bs).
Indicamos a seguir as traduções inglesas das obras de Frege utilizadas para este trabalho, com as
respectivas abreviaturas: The Foundations of Arithmetic (trad. J. Austin) Oxford, Basil Blackwell, 1980
(Grl); The Basic Laws of Arithmetic (trad. Montgomery Furth) Berkeley, University of California Press,
1967 (Grg); Transiations from the Philosophical Writings of Gottlob Frege (trads. P Geach e M. Black)
Oxford, Basil Blackwell, 1980 (3ª ed.). Contém traduções dos escritos: “Funktion und Begriff” (FuB),
“Begriff und Gegenstand” (BG), «Über Sinu und Bedeutung” (SuB). Logical Investigations (trads. P.
Geach e R. H. Stoothoft),Yale University Press, 1977 Contém trad. de «Der Gedanke» (Ged.), «Die
Verneinung» e «Gedankengefüge». Posthumus Writings Edited by Hernes, H., Kambartel, F., Kaulbach,
F., Oxford, Basil Blackwell, 1979. 3 Bs § 4 4 Bs § 12
5 KANT, I. 1981 Kritik der reinen Vernunft, Suhrkamp, Frankfurt, B 266, A 219 (Os textos da Kritik
foram confrontados com a tradução portuguesa da edição da Gulbenkian, 2001). Cfr. HEIDEGGER,
1963 Kants These über das Sein, V. Klostermann, Francfurt-sur-le-Main. Tradução francesa: Questions
II, Gallimard, 1968, pp. 71-116. Heidegger aponta como fio condutor, para a elucidação da questão do
ser, a sua definição, bem como a das suas modalidades, a partir da sua relação com o entendimento:
“(...) l’Être et ses modalités sont à definir à partir de leur rapport à l’entendement.”
6 Cf. B 286-287 A 234. 7 Cf Bs § 12; Grl, § 47. 8 Cf B273 A225. 9 Cf Grl § 53. 10 B 173 A 225
11 Cf. KANT, Der einzig mögliche Beweisgrund zu einer Demonstration des Dasein Gottes, 1 abt. 1
Betr., 1, p. 191. 12 Cf Grl, § 53.
13 DUMMETT, M. 1981 Frege, Philosophy of Language, London, Duckworth, (2. ed.), p. 117. (FPL) 14 Cf BG, p. 50 15 Cf BG, p. 52 16 Cf. Grl § 29.
18
17 De acordo com o alemão, a tradução do termo Wirklkhkeit seria efectividade, que respeitaria as
relações de família com as palavras wirken (efectuar) e Wirkung (efeito).
No entanto, muitos dos tradutores ingleses (P. Geach, M. Furth, Stoothoft) preferiram traduzi-lo por
actualidade, que tem um sentido mais lato do que efectividade: esta palavra designa o modo ou estado
do ente que consiste em ser em acto ou ser de facto, sem referência ao fundamento de ser de facto. O
efectivo é o facto de existir que se situa na articulação do dado numa intuição empírica e o pensado
segundo a forma de uma predicação modal (existencial) que, como sabemos, não é, em Kant, uma
determinação real. Este carácter extraconceptual remete para o facto de o objecto ser dado
sensivelmente. O actual não designa na entidade o simples facto de existir, mas abarca o próprio
fundamento do facto de existir. Não são dimensões. contrapostas, mas constituem níveis diferentes de
entidade que se relacionam entre si como o fundamento e o fundado.
Tendo em conta todo o pensamento de Frege sobre existência, parece mais congruente a
tradução de Wirklichkeit por actualidade, noção que Frege não apresenta como o simples facto de
existir, mas como um modo intensivo de existir dos seres individuais, do que acontece verdadeiramente
em virtude de se fundar num determinado pensamento. Note-se o que Frege afirma do facto: um facto é
um pensamento que é verdadeiro(cf. Ged. p 25).
18 Cf. Grl § 29. 19 Cf Grl § 38. 20 Cf. §§ 40-49. 21 Cf. § 54
22 Cf. QUINE, 1980 From a Logical Point of View, Harvard Universlty Press, Cambridge (Mass.), pp.
1-19 e 65-79; Quine considera Frege, a par de Russell, Whitehead, Church e Carnap, como logicista, e o
logicismo não é senão, no seu entender, um ressurgimento do realismo (no que respeita ao problema dos
universais), assim como o inituicionismo é o ressurgimento do conceptualismo; e o formalismo, do
nominalismo: “Logicism, represented by Frege, Russell, Whitehead, Church and Carnap condones the
use of bound variables to refer to abstract entities known and unknown, specifiable and unspeccifiable,
indiscriminalely» (ibid., p. 14). 23 Cf. HEIDEGGER, ob. cit. p. 24 Ibidem B 255 A 218 , B 256, A234. 25 Cf. §§ 94-95. 26 Ged, p. 28. 27 Cf. Grl, § 55. 28 BG, p. 50.
29 O sentido mais claro de insaturação é o que se aplica a algumas expressões linguísticas. Um signo é
insaturado quando contém pelo meios um lugar vazio no qual se pode introduzir outro signo que produz
o efeito de completar expressão inicial. Assim, um predicado é insaturado, tal como urna expressão
funcional, pois é evidente o lugar vazio que pode ser preenchido com o nome de um objecto ou com um
argumento. Toda a expressão saturada, completa, pertence , na semânt1ca de Frege, à categoria dos
nomes próprios, ou nomes de objectos. Uma proposição, que tem como referente o V ou o F, é também
um nome, neste caso um dos possíveis nomes do V ou do F.
Note-se que são estes lugares vazios, visíveis na própria linguagem e simbologia de Frege [(a
capital de...), 2 (...)2] que tornam possível a própria actividade predicativa. Não poderíamos predicar,
julgar, pensar se todos os signos fossem nomes. Sem esses vazios, estaríamos, como um jogador de
xadrez diante de um tabuleiro cujos lugares estivessem totalmente preenchidos pelas peças,
impossibilitado de realizar qualquer momento. Regressaríamos à completa imobilidade e inefabilidade
parmenidiana
A noção da insaturação permite pois desenvolver o que poderíamos considerar a semântica do
possível, complemento da semântica do existente actual. 30 Cf. Dummett, ( 1981) FPL, caps 2 e 3.
19
31 Cf. GEACH, «Ontological Relativity and Relative Identity, in Munitz, M. (1973), Logic and
Ontology, New York, New York University Press, p. 291. A tese de Geach foi discutida, entre outros,
por D. WIGGINS, (1980 )Sameness and Substance, Oxford, Basil Blackwell. 32 Cf. RUSSELL, B. “On denoting», (1977) Logic and Knowledge, Edited by R. C Marsh, George
Allen & Unwin, , p. 50. 33 Cf. Russell, B. (1973) The Principies of Mathematics, New York: Norton and Co., (2ª ed.), p. 494. 34 Cf. “On denoting”, p. 53
35 Cf. Russell, The Principles of Mathematics, p.217-218 e KRIPKE, S. 1980, Naming and Necessity,
Cambridge (Mass.) Harvard University Press, pp. 48-58. 36 Cf. Dummett, FPL, p. 58. 37 Cf. De Interpretatione, 16a20-21.
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20
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