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A noite de SÃO BARTOLOMEU Erros e mentiras históricas CHARLES BARTHÉLEMY GRUPO DE ESTUDOS SÃO PIO X RIBEIRÃO PRETO - 2013

A noite de São Bartolomeu

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Page 1: A noite de São Bartolomeu

A noite de

SÃO BARTOLOMEUErros e mentiras históricas

CHARLES BARTHÉLEMY

GRUPO DE ESTUDOS

SÃO PIO X

RIBEIRÃO PRETO - 2013

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“Deus permitiu que o erro e a mentira tivessem seu momento; contudo, por mais longo que este tempo nos pareça, ele é, aos seus

olhos, apenas o espaço que separa o hoje do amanhã. A noite desapareceu e se esvaiu, a aurora renasceu, e com ela o dia que

brilha, consola, rejubila, e, sobretudo, fortifica os corpos, os espíritos e os corações...

A melhor demonstração será sempre o fato verdadeiro, simples, apresentado em plena luz aos homens que buscam de boa fé a verdade, esta verdade contra a qual, há mais de três séculos, há

toda uma vasta conspiração de mentira organizada!”

“O homem é frio com as verdades; Ele arde pela mentira”

Charles Barthélemy

OBRA EXTRAÍDA E TRADUZIDA DO ORIGINAL:

ERREURS ET MENSONGES HISTORIQUES

CH. BLÉRIOT, PARIS, 1875.

Capa : Carlos IX

GRUPO DE ESTUDOS

SÃO PIO X

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RIBEIRÃO PRETO

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INTRODUÇÃO

inguém, que saibamos, tinha ousado, antes de nossa época1, responder em detalhes às declamações dos protestantes e dos filósofos relativas à noite de São Bartolomeu, pois todo mundo temia se passar pelo apologista de uma ação que todos abominavam: assim, o erro cresceu de tempo em tempo pela falta de ter sido refutado em

seu nascimento. O momento de destruí-lo é mais apropriado hoje do que nunca. Distantes três séculos deste fato bastante memorável, nós podemos contemplá-lo sem viés: podemos responder claramente sobre os motivos e os efeitos deste acontecimento terrível, sem sermos os aprovadores tácitos de uns, ou os contempladores insensíveis dos outros.

Fundamentados sobre provas incontestáveis, das quais o maior número nos é fornecido por autores protestantes, nos comprometemos em estabelecer: que a religião católica não teve nenhuma participação na São Bartolomeu; que esta foi uma questão de proscrição, que ela deveria ter contemplado somente Paris; enfim, que pereceram menos pessoas do que se escreveu. É ao exame destes quatro pontos principais - cujo primeiro e o último necessitam mais, sobretudo, de demonstração, por causa das numerosas mentiras que se ligam a eles - que consagraremos estas páginas.

1 Veja no fim deste artigo, o resumo do que Carné e Falloux disseram sobre a São Bartolomeu - o primeiro, na Revista dos dois mundos, o segundo, no Correspondente.

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I - A RELIGIÃO NÃO TEVE NENHUMA PARTICIPAÇÃO NA SÃO BARTOLOMEU2.

preciso ter se despojado de toda justiça para acusar a religião católica pelos males que nossos pais sofreram durante as infelizes guerras que desolaram a França sob os reinos de três irmãos, e ainda mais para lhe

atribuir a resolução de Carlos IX; ela não participou delas, nem como motivo, nem como conselho, nem como agente. Achamos a prova do que adiantamos, nos procedimentos dos calvinistas, nas confissões de Carlos IX e na conduta dos parlamentos: a iniciativa de elevar dois reis, de subtrair várias cidades à sua obediência, de introduzir tropas estrangeiras no reino, de ter quatro batalhas arranjadas entregues à sua soberania, eram motivos de indisposição muito poderosos para irritar o monarca e tornar os temas odiosos; assim, Carlos IX escrevia, após a São Bartolomeu, a Schomberg, seu embaixador na Alemanha: "Não me foi possível suportá-los por muito mais tempo".

A religião tinha tão pouca participação, como motivo, na São Bartolomeu, que o martirógrafo dos calvinistas34 relata que os assassinos diziam aos transeuntes, mostrando-lhes os cadáveres: "São estes que queriam nos violentar, a fim de matar o Rei". Ele diz também5:

"Os cortesões riam em alta voz, dizendo que a guerra tinha realmente acabado, e que eles viveriam em paz no futuro; que era preciso fazer assim os editos de pacificação, não com papel e deputados".

O mesmo autor ainda nos fornece uma prova de que a religião não foi o motivo desta execução terrível, quando ele diz que o parlamento de Toulouse mandou publicar de alguma forma a vontade do Rei, pela qual eram feitas salvaguardas de não molestar em nada aqueles da religião (reformada), mas de favorecê-los6. Semelhante edito tinha sido publicado em Paris desde 26 de agosto; o autor dos Homens ilustres não está de forma alguma persuadido da sinceridade desta declaração; entretanto, é preciso se alimentar do espírito de De Thou para ver por toda parte, como ele, nesta questão, a religião, e sempre a religião.

Bem! Quem necessitaria de um motivo religioso aí onde o interesse pessoal, a inveja, o ódio, a vingança, talvez mesmo a segurança do príncipe, ou, pelo menos, a refeição comum7, se uniam para aconselhar a derrota dos rebeldes? É, portanto, injuriar o bom senso tanto quanto a religião, ao atribuir a um tipo de entusiasmo uma resolução tomada por pessoas que mal entendiam o significado de zelo.

Entretanto, se a religião não teve nenhuma participação, como motivo, no massacre, ela participou muito menos como conselho. Não vemos, com efeito, nem cardeais, nem bispos, nem padres admitidos nesta deliberação; o próprio 2 N.d.t.: O autor diz: a São Bartolomeu, na São Bartolomeu, pelo simples fato que ele está se referindo à noite de São Bartolomeu, na noite de São Bartolomeu. Por isso, que nossos leitores não estranhem esse modo de mencionar a data. 3 N.d.t.: Não há uma tradução possível, por isso o termo foi deixado como tal. 4

História dos mártires perseguidos e assassinados pela verdade do Evangelho, desde o tempo dos apóstolos até 1574. Edit. de 1582, p. 713, folio recto. 5 Ibid., folio verso. 6 Ibid., p. 730, folio recto. 7 N.d.t.: A mesma mesa, a mesma casa, a mesma família.

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duque de Guise foi excluído dela; e haveria tanto mais injustiça ao imputar aos católicos o horror deste acontecimento, quanto de atribuir o assassinato do cardeal de Lorraine e de seu irmão à instigação dos calvinistas.

Se, com a notícia deste terrível golpe de Estado, foram dadas solenes ações de graças em Roma, se Gregório XII foi em procissão da igreja de São Marcos à de São Luís, se ele demonstrou certo júbilo8, se ele mandou cunhar uma medalha, todas estas demonstrações de reconhecimento, em vez de satisfação, tiveram por único e verdadeiro princípio, não o massacre dos huguenotes, mas a descoberta da conspiração que eles tinham tramado, ou, pelo menos, da qual o rei de França os acusou formalmente em todas as cortes da cristandade.

Se Carlos IX, após ter conservado um sangue precioso até então à França, quis forçar o rei de Navarra e o príncipe de Condé a ir à missa, isso se deu menos para ligá-los à fé católica que para separá-los do partido huguenote. (...) Com efeito, se, após ter conduzido estes príncipes a uma abjuração, ele tivesse empregado todos os meios honestos para conservá-los na religião católica, os calvinistas, de quem ele acabava de abater seu líder, não teriam tido mais ninguém para colocar em sua liderança, e as guerras civis teriam cessado.

Quanto menos ele empregou esses meios, mais ele possibilitou a posteridade de se persuadir de que ele não consultou a religião católica. Ela não contribuiu, portanto, em nada, no dia da São Bartolomeu, como conselho, independente do que diga o autor dos Homens ilustres e sua inscrição imaginada a bel-prazer. Ignoramos sobre quais memórias este escritor trabalhou, mas sua afetação em escondê-las torna suas anedotas muito suspeitas, sortudo se a suspeita não se estender mais adiante.

Os Ensaios sobre a História geral não são nem mais favoráveis à religião, nem mais conformes à verdade, quando eles expõem que a resolução do massacre tinha sido preparada e meditada pelos cardeais de Birague e de Retz, sem observar que estes dois personagens só foram revestidos da púrpura muito tempo depois deste período9.

Entretanto, poder-se-ia acusar a religião católica de ter entrado como agente na São Bartolomeu, ela que abriu por toda parte suas portas a estes desafortunados que o furor do povo ainda perseguia, quando a cólera do soberano já tinha se acalmado?

Carlos IX, não querendo e não tendo jamais desejado que a proscrição se estendesse além de Paris, despachou correspondência no dia 24, por volta das seis horas da tarde, a todos os governadores das províncias e cidades, a fim de que eles tomassem medidas para que não acontecesse nada semelhante ao que tinha ocorrido na capital.

E baseados nestas ordens, os governadores providenciaram, cada um ao seu modo, segurança aos calvinistas: assim, em Lyon, enviaram-se muitos deles às prisões do arcebispado, aos Celestinos e aos franciscanos. Se há dúvidas de que isso se deu em vista de salvá-los, que leiamos o Martirólogo dos

8 Indicto jubileo christiani orbis populos provocavit ad Galliae religionem et regem supremo numini commendandos. Bonanni: Numismata pontificum romanorum à tempore Martini V, usque ad annum 1699, etc., t. I, p. 336. 9 O primeiro, em 1578, e o segundo, em 1587.

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calvinistas: Aí é dito que enviaram, nesta intenção, aos Celestinos, trinta, em um momento, e vinte em outro.

E se as prisões do arcebispado não os preservaram do furor de alguns celerados, vemos neste mesmo Martirólogo que os assassinatos foram cometidos sem o conhecimento e durante a ausência do governador, que os cessaram ao seu retorno, e que quis localizar e punir os autores.

"Foi instaurado um processo verbal, pela justiça, para saber como as grades tinham sido quebradas pela emoção popular, e fizeram publicar em alta voz que aqueles que denunciassem os autores do fato receberiam cem escudos10. Os conventos serviram de asilo aos calvinistas de Toulouse. Em Bourges, alguns católicos pacíficos refugiaram alguns deles11”.

Em Lisieux, o bispo (Hennuyer) se opôs, não à execução cruel das ordens do rei, pois era falso que ele as tinha enviado às províncias, mas ao furor de alguns homens que o governador não podia conter, de tanto que eles estavam excitados ao homicídio pelo exemplo, pela avareza, ou mesmo pelo ressentimento12.

Em Romans: "Os católicos mais pacíficos quiseram salvar vários de seus amigos, e dos sessenta que tinham sido detidos, eles libertaram quarenta; ao que, de Gordes, governador da província, que não era cruel, contribuiu; e dos vinte restantes, eles salvaram ainda treze; pereceram apenas sete, por terem muitos inimigos e portarem armas".

Em Troyes, um católico quis salvar Étienne Marguien. Em Bordeaux, vários foram salvos por padres e outras pessoas, das quais eles não esperavam tais socorros13.

Em Nîmes, os católicos, esquecendo-se que seus concidadãos huguenotes os tinham massacrado duas vezes a sangue frio, se uniram a eles para salvá-los de uma carnificina suficientemente autorizada pelo exemplo, assaz desculpada pelo ressentimento, de forma nenhuma permitida pela religião. A ferida que os calvinistas tinham feito à quase todas as famílias católicas desta cidade14 ainda sangrava; elas se recordavam das noites fatais onde eles tinham decapitado seus irmãos, a luz de tochas, em procissão, e com o cruel aparato dos sacrifícios da Taurique; foi, cremos, a única procissão15 que os calvinistas tinham feito. Se os católicos se demonstraram mais humanos que eles, isso foi pelo fato de que eles eram melhores cristãos; tal ato de humanidade, saído do seio do distúrbio, só pôde nascer da caridade.

Mas por que procurar fora de Paris exemplos de compaixão? Esta capital nos forneceu tais exemplos; um historiador calvinista os conservou:

"Entre os senhores franceses que foram notáveis por terem garantido a vida a muitos confederados, os duques de Guise, d'Aumale, Biron, Belliévre e Walsingham, embaixador inglês, os obsequiaram mais... mesmo depois de terem insinuado ao povo que os huguenotes, para matar o Rei, tinham querido

10 N.d.t.: Moeda antiga 11 P. 716, folio recto. 12 Ver sobre esse assunto de Falloux . Correspondant de 1843, p. 166 a 168. E o Martyrologe des calvinistes, p. 728, fol. recto. 13 P. 718, fol. recto; p. 730, fol. verso. 14 Em 1567 e em 1569. Veja Ménard: Hist. civile, ecclés. et litt. de Nîmes, t. V, p. 9 e seg., e p. 30. 15 Podemos ver aí a ordem e a marcha na obra supracitada. T. V, no ano de 1567.

