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Direito Izabela Hendrix – vol. 18, nº 18, julho de 2017 22
A nova realidade dos títulos
de crédito como valores mobiliários
Wallace Fabrício Paiva Souza
Resumo: Os títulos de crédito desempenham um papel fundamental no mercado,
permitindo que o crédito circule de forma rápida e segura. Porém, os títulos de crédito
surgiram na Idade Média, sendo natural que tenham evoluído em função da
modernização tecnológica, observando um abandono da cartularidade nas operações
creditícias de maior vulto, embora ela fosse um dos princípios dos títulos de crédito. O
que se verifica é uma enorme força dos títulos de crédito na atual economia, mas não
como títulos clássicos (cartulares e para pagamento e desconto), e sim como
instrumentos de captação de recursos. Há, atualmente, quase dois trilhões de reais em
títulos de crédito registrados na CETIP. Analisa-se neste trabalho, então, esses títulos e
a sua importância na economia contemporânea. Como método de pesquisa, foi
utilizado o exploratório, de modo que o objeto da pesquisa foi estudado por meio de
doutrina especializada, com uma análise mercadológica.
Palavras-chave: Direito Empresarial; Títulos de crédito; Economia; Captação de
recursos.
Introdução
Os títulos de crédito são um tema de grande relevância não só para o Direito, mas para
toda a sociedade, notadamente pelo papel que desempenham no mercado. Inclusive,
fala-se nos títulos de crédito como a maior contribuição do Direito Empresarial para a
formação da economia moderna.
O crédito em si é essencial para que uma economia de um país consiga se desenvolver,
e os títulos de crédito permitem que ele circule de forma rápida, simples e segura.
Verifica-se, assim, que uma das principais características desses títulos para que se
tenha essa importância é a segurança jurídica e a certeza que deles emanam.
Doutorando em Direito Privado pela PUC Minas, possui Mestrado em Direito Empresarial pela Faculdade de Direito Milton Campos (bolsista CAPES), é especialista em Direito e Processo Civil pela Faculdade de Estudos Administrativos de Minas Gerais, e possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito Milton Campos. Advogado e professor do Centro Universitário Newton Paiva e Portal do Instituto Elpídio Donizetti. [email protected]
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Ocorre que o Direito Empresarial num todo passou por inúmeras transformações, o
que o confirma como uma categoria histórica. No que tange ao Direito Cambial, os
títulos de crédito não são hoje da mesma forma que surgiram lá na Idade Média. Afinal,
a sociedade evoluiu bastante, e eles tiveram que ir sofrendo alterações para
continuarem a suprir as necessidades das pessoas e do mercado.
A Teoria Clássica dos Títulos de Crédito estabelece como elemento essencial dos títulos
de crédito a cartularidade, mas é fato que os atuais, onde está a maior massa dos
créditos, não utilizam mais uma cártula, estando apenas no ambiente virtual. Além
disso, é importante mencionar que os títulos de crédito que eram utilizados
principalmente como forma de pagamento, hoje se encontram em grande quantidade
para captação de recursos.
A presente pesquisa se justifica pela importância que os títulos de crédito como valores
mobiliários possuem no mercado. Para a condução deste trabalho, então, foi utilizado
o método exploratório, de modo que o objeto foi estudado por meio de coleta e
estudo de doutrina especializada que retrata o tema em questão e legislação
pertinente.
Dessa forma, dividiu-se a pesquisa em 3 (três) partes. Iniciou-se pela influência da
modernização tecnológica na evolução dos títulos de crédito. Após, analisou-se a
passagem da teoria clássica para a teoria contemporânea dos títulos de crédito e a
necessidade de readequação principiológica. Por fim, a verificação da importância
econômica dos títulos de crédito, notadamente como instrumento de captação de
recursos na economia contemporânea.
A influência da modernização tecnológica na evolução dos títulos de crédito
O Direito Cambial, como todo o Direito Empresarial, passou por inúmeras
transformações ao longo da história, de modo que ele seja considerado uma categoria
histórica. Broseta Pont (2007, p. 44) apresentou três razões para essa caracterização do
Direito Empresarial: não existiu desde sempre, surgindo em determinado momento
histórico; nasceu como ramo do Direito Privado ao lado do Direito Civil por exigências
e circunstâncias históricas; e, por fim, sua existência atual é resultado de uma série de
fatores políticos, sociais e econômicos que o transformaram bastante.
Não há dúvidas quanto a sua importância nos ordenamentos jurídicos, e o Professor
Jean Carlos Fernandes (2015, p. 5), inclusive, coloca-o como propulsor do
desenvolvimento econômico, apresentando “como características básicas ser oneroso,
rápido, dinâmico, cosmopolita, fragmentado e informal, tendo em seus institutos
elementos suficientes e seguros para atender aos agentes econômicos e ao mercado”.
Antônio Menezes Cordeiro (2007, p. 41) estabelece que, para se compreender o Direito
Empresarial, é fundamental conhecer as suas origens, a sua evolução e o seu papel.
Além disso, como exposto por Alfredo Rocco (2003, p. 94/05), o estudo científico do
Direito Empresarial exige “um estudo histórico-comparativo do desenvolvimento das
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várias formas dos institutos do direito comercial no tempo e no espaço”. Como o
objeto principal deste trabalho são os títulos de crédito, é preciso adentrar em sua
evolução histórica, notadamente no que tange aos reflexos trazidos pela modernização
tecnológica.
Os títulos de crédito, fundamentais na mobilização e circulação de riquezas com
agilidade e segurança, como verificado, surgiram na Idade Média. Eram documentos
utilizados para a realização de contratos de câmbio e troca de moedas entre as
cidades-estado. E, nessa fase inicial, apenas eram emitidas para facilitar a troca de
moedas, tratando-se da letra de câmbio e da nota promissória (PATROCÍNIO, 2009, p.
227).
Em certo momento da história, fazia-se necessário operações mercantis com mais
dinamismo, e o crédito, que significa crença ou confiança, possibilitava que o efetivo
pagamento fosse em momento posterior, mas já antecipando o recebimento da
mercadoria ou serviço almejado. Contudo, esse direito ao crédito precisava ser
exteriorizado, o que ocorreu inicialmente na forma cartular, surgindo o título de crédito
(FERNANDES, 2015, p. 193).
Importante destacar que embora nem todo documento seja um título de crédito, “todo
título de crédito é, antes de tudo, um documento no qual se consigna a prestação
futura prometida pelo devedor” (BORGES, 1971, p. 8).
Nos ensinamentos do saudoso Professor Wille Duarte Costa (2010, p. 3/16), não há
dúvidas de que o primeiro título de crédito da história foi a letra de câmbio na Idade
Média, embora não seja possível precisar a data exata.
Havia uma multiplicidade de pequenos Estados, principalmente na região da Itália, de
modo que também houvesse inúmeras moedas. Como consequência, nas feiras ou
mercados, era comum a necessidade da troca de moeda, principalmente para o
forasteiro que não tinha a moeda local.
Ocorre que não era possível o transporte de grandes quantidades de moedas para
compras em outras cidades ou feiras, sendo o risco grande, já que sequer havia
estradas ou meios de transporte como os atuais. Em regra, o transporte era feito no
lombo de um cavalo, o que facilitava ainda mais a ação de um assaltante. Um
comerciante, então, para ir a uma feira, ia no lombo de um cavalo e passava no meio
do mato, em rios, subia e descia morros, enfrentava animais selvagens e ainda tinha
que tomar cuidado com ladrões.
Dessa forma, em função das inúmeras dificuldades, certamente um banqueiro teve a
ideia de criar uma carta que seria levada até seu correspondente em outra cidade, para
que fosse repassada ao comerciante a quantia depositada na moeda local, de modo
que o câmbio fosse feito à distância. Com isso, o comerciante não precisava levar as
moedas consigo para trocar na cidade da feira, pois levava uma carta que representava
a quantidade de moedas que ele já tinha entregue no banco de sua cidade. Em função
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dos seus inúmeros benefícios, essa ideia proliferou de forma constante, começando a
estruturar a letra de câmbio.
Mas, desde essa época, é fato que houve uma forte modernização tecnológica que
influenciou em inúmeros setores da sociedade. Quando surgiram os títulos de crédito
era inimaginável a criação da internet e do ambiente eletrônico, por exemplo. O
Professor Wille Duarte Costa (2010, p. 15/16) traz inclusive um tópico de sua obra
destinado aos novos rumos para os títulos de crédito, notadamente quanto às
modernizações tecnológicas com impactos diretos no comércio eletrônico. Mas se
pode dizer que esses novos rumos já são uma realidade.
Wille Duarte Costa (1997, p. 30/31) já dizia em meados dos anos 90 que não se podia
mais desconsiderar o estudo dos reflexos do mundo virtual, havendo a necessidade de
reconstrução de teorias. E o que o Professor disse em 1997 se comprovou rapidamente,
como se percebe ao verificar a diminuição acentuada do uso de cheques no Brasil
(GLENIA, 2010).
Mas para continuar a explanação sobre os títulos de crédito, é de suma importância sua
definição, citando o clássico conceito de Cesare Vivante, de que “título de crédito é um
documento necessário para o exercício do direito literal e autônomo nele mencionado”
(REQUIÃO, 2008, p. 371). Partindo dessa definição, verificam-se como características ou
princípios dos títulos de crédito a literalidade, autonomia e cartularidade, as quais
Rubens Requião (2008, p. 371/372) define da seguinte forma:
a) Literalidade. O título é literal porque sua existência se regula
pelo teor de seu conteúdo. O título de crédito se enuncia em um
escrito, e somente o que está nele inserido se leva em
consideração; uma obrigação que dele não conste, embora sendo
expressa em documento separado, nele não se integra.
b) Autonomia. Diz-se que o título de crédito é autônomo (não em
relação à sua causa como às vezes se tem explicado), mas, segundo
Vivante, porque o possuidor de boa-fé exercita um direito próprio,
que não pode ser restringido ou destruído em virtude das relações
existentes entre os anteriores possuidores e o devedor. Cada
obrigação que deriva do título é autônoma em relação às demais.
c) Cartularidade (documento necessário). O título de crédito se
assenta, se materializa, numa cártula, ou seja, num papel ou
documento. Para o exercício do direito resultante do crédito
concedido torna-se essencial a exibição do documento. O
documento é necessário para o exercício do direito de crédito. Sem
a sua exibição material não pode o credor exigir ou exercitar
qualquer direito fundado no título de crédito. Vivante, com esse
conceito, substitui o vulgar, que combate, pelo qual se afirma que
o direito está incorporado ao título.
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Contudo, hoje se fala numa nova teoria para os títulos de crédito, uma vez que
não faz mais sentido falar em “cartularidade” como requisito essencial,
considerando os inúmeros títulos de crédito que existem ainda que sem uma
cártula. Destaca-se, assim, a desmaterialização e imaterialização dos títulos de
crédito. Com o desenvolvimento tecnológico, o suporte “papel” vem caindo em
desuso, havendo uma substituição pelo suporte eletrônico, notadamente nas
operações em massa.
Como trazido por Jean Carlos Fernandes e Alejandro Melo Toledo (2014, p. 117),
“a corporificação dos créditos já não atende as atuais necessidades do mercado,
uma vez que a documentação em papel causa obstáculos à circulação dos
títulos de crédito, o que torna necessária uma evolução do regime jurídico”. O
suporte eletrônico ganha força nas transações econômicas.
Há uma nova realidade para o Direito Cambial, pois os títulos, antes
materializados numa cártula, em um primeiro momento foram
desmaterializados, passando para o ambiente virtual, e hoje já podem nascer
imaterializados, isto é, só existem no ambiente virtual, eletrônico (FERNANDES,
TOLEDO, 2014, p. 121).
Mas por que essa mudança? No estudo dos títulos de crédito, verifica-se que a
corporificação dos direitos é fundamental, estando o direito diretamente ligado
ao documento. Todavia, a prática empresarial, dinâmica, viu que a
desmaterialização e imaterialização poderia representar uma forma eficiente
para redução de custos, uma vez que os documentos físicos muitas vezes não
são nada práticos.
No Brasil, verificam-se inúmeros títulos imaterializados, dentre eles podem ser
citados: Letra Imobiliária Garantida, Letra Financeira, Certificado de Recebíveis
do Agronegócio e Certificado de Recebíveis Imobiliários, dentre outros. Fato é
que os títulos escriturais estão consolidados no Brasil.
A passagem da teoria clássica para a teoria contemporânea dos títulos de
crédito e a readequação principiológica
Como antecipado por Wille Duarte Costa (1997, p. 30/31) em meados dos anos
90, diante da mencionada modernização tecnológica, não se pode mais
desconsiderar o estudo dos seus reflexos nos títulos de crédito. Há a
necessidade da elaboração de novas teorias, para maior mobilização e
circulação da riqueza.
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É fato que em face da modernização tecnológica os títulos de crédito mudaram.
Então, importante fazer um breve estudo sobre a evolução do crédito até os
títulos escriturais. Como já explicado, em dado momento da história, houve a
necessidade de se criar um instituto para atender as operações mercantis que se
tornaram mais rápidas e dinâmicas, surgindo nesse contexto os títulos de
crédito.
Inclusive, como destacado por Alfredo Rocco (2003, p. 81), o crédito teve papel
fundamental para a caracterização da autonomia do Direito Empresarial perante
o Direito Civil. Para ele, “o direito comercial como direito especial do comércio
surgiu e desenvolveu-se, precisamente, porque o direito comum não oferecia
nem simplicidade de formas nem tutela eficaz do crédito”.
Mas como esse crédito seria exteriorizado? A obrigação futura em troca de um
valor ou mercadoria atual precisava ser exteriorizada de modo que o credor ou
portador legitimado tivesse uma garantia, e a forma escolhida foi por meio de
uma cártula, que era o título de crédito.
Como trazido por Giuseppe Ferri (2006, p. 636/637), a funcionalidade dos títulos
de crédito está justamente na facilitação da circulação do crédito, com ampla
segurança jurídica. Naturalmente, como ainda não havia os meios digitais, a
cártula ganhou extrema importância, formando-se uma teoria sobre os títulos
de crédito que colocava a cartularidade como elemento essencial.
Todavia, a circulação de crédito deixou de ser essencialmente pelo meio
cartular, porque isso não mais atende aos negócios de massa. O Professor Jean
Carlos Fernandes (2012, p. 7/8), inclusive, destaca que a “informática e a
desmaterialização das atividades bancárias, principalmente, trouxeram a
circulação do crédito na forma escritural, não mais corporificado em uma
cártula”.
Por conta disso, faz-se uma divisão entre uma teoria clássica dos títulos de
crédito, fortemente apoiada na cartularidade, e a teoria contemporânea dos
títulos de crédito, adequando a clássica para a realidade dos títulos de crédito
escriturais, sem cártula. Ressalta-se que ambas conviverão, porque ainda
existem os títulos de crédito cartulares, embora as grandes movimentações
financeiras estejam nos escriturais.
Afirma o professor Jean Carlos Fernandes (2012, p. 3): “a mera suposição de que
a disciplina dos títulos de crédito tem sucumbido à evolução da informática [...]
demonstra o desconhecimento da matéria”. Há hoje títulos de crédito cartulares
e não cartulares, e a teoria contemporânea dos títulos de crédito se propõem à
adequação e releitura dos princípios cambiários à nova realidade de circulação
escritural do crédito.
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Ora, independente se com cártula ou sem cártula, o fundamental é que os
títulos de crédito continuam dando segurança e facilidade à transmissão de
direitos. Ademais, os documentos escriturais são dotados da mesma força
jurídica dos físicos, observado o princípio da equivalência funcional.
Em texto publicado em 1996 por Paulo Salvador Frontini (p. 62), considerando a
modernização tecnológica, o autor disse: “imaginamos que os títulos de crédito
não deixarão de existir, mas terão sua utilização reduzida”. Todavia, ocorreu o
contrário que previa o autor, surgindo inúmeros títulos de crédito. Apenas a
título exemplificativo, a Lei nº 12.248/2010 criou a letra financeira (LF); e, mais
recentemente, a Lei nº 13.097/15 criou a letra imobiliária garantida (LIG).
O que é importante destacar é que os títulos de crédito mudaram sua função
primordial. Os títulos que serviam como forma de pagamento realmente estão
caindo em desuso, por conta das outras formas de pagamento que surgiram,
como cartões de crédito e débito e transferência eletrônica de disponíveis
(TED’s). Hoje em dia surgem com força no mercado os títulos de crédito como
forma de captação de recursos financeiros.
Além disso, o Professor Alexandre Bueno Cateb (2011, p. 7) destaca que houve
um momento de descrédito com os títulos de crédito por conta de decisões
judiciais absurdas, que negaram aos títulos de crédito autônomos sua real
validade, transformando execuções em verdadeiros processos de conhecimento.
E, como se sabe, os custos gerados pelos processos judiciais geram reflexos
diretos na atividade empresarial.
Mas essa passagem da teoria clássica dos títulos de crédito para a teoria
contemporânea exige uma readequação principiológica. Nesse contexto, o
Professor Jean Carlos Fernandes (2015, p. 212) propõe duas reflexões: será que
o conceito criado por Vivante atende a atual realidade dos títulos de crédito? E
os princípios da teoria clássica (cartularidade, literalidade e autonomia)
subsistiram à atual realidade dos títulos de crédito?
Para responder a primeira pergunta, sobre o conceito criado por Vivante,
propõe-se um novo conceito para o instituto, adotando a teoria
contemporânea:
título de crédito é o documento, cartular ou eletrônico,
indispensável para o exercício e a transferência do direito cambial
literal e autônomo nele mencionado ou registrado em sistema de
custódia, transferência e liquidação legalmente autorizado, bem
como para a captação de recursos nos mercados financeiro ou de
capitais, dotado de executividade por si ou por certidão de seu
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inteiro teor emitida pela instituição registradora. (FERNANDES,
2015, p. 212/213)
No questionamento sobre os princípios clássicos dos títulos de crédito, tem-se
a necessidade de readequação dos princípios cambiários, com o objetivo de
aplicá-los aos títulos de crédito materializados numa cártula ou não
(FERNANDES, 2015, p. 213). Afinal, os chamados títulos de crédito escriturais,
que apenas existem no meio digital, são atualmente “a grande massa dos
créditos” (COELHO, 2010).
É mais adequado, assim, falar no princípio da documentabilidade, que abarcará
tanto os títulos cartulares como os não cartulares (FERNANDES, 2015, p. 214),
afinal os títulos de crédito são, antes de tudo, documentos, que podem se dar
tanto no suporte cartular como no eletrônico.
Importante destacar o princípio da equivalência funcional. Como trazido por
Jorge José Lawand (2003, p. 42/43), a função jurídica é cumprida tanto pela
instrumentação escrita quanto por uma mensagem de dados eletrônica. Cita-se
a Lei Modelo da UNCITRAL sobre Comércio Eletrônico, da Organização das
Nações Unidas, notadamente o seu art. 5º: “Reconhecimento jurídico das
mensagens de dados: Não se negarão efeitos jurídicos, validade ou eficácia à
informação apenas porque esteja na forma de mensagem eletrônica.” (ONU,
1997).
Estabelecidos esses pressupostos, possível verificar a importância econômica
dos títulos de crédito como instrumentos de captação de recursos na
atualidade.
A importância econômica dos títulos de crédito como valores mobiliários na
economia contemporânea
Nas palavras de Tullio Ascarelli (2013, p. 33), “se nos perguntassem qual a contribuição
do direito comercial na formação da economia moderna, outra não poderia talvez
apontar que mais tipicamente tenha influído nessa economia do que o instituto títulos
de crédito”. Afinal, o crédito, que tem como pressupostos os conceitos de confiança e
tempo, está diretamente relacionado ao desenvolvimento econômico de uma
sociedade.
Como explicado por Jairo Saddi (2007, p. 17), “um dado país não consegue se
desenvolver sem um amplo e estável mercado de crédito”. Diz ainda que
“desenvolvimento econômico sustentável de longo prazo que permita o combate à
pobreza, depende de um mercado de crédito crescente que inclua a todos” (SADDI,
2007, p. 17). João Eunápio Borges (1971, p. 9) diz que os títulos de crédito tiveram um
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papel mais importante que “todas as minas do mundo para o enriquecimento das
nações”.
E um dos elementos principