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Anpuh Rio de Janeiro Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro – APERJ Praia de Botafogo, 480 – 2º andar - Rio de Janeiro – RJ CEP 22250-040 Tel.: (21) 9317-5380 A NOVA CANÇÃO CHILENA (1964 -1970) E A BUSCA POR UMA CULTURA POPULAR Carla de Medeiros Silva Mestranda em História Social na Universidade Federal Fluminense O objetivo desta comunicação é analisar o movimento artístico-musical da Nova Canção Chilena, que se desenvolve no Chile no decorrer da década de 1960, sendo um importante agente na campanha eleitoral de Salvador Allende (1970) e ao longo dos três anos do governo da Unidade Popular (1970-1973). Enfocaremos o período anterior ao governo da UP, buscando analisar o campo artístico-musical chileno no momento de formação e consolidação da Nova Canção. Em diálogo com outras expressões musicais da época, a Nova Canção Chilena vai forjar uma defesa própria do que seria cultura e cultura popular e construir uma representação do povo chileno em suas mais variadas composições, inserida num contexto de intensificação e polarização da luta de classes. Ao longo das décadas de 1950-1960, diversos movimentos artísticos e intelectuais, de orientações de esquerda no continente, buscaram estabelecer um diálogo com os problemas sociais vivenciados pela maioria de suas populações, visando à construção de uma cultura que não fosse ornamental/das elites. O movimento da Nova Canção Chilena (NCCh) surge num cenário em que diversos movimentos similares se desenvolviam em países do continente latino-americano, tais como o Nuevo Cancionero Argentino e a Nueva Trova Cubana. O movimento de “ir ao povo” na busca de compreendê-lo e traduzi-lo em expressões artísticas e culturais foi a tônica de vários movimentos artísticos e estéticos. A partir do final da década de 1950 e ao longo dos anos 1960 assistimos, em todo o continente, a um período de intensificação das lutas sociais. A possibilidade de construção de uma sociedade que rompesse com o imperialismo norte-americano e com o capitalismo se concretizava na experiência da Revolução Cubana de 1959, que passou a habitar o imaginário das esquerdas latino-americanas. No Chile, com a chegada do Partido Democrata-Cristão (PDC) à presidência, no ano de 1964, um novo momento político abre-se no país. O governo da DC apostou na realização de reformas estruturais, notadamente a reforma agrária, bancária e urbana; na “chilenização” do cobre (principal produto de exportação chileno), no estímulo à

A Nova Canção Chilena

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O objetivo desta comunicação é analisar o movimento artístico-musical da Nova Canção Chilena

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Anpuh Rio de Janeiro

Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro – APERJ Praia de Botafogo, 480 – 2º andar - Rio de Janeiro – RJ

CEP 22250-040 Tel.: (21) 9317-5380

A NOVA CANÇÃO CHILENA (1964 -1970) E A BUSCA POR UMA CULTURA

POPULAR

Carla de Medeiros Silva

Mestranda em História Social na Universidade Federal Fluminense

O objetivo desta comunicação é analisar o movimento artístico-musical da Nova Canção

Chilena, que se desenvolve no Chile no decorrer da década de 1960, sendo um importante agente na

campanha eleitoral de Salvador Allende (1970) e ao longo dos três anos do governo da Unidade

Popular (1970-1973). Enfocaremos o período anterior ao governo da UP, buscando analisar o campo

artístico-musical chileno no momento de formação e consolidação da Nova Canção. Em diálogo com

outras expressões musicais da época, a Nova Canção Chilena vai forjar uma defesa própria do que seria

cultura e cultura popular e construir uma representação do povo chileno em suas mais variadas

composições, inserida num contexto de intensificação e polarização da luta de classes.

Ao longo das décadas de 1950-1960, diversos movimentos artísticos e intelectuais, de

orientações de esquerda no continente, buscaram estabelecer um diálogo com os problemas sociais

vivenciados pela maioria de suas populações, visando à construção de uma cultura que não fosse

ornamental/das elites. O movimento da Nova Canção Chilena (NCCh) surge num cenário em que

diversos movimentos similares se desenvolviam em países do continente latino-americano, tais como o

Nuevo Cancionero Argentino e a Nueva Trova Cubana. O movimento de “ir ao povo” na busca de

compreendê-lo e traduzi-lo em expressões artísticas e culturais foi a tônica de vários movimentos

artísticos e estéticos.

A partir do final da década de 1950 e ao longo dos anos 1960 assistimos, em todo o continente,

a um período de intensificação das lutas sociais. A possibilidade de construção de uma sociedade que

rompesse com o imperialismo norte-americano e com o capitalismo se concretizava na experiência da

Revolução Cubana de 1959, que passou a habitar o imaginário das esquerdas latino-americanas. No

Chile, com a chegada do Partido Democrata-Cristão (PDC) à presidência, no ano de 1964, um novo

momento político abre-se no país.

O governo da DC apostou na realização de reformas estruturais, notadamente a reforma agrária,

bancária e urbana; na “chilenização” do cobre (principal produto de exportação chileno), no estímulo à

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industrialização de bens duráveis e de consumo, na redistribuição de renda e integração social. Os

democrata-cristãos entendiam que havia numerosos contingentes populacionais que se encontravam à

margem do sistema econômico, e que, portanto, o seu projeto de sociedade deveria incluir esses

contingentes, oferecendo-lhes a possibilidade de se integrarem dignamente à ordem econômica. A

finalidade última da política era a construção de uma sociedade ideal, na qual houvesse justiça social.

A principal bandeira do seu governo era “Revolução em Liberdade”. O lema correspondia à

idéia de transformar diversos aspectos da sociedade chilena (através das já mencionadas reformas

estruturais), garantindo liberdade de expressão e de organização a todos os grupos políticos, contrários

ou favoráveis ao governo. De acordo com Carlos Altamirano, o governo de Eduardo Frei: “...prometia

‘revolução em liberdade’, no entanto, segundo seus críticos, conseguiu apenas garantir a liberdade, sem

realizar a prometida revolução. (...) As garantias de Frei à liberdade tiveram o mérito de intensificar o

debate ‘chileno sobre o Chile’ e as grandes organizações sociais chilenas (sindicatos, universidades,

partidos políticos, associações de classe) puderam continuar funcionando livremente”

(ALTAMIRANO, 1979:10).

A democracia-cristã, em sua pretensão declarada de promover o desenvolvimento econômico do

país gerando distribuição de renda e justiça social, encontrou dificuldades em radicalizar as reformas

estruturais sem abalar o sistema econômico. Divergências internas em torno de qual seria a ‘sociedade

ideal’ que o partido se propunha a construir, começaram a se tornar cada vez mais evidentes em fins

dos anos 1960. Enquanto alguns grupos falavam abertamente na necessidade de abolir a propriedade

privada, outros defendiam uma sociedade “comunitária”, na qual se manteria a propriedade privada.

O movimento da Nova Canção Chilena está inserido nesse contexto, sendo portanto, por ele

determinado. No entanto, bem como determinado pelo contexto no qual está inserido, o movimento

também exerce pressões, constituindo-se em agente de transformação social. Em diversos países do

continente latino-americano, artistas e intelectuais produziram buscando associar sua arte aos

problemas cotidianos de seu povo, fazendo da arte um elemento que expressasse a realidade desse

povo, realizando um estudo de suas formas próprias de expressão e linguagem artísticas. O objetivo

colocado era romper com uma cultura elitista, buscando elementos da cultura popular para, a partir

deles, produzir uma nova musicalidade.

No entanto, a busca pelas expressões artísticas populares, não significava, em contrapartida, um

fechamento do movimento nas fronteiras nacionais. O movimento da Nova Canção Chilena foi

nacionalista na medida em que foi antiimperialista e, nesse sentido, foi totalmente aberto a influências

artísticas latino-americanas, contribuindo para fortalecer uma identidade latino-americana no campo da

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arte. O movimento gravou várias canções de argentinos, uruguaios e cubanos, sendo o tema do

imperialismo um dos mais recorrentes em suas obras. Os discos “Por Vietnam” (1968), gravado pelo

conjunto Quilapayún, e “El derecho de vivir em Paz” (1971), de Victor Jara e Rolando Alarcón,

evidenciam uma manifestação de solidariedade internacional com a luta dos povos oprimidos ante o

imperialismo. Ademais, ao buscar reler elementos da cultura popular, o movimento não se manteve

restrito a eles. Em certo sentido, a NCCh buscou mesclar elementos populares com “eruditos”, não

rechaçando as realizações da cultura já acumulada e reconhecida dentro do campo artístico1.

Certos pesquisadores, como José Manuel García, apontam que o movimento se inicia em finais

da década de 1950, quando um número significativo de folcloristas realizou pesquisas, buscando

compilar e divulgar a cultura popular que era produzida, principalmente, nas áreas rurais do país. Por

sua vez, outros reconhecem a importância do trabalho dos folcloristas para o movimento, mas

argumentam que a Nova Canção passa a existir enquanto movimento artístico quando artistas e

intelectuais vão além do trabalho de pesquisa e divulgação e passam a produzir canções com conteúdo

social e político. O movimento da Nova Canção Chilena teria se configurado no momento em que se

operou a união entre elementos musicais folclóricos (ritmos e instrumentos) e temáticas sociais. Na

visão de Fernando Barraza: “La letra apunta, abierta o sutilmente, hacia un cuestionamento crítico de la

sociedad, del orden establecido. Traduce, interpreta o pretende reflejar la realidad de la sociedad

chilena de hoy y los distintos fenómenos que se manifestan en ella”2. Ao longo da década de 1960, em

consonância com as movimentações sociais e a complexificação da sociedade civil em diversos países

da América Latina, o movimento da Nova Canção Chilena se tornou um importante canal, um veículo

de comunicação, que promoveu um encontro fecundo entre as classes oprimidas, seus anseios e seus

problemas, e o ideário socialista.

Através da análise de suas produções musicais, podemos reconhecer que o movimento da Nova

Canção Chilena (NCCh) elaborou uma concepção acerca daquilo que pesquisava: a cultura popular

chilena e suas tradições folclóricas; o que nos leva a afirmar que a discussão sobre o folclore é uma das

que se situa na raiz do movimento. Cabe ressaltar que o movimento não é produtor de folclore, mas

antes, o folclore constitui um vasto material sobre o qual os artistas se debruçam. Nesse sentido,

buscaremos analisar os debates, acerca de uma definição do fenômeno folclórico, que ocorreram no

campo artístico-musical chileno e demonstrar como a concepção (não sistematizada, mas expressa no

1 Como exemplo desta mescla, poderíamos citar as “cantatas”. Dentre elas a “Cantata Popular de Santa María de Iquique”, composição do professor universitário Luis Advis interpretada pelo conjunto Quilapayún, é considerada a mais importante obra do gênero. 2 Barraza, Fernando. in: http://www.abacq.net/imagineria/ncch1.htm

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conjunto de sua produção artística) formulada pelo movimento da NCCh se assemelha em

determinados pontos a idéia de folclore como “cultura popular” e “concepção do mundo e da vida”.

Segundo Juan Pablo González, em finais da década de 1920 e ao longo da década de 1930, em

decorrência da crescente urbanização ocasionada pela vinda de trabalhadores do campo para a cidade,

se desenvolvem alguns conjuntos de música folclórica como Los Cuatro Huasos (1927), Los Huasos

Quincheros (1937) e Los Provincianos (1938). Nas palavras de González: “De este modo surgió la

llamada Música Típica Chilena, satisfaciendo la necesidad de los sectores rurales urbanizados de

poseer uma música que evocara su pasado de inmigrante, pero que se adaptara a su nuevo ambiente

urbano e moderno.” 3

Na trilha deixada por González, podemos relacionar o desenvolvimento da Música Típica

Chilena a dois processos que estão interligados. Por um lado, trata-se de uma elevação de determinadas

práticas e produtos culturais representativos do folclore ao status de tradição cultural do país. Raymond

Williams aponta que a tradição é sempre seletiva e problematiza a maneira pela qual ela se forma.

Nesse sentido, entendemos que a incorporação do folclore na tradição seletiva oficial é parte do

processo de construção de uma identidade nacional sendo “...um aspecto da organização social e

cultural contemporânea, no interior do domínio de uma classe específica. É uma versão do passado que

se deve ligar ao presente e ratificá-lo.” (WILLIAMS, 1979: 119).

Ainda seguindo as contribuições de Raymond Williams e sua tentativa de fornecer um aporte

teórico para a construção de uma análise materialista da cultura, entendemos que se buscou incorporar

o folclore como um elemento cultural arcaico, ou seja, “...que é totalmente reconhecido como um

elemento do passado, a ser observado, examinando, ou mesmo, ocasionalmente, a ser ‘revivido’ de

maneira consciente de uma forma deliberadamente especializante.” (WILLIAMS, 1979: 125).

Reconhecer as tradições folclóricas como expressões culturais do passado, consiste em assumir a idéia

de que o crescente processo de industrialização e urbanização vinha incluindo toda a sociedade;

modificando as práticas culturais e transformando o folclore em memória, em tradição.

Como um desdobramento do que acima foi colocado, podemos analisar o fenômeno de inserção

do folclore na tradição oficial como uma operação hegemônica que consistiu em reconhecer

determinadas demandas e anseios das classes subalternas e reconfigurá-las. Referimos-nos

especificamente às demandas dos grupos de trabalhadores e trabalhadoras rurais que afluíam do campo

para a cidade e que passavam a ver suas expressões culturais, ainda que estereotipadas, reconhecidas

como parte da formação histórica da nação. Nesse processo de incorporação, o hegemônico tem que

3 González, Juan Pablo. “Evocación, modernización y reivindicación del folclore em la música popular chilena: el papel de la performance”. In: Revista Musical Chilena. vol. 50/185, 25-37. 1996.

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rejeitar, expurgar e destruir determinadas práticas, significados e valores que não podem se adequar

sem representar uma ameaça, um abalo, nas relações de dominação de classe4.

Logo, ao efetuar a incorporação na tradição, são mobilizados os aspectos mais conservadores,

ao passo que outros elementos culturais são reinterpretados e adquirem uma nova feição. González cita

que: “Con la estilización de la tonada, la música campesina se transformó en las ciudades en música de

espectáculo, adecuada al medio nocturno de boites y restaurantes. Había nacido el artista del folclore y

com él, la Música Típica Chilena. Predomina en este repertorio la idealización de la mujer y la

autocompasión del hombre...”5. Ao reforçar uma imagem idílica do campo, esse setor artístico – e sua

interpretação do folclore – contribuía para legitimar as relações sociais e de produção na terra e garantir

a manutenção no poder de uma oligarquia agrária, motivo pelo qual serão posteriormente qualificados

de “folclóricos de latifúndio”.

Avançando um pouco no tempo, em finais da década de 1950 e início dos anos 1960, a América

Latina vivencia uma intensificação do processo de modernização capitalista. A entrada de produtos

culturais norte-americanos através do rádio acarretava, conforme aponta Tânia da Costa Garcia, “a

descaracterização e perda dos costumes locais substituídos, pouco a pouco, por uma cultura de massa

desterritorializada e estandardizada propagada pelo mercado e difundida pelos meios de

comunicação.”6

Em face desse fenômeno, determinados setores do campo artístico-musical reagem voltando

suas atenções para a divulgação e pesquisa da cultura nacional e popular. O folclore ressurge com força

no cenário, representando para muitos artistas e pesquisadores um lócus importante de resistência ao

processo de modernização capitalista. Na medida em que a música escutada nas cidades encontrava-se

perpassada de influências estrangeiras, especialmente norte-americanas, cabia aos artistas a ida ao

campo para capturar uma musicalidade chilena, e em última instância as ‘raízes’ do homem chileno.

Segundo Patricio Manns:

“...la música de la ciudad está penetrada (como la economía) por las influencias exteriores a través del cine, los conciertos, la ópera, la zarzuela, los discos y las emisiones radiales. Es pues

4 Antonio Gramsci assinala que o conhecimento das manifestações folclóricas – uma concepção do mundo e da vida que está presente na formação social de homens e mulheres das classes subalternas – tem como objetivo “extirpá-las” e “substituí-las” por concepções de mundo consideradas superiores; “oficiais”. No interior do movimento da NCCh há um caso que ilustra bem esse processo de repressão a determinados elementos da concepção de mundo das classes subalternas. Em 1966, o cantor e compositor Victor Jara grava a canção ‘La beata’, música popular recolhida numa das viagens que Victor fazia ao interior rural do Chile. A canção tratava de uma beata que se apaixonava pelo padre ao qual se confessava. ‘La Beata’, transmitida em cadeia nacional de rádio, gerou uma série de manifestações por parte da Igreja Católica, levando as rádios a proibirem sua difusão e o Escritório de Informação da presidência da República a ordenar o seu recolhimento das lojas e a destruição da gravação original. 5 González, Juan Pablo. Op. Cit. 6 Garcia, Tânia. “Nova Canção: manifesto e manifestações latino-americanas no cenário político mundial dos anos 60.” In: http://www.hist.puc.cl/iaspm/baires/articulos/Costa%20Garcia.pdf .

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en el campo donde puede hallarse la única veta, el material que permitirá elaborar una música nacional, porque no será, evidentemente, la música pura, la música de extracción autóctona, sin padre ni madre conocidos, la que acogerá la radiodifusión...”7

No interior do campo artístico-musical, dentre os grupos que trabalhavam com folclore,

forjaram-se distintos posicionamentos. Um deles agrupava-se em torno de um estilo que ficou

conhecido como Neofolclore. O estilo musical neo-folclórico era produto de uma juventude urbana,

que recorria ao folclore defendendo que ele deveria sofrer determinadas alterações para que pudesse se

adaptar ao gosto musical da juventude citadina e, assim, ampliar o seu público. Segundo González; o

Neofolclore “...rechazaba la presentación de canciones foclóricas en su estado puro, ‘sin hacerles una

limpieza ni espantarles el polvo’”.8 As principais expressões musicais do estilo foram os conjuntos Los

Cuatro Cuartos (1963) e Las Cuatro Brujas (1964).

No entanto, as modificações introduzidas por esse estilo geraram oposições no interior do

campo. O debate em torno do folclore ensejava diversas posições que, de alguma maneira, se

organizavam em torno de dois pólos principais. De um lado, prevalecia a compreensão do folclore

como um conjunto de práticas e produtos culturais das classes populares, especialmente rurais, que

haviam se formado no passado e existiam ainda no presente, sem, no entanto, sofrer modificações de

forma ou conteúdo. Os partidários desse posicionamento entendiam o folclore como algo estático, que

se repetia sempre da mesma forma. Ao não considerar o folclore uma prática dinâmica, que era parte

integrante do processo histórico-social, e portanto, transformava-se ao experimentar as múltiplas

determinações desse processo, aos artistas e folcloristas dessa vertente de pensamento cabia efetuar a

pesquisa e a compilação das manifestações folclóricas preservando suas “verdadeiras origens”. Essa

visão “romantizava” o folclore, considerando-o como o guardião da verdadeira cultura do povo,

marcada pela pureza e pela não contaminação com a degradada cultura de massas.

Dizemos que essa visão “romantizava” o folclore, por entendermos que há proximidades entre

ela e o entendimento que os românticos tinham da cultura. No romantismo, a crítica ao modo de vida

capitalista tem na valorização da arte, enquanto espaço no qual a liberdade e a plena realização do ser

humano ainda era possível, uma de suas principais armas. Os românticos, ao elevarem a arte como um

estandarte contra a mercantilização de todas as relações sociais, acabam por retirá-la do terreno

material das relações sociais e de produção, condenando-a a viver nas alturas, desconectada com o

mundo real. A repetição de antigos costumes e práticas culturais por parte de setores marginalizados no

processo de modernização capitalista – trabalhadores rurais, migrantes que saem do campo para as

7 Manns, Patricio. In: Violeta Parra. España: Editorial Júcar. Cit. por Rodríguez, Osvaldo. Cantores que reflexionan. Madrid: LAR Ediciones, 1984. In: http://www.abacq.net/imagineria/disc004.htm . 8 González, Juan Pablo. Op. Cit.

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cidades, etc. – assumiria um importante papel de resistência a esse processo avassalador que solapava

sua visão de mundo e sua própria cultura.

No entanto, na medida em que essa resistência seria realizada por uma cultura estática, imóvel,

calcada num passado cada vez mais distante; não restaria nada além da resistência estéril, pois a

possibilidade de utilizar a arte e a cultura como ferramentas para pensar uma alternativa ao processo de

modernização capitalista não está colocada para aqueles que entendem o folclore como uma expressão

artística e cultural que é um resquício de um passado cada vez mais perdido. Poderíamos dizer,

seguindo uma categorização proposta por Bourdieu, que na medida em que se divulga e defende uma

cultura pura e estática, acaba-se reforçando o estigma da dominação e produzindo uma “resistência

alienante”.

Ao reconhecer nos elementos, significados e valores da cultura popular uma significação de

resistência inata, acaba-se por desconsiderar como esses significados são forjados nas lutas cotidianas

das classes, tomando-os como originários. Segundo Joan Jara:

“No Chile, como em qualquer lugar, havia duas escolas de pensamento predominantes no que se referia ao folclore: uma delas o considerava algo estático, petrificado, a ser investigado apenas do ponto de vista antropológico e preservado para os museus; a outra, à qual pertencia Victor [Jara] e que só então começava a ser notada, via-o como uma expressão viva que poderia ser contemporânea e suscetível a transformações, desde que estivesse firmemente atrelada a suas raízes originais.” (JARA, 1998: 111).

A escola de pensamento que considerava o folclore como algo estático, à qual estava associado

o conjunto Cuncúmen, ao entender que o folclore deveria ser estudado, compilado e recuperado;

tomava-o como elemento de um passado. Entender porque esse passado se repetia no presente era uma

outra questão, para a qual não havia apenas uma resposta: poderia ser pela força da tradição, ou porque

a cultura e as artes em geral se situavam numa dimensão à parte das relações sociais, ou ainda, porque

– como já dissemos anteriormente – havia setores à margem do processo de modernização que ainda

não tinham sido tocados pela mão (maléfica para uns, redentora para outros) do “moderno”. Os setores

camponeses viveriam no “atraso” e por esse motivo repetiam há décadas, numa cultura transmitida

através da oralidade, determinados costumes, hábitos, práticas, significados, valores, etc.

As principais expressões artísticas do movimento da Nova Canção Chilena, compartilhavam

uma outra compreensão acerca do folclore; a de que ele era algo dinâmico, que podia se modificar para

melhor expressar os anseios populares. Em verdade, essa concepção está presente em outros

movimentos semelhantes, que se desenvolvem na mesma época, como o Nuevo Cancionero Argentino,

que em seu manifesto de 1963 assinala: “Foi a fixação nesse estado o que degenerou em folclorismo de

cartão postal cujos remanescentes ainda padecemos, sem vida nem vigência para o homem que

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construía o país e modificava dia a dia sua realidade”9. No entanto, essas modificações não poderiam

desarticular a expressão artística e cultural de suas raízes, de sua origem mais profunda.

“A discussão se prolongou durante os anos iniciais da década de 70, provocando controvérsia e, às vezes, rancor. Embora Victor tenha se separado do grupo Cuncúmen no final de 1962, manteve contato com eles e, nos anos seguintes, auxiliou-os no campo específico da pesquisa do folclore autêntico, mesmo que muita gente os considerasse antiquados e anacrônicos. Ele pensava que, embora fosse um erro ser dogmático com respeito ao folclore, era também muito importante estudá-lo e tentar saber tudo que fosse possível sobre as velhas tradições e o povo que a criara.” (JARA, 1998: 111).

Nesse sentido, podemos visualizar uma ponte entre a concepção dos artistas da Nova Canção e

a concepção romântica de cultura popular, e a existência de uma ponte, um diálogo, entre as duas

principais posições do debate sobre o caráter das manifestações folclóricas. Ao mesmo tempo em que

reconhecemos que a fala de Victor Jara contém elementos que a aproximam de uma visão romântica e,

por vezes idealizada, das expressões culturais das classes populares; é necessário levar em consideração

as relações estabelecidas no interior do campo artístico e musical e buscar perceber contra quem se

dirige a fala de Victor Jara. Num momento histórico em que a América Latina vivencia a entrada de

diversos produtos culturais norte-americanos, o que é parte de uma iniciativa imperialista num contexto

de Guerra Fria; diversos movimentos culturais latino-americanos se voltam ao estudo das expressões

artísticas de seu povo, buscando se contrapor à dominação cultural e apresentar uma resistência ao

imperialismo.

No entanto, muito embora consigamos perceber contra quem se dirige a fala e situar o artista no

contexto em que se insere, isso não encobre suas contradições. Mais do que uma questão de raízes

culturais, a preocupação relevante é a de não falsear o modo de vida das classes subalternas produtoras

da cultura que o movimento reconhece e busca dar visibilidade. Reconhecer que as classes

trabalhadoras são produtoras de cultura e decidir divulgar essa produção é uma opção política de

solidariedade a essas classes, mas justamente por isso, deve ser também um elemento importante na

afirmação de um compromisso com essas classes em seu processo de lutas. O trabalho efetuado pelos

protagonistas do movimento da Nova Canção Chilena teve um sentido de mobilizar os significados de

rebeldia e alternativos à visão de mundo dominante que estão presentes nas manifestações artísticas e

culturais das classes populares.

Como breve exemplo, poderíamos citar a composição musical “Plegaria a un labrador”, com a

qual Victor Jara ganhou o prêmio no 1º Festival da “Nueva Canción Chilena” em 1969. Nela, é

perceptível como o compositor mobiliza significados, valores e práticas concernentes às classes

9 Manifesto do “Nuevo Cancionero Argentino”. Apud GARCIA, Tânia da Costa. (p.6) [grifo meu].

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subalternas. Em cima da forte religiosidade popular – e aqui é necessário ressaltar que é uma

religiosidade católica, portanto não há sentido em falar em uma religiosidade “autenticamente” popular,

de raízes autóctones, afinal o catolicismo é a religião do conquistador espanhol – Victor Jara compõe

uma música em forma de oração, estabelecendo um diálogo com uma entidade superior, imaterial. No

entanto, em vez de ser um diálogo conformista, aonde o oprimido pede resignação para suportar suas

dificuldades e misérias cotidianas; é um diálogo no qual se pede força para avançar na luta que

resultará na conquista da liberdade, da justiça e da igualdade, do fim das opressões.

“Líbranos de aquel que nos domina / en la miseria.

Tráenos tu reino de justicia / e igualdad.

Sopla como el viento la flor / de la quebrada.

Limpia como el fuego / el cañón de mi fusil.

Hágase por fin tu voluntad / aquí en la tierra.

Danos tu fuerza y tu valor / al combatir.

Sopla como el viento la flor / de la quebrada.

Limpia como el fuego / el cañón de mi fusil.” 10

Aqui, percebemos um outro sentido que a cultura tem para esses artistas. Ela é tida como

instrumento de protesto, de denúncia das condições materiais de vida das classes trabalhadoras. É

valorização do povo e de suas expressões artísticas e culturais, mas também reconhecimento de suas

condições de vida, de sua posição dominada e oprimida.

Uma vez considerado que era necessário resgatar e organizar significados de rebeldia e

contestação presentes nas manifestações da cultura popular, uma questão colocava-se aos protagonistas

do movimento: De acordo com Victor Jara;

“O imperialismo norte-americano entende muito bem a magia da comunicação através da música e insiste em despejar sobre nossa juventude todo tipo de lixo comercial. Como profissionais hábeis, tomaram certas medidas: primeiro, a comercialização da chamada ‘música de protesto’; segundo, a criação de ídolos da música de protesto, que obedecem às mesmas regras e que sofrem os mesmos constrangimentos que os outros ídolos da indústria fonográfica de consumo: têm um sucesso momentâneo e depois desaparecem”.(JARA, Victor. Cit. por JARA, 1998: 167).

Diante desta realidade, como fazer para difundir e divulgar as canções sem submetê-las

integralmente à lógica de mercado que, invariavelmente, acarreta o esvaziamento do potencial de

crítica dos produtos culturais (ou ainda, a transformação desse potencial em mercadoria)?

10 In: www.cancioneros.com .

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Acrescentamos um trecho do inglês Ewan Maccoll, pronunciado no “Encuentro de la Canción

Protesta”, realizado em Havana, Cuba, em 1967: “Los movimientos de canción de protesta que

dependen de los medios de comunicación masivos serán rapidamente destruídos a medida que se

intensifique la lucha política.” (MACCOLL citado por PLAZA, 1976: 119).

A necessidade de criação de veículos alternativos de comunicação e difusão cultural impunha-se

não apenas como forma de resistência – um espaço no qual era possível pensar e criar criticamente –

mas, sobretudo, como um espaço no qual era possível experimentar novas formas de sociabilidade e

relações menos opressivas no campo da criação artística. O trabalho realizado por Victor Jara pode ser

tomado como exemplo do que queremos analisar. Victor atuou por longo tempo como diretor teatral, e

paralelamente, iniciou um trabalho de intérprete e compositor musical, realizando um trabalho

expansivo e intensamente coletivo. No início de seu trabalho como músico, Victor atuou junto com o

conjunto folclórico Cuncúmen, em seguida gravou discos solo, foi diretor artístico do Quilapayún, além

de ter colaborado em trabalhos de Angel e Isabel Parra, dentre outros.

O movimento da NCCh fomentou a criação de canais alternativos de difusão cultural, como o

selo DICAP (Discoteca del Cantar Popular), gravadora fundada em 1968 pela juventude do Partido

Comunista; e as Peñas, casas noturnas de apresentação musical freqüentadas por um público de classe

média, especialmente estudantes e intelectuais. Na medida em que a luta de classes intensifica-se na

sociedade chilena, com a aproximação das eleições presidenciais de 1970, o movimento da NCCh vai

consolidar uma participação orgânica no processo eleitoral, não apenas declarando solidariedade, mas

engajando-se efetivamente na campanha da Unidade Popular. Entendemos que é por conta do vínculo

cada vez mais profundo que o movimento estabelece com o momento político vivenciado pelo país, ao

colocar sua produção artística a serviço de um projeto político que representava um caminho para o

socialismo, que o movimento da Nova Canção dá um salto no sentido de ampliação do seu próprio

público, indo além das classes médias. A canção se torna arma, uma vez que não haveria revoluções

sem canções.

“La obligación de cada artista es la de poner su poder creador al servicio de los hombres. Ya está añejo el cantar a los arroytos y a las florcitas. Hoy la vida es más dura y el sufrimiento del pueblo no puede quedar desatendido por el artista”.11

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11 Violeta Parra citada por García, José. In: “La nueva canción chilena”.

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