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violentar os guardas, e que eles já tinham matado mais de vinte soldados católicos. Então, este povo, guiado por um desejo de religião, junto à afeição que ele tinha por seu príncipe, teria deixado muitos mais mortos, se alguns senhores, satisfeitos com a morte dos líderes, não o tivesse amiúde dissuadido. Mesmo vários italianos, correndo montados e armados pelas ruas, tanto da cidade quanto dos subúrbios, tinham aberto suas casas somente para o refúgio dos mais sortudos16".

Os católicos salvaram da cólera do príncipe e do furor do povo, portanto, aqueles que eles puderam. Não houve em nenhuma das cidades infortunadas quem não lhes fosse devedor da conservação de alguns cidadãos calvinistas: todas experimentaram, nesse momento fatal, deste espírito de caridade que caracteriza a verdadeira religião, que distingue seus ministros, que abomina o homicídio e o sangue. Mesmo Genebra seria ingrata, se ela não os louvassem por isso; é a um padre de Troyes que ela deve o benefício de contar, entre seus homens ilustres, com um dos médicos mais célebres da Europa. Se este padre não tivesse salvado o pai de Tronchin, faltaria, no século XVIII, um ornamento a esta República, uma luz em sua Academia, um socorro aos seus concidadãos.

Se estes atos de humanidade não expurgam suficientemente a religião das reprovações que ainda lhe fazem todos os dias, talvez, o sangue de vários católicos, misturado com aquele de seus irmãos desgraçados, e derramado pelo ódio ou pela avareza, apagarão até a menor das suspeitas. A licenciosidade, inseparável do tumulto, fez perecer muitos católicos. "Sendo huguenote, diz Mézeray17, como tendo dinheiro ou encargos invejados ou herdeiros famintos". Se tivéssemos conservado os nomes dos católicos que foram imolados pela vingança ou pela ganância, ficaríamos surpresos com o número desta espécie de mártires. O governador de Bordeaux extorquia os católicos, como os protestantes, e mandava matar mesmo aqueles que tinham o meio de pagar18. Em Bourges, um padre, detido na prisão, aí recebeu a morte. Em La Charité, a mulher católica do capitão Landas foi apunhalada. Em Vic, no território de Messin, o governador foi assassinado. Em Paris, Bertrand de Villemor, mestre das petições, e Jean Rouillard, cabido de Notre Dame, conselheiro no parlamento, tiveram a mesma sorte. Bem! Quantos outros católicos foram envolvidos somente pela confusão nesta terrível proscrição?

Esperamos que, após os fatos que acabamos de citar, não se vejam mais nos ministros da vingança de Carlos IX nem furor religioso, nem mãos armadas completamente de crucifixos e de punhais, como Voltaire aprouve inventá-los, e como uma ópera moderna, muito famosa, os representa em pleno século XIX.

16 Veja a Popelinière: Histoire de France, etc., depois do ano de 1550, até em 1577. Ed. de 1581, livro XXIX, p. 67. 17 Citado no Histoire des martyrs, etc., l. c. sup., p. 731, folio recto. 18 Ibid., p. 724, fol. verso.

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II - A SÃO BARTOLOMEU FOI UMA QUESTÃO DE PROSCRIÇÃO

e não tivessem feito elogios singulares do almirante Coligny, se a maioria dos franceses ainda não o olhasse, acreditando em um apologista ou um poeta19, como um modelo de honestidade, quando eles deveriam ver nele

somente um líder de rebeldes; se, em favor de suas virtudes guerreiras, não lhe presumissem gratuitamente todas aquelas que constituem o bom francês e o bom servo do rei, seria inútil questionar o motivo que determinou Carlos IX e seu conselho à terrível extremidade em que eles se colocaram. Mas, visto que apraz a muita gente duvidar dos erros reais, ou melhor, dos crimes daqueles que pegam em armas contra seu soberano e amotinam contra ele uma parte de seus súditos, é indispensável investigar sua conduta; encontraremos nela a verdadeira causa de sua proscrição.

A partir do momento em que os huguenotes pegaram em armas, eles se tornaram criminosos de lesa-majestade. Foi em vão que eles diziam então, e que dizem ainda, que isso se deu para o serviço do rei e contra os empreendimentos dos príncipes de Guise; estes empreendimentos não teriam jamais existido sem a inveja dos Coligny; foi ela que gerou as perturbações do reino e as inquietações de Catarina de Médici. O crime do almirante e dos senhores, seus cúmplices, era, portanto, tão antigo quanto a primeira tomada de armas, sem que os editos de pacificação tivessem interrompido sua continuidade, ainda que eles tivessem assegurado o perdão deles.

A prova desta rebelião não interrompida se encontra, quanto ao almirante, no diário de suas receitas e de suas despesas, sucedido no conselho do rei e no parlamento; vemos aí que, sob pretexto de levantar dinheiro para o pagamento dos mercenários, e em prejuízo das proibições dadas pelos editos de pacificação, "ele levantava e exigia dos súditos do rei, que eram da religião, uma tão grande e enorme soma de fundos, que as pobres pessoas eram espoliadas de todas as suas faculdades". Seus papéis, dos quais só tivemos conhecimento após sua morte, continham disposições e projetos que teriam bastado para fazê-lo perecer sobre um patíbulo, se a prova disso tivesse sido obtida. Mas o que não se podia provar juridicamente, se podia suspeitar em razão da extensão de seus cavaleiros, que o rodeavam continuamente, que lhe ofereciam seus braços, que quererão se armar para vingar imediatamente sua lesão. Bellièvre dizia aos deputados dos Treze Cantões, falando de seus papéis:

"Eu sei onde eles estão, o rei os viu, todo seu conselho também, como também sua corte de Parlamento, que podemos dizer de uma ordem política que foi encontrada entre seus papéis? Pelos quais pareceu ao rei que o dito almirante tinha estabelecido, em dezesseis províncias de seu reino, governadores, líderes de guerra, com certo número de conselheiros que tinham o encargo de manter o povo armado, reuni-lo e armá-lo aos primeiros comandos de sua parte; aos quais era dado o poder de levantar anualmente, entre os súditos de Sua Majestade, notável soma de recursos".

19 Voltaire, em sua Henriade.

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Para entender a qual ponto o almirante tinha se tornado odioso a Carlos IX, teríamos que ler o que este príncipe escrevia a Schomberg, seu embaixador junto dos príncipes da Alemanha:

"Ele tinha mais poder, e era mais obedecido por aqueles da nova religião, do que eu, tendo condições, pela grande autoridade usurpada sobre eles, de levantá-los e fazer-lhes pegar em armas contra mim, todas e quantas vezes lhe agradasse; assim como várias vezes ele assaz demonstrou isso; e recentemente ele já tinha enviado seus comandos a todos aqueles da dita nova religião, para todos se encontrarem, armados, no terceiro mês, em Melun, bem próximo de Fontainebleau, onde, nesse mesmo tempo, eu deveria estar; de sorte que se assumindo tal poder sobre meus ditos súditos, eu não podia me dizer rei absoluto, mas comandante somente de uma das partes de meu reino; portanto, se aprouve a Deus me livrar dele, tenho, pois, uma oportunidade de louvá-lo e bendizê-lo pelo castigo justo que Ele deu ao dito almirante e seus aos cúmplices. Não me foi possível suportá-los por muito mais tempo, e resolvi estender o curso de uma justiça, na verdade, extraordinária, e diferente do que eu teria querido, mas que, para semelhante pessoa, era necessária exercer20".

É óbvio que esse súdito rebelde sustentava continuamente um partido temível à autoridade real, e cavava sob o trono minas prestes a explodir no primeiro momento favorável: ele era, pois, incessantemente um criminoso de lesa-majestade, e, consequentemente, ele deveria ter se tornado odioso a Carlos IX e ao seu conselho. Ele ameaçava a todo o momento o rei e a rainha com uma nova guerra civil:

"... por pouco que Sua Majestade cede em lhe atender suas demandas, por mais injustas e despropositadas que elas fossem - diz Bellièvre. Quando o rei não quis, ao seu agrado, romper a paz com o rei da Espanha para lhe fazer a guerra em Flandres, ele não teve vergonha em lhe dizer, em pleno conselho, e com uma arrogância inacreditável, que se Sua Majestade não queria consentir em fazer a guerra em Flandres, ele podia se assegurar de tê-la logo na França, entre seus súditos. Não há dois meses que se recordando de tal arrogância, Sua Majestade dizia a alguns de seus servos, entre os quais eu estava, que quando ele se via assim ameaçado, seus cabelos se arrepiavam sobre a cabeça".

Não é preciso crer que o presidente de Bellièvre seja o único que tenha falado deste modo; as Memórias de Brantôme, de Tavannes, de Montluc e o sermão do bispo de Valence aos poloneses, estão repletas destas reprovações fundamentadas sobre os fatos. "Os huguenotes não podiam esquecer a palavra que lhes custou tão caro em 24 de agosto de 1572, diz Tavannes: Faças a guerra com os espanhóis, Sir, ou seremos constrangidos em fazer-lha".

É este projeto de guerra que terminou com a perda do ambicioso almirante; Carlos IX provou muito deste plano, para o infortúnio daquele que o tinha constituído, visto que este súdito ousado se tornou assaz atrevido para tentar destruir Catarina de Médici no espírito e no coração de seu filho. Embriagado por um princípio de favor, ele se esqueceu da afeição do rei por sua mãe, ele a pintou aos olhos deste príncipe com cores muito fortes para serem perdoadas. Ele lha representou manipulando, a seu bel-prazer, as rédeas do império, detendo toda a autoridade, preferindo a reputação do duque d'Anjou à glória do rei e dos verdadeiros interesses do Estado. Ele aconselhou Carlos IX a sacudir

20 Esta carta é de 13 de setembro de 1572.

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este jugo; ele o tornou inquieto sobre um poder do qual ele mesmo estava cioso, que ele teria querido abater para elevar o seu; ele antecipou sua perda, pois ele não podia concluir a de Catarina e de seu conselho, e por isso ele se mostrou ao mesmo tempo um mau político, um mau servo e um mau cidadão. Com qual temeridade ou mesmo com qual audácia ele ofereceu a Carlos IX milhares de homens para conduzir a guerra nos Países-Baixos? O rei, provendo Tavannes dos meios de empreender esta guerra, não esqueceu a oferta de Coligny, que ele não indicou a Tavannes; entretanto, este servo zeloso e fervoroso, que sabia bem o que o almirante poderia fazer com tais ofertas, respondeu a seu mestre:

"Aquele de vossos súditos que vos traz tais palavras, o senhor lhe deves mandar cortar a cabeça; como ele vos oferece o que pertence a vós? Isso é sinal de que ele os ganhou e corrompeu, e que ele é líder de partido em vosso prejuízo; ele formou para si estes dois mil de vossos súditos, para ajudá-lo em uma necessidade contra vós".

Reflexão judiciosa da qual a viva imagem custou caro ao almirante.

Se acrescentarmos a estas queixas do momento, os erros passados que um edito jamais apagou suficientemente bem, visto que ainda restavam deles alguma impressão deplorável; se nos recordarmos dos motivos que tinham determinado a corte a prender o príncipe de Condé e o almirante em Noyers; o decreto do parlamento (13 de setembro de 1569) que tinha condenado este último a perder a cabeça; os cinquenta mil escudos de ouro prometidos (decreto de 28 do mesmo mês) àquele, francês ou estrangeiro, que o entregasse; e, sobretudo, como diz Montluc, "o percurso que ele fez o rei percorrer, de Meaux à Paris, mais rápido que o passo21"; nos persuadiríamos sem dificuldade de que esse súdito tinha se tornado insuportável tanto ao filho quanto à mãe, e à seu conselho íntimo, e a partir de então, quem poderia duvidar que a São Bartolomeu não foi uma verdadeira proscrição, cujos diferentes motivos reunidos, e semelhantes às nuvens, se juntaram sobre a cabeça de Coligny e de seu partido, para formar, enfim, a tempestade donde partiu a condenação que o esmagou?

Não se observou suficientemente, parece-nos, a enorme propensão do historiador de Thou pelos calvinistas, e, sobretudo, por Coligny; não se poderia observar muito este espírito de parcialidade em um autor que se acostumou em se ver como a própria fidelidade. De todos os preconceitos, no fundo da história, o mais perigoso é aquele de uma veneração mal entendida pelos escritores, e, certamente, de Thou não é sempre digno disso. Que julguemos isso por sua afeição em relatar e afirmar dois artigos do Journal do almirante. "Um é o aviso dado ao rei para tomar cuidado ao assinar o apanágio de seus irmãos, para não lhes conceder muita autoridade"; o outro é um memorando que deveria ser comunicado somente ao rei, onde ele "observava que se ele não aceitasse as condições propostas pelos flamengos revoltados contra a Espanha, eles não faltariam em se entregar aos ingleses, que se tornariam os inimigos da França a partir do momento em que eles tivessem posto o pé nos Países-Baixos".

Eis belas provas de zelo! Quando de Thou as reunia com cuidado e as relatava com complacência, ele acreditava, sem dúvida, que, baseada em sua palavra,

21 Veja suas Memórias, desde o ano de 1530 até sua morte, em 1573, dirigidas por seu filho. (Edition de Paris, 1574, in-8º, p. 407).

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a posteridade veria aí apenas afeição e fidelidade; ele acreditava que ela se esqueceria quanto o almirante tinha interesse em ver o rei atrapalhado com seus irmãos e com a Espanha.

Se Carlos IX tivesse pedido a Coligny sua impressão sobre o modo de regular o apanágio dos príncipes, poderíamos crer que sua sinceridade seria efeito do zelo, e precisaríamos agradecê-lo por isso; mas, esta seria uma opinião dada por alguém de que não a tinham solicitado; opinião que deveria gerar na família real uma divisão cujo partido do almirante teria aproveitado. Sabemos que ele detestava o duque d'Anjou: seria, portanto, para se vingar dele, ou para melhor se proteger dele, que ele queria que sua autoridade fosse diminuída. Sabemos também que o duque d'Alençon pendia para o chefe dos huguenotes (...) Não há, portanto, nada neste primeiro aviso que mereça elogios. O outro está ainda mais marcado pelo interesse.

A rebelião dos Países-Baixos era obra da Reforma; a extensão e o fortalecimento da seita dependiam disso. Ajudar os calvinistas de Flandres a sacudir o jugo, era impô-lo aos católicos da França, era aumentar as forças do partido. Os revoltados poderiam fracassar em sua iniciativa, visto que Isabel não queria favorecer sua rebelião. O almirante deveria desempenhar um papel nesta guerra; ele tinha negócios com um príncipe do qual seria preciso incitar o ardor pela inveja, e determiná-lo, o provocando a isso; ele lhe fez temer que os ingleses se apoderariam deste país, e ele sabia, ao contrário, que sua rainha não queria isso. Havia, portanto, interesse particular, injustiça geral e má fé neste belo memorando, que era basicamente o que o almirante tinha dito a Carlos IX para engajá-lo a suportar a guerra nos Países-Baixos.

Quem olha sob este ponto de vista os dois artigos recolhidos e relevados por de Thou, longe de ver aí algo que mereça o menor elogio, aprenderá a ler este historiador com uma desconfiança sensata, que sozinha pode impedir que tal leitura se torne tão perigosa. É desta fonte suspeita que o autor das Vidas dos Homens ilustres tirou o que ele nos disse de bom do almirante Coligny; é daí que ele tirou que a pesquisa feita nos papéis deste rebelde "não puderam fornecer nada que pudesse gerar a mais leve suspeita" contra ele22...

Se todas estas coisas não caracterizam o sujeito rebelde, como se reconhecerá doravante a rebelião?

Eis, no entanto, esta honestidade tão elogiada por nossos historiadores antigos e modernos, tão celebrada por Voltaire em seu Henriade, tão acreditada entre aqueles que são sempre levados a crer em tudo o que tende a aumentar os erros de um governo.

O excesso é condenável tanto na culpa como nos elogios. Coligny tinha virtudes guerreiras, mas lhe faltavam aquelas que caracterizam o verdadeiro servo do rei; sua probidade não era de tal modo refinada, assim como ele teve, em suas ações, um mistura de inveja contra os Guises, e um grau de ambição desordenada que o tornarão sempre criminoso aos olhos dos juízes desinteressados. Aqueles que tomaram a iniciativa de fazer a apologia de Coligny deveriam ter que, antes de tudo, justificá-lo da suspeita, muito bem fundamentada, de ter conduzido a mão de Poltrot. Não foi a deposição deste bandido que nos fez olhar o almirante como seu cúmplice, ou mesmo seu instigador; são suas defesas, suas próprias confissões.

22 Comentário de Blaise de Montluc, etc., desde o ano 1511 até 1572, livro VII.

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Admitir, em uma carta à rainha23, que há cinco ou seis meses, nisso, ele não desafiou suficientemente aqueles que mostraram ter tal vontade; dar por razão de sua não oposição a uma ação tão detestável, que ele tinha sido avisado de que pessoas tinham sido consagradas para matá-lo; não nomear estas pessoas no curso de sua justificação, posto que ele tinha dito que ele as nomearia quando fosse a hora; confessar em suas respostas que Poltrot se adiantou até em lhe dizer que seria fácil matar o duque de Guise, mas que ele, almirante, jamais insistiu sobre esse propósito.... Ter dado a Poltrot cem escudos para comprar um cavalo que fosse um excelente corredor; admitir, em um segundo memorando, que, quando Poltrot lhe tinha considerado que seria fácil matar o senhor de Guise, ele não lhe respondeu nada. Declarar, em uma carta à rainha, que ele estimava que a morte do duque de Guise fosse o maior bem que poderia advir ao reino e à Igreja de Deus, e pessoalmente ao rei e a toda a casa dos Coligny. Recusar todos os parlamentos que existiam então na França24, e mesmo o grande conselho, dizendo que seu incidente deveria ser examinado apenas por pessoas admitidas do exército, e não pela chicana, pouco conveniente à pessoas desta qualidade. Reclamar, enfim, como último recurso, o privilégio da abolição conduzida pelo edito de pacificação, o que não é, para um criminoso, uma deposição tão honrosa quanto a via da prescrição o é para um devedor. Todas estas coisas imprimem sobre a vida do almirante uma mancha que nem os poetas nem os historiadores saberiam apagar, assim como a narração da constância e da resignação que ele mostrou após sua lesão.

Enquanto o autor dos Homens ilustres copiava25, quase às cegas, o que os protestantes escreveram acima em favor do líder do partido, ele não se atentou, sem dúvida, que somente a natureza da lesão e a coragem do ferido desmentiam todas estas narrações. Com efeito, para um dedo perdido e uma bala encontrada nas carnes de um braço, não era preciso demonstrar tanto heroísmo, nem dirigir a Deus orações tão ardentes, nem solicitar as dos ministros; é assim que, querendo provar isso, ele não prova nada.

23 Tomo XV, p. 649. 24 Para tudo o que segue, ver as Memórias de Condé, depois da morte de Henrique II até o princípio das perturbações, em 1565, t. IV, p. 303 e 304. (Edit. de Paris, 1741, in-4º, 6. vol. publiés par Secousse et Lenglet du Fresnoy) 25 Eram aqueles de Paris, de Toulouse, de Bordeaux, de Dijon e de Rouen.

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III - A PROSCRIÇÃO SEMPRE CONTEMPLOU SOMENTE PARIS.

enhuma autoridade garantida provou que a resolução de matar o almirante e seus cúmplices foi premeditada. Alguns escritos e várias conjecturas fazem crer, ao contrário, que esta determinação extrema

foi tomada poucas horas antes de ser executada. Os protestantes são os únicos que tinham escrito que este golpe de Estado tinha sido preparado cuidadosamente na viagem de Bayonne. O próprio de Thou não ousou adotar esta fábula; entretanto, ele não tomou a iniciativa de refutá-la, e, a fim de manter nesta ocasião um tipo de ponto intermediário entre sua tendência pelos calvinistas e a força da verdade que o detinha, ele se contentou em dizer que uns deram à resolução do massacre uma data muito anterior à sua execução, e que outros posicionaram apenas um curto intervalo entre o projeto e a iniciativa. Este autor tem mesmo muita boa fé, nesta circunstância, em dizer26, a propósito da morte de Lignerolles, que vários protestantes lhe tinham parecido persuadidos de que ainda não se tratava do massacre da São Bartolomeu.

Esta confissão da parte dos protestantes é notável; ela confunde seus escritores, que fingiram remontar à viagem de Bayonne a resolução de aniquilar seu partido, apoderar-se de seus líderes e da nobreza. É com a ajuda desta suposição que eles justificam, bem ou mal, o projeto de eliminar Carlos IX em Meaux e todas as consequências criminosas desta iniciativa. Ademais, por mais odiosa que seja tal ação, como aquela de um massacre, a ideia de um projeto meditado durante seis anos a amplia muito. Eles encontram alguma desculpa em um tipo de primeiro movimento, não havendo o mesmo sobre a reflexão, sobretudo quando ela é tão longa. Os calvinistas tinham, portanto, interesse em publicar que a São Bartolomeu era a obra e o acordo de vários anos; é, portanto, sensato, desconfiar sobre o que eles escreveram acerca disso.

Outros falaram muito diferente: eles afirmam que a resolução foi súbita, que ela nasceu das circunstâncias, e só precedeu à execução em meio dia. Antes de nos determinarmos em acreditar neles, vejamos se eles têm interesse em nos enganar.

Um é a rainha Margarida: Ela assegura que27 a resolução foi apenas o efeito das ameaças dos senhores calvinistas, determinados em fazer justiça aos ferimentos do almirante; esta princesa acrescenta que seu irmão, o rei Carlos IX, tinha-lhe dito que ele teve muitas dificuldades em consentir nisto, e que, se não lhe tivessem insinuado que disso dependia sua vida e seu Estado, ele não teria jamais feito isso. Esta narração afasta toda ideia de premeditação, e mal podemos duvidar da sinceridade dela. A princesa acrescenta que a rainha mãe tinha todas as dificuldades do mundo em determinar seu filho; que foi preciso o socorro do marechal de Retz; que somente às duas horas da tarde eles deram cabo à sua resistência. É claro que ela não buscou justificar seu irmão, visto que daí ela sobrecarregaria sua mãe, e eis uma razão para confiarmos em sua asserção.

26 Livre L. 27 Veja suas Mémoires.

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Outro é o marechal de Tavannes: seu filho, que só escreveu, sem dúvida, suas Memórias, baseado naquilo que ele tinha ouvido dizer, não pretendia permitir que acreditassem que a São Bartolomeu teria sido acertada de longa data. Ele trata por ignorantes aqueles que acreditaram que o massacre estava resolvido antes das bodas do rei de Navarra (desde Henrique IV); ele assegura não haver dúvida sobre a guerra de Flandres proposta pelo almirante. Segundo ele, a rainha temia que seu filho, entregando-se aos conselhos de Coligny, lhe tirasse sua confiança para dá-la a este chefe do partido; apreensão ainda mais fundamentada, tanto que Catarina já via mudanças na conduta do rei a seu respeito. Segundo essas Memórias, o assassinato do almirante foi proposto pela rainha, decretado por seu Conselho, aprovado por Tavannes, executado por Maurevert.

Enfim, as ameaças dos senhores protestantes, após o atentado contra o almirante, determinaram a corte a executar o massacre, o furor do povo tendo feito o resto, para desgosto dos conselheiros, que tinham resolvido apenas a morte dos líderes e revoltosos.

Estas Memórias, ou, de preferência, estas confissões, parecem trazer com elas um caráter de franqueza no qual não podemos ignorar a verdade. A máxima: cui bono, é um grande motivo de credulidade. Qual interesse tinha o filho do marechal de Tavannes em dar este aspecto ao massacre? Seu pai seria menos encarregado de uma parte do efeito odioso sobre aqueles que dela tomaram parte? Ao contrário, ele podia lhe poupar esta culpa, rejeitando-a, baseado na entrevista de Bayonne.

Bem! O que poderia acontecer de pior em sua memória, do que se passar por um homem que deu sua aprovação ao assassinato do almirante, após ter culpado altivamente aquele de Mouï, assim como seu filho observou?

Se quisermos pensar que Tavannes não ganharia nada ao falar como ele fez; que, ao contrário, deixando as coisas em certa obscuridade, ele teria podido se esconder atrás das nuvens, persuadamo-nos de que ele escreveu conforme a verdade, e seu testemunho se tornará tanto mais forte visto que ele se volta contra si.

O terceiro é aquele do duque d'Anjou (desde Henrique III): basta lê-lo para ficar convencido da sinceridade desta narração. Este príncipe, eleito rei da Polônia, atravessou a Alemanha para ir a Cracóvia, e recebeu marcas particulares de distinção de todos os soberanos entre os quais ele passou. Eles iam, por toda parte, ao seu encontro, recebendo-lhe, oferecendo-lhe festas; mas, estes prazeres não estavam isentos de amargor. Muitos calvinistas franceses, que tinham fugido no tempo do massacre, estavam espalhados por vários lugares por onde o duque d'Anjou passou, e estes homens, descontentes, uniam suas imprecações às aclamações dos alemães. Estas injúrias provocaram uma impressão cruel sobre o espírito do duque d'Anjou, elas perturbavam frequentemente a serenidade durante o dia e seu repouso durante a noite. Ele tinha junto de si um médico chamado Miron, homem de mérito e de confiança que Catarina de Médici lhe tinha dado; era, por consequência, um dos franceses de sua comitiva ao qual ele poderia se abrir com mais liberdade. Ele mandou chamá-lo uma destas noites cruéis onde a imagem dos horrores da São Bartolomeu se retraçava mais vivamente à sua memória, e ele lhe disse: "Eu fiz o senhor vir aqui para partilhar contigo minhas inquietações e agitações desta noite, que perturbaram meu repouso, repensando na execução

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da São Bartolomeu, da qual, talvez, o senhor jamais soube a verdade, tal como agora eu quero lhe dizer28".

Após este início, ele lhe contou que a rainha e ele perceberam uma grande mudança, em respeito a eles, em Carlos IX; que, isto era o efeito das impressões desfavoráveis contra eles, com as quais almirante tinha o cuidado de lhe encher o espírito; que quando eles o abordavam, após uma dessas entrevistas frequentes e secretas, "para falar-lhe de questões, mesmo daquelas que só concerniam a seu prazer, eles o encontravam admiravelmente inquieto e carrancudo, com um rosto e expressões rudes"; que suas respostas não eram como de outrora, acompanhadas de honra e de respeito pela rainha, e de favor e benevolência por ele. Que pouco tempo antes da São Bartolomeu, tendo entrado nos aposentos do rei, no momento em que o almirante saía, Carlos IX, no lugar de falar com ele, caminhou furiosamente e a passos largos, olhando-o frequentemente de atravessado, e de mau olhado, colocando por vezes a mão sobre sua adaga com tanta emoção, que ele só esperava, senão, que ele viesse apunhalá-lo; que ele ficou de tal modo assustado, que ele tomou a resolução de se salvar "habilmente com uma reverência mais curta que a da entrada; que o rei lhe lançou olhadelas incômodas, que ele fez bem em escapar, como se diz, por um triz; que ao sair daí, ele foi encontrar a rainha, sua mãe; que eles ligaram juntos todas as "relações, opiniões e suspeitas", das quais eles concluíram que isto era obra do almirante, e eles "resolveram se desfazer dele". Que eles colocaram a Sra. de Nemours a par do "ódio mortal que ela carregava contra o almirante" (...) que o ferido pediu para falar com o rei em segredo, o que lhe foi concedido, "fazendo-lhes um sinal para se retirarem", eles ficaram em pé no meio do aposento durante este colóquio privado, que lhes gerou uma grande suspeita, mas ainda quando eles se viram cercados de mais de duzentos cavaleiros e capitães do partido do almirante, que estavam no quarto, no cômodo ao lado e no salão". Os quais, diz o duque d'Anjou, "com faces tristes, gestos e expressões de pessoas descontentes, falavam nos ouvidos uns dos outros, passando e repassando diante e atrás de nós, e não com tanta aversão e respeito que eles deveriam... ficamos apavorados ao nos vermos aí cercados, como depois me confessou a rainha, minha mãe..." Este príncipe, continuando sua narração, diz a Miron que a rainha assustada pôs fim à conversa secreta sob o pretexto honesto da saúde do ferido, e não sem irritar o rei, "que queria muito ouvir o resto do que o almirante tinha para lhe dizer".

Que retirados, ela o colocou contra a parede para que ele contasse o que tinha sido dito, que "o rei se recusou por várias vezes, mas que, enfim, importunado ..., ele lhe disse bruscamente e com desgosto, jurando pela morte..." que "o que o almirante lhe dizia era verdade, que os reis só eram reconhecidos na França, contanto que eles tivessem poder de bem ou mal fazer a seus súditos e servos, que este poder e arranjo das questões de todo o Estado tinham delicadamente escoado de nossas mãos, mas que esta superintendência e autoridade lhe podia ser um dia grandemente prejudicial e a todo seu reino, e que ele deveria mantê-la por suspeito e ficar atento com ela; donde ele quisera adverti-lo disso como um de seus melhores e mais fiéis súditos e servos antes de morrer. Pois bem! Morte... (continuou o rei), porque quiseste

28 Manuscritos da Bibliothéque du roi, t. III, citados por de Cavairac em sua notável Dissertation sur la journée de la Saint-Barthélemy, 1758, in-8º.

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saber; é o que me dizia o almirante". O duque d'Anjou diz em seguida a Miron, que este discurso "os tocou profundamente no coração", que eles dissimularam, e fizeram esforços para dissuadir o rei; que a rainha "ficou aguilhoada e extremamente ofendida por esta fala do almirante, temendo que ela ocasionasse alguma mudança e alteração em suas questões e no manejo do Estado; que eles ficaram tão espantados, que eles não puderam "resolver nada neste momento", que no dia seguinte ele fora encontrar a rainha, com a qual ele deliberou em "assassinar por algum meio o almirante". Que depois do jantar eles foram juntos encontrar o rei, a quem a rainha insinuou que o partido huguenote se armava; que os capitães já tinham ido às províncias para fazer levantamentos; que o almirante tinha organizado dez mil soldados na Alemanha, e, ademais, guardas nos cantões, que não era possível resistir a tanta força, que, para se proteger da desgraça, os católicos, cansados por uma guerra em que o rei não lhes servia de nada, iriam se armar contra os huguenotes sem sua participação, que, assim, ele "permaneceria sozinho, envolvido em grande perigo, sem poder nem autoridade; que tal infeliz poderia ser afastado por um golpe de espada, que era preciso apenas matar o almirante e alguns líderes do partido".

Isto foi apoiado, diz o duque d'Anjou, por mim e pelos outros29, não se esquecendo de nada que pudesse servir a isso, "de tal modo que o rei ficou muito irritado e como que em furor. Mas não querendo, no início, consentir de modo algum que tocassem no almirante"; contudo, ele estava "irritado e muito tocado pelo temor do perigo... e querendo saber se poderíamos remediar isso por outro meio", ele quis "que cada um dissesse sua opinião". Todos foram da opinião da rainha, "com exceção do marechal de Retz, que logrou nossa esperança", diz o príncipe; dizendo "que se havia um homem que deveria odiar o almirante e seu partido, este era ele; que ele difamou toda sua raça por impressos sujos que tinham corrido toda a França e as nações vizinhas; mas que ele não queria, em detrimento de seu rei e de seu mestre, se vingar de seus inimigos por um conselho tão prejudicial para ele e para todo seu reino; que seríamos corretamente taxados de pérfidos e de desleais. Estas razões nos tiraram a palavra da boca, diz o príncipe, ver mesmo a vontade da execução. Mas não sendo secundado por ninguém, e retomando a palavra, nos o conquistamos e reconhecemos uma mudança repentina no rei, que nos impondo o silêncio, nos disse, com furor e em cólera, jurando pela morte... já que achávamos bom que se matasse o almirante, ele queria isso, mas também todos os huguenotes da França, afim que não permanecesse um único que pudesse lhe censurar, e que déssemos a ordem imediatamente; e saindo furioso, nos deixou em seu gabinete". Refletimos o resto do dia e uma parte da noite nos meios de executar tal empreendimento. Asseguramo-nos dos comerciantes, dos capitães dos bairros e outros indivíduos que sabíamos serem os mais facciosos. O duque de Guise foi encarregado de matar o almirante. Descansamos duas horas; o rei, a rainha e o duque d'Anjou foram, ao amanhecer, até uma janela, de onde, ouvindo um tiro, estremeceram de pavor e de horror. Eles mandaram revogar a ordem dada ao duque de Guise; mas já era tarde. Com o almirante morto, executou-se o massacre na cidade. "Retornamos à nossa primeira deliberação (diz o príncipe), e pouco a pouco deixamos seguir o curso e o fio do empreendimento e da execução".

29 O marechal de Tavannes, o duque de Nevers e o chanceler de Birague.

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Relatamos completamente esta conversa do duque d'Anjou, porque ela fornecerá luzes aos leitores judiciosos e nos economizará longos raciocínios. É impossível desprezar aí a verdade, seja querendo induzi-la de acordo com o que se encontra aí e a narração de alguns contemporâneos, seja querendo atentar ao tom de franqueza que ela traz consigo.

Para se assegurar da verdade de um fato histórico, e saber se devemos crer nele, é preciso examinar se a pessoa de quem o tomamos pôde ser enganada, se ela tinha interesse em nos enganar, se ela narrou coisas em seu benefício. Nada de tudo isto se encontra no duque d'Anjou.

Ele tinha a total confiança de Catarina de Médici, sua mãe, e mesmo toda sua ternura; ela o tinha colocado na liderança dos católicos, ele comandava os exércitos contra os huguenotes, ele era do Conselho do rei; ele pôde, portanto, conhecer toda a trama do massacre.

Ele não tinha nenhum interesse em enganar Miron, visto que ele não podia tirar nenhum proveito de uma confidência falsa. Ele a teria feito para se unir mais com este homem? Este seria, ao contrário, o meio de lhe inspirar um afastamento de sua pessoa. Ele queria se servir dele para desenganar os poloneses da ideia de que eles podiam ter de que a São Bartolomeu era uma questão preparada há tempos? Não seria para seu médico que ele deveria se dirigir. Mais estranho do que ele em Cracóvia, empregado do príncipe, francês nato, ele mal teria persuadido sobre o que ele teria publicado; teria sido, de preferência, para alguém distinto do país que ele deveria ter contado estas coisas. Ademais, o bispo de Valence não lhe tinha deixado nada a dizer nem a fazer acerca disto - e parece que ele tinha muito bem persuadido os poloneses de que o massacre era uma questão momentânea, uma proscrição, um castigo violento, mas necessário, exercido sobre rebeldes acusados do crime de conjuração - visto que ele conseguiu, apesar do horror do acontecimento, reunir todos os sufrágios em favor do filho e do irmão dos verdadeiros autores desta expedição cruel.

As confissões do duque d'Anjou a Miron não contém nada que seja vantajoso para este príncipe; ao contrário, ele se declara o cúmplice ou mesmo o primeiro autor da morte do almirante. Se ele tivesse se assustado menos com o silêncio de seu irmão, com sua caminhada a passos largos, com suas olhadas incômodas e com sua mão colocada por vezes sobre sua adaga, ele não teria ido contar todas estas coisas para sua mãe; eles não teriam ligado, juntos, todas as questões, opiniões e suspeitas, o tempo e todas as circunstâncias passadas. O inimigo mortal do almirante não teria sido chamado; não teriam convocado Maurevert; Coligny não teria sido ferido; ele não teria interpretado um homem morrendo para dar um ar de verdade ao que ele dizia ao rei contra sua mãe e seu irmão; estes não teriam concebido o propósito de despachá-lo; não teriam excitado Carlos IX contra o infortunado, ele não teria proscrito todos seus súditos huguenotes em um momento de furor e de ira, e o almirante seria morto na liderança dos exércitos em Flandres ou em sua cama. É verdade que este líder dos rebeldes teria podido destruir o trono e o altar como ele desejava; mas este não era o objeto dos temores do momento, eles queriam impedi-lo de atrair para si toda a confiança do rei, e sem este motivo não teríamos como deplorar os meios que eles tomaram para desviar a tempestade que a malícia deste sujeito reunia sobre a cabeça da mãe e do filho, e o massacre de alguns facciosos não teria se estendido, pelo furor do povo, sobre muitas pessoas, mais infelizes que culpadas.

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Assim, reunindo todas as confissões do duque d'Anjou, não encontramos aí nada que não seja desvantajoso para si: não era, portanto, para se justificar, mas para se aliviar, que ele contava estas coisas a Miron, e assim sendo, temos de olhá-las como verdades, nas quais podemos encontrar algumas circunstâncias omitidas que podemos suplantar sem alterar o corpo das provas que resultam desta narração.

Como um ponto histórico desta natureza não pode ser muito aprofundado pela crítica, nós não nos deteremos somente nas confissões do duque d'Anjou, ainda que elas reunissem todas as características de veracidade, e nós as apoiaremos com a autoridade de Brantôme, de La Popelinière e de Mathieu.

O primeiro diz, falando dos discursos do almirante contra a rainha: "Eis a causa de sua morte e do massacre dos seus, assim como eu ouvi dizer de alguns que conhecem bem isto, ainda que haja vários em que não lhes saberíamos tirar da cabeça a opinião de que este movimento tenha sido tecido de longa data...30"

O segundo relata todas as razões, seja dos católicos, seja dos protestantes, para e contra o propósito premeditado, e o vemos claramente pender pela opinião daqueles que acreditaram que a resolução era uma consequência da lesão do almirante31.

O terceiro diz de Henrique IV, príncipe cheio de bondades para com ele, que Villeroy, secretário de Estado e confidente de Catarina de Médici, conhecia desta rainha, e tinha dito para várias pessoas, que a São Bartolomeu não era uma questão premeditada32.

Dissemos que os protestantes tinham grande interesse em remontar muito além a resolução de destruí-los por um massacre; e o encontro de Bayonne, concorrendo por sua data com o empreendimento de Meaux, era uma época favorável para seus historiadores33: toda a catolicidade se tornaria por isso cúmplice dos assassinatos, e os huguenotes desculpáveis pela nova rebelião. Mas por que aqueles que não têm este mesmo interesse abraçam tão intimamente o mesmo sistema, sobretudo estes homens que escrevem constantemente em favor da humanidade, não percebendo que isto a torna odiosa ao próprio homem? Supor que uma metade do mundo conspirou contra a outra, e que ela lhe cavou abismos durante sete anos, não é vexar a espécie humana, e, ademais, para lamento dos infelizes, indispor-nos contra nós mesmos? Preferimos acreditar que tantos horrores não poderiam ser mantidos escondidos por tanto tempo no coração daqueles que os tinham decidido, sem que alguém os tivesse relevado, não, dizemos, por indiscrição ou por consciência, mas por compaixão, e encontramos neste modo de pensar, mais de acordo com a religião e a natureza, os meios para evitar maiores crimes àqueles que já têm muitos para se culpar.

Crendo que o massacre da São Bartolomeu foi resolvido algumas horas antes de ser executado, o veneno, a traição, as mortes prematuras desaparecem; (assim), o marechal de La Vieilleville não foi envenenado porque ele era contrário a esta resolução; Ligneroles não foi assassinado porque ele sabia do 30

Vies des Dames illustres: Catherine de Médicis. T. II des Oeuvres de Brantôme. (Panthéon litt., p. 123 e 124) 31 L. ut sup., p. 65 e 72. 32

Histoire de France sous Henri VI, livre VI. 33 Sobre as conferências de Bayonne, ver o P. Daniel: Hist. de France, régne de Charles IX, t. X (édit. in-4º). Observação nº 1, p. 557 a 559.

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segredo; de Tende não pereceu, por uma beberagem, para se recusar à sua execução, e o abcesso ao lado do qual morreu a rainha de Navarra, mãe de Henrique IV, não se transforma mais em luvas envenenadas por um milanês.

Quanto menos colocamos de intervalo entre a resolução e o empreendimento, mais prevenimos a humanidade contra si mesma, e a realeza contra os maus conselhos e os impulsos violentos da paixão; (mais) suscitamos algum tipo de compaixão por estes escravos de seu meio; e, se não perdoamos Carlos IX, fazemos ver que ele foi, de todos os cúmplices, o mais infeliz e o menos culpado.

A verdade também encontra suas vantagens neste sistema, e se todas as contradições da história não desaparecem com a proximidade da clareza que daí reluz, é preciso convir que há várias delas que nela se conciliam.

Assim, o casamento do rei de Navarra com Margarida de Valois, e as festas que o acompanharam, não foram uma armadilha preparada aos príncipes e à nobreza calvinistas. Assim, o regimento dos guardas que foi chamado à Paris, só o tinha sido chamado para impedir as respectivas questões, ou o tumulto. Assim, Maurevert, antigo empregado do duque de Guise, foi armado por outras mãos, e não por aquelas de seu mestre. Assim, este príncipe pôde se retirar para sua residência para procurar aí, talvez, segurança ao primeiro momento do assassinato, sem ser dele o autor. Então, as portas de Paris, fechadas (com exceção de duas) depois do tiro de arcabuz, tinham por único e verdadeiro objetivo o intuito e o meio de deter o assassino. Assim, as cartas escritas pelos secretários de Estado aos governadores das províncias, para lhes informar sobre a lesão do almirante e assegurá-los de que o rei prometia fazer, por conta disso, boa, breve e rigorosa justiça, não eram um fingimento e um jogo, como pretende d'Aubigné34. Assim, Carlos IX pôde dizer a Coligny, sem encenação: "Meu pai, a ferida é para vós, e a dor é para mim". Assim, este rei, que desconhecia de onde partira o tiro de arcabuz, poderia suspeitar do duque de Guise, e não tendo ainda os papéis do almirante, imputar o excesso do massacre à inimizade das duas casas. Assim, os cinquenta homens, comandados pelo coronel do regimento dos guardas e enviados por Carlos IX até o almirante35, estavam destinados à sua segurança e não ao seu suplício. Assim, não é mais para serem mais fortes, como afirma de Thou, que colocaram poucos guardas do rei de Navarra junto do almirante; e, com efeito, é absurdo que ele tenha observado isto, quando só dependia do partido huguenote encher a casa de Coligny de guardas cúmplices. Assim, Carlos IX poderia dizer com verdade para sua irmã Margarida que se não tivessem lhe insinuado que ele deixaria sua vida e seus Estados, ele não teria jamais feito isso. Assim, Tavannes pôde escrever, com a mesma verdade, que o furor da população tornou o massacre de Paris geral, para desgosto dos conselheiros, que tinham resolvido apenas a morte dos líderes e revoltosos. Assim, a conversa de Bayonne, a viagem do duque de Sabóia à França, as audiências do núncio, e como queiram, os conselhos do papa, visavam completamente a segurança dos católicos, e não o massacre dos huguenotes. Assim, enfim, puderam dar graças a Deus, em Roma, pela morte destes homens, que Carlos IX só tinha proscrito para evitar o efeito funesto de uma conspiração prestes a

34 Tome II, liv. I de son Hist. universelle, depuis 1550 jusqu'en 1601. 35 Cornaton les demanda au roi de part de Coligny.

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eclodir; e as reprovações cheias de injustiça que fizeram à religião católica e aos seus ministros caem sobre aqueles que queriam cobri-los com elas.

Temos apenas duas cartas das quais podemos induzir que não houve ordens enviadas às províncias para massacrar os huguenotes; uma é aquela do visconde de Orthez, governador de Bayonne, escrita a Carlos IX; a outra é aquela de Catarina de Médici a Strozzi, que rondava em torno de la Rochelle. A primeira é relatada apenas por d'Aubigné, autor protestante, pouco verídico36, conhecido, como diz Sully, por sua língua difamadora, tão obstinado contra o rei, que o parlamento de Paris queimou sua história. Podemos, portanto, nos colocar em oposição contra um ato do qual nenhum contemporâneo fez o relato, que escapou às pesquisas de de Thou, que este historiador não ousou adotar, apesar de sua tendência pelos huguenotes e suas más intenções em relação a Carlos IX; e presumimos que se ele tivesse podido conjecturar sobre tal peça, nós a encontraríamos ao menos na edição de Genebra, de 1620. Mas suponhamos que esta carta tenha existido, nada prova que esta seja a resposta a uma ordem escrita ou assinada pelo rei; ao contrário, visto que tratava-se, nesta ordem pretendida, de executar pessoas que tinham procurado asilo nas prisões e escapado, assim, da ira do príncipe, pelo lapso de tempo posterior à São Bartolomeu. Deste modo, esta ordem, comunicada aos habitantes e o pessoal de guerra da guarnição, pôde ao menos ser verbal e da natureza daquelas que foram conduzidas por la Mole ao conde de Tende, governador de Provence; pelo correio de um procurador do rei a Mandelot, governador de Lyon; por Mareuil, à Bourges; por um criado de d'Entragues a este governador de Orleans; por Montpezat ao de Bordeaux.

Ora, todas estas pretendidas ordens partiram do coração daqueles que as levaram, e não da vontade do príncipe, que as ignorava. Isto demanda muita clareza, e, por consequência, detalhes.

Catarina de Médici e seus conselheiros, tendo resolvido somente a morte dos líderes e dos mais revoltosos, empregaram para isso pessoas que, tendo ódios particulares para vingarem, satisfizeram-se muito bem com isso, para desgosto dos conselheiros; e eis como não é bom assanhar um povo, diz Brantôme37, pois ele se presta a muito mais do que se quer. Os assassinatos sendo, portanto, conduzidos muito além do que se queria: "O rei, por volta da tarde do domingo, mandou publicar em alta voz que os membros da guarda e os oficiais da cidade não pegassem em armas nem prisioneiros na cidade, mas que todos fossem colocados nas mãos da justiça, e que eles se retirassem para suas casas fechadas, o que deveria apaziguar o furor do povo, e dar tempo livre para que muitos fugissem38". Mas esta precaução, quase insuficiente para Paris, foi inútil para as províncias. "Estas ordens, diz um autor italiano, não chegaram a tempo em muitos lugares, porque o boato que se espalhou por todo o reino do que se passava em Paris, excitou os católicos de muitas cidades a agirem da mesma forma39". Contudo, o rei, que tinha previsto isto, despachou correios imbuídos de cartas datadas do dia 24, dirigidas aos

36 Esta carta não se encontra em de Thou, ainda que numerosos escritores afirmem erroneamente tê-la encontrado nele, mas somente no 2º vol. d'Aubigné, intitulado les Hist. du sieur d'Aubigné. Éd. de 1618, in-fol., p. 28, chap. V: Suite de la Saint-Barthélemy. 37 Ibid., ut sup. 38 La Popelinière, livre XXIX, p. 67. 39

Istoria di Francia di Homero Tortora, etc... nella quale si contegono le cose auvenute sotto Francesco II, Carlo IX, Erricó III et Errico IV. In Venetia, 1619, 3 volumes.

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governadores, para adverti-los do que acontecia em Paris, rejeitando a inimizade das casas de Guise e de Châtillon; exortando os comandantes a tomarem medidas para prevenir acidentes semelhantes em seus departamentos.

Carlos IX, temendo, primeiro, que à primeira notícia da lesão do almirante, os huguenotes vingassem sobre os católicos o acontecido à pessoa de seu líder, teve o cuidado de mandar escrever aos mesmos governadores de que ele se propunha a mover por isso boa, breve e rigorosa justiça. Assim, o temor em ver os católicos morrerem lá aonde eles não fossem os mais fortes, ou os calvinistas lá aonde eles se encontravam mais fracos, o engajou a escrever uma carta circular no domingo à tarde, dia do massacre, para colocar os dois partidos em segurança e salvar os católicos da raiva dos huguenotes, ou aqueles da licença dos outros.

O Martirógrafo dos protestantes40 nos forneceu a prova desta conjectura: "Em Orleans chegou uma ordem nova (ou seja, diferente daquela pela qual tinham tomando conhecimento da lesão do almirante) aos membros da justiça, prefeitos e juízes da cidade, pela qual lhes era mandado a tomar em armas, e a fazer isso de tal modo que eles permanecessem os mais fortes no interior da cidade". Ordem semelhante, expedida no domingo, chegou na quarta-feira em Lyon: ela advertia os habitantes de tomarem medidas para serem os mais fortes, e pode-se julgar, pela conduta do governador desta cidade, que o único objeto do despacho era o mesmo que aquele da ordem dirigida ao governador de Orleans. O martirografo diz, que após ter fechado as portas de Lyon, e posto sentinelas nos principais pontos, espalhou-se a notícia de que isso era para a própria segurança dos huguenotes; e, com efeito, independente do que diz este autor, ele mesmo prova que o governador não tinha recebido nenhuma ordem contrária, e que não lhe teria advindo nada, pelas precauções acertadas que ele tinha tomado, sem o ódio de um procurador do rei.

Eis o fato em algumas palavras.

Os católicos, tendo do que se queixar dos huguenotes, sem dúvida desde o último edito de pacificação, tinham enviado deputados41 à corte; eles foram testemunhas do massacre e acreditaram que tinha chegado o momento de fazer o mesmo por toda parte. Eles pediram à rainha a permissão para expedir um correio à Lyon; esta princesa lhes respondeu que era preciso antes que aqueles do rei fossem expedidos; e, com efeito, aquele dos deputados só chegou na sexta-feira, dois dias depois que Mandelot tinha recebido o seu. O procurador do rei, um dos deputados, escrevera que Catarina de Médici lhe tinha dito: "Veja o que está acontecendo", de onde ele induzira que sua intenção era que se fizesse o mesmo em Lyon, e esta carta tornou-se uma ordem ou um pretexto para cometer muito dos furtos e assassinatos, que Mandelot deteve como pôde. Mas é óbvio que este procurador do rei tinha em seu coração o que ele acreditava ver nas palavras de Catarina. Com efeito, se a intenção desta rainha era que se fizesse em Lyon o que tinham feito em Paris, ela encontraria para isso um belo meio na boa vontade destes deputados; ela só precisava deixá-los agir. Por que colocar obstáculos a isso, recusando-lhes a permissão de despachar um correio? Por que responder que os de seu filho fossem despachados primeiro? Por que expedir um correio ao

40 Page 720, fol., verso. 41 Estes deputados eram de Rubis, procurador do Rei, Scarron, juiz, de Masso, receptor.

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governador Mandelot, no domingo, com ordens muito contrárias a este projeto cruel, e só deixar partir aquele de Rubins dois dias depois42, como se ela tivesse desejado dar tempo para o governador dispor tudo pela segurança dos calvinistas?

As mesmas Atas dos pretendidos mártires protestantes nos fornecem outros meios de argumentar contra as suposições das ordens, seja anteriores, seja subsequentes à São Bartolomeu. Encontramos aí43 que os assassinos "de Orleans resolveram se apossar da tarefa, sem que Lapierre, criado de d'Entragues, governador, tivesse trago cartas nem memoriais de crédito". Vemos aí44 que aqueles de Bourges "enviaram Marueil a cavalo à corte, que ele voltou de lá sem ordem". Lemos nele45 "que o rei tinha insinuado por várias cartas" escritas em Bordeaux, "que ele não intencionava que desta execução decorresse outra, e se estendesse além de Paris". Pode-se ainda tirar uma prova muito forte contra a suposição das ordens, somente do silêncio destas mesmas Atas, tão interessadas em falar sobre isso. Ora, não há dúvida disso nem para Meaux, nem para La Charité, nem para Romans, Saumur e Anger, e se o Martirografo propôs que o governador de Rouen tinha recebido ordens de exterminar todos aqueles da religião, esta anotação é manifestadamente contradita somente pela inação de Carouge, e pela infeliz data dos assassinatos, que começaram nesta cidade perto de um mês depois daqueles de Paris46.

Todos estes trechos, de um registro que os calvinistas não conseguiriam recusar, visto que se trata de sua Acta Sanctorum, nem os críticos rejeitar, sendo dado que é o escrito mais contemporâneo, formam um corpo de provas negativas contra as pretendidas ordens do rei, e não deixam ninguém duvidar de que a carta do visconde d'Ortez é puramente uma invenção, quase como aquela de Carlos IX ao conde de Tende47.

O sábio Peirese, ávido por coleções e rico em peças controvertidas ou suspeitas, conservou-nos a substância desta aqui, cuja falsidade aparece em um única inspeção: trata-se de uma ordem de apoderar-se dos huguenotes, baseada na qual ele afirma que Carlos IX tinha disposto uma recomendação contrária. Não é necessário se consumir em raciocínios para mostrar o vício desta peça. Bem! Por que tomar este cuidado? Por mais absurda que ela seja, ela é favorável ao nosso sistema, visto que Carlos IX torna-se, por ela, menos culpável, e que o mais odioso do massacre recai necessariamente sobre a rainha e seu conselho.

Mas, retornemos à carta do visconde d'Orthez, que olhamos como uma fábula de d'Aubigné, e, se fosse necessário ainda combater a quimera, bastaria nos servir de uma simples conjectura. Montluc, governador de Guyenne, era o mais próximo vizinho de d'Orthez, comandante de Bayonne; ele estava mais a par do que ele da confidência de Catarina de Médici, e mais ligado do que ninguém à corte e ao partido católico. Ora, se um tinha recebido a ordem de massacrar os huguenotes d'Aix, é crível que o outro não tenha recebido nenhuma ordem para dar o mesmo tratamento àqueles de várias cidades rebeldes da Guyenne? 42 Lc mardi. 43 Fol. recto 121. 44 Fol. recto 724. 45 Fol. recto 730. 46 Le 17 septembre. 47 Veja as Mémoires de Michel de Castelnau, nas adições que João le Laboureur fez nelas.

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Não dizemos que Montluc tenha executado estas ordens, mas sua franqueza não as teria dissimulado, e encontraríamos alguns vestígios disso em seus Comentários, onde ele fala muito espontaneamente desta questão infeliz... nós o vemos, ao contrário, aprovar de algum modo a resolução extrema da corte, quando, após ter censurado o almirante, "que foi tão insensato de ir se meter, para mostrar que ele governava tudo", ele acrescenta: ele "pagou muito caro, pois custou-lhe a vida e a de vários outros; assim ele tinha posto o reino em grande perturbação48". E se ele tivesse tido ordens para massacrar os huguenotes, ele teria deixado de mencionar isso, para sua própria glória, quando ele diz: "Todo mundo foi pego de surpresa ao ouvir o que tinha acontecido em Paris, e os huguenotes ainda mais, que não encontravam chão suficiente para escapar, ganhando a maior parte do território de Béarn... Eu não lhes fiz nenhum mal de minha parte, mas por toda parte os cobriram com muitos males49"? Acrescentamos aqui uma pequena reflexão crítica: Se os governadores das províncias tinham tido ordens, Montluc deveria tê-las recebido; se eles resistiram a isso, ele cumpriu seu dever melhor do que os outros. Se eles foram louvados por esta resistência, por que não vemos o nome de Montluc entre os seus? A razão disso é simples, é porque nossos historiadores são os copistas servis de de Thou, e que este grande apologista dos atos humanos, quando eles se voltam à vantagem dos calvinistas, desejava isso a Montluc, em represália do Mont-de-Màrsan; entretanto, o bravo Montluc foi muito recompensado por isso por todo o bem que um historiador calvinista diz dele50.

A carta de Catarina de Médici a Strozzi é menos verdadeira quanto a de Orthez a Carlos IX: aquela poderia ser uma resposta a um comando verbal, levado por alguém, como La Mole, Marueil ou Perat; enquanto que a outra não tem nem mesmo certa razoabilidade. Não temos de nos esquecer que quiseram tirar dela a prova da premeditação do massacre, estabelecer que ele estava resolvido há muito tempo, e que ele deveria ser executado no mesmo dia em todo o reino.

Strozzi rondava La Rochelle para tentar surpreendê-la; esta cidade era uma das quatro concedidas aos calvinistas51, e aquela, dentre todas, que mais gerava inquietações por causa dos socorros estrangeiros que ela poderia receber por mar; mas, quanto mais se suspeitava dela na corte, mais se suspeitava de suas intenções e de seus passos: assim, os moradores de La Rochele se mantinham por si mesmos, de modo a só deixar a Strozzi esperanças muito incertas de surpreendê-los. Nesta situação das coisas, que Catarina de Médici não ignorava, afirmam que ela tenha escrito a este oficial a seguinte carta:

"Strozzi, advirto-lhe que neste dia, 24 de agosto, o almirante e todos os huguenotes que estavam aqui foram mortos, assim, aviso-lhe diligentemente para que domine La Rochelle, e faça aos huguenotes que caírem em suas mãos o mesmo que fizemos a estes aqui; cuide-se para não falhar com isso, tanto quanto temes em desagradar ao Rei, o Sr. meu filho, e a mim.

Assinado: Catarina"

48 Page 617, édit. in-12. 49 Ibidem. 50 La Popelinière, livre XXIX, p. 67. 51 As outras eram Nimes, Montauban e La Charité.

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Muitas razões combatem a realidade desta carta; alguns historiadores franceses não falaram dela; Brantôme mesmo, que estava então em Brouage com Strozzi, a ignorou. Um único escritor suspeito a relatou sem provas, e o autor dos Homens ilustres, que se serve dela, parece estar envergonhado de té-la tirado desta fonte, visto que ele não ousa citá-la. Percebe-se sem dúvida que ele confiou em uma peça que todos os escritores que o tinham precedido, seja calvinistas ou católicos, rejeitaram, tendo podido tirá-la de uma obra impressa desde 157652. Mas estas considerações são os menores motivos para observarmos esta peça como apócrifa; ela é bem mais suspeita aos críticos pela época de seu envio do que por sua própria existência. Com efeito, seria possível que Catarina de Médici tenha escrito esta carta a Strozzi no momento em que massacravam os huguenotes em Paris; mas, é inconveniente que ela a tenha escrito vários meses antes, como se ela visse adiante o sucesso de um empreendimento que mil circunstâncias poderiam frustrar. Para escrever com este tom de confiança, e seis meses antecipadamente, que em 24 do mês de agosto o almirante e todos os huguenotes que estavam em Paris tinham sido mortos, seria preciso que ela estivesse certa de que a rainha Joana d'Albret consentiria ao casamento de seu filho (Henrique de Navarra) com Margarida de Valois - que ela viria às bodas, apesar de sua repugnância pela cidade cujos habitantes amavam os Guises e detestavam os huguenotes, - que o Papa Pio V, que não queria jamais conceder a dispensa, morresse, - que Gregório XIII se prestaria melhor que seu predecessor às boas intenções de Carlos IX, - que Coligny e todos os huguenotes seriam muito loucos para confiarem nas belas demonstrações de amizade do rei, - que o almirante desprezaria todos os avisos que lhe vinham de La Rochelle e das outras partes do reino, - que um assassino atrapalhado e muito apressado não viria desarranjar todas as medidas, antecipando por si mesmo a hora marcada para matar este líder partidário, - que o tiro de arcabuz, não previsto neste sistema pela rainha, e dado por Maurevert, não teria levado os huguenotes às armas ou os colocado em fuga, - que os conselhos hábeis do vidama de Carlos e seus funestos pressentimentos seriam rejeitados com desprezo por Teligni, e que ele se oporia a que levassem seu sogro, ao menos, ao subúrbio Saint-Germain, de onde ele teria podido escapar ao assassinato, - que a própria rainha, escrevendo vários meses antes do dia marcado para o massacre, estaria certa de que sua carta não cairia nas mãos dos huguenotes, seja por infidelidade, imprudência, roubo, ou mesmo pela morte de Strozzi.

Bem! Quantos outros acidentes poderiam frustrar a execução de um empreendimento do qual puderam, sem dúvida, desejar o momento, mas não prepará-lo e fixar o minuto, de modo que o sucesso dele fosse infalível. É, portanto, absurdo dizer que Catarina de Médici enviou a Strozzi, vários meses antes do mês de agosto, um pacote contendo duas cartas, das quais uma, selada, só deveria ser aberta no dia 24, dia do massacre. E como os fatos são tão indivisíveis em história quanto as confissões em justiça, daí afirmamos que a carta da rainha que foi enviada a Strozzi alguns meses antes da São Bartolomeu, e que continha coisas cujo acontecimento não poderia estar assegurado, disposto, nem previsto definitivamente por nenhum poder humano, é um ato falso e inventado.

Se após o que acabamos de dizer, restassem ainda pessoas ligadas à opinião daqueles que olharam o dia da São Bartolomeu como uma trama armada de 52 Esta obra é intitulada: Memoires de l'Etat de la France sous Charles IX, citadas mais acima.

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longa data, e como uma mina que deveria explodir por toda parte ao mesmo tempo, uma reflexão muito simples terminará por desenganá-los.

Esta tragédia sangrenta, resolvida há muito tempo, assim como alguns querem, suporia da parte de Catarina de Médici e de seu conselho, disposições seguras e uniformes, que teriam sucesso ao menos em algumas cidades. Ora, não há disso uma única onde a ação aconteceu no mesmo dia que em Paris. O massacre, em Meaux, na segunda, 25 de agosto; em La Charité, em 26; em Orleans, em 27; em Saumur e Angers, em 29; em Lyon, em 30; em Troyes, em 2 de setembro; em Bourges, em 11; em Rouen, em 17; em Romans, em 20; em Toulouse, em 23; em Bordeaux, em 3 de outubro... Bom, como crer que as ordens foram dadas por toda parte no mesmo dia, sendo que elas não foram executadas, em nenhum lugar, no tempo fixado para esta catástrofe! Não havia, para se opôr a isso, um conde de Tende, em Orleans; um conde de Charny, em Saumur, Angers e Troyes; um Saint-Herem, em Bourges; um Tannegui-le-Veneur, em Rouen; um Gardes, em La Charité; um Mandelot, em Toulouse; um d'Orthez, em Bordeaux! Seria preciso ser cego para não ver nestas diferentes datas do massacre, a ruína do sistema de uma premeditação acertada, e não a obstinação dos assassinos, o único efeito da licença desenfreada, no lugar da execução de uma ordem anterior e geral da qual não encontramos nenhuma prova. Quando lançamos os olhos, uma segunda vez, sobre as datas destes tristes acontecimentos, que nos atentemos nas diferentes distâncias que há, da capital, aos lugares onde eles ocorreram, e veremos que, semelhantes às ondas de uma torrente que transborda, eles se estenderam sucessivamente de lugar em lugar, e inundaram de sangue as regiões em que os católicos clamavam mais vingança53; sem que fosse necessário, para isso, uma ordem superior ou um impulso externo.

O ódio que separava os dois partidos, a falta que os calvinistas tinham cometido contra os católicos, as inimizades particulares, a ganância geral, um tipo de furor que o demônio das guerras civis tinha soprado sobre os franceses, mudando os costumes da nação mais humana, bastavam para produzir estes efeitos funestos, e Carlos IX deveria menos se ocupar dos meios de assegurar uma grande carnificina, que daqueles de preveni-la. Também o vemos escrever aos governadores das províncias, uma vez que o almirante foi ferido, que ele faria boa, breve e rigorosa justiça deste ato pernicioso54, porque ele temia que os huguenotes a fizessem. Da mesma forma, a partir do próprio dia da São Bartolomeu, ele preveniu seus governadores do que se passava em Paris... O tempo nos conservou tão pouco destes monumentos, que acreditamos dever colocar aqui uma carta de Carlos IX a um governador55; não poderemos lê-la sem nos desembaraçar do preconceito no qual todo mundo parece estar fortificado, acusando o rei e seu conselho de terem o propósito, de terem formado o plano de acabar em um dia com todos os huguenotes.

53 Devemos observar que com exceção de Nîmes, quase todas as cidades em que os huguenotes tinham cometido assassinatos são aquelas onde eles foram os mais maltratados na São Bartolomeu. 54 D'Aubigné, t. II, livro I. 55 Esta carta foi extraída dos Registros do Présidial de Nîmes.

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"Sr. de Joyeuse, ouvistes o que eu vos escrevi anteontem da lesão do almirante, e que eu estava próximo de fazer tudo o que me era possível para a verificação do fato e o castigo dos culpados, ao que nada foi negligenciado. Depois, aconteceu que aqueles da casa de Guise, e os outros senhores e cavaleiros que lhe aderem, e que não são poucos nesta cidade, como todos sabemos, tendo sabido, de certo, que os amigos do dito almirante queriam perseguir contra eles a vingança desta lesão, por suspeitá-los, por esta causa e ocasião, ficaram tão enternecidos na noite passada, que entre uns e outros ocorreu uma grande e lamentável sedição, tendo forçado os guardas, que tinham sido ordenados ao entorno da casa do dito almirante, a matá-lo com alguns cavaleiros: assim também foram massacrados outros em vários lugares da cidade. O que foi conduzido com tal fúria, que não foi possível apaziguar isso tal como desejávamos, tendo tanto empregado meus guardas e outras forças para me manter de um modo superior neste castelo do Louvre, para depois dar ordens para toda a cidade visando o apaziguamento da sedição, que nesta hora diminuía, graças a Deus: sendo surpreendido pela querela particular que existe, há muito tempo, entre estas duas casas: da qual, tendo sempre previsto que aconteceria algum efeito infeliz, eu tinha feito, diante de tudo isso, o que me era possível para apaziguá-la, bem como todos sabem... E, visto que é grandemente o temor de que tal execução levante meus súditos uns contra os outros, e ocorram grandes massacres pelas cidades de meu reino, ao que eu teria um desgosto, - eu vos peço para publicar e instruir por todos os lugares e regiões de vosso governo, que todos devem permanecer em repouso, e se manter em sua casa, nem tomar as armas, nem se ofender uns contra os outros, sobre a pena de morte; e fazendo vigiar e cuidadosamente observar meu edito de pacificação: com estes fins e para punir os contraventores, e correr sobre aqueles que queiram enternecer e infringir contra minha vontade, podereis, tanto quanto vossos amigos de minhas ordens, advertir os capitães e governadores das cidades e dos castelos de vosso governo para que fiquem atentos à conservação e segurança de suas praças, de tal modo que não ocorram falhas, me advertindo tão breve da ordem que tereis dado disso, e de como todas as coisas se passarão ao alcance de vosso governo. Clamando ao Criador de vos ter, Sr. de Joyeuse, em sua santa e digna proteção.

Escrito em Paris, em 24 de agosto de 1572.

Assinado, Carlos, e abaixo, Fizier.

Vemos, por esta carta, que o rei tinha escrito ao mesmo governador, em 22 de agosto, pela ocasião da lesão do almirante; esta admoestação, que foi comum para todos os comandantes das províncias, induziu talvez ao erro os historiadores contemporâneos. Enganados pela multidão de correios despachados de todos os lados, a maioria acreditou que eles carregavam ordens para exterminar os huguenotes, quando eles só corriam para impedir que não se massacrasse os católicos; e eis o fundamento mais aparente sobre o qual se pôde formar a opinião comum das ordens de extermínio dos huguenotes; mas, uma conjectura não é uma prova, sobretudo quando ela é destruída pelos fatos.

Se a rainha não pôde, sem uma revelação, escrever a Strozzi, alguns meses antes do massacre: "Advirto-lhe que neste dia de 24 de agosto, o almirante e todos os huguenotes que estavam aqui foram mortos", e que esta carta não seja uma peça fabricada; ela só foi escrita no próprio dia do massacre, e, então, não há, pois, arranjo anterior; ela é a obra do momento. Catarina de Médici, olhando os cidadãos de La Rochelle como os súditos mais insolentes, por causa de sua força, os mais perigosos, por causa de sua opinião; é

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possível que no momento em que tudo exalava a morte em Paris, o furor que tinha partido do gabinete da rainha ainda existia e excitou seu conselho contra eles. Se o governador de Orleans enviou seu criado à corte para tomar conhecimento das intenções dela, ele não tinha ainda recebido a ordem para apoderar-se dos huguenotes; se os habitantes de Bourges enviaram Marueil, que veio sem ordem, é evidente que eles não lhe enviaram para isso. Se La Mole conduziu um processo verbal contra o conde de Tende, e, talvez, também fabricado por este homem perverso, ele era posterior às cartas contrárias escritas diretamente pelo rei a este governador, o que destrói a ideia de uma ordem anterior. Se, na chegada em Dauxerre, portador da ordem, e sobre suas instâncias, Mandelot, lavando as mãos pelos assassinatos, lhe disse: "Meu amigo, o que você impôs, seja imposto", isto é uma prova de que o governador só tinha recebido até então, por ordem, para colocar os huguenotes em segurança, e não matá-los.

Acrescentaremos contra a opinião quase acolhida, ou ainda contra a suposição das ordens, que se Carlos IX tivesse dado a ordem, ele não se aplicaria em negá-la por meio de cartas, visto que o rei não tinha se envergonhado em admitir aquelas de Paris em pleno parlamento e nas cortes estrangeiras; que se os assassinatos cometidos nas províncias foram conduzidos pela vontade do monarca, ele não teria confiado o cuidado disso, em Toulouse, "a alguns principiantes e outros moleques"; ele não teria procurado os autores dos assassinatos em Lyon e em Rouen.

Concluímos, pois, que a proscrição visava apenas o almirante e aqueles que podiam vingá-lo, ou perpetuar as perturbações; "só tendo sido resolvida a morte dos líderes ou facciosos". Que os horrores não deveriam sair da região de Paris, "o rei, tendo posto de acordo, por várias cartas, que ele não intencionava que esta execução gerasse outra e se estendesse adiante", e que se, apesar destas precauções, os assassinatos se espalharam da capital a várias cidades, isto ocorreu "porque o boato que se espalhou por todo o reino, do que tinha ocorrido em Paris, excitou os católicos de muitas cidades a agirem da mesma forma".

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IV - ENFIM, PERECERAM MUITO MENOS PESSOAS DO QUE SE ACREDITA, NA SÃO BARTOLOMEU

ão é fácil determinar o número das pessoas que pereceram no dia da São Bartolomeu ou na sequência desta catástrofe; entretanto, é fácil percebermos que nenhum historiador disse a verdade, visto que não há duas narrações sobre este fato que sejam iguais. Devemos mesmo

notar que, na medida em que estes autores escreveram em tempos mais afastados deste acontecimento, eles aumentaram seus efeitos, como se ele já não fosse assaz terrível por si mesmo. Assim, Péréfixe escreveu que pereceram cem mil pessoas; Sully, sessenta mil; de Thou, trinta mil, ou mesmo um pouco menos; La Popelinière, mais de vinte mil; o Martirólogo dos calvinistas, quinze mil; Papyre Masson, quase dez mil.

Destas opiniões divergentes, a menor nos parece a mais verdadeira, visto que ela parte de um autor que não buscava atenuar a ação; ele quisera, ao contrário, que ela fosse estendida por todas as províncias. Não relataremos suas palavras, elas são repugnantes aos nossos costumes, mas nos serviremos delas para julgar o modo de pensar daquele que as escreveu, e, concluir daí que se este autor contemporâneo tivesse sido persuadido de que pereceram mais de duas mil pessoas, ele não teria dissimulado tal fato; e, é o que nos determina, em parte, a preferir seu testemunho àquele dos outros historiadores, que tinham interesses reais em aumentar o mal. Papire Masson quisera que ele (o número de mortos) tivesse sido maior, ele não temia se mostrar à posteridade tal como ele era.

O Martirógrafo dos protestantes, La Popelinière, autor calvinista; de Thou, o apologista dos huguenotes; Sully, ligado aos seus erros; Péréfixe, preceptor de um rei ao qual ele se esforçava em inspirar sentimentos humanos, queriam que odiássemos os autores desta tragédia; eles tiveram, portanto, que exagerar seus efeitos, e eis uma razão para suspeitarmos de suas narrações.

A esta conjectura, acrescentamos provas literais que, se não são decisivas, poderão ao menos gerar a dúvida daquilo que escreveu acima aquele que tinha mais meios de estar bem instruído, o maior interesse em não omitir nada e a mais violenta propensão em exagerar. Queremos falar do martirografo dos calvinistas, em quem observamos várias contradições. Se ele procura, em geral, o número das pessoas que pereceram na São Bartolomeu, ele supõe esse número em trinta mil; se ele entra nos maiores detalhes, ele encontra apenas quinze mil e trinta e oito; se ele designa, ele não nomeia mais do que setecentos e oitenta e seis mortos.

Concluir, deste pequeno número de não nomeados, que pereceram apenas oitocentas pessoas, seria uma consequência aventurosa: dizer que pereceram muito menos de quinze mil e trinta e oito (visto que todos os cuidados do martirografo só puderam terminar em reaver os nomes de setecentos e quarenta e seis mártires) é uma conjectura que equivale a uma demonstração. Com efeito, qual era o objetivo desse compilador de atestados de óbito? - Era de conservar a memória daqueles que tinham perecido por sua religião: somente o título de seu volume in-folio anuncia esta intenção. É preciso, portanto, supor que o autor pesquisou e conservou com cuidado estes nomes preciosos à seita, e os meios não deveriam lhe faltar; o zelo de uns, a

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presunção de outros, o interesse particular e comum, deveriam conduzir até ele peças justificativas inumeráveis, sobretudo nos primeiros momentos da ação, tempo no qual a impressão estava mais viva e as ideias mais frescas... Contudo, ele só pôde conservar setecentos e oitenta e seis nomes, entre os quais vemos... o do mestre Poêlon, caldeireiro em Bourges, o que nos é permitido induzir que ele não esqueceria nada, que ele reuniria tudo para aumentar o número dos mártires e o volume do martirólogo.

As menores coisas são interessantes em uma discussão crítica, seja para fortalecer as conjecturas, seja para gerar outras no espírito do leitor, segundo as quais, se não podemos chegar à verdade, nos aproximamos dela. É por estas considerações, que acreditamos ter de colocar aqui o quadro dos mártires da seita; acrescentaremos aí algumas reflexões.

Número dos Calvinistas que pereceram na São BartolomeuExtraído do Martirólogo dos calvinistas, impresso em 1582.

NOMES das cidades onde eles foram

assassinados

NÚMERO daqueles que só são designados

NÚMERO daqueles que são nomeados

Em Paris 1000, em detalhe 468 152Em Meaux 225 30Em Troyes 37 37Em Orleans 1850 156Em Bourges 23 23Em La Charité 20 10Em Lyon 1800 144Em Saumur e Angers 26 8Em Romans 7 7Em Rouen 600 212Em Toulouse 306 000Em Bordeaux 274 7

Se, após termos lançado os olhos sobre este quadro de proscrição, lermos a obra de onde ele é tirado, perceberemos aí contradições que beiram ao absurdo.

O autor supõe aproximadamente dois mil desses mártires em Paris; depois, entrando em detalhes, ele conta apenas 468, ainda que seja preciso, para achar este número, que ele diga que pereceram 25 ou trinta no bairro da Cruz do Trahoir, trinta na rua Bétizy, seis nas prisões, vinte em duas casas, todos aqueles que estavam alojados sobre a ponte Notre-Dame, e assim adiante; e, de todos estes mortos, ele nomeia apenas cento e cinquenta e dois: seria preciso, portanto, crer que existe um erro de um zero em seu total, e reduzir o número dos mortos em Paris à mil. Essa é a opinião de La Popelinière; ela é, ademais, mais provável, visto que se pode apoiá-la em uma conta da Prefeitura de Paris, pela qual vemos que os prebostes e magistrados tinham feito enterrar

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os cadáveres no entorno de Saint-Cloud, Auteuil e Chaillot, no número de mil e cem!56

É certo, com exceção do almirante, que foi exposto no patíbulo de Montfaucon, e de Oudin Petit, livreiro, que foi enterrado em seu porão, que todos os cadáveres foram lançados no Sena. "As carroças carregadas de corpos de donzelas, mulheres, meninas, homens e crianças (diz o martirólogo)57, eram conduzidas e descarregadas no rio". Os cadáveres se detiveram, parte, em uma pequena ilha que estava, então, diante do Louvre, parte na dita ilha dos Cisnes: foi preciso então providenciar seu enterro, com medo de que eles infectassem o ar e a água, e isso foi feito por oito coveiros durante oito dias, que, tanto quanto podemos relacionar estes homens, enterraram um mil e cem cadáveres.

Se fosse essencial debater esta conta, encontraríamos fortes suspeitas contra sua fidelidade. Não é quase possível que oito coveiros tenham podido enterrar, em oito dias, um mil e cem cadáveres. Era preciso tirá-los da água, ou, ao menos, do fundo do rio; seria preciso cavar fossas um pouco profundas, para evitar a corrupção; o terreno onde elas foram feitas é muito firme, frequentemente pedregoso; como cada um destes oito homens teriam podido, então, enterrar, por sua parte, um mil e cem cadáveres em oito dias? Coisa difícil de acreditar. Devemos mesmo presumir que estes homens, pouco delicados, por estado e por natureza, não tiveram escrúpulos em aumentar o número dos enterros, para aumentar seu salário, e, realmente, não tinha ninguém para fiscalizá-los. Assim, é, no máximo, que supomos mil pessoas massacradas em Paris, conforme o que La Popelinière escreveu.

Outras razões nos persuadem de que há um erro no número de mortos em Orleans; aquele que os compilou designou apenas 156, não achando, sem dúvida, que isso fosse muito, nem que lhe fosse fácil estabelecer mais. É dito que os assassinos se vangloriaram de ter assassinado até 1.800; eis uma prova pouco jurídica, que nos recorda o estilo de de Thou, que não podendo com pudor aumentar o número dos mortos em Paris além do dobro do que La Popelinière tinha escrito, trinta anos antes dele, e querendo induzir a posteridade a substituir, pelo efeito da imaginação, o que ele suprimi à pena de sua narração, nos relata a anedota de certo Crucé que ele diz ter visto muitas vezes se vangloriar, mostrando insolentemente seu braço a vista, que este braço tinha estrangulado nesse dia mais de quatrocentas pessoas, e para tornar a coisa crível, este historiador tem o cuidado de oferecer a este fanfarrão selvagem, uma fisionomia realmente patibular. Entretanto, como ele não refletiu que, apesar deste braço nu e desta figura medonha, este Crucé não pôde matar quatrocentas pessoas, quando, da cegueira de de Thou, pereceram aí somente 2.000? Ele não teria deixado nada para os outros! A verdade se encontra raramente aí onde a probabilidade não pode se encontrar; tal é a infração que o Martirografo comete, quando ele exagera o número das pessoas massacradas em Lyon. Ele diz, inicialmente, que foram mortos por volta de 350, visto que pereceram de 15 a 1.800, e, sobre o número dos carrascos e soldados, foram empregadas apenas 6 pessoas neste grande massacre. Tal é ainda sua inconsequência, na ocasião das pessoas que pereceram em Toulouse: foram mortas 306, das quais ele não nomeia uma

56 Extrato de um livro contábil da Prefeitura de Paris. 57 P. 713, fol. verso.

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única, e estes assassinatos, ordenados pela corte, são cometidos por sete ou oito amadores e outros patifes58.

Podemos, segundo o que acabamos de ler, formar uma ideia do número daqueles que pereceram na São Bartolomeu e reduzi-lo muito abaixo do que os historiadores mais moderados escreveram sobre esta matéria. Deixamos este cuidado ao leitor. Cada um formará seu julgamento segundo o que tiver sido mais ou menos afetado sobre o que colocamos sob seus olhos. Entretanto, se desejamos uma regra que possa servir para fazer uma conta aproximada, que nos recordemos que o martirografo não pôde, em detalhes, levar além de 468 o número dos mortos em Paris, ao invés de dois mil, como expuseram em bloco; que ele designou somente 156 em Orleans, no lugar de 1.850; que ele supôs, inicialmente, apenas 350 em Lyon, no lugar de 15 a 1.800; que ele contou 600 em Rouen, ainda que ele tenha nomeado apenas 212; que ele supôs 306 em Toulouse, ainda que ele não nomeou um único, e 274 em Bordeaux, de onde ele nomeia apenas 7. Então, suprimindo deste catálogo, 9.000 para Paris, 1.694 para Orleans, 1.450 para Lyon e 250 para Rouen; mais 200 para Toulouse, e ao menos 200 para Bordeaux, cujo massacre só começou muito tempo depois de que tudo estava apaziguado no reino; não restará duas mil pessoas, e eis, no máximo, quantos pereceram nestes dias de luto.

Que examinem, que valorizem, que exagerem o tanto quanto quiserem, pois se pereceram apenas mil pessoas em Paris, como escreveu La Popelinière, historiador calvinista e o mais contemporâneo do acontecimento, fica difícil nos persuadirmos de que as demais cidades tenham visto massacrar, no total, um número parecido.

Bem! Que reservas podemos fazer sobre tudo o que foi escrito acima, quando vemos contradições manifestas nos historiadores sobre os fatos mais simples?

O que acreditaremos da carabina de Carlos IX, da qual Brantôme é o único que falou dela? D'Aubigné falou sobre ela apenas uma palavra, mas com tanta discrição, ademais, que ele parece recear relatar esta fábula. De Thou não falou dela, e certamente não foi para poupar Carlos IX, que ele chama de um furioso. O próprio Brantôme tem o cuidado de dizer que a carabina não poderia acertar tão longe. Entretanto, nos perguntamos onde Brantôme pôde apanhar este fato? Ele estava então a mais de cem léguas de Paris. "Neste tempo eu estava, diz ele, em nosso embarque de Brouage59". Eis, portanto, apenas um rumor, que ninguém ousou repetir no tempo; que o duque de Anjou não teria omitido em sua narração a Miron, visto que ele fala desta mesma janela, de onde pretendem que Carlos IX atirou sobre seus súditos.

"O rei, a rainha, minha mãe, e eu, diz o duque de Anjou, fomos ao portal do Louvre adjunto ao jeu de paulme, em um cômodo com vista para a praça do pátio, para ver o início da execução".

Se Carlos IX tivesse atirado sobre seus súditos, esta seria uma ocasião para não se omitir, seria mesmo a única que poderia fazer cair quase toda a repugnância do massacre sobre o rei, e é verossímil que o duque d'Anjou não teria deixado escapar a ocasião. Eis, portanto, uma alegação desprovida de

58 Expressões do Martirólogo dos Calvinistas, p. 730, fol. verso. 59 L.c.sup.

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aparência... Carlos IX teria, portanto, atirado sobre suas tropas, e não sobre seus súditos.

Bem! Como conciliar esta desumanidade pensada, com este movimento de horror que o atingiu, assim como sua mãe e seu irmão, ao primeiro tiro de pistola que eles ouviram. Deixemos o próprio duque de Anjou falar:

"Ouvimos nesse momento um tiro de pistola, e eu não saberia dizer em que lugar, nem se ele atingiu alguém; sei apenas que o som nos feriu, todos os três, tão profundamente no espírito, que ele atingiu nossos sentidos e nosso julgamento".

Esta confissão, desprovida de artifício, impressionará, sem dúvida, mais os espíritos, que a asserção de Voltaire que, para aparentar um ar de saber tudo e acrescentar um tipo de testemunho ocular a um boato de Brantôme, supôs que um marechal da França lhe tinha dito que ele ficou sabendo do fato da carabina do próprio pajem que a carregava.

Entretanto, chega de falarmos deste triste e para sempre lamentável dia da São Bartolomeu. Excidat illa dies aevo, nec postera credant. Saecula, nos certe taceamus.

Diremos com o primeiro presidente de Thou, que não cessava de repetir estes versos de Estácio, que Voltaire60 colocou sem fundamento na boca do chanceler do Hospital: eis mais uma restituição a ser feita.

* * * * *

Em 1843 (sic), o congresso científico de Angers propôs, na vigésima terceira questão de seu programa, este tema: "Qual foi a participação da política na São Bartolomeu?" Falloux respondeu a isto, se fundamentando em textos, que este acontecimento deplorável pertencia exclusivamente à política, e que o imprevisto desempenhou um papel bem maior do que se supõe geralmente. A memória de Falloux foi publicada in extenso no Correspondant, em 184361.

No século XVIII, o historiador inglês e anglicano, Hume, tinha demonstrado, por diversas passagens, que a São Bartolomeu não tinha de forma alguma sido premeditada. Em nossa época, Capefigue escreveu no mesmo sentido estas linhas que devemos relatar:

"O projeto de se livrar dos huguenotes por um massacre poderia muito confusamente se apresentar ao pensamento; mas, se ele tivesse sido decretado, se a paz só pudesse ser concluída por este fim, é impossível que o papa e o rei de Espanha, estas duas potências da unidade católica, não estivessem prevenidos disso, ou que eles não tivessem a intuição do fim secreto da paz62".

E mais adiante, Capefigue acrescenta:

"Se eles tinham resolvido há muito tempo, e por um conselho pensado, o massacre dos huguenotes, isso teria sido discutido na correspondência secreta de Carlos IX e de Felipe II, o qual impelia, conjuntamente com o duque de Albe, ao triunfo completo do partido católico. Quando se lê os despachos, as

60 Ensaio sobre os costumes, t. IV, p. 75 (Tomo XVIII das Oeuvres de Voltaire, édit. Beuchot, 1829). 61 A São Bartolomeu e o século XVIII (p. 145-170). 62 La Réfomer et la Ligue (1844), p. 311.

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instruções do rei de Espanha e sua alegre admiração sobre a São Bartolomeu, é impossível não ficar convencido de que não havia, neste acontecimento, nada preparado; que o resultado de uma situação inicial, invencível, a opinião do povo, obrigou Carlos IX a sancionar, em vez de meditar, estes dias sangrentos. Nas narrações desta catástrofe, não se distinguiu suficientemente a aprovação dada a um fato realizado e a vontade que o preparou63".

Enfim, citaremos ainda estas palavras dignas de serem meditadas:

"Entretanto, quando foram escritas a história desta época, falaram de ordens secretas, de nobres respostas de alguns governadores, e, particularmente, do visconde de Orthès. Houve, sem dúvida, governadores que impediram as emoções populares, que acudiram as vítimas da reação; eles fizeram, portanto, o que as almas firmes e elevadas fazem sempre em uma revolução; eles se opuseram aos excessos das massas. Mas, a tudo isto não houve nada escrito, nada respondido, pois não havia nada prescrito64".

Nada prescrito para o massacre, mas para a salvação dos calvinistas. Capefigue não pôde ignorar isso. Apenas, a essas asserções formais, ele deixou de acrescentar suas provas: lemos as nossas, e elas são concludentes.

Dois anos após a publicação de sua brilhante memória, Falloux produziu, na mesma compilação periódica, novas observações sobre a São Bartolomeu65. Já em 1844, em sua notável História do papa São Pio V66, este escritor erudito e imparcial tinha provado que toda carta ou trecho insignificante, apoiando a premeditação da São Bartolomeu, tinha sido inventada, e mais frequentemente produzida no curso do século XVIII. Nós só podemos indicar estas fontes excelentes: aqueles que entre nossos leitores que as provas acumuladas em nosso trabalho não satisfizeram completamente, poderão recorrer aos artigos do Correspondant e ao livro supracitado de Falloux.

Enfim, em 1845, o honorável Carné, em um belo trabalho publicado pela Revue des Deux-Mondes67, escrevia estas linhas, que isentam Caterina de Médici e Carlos IX da reprovação de premeditação e de cilada:

"Frequentemente acusaram a rainha-mãe de ter preparado, por dois anos, por maquinações, o crime da São Bartolomeu; pretenderam associar um rei de vinte e três anos à horrível premeditação deste massacre: obtiveram sucesso em caluniar Catarina. O casamento do jovem rei de Navarra com Margarida de Valois não foi uma cilada preparada para atrair à corte, pela imponência de tal solenidade, a nobreza huguenote. A amizade de Carlos por seu cunhado, sua benevolência por Coligny, eram sinceras, e o céu nunca permitiria que a coroa da França repousasse sobre a cabeça de um mostro que teria chegado a este ponto, à beira do crime68..."

Depois destas palavras eloquentes, nos resta apenas encerrar estas pesquisas, onde seguimos incessantemente o papel do relator mais desinteressado e onde marchamos sempre com a chama da mais severa crítica à mão.

63 Ibid., p. 361. 64 P. 394. 65 Veja o Correspondant de 1845, p. 247 a 265. 66 1844, t. I, p. 188 a 250, c. IX e X, e trechos justificativos do mesmo volume, nº 2, p. 337 a 371. (Esta nota foi publicada no Correspondant de 1843, p. 145-170). 67 Revista dos dois mundos. 68 1845, p. 656. Monografias políticas - Henrique IV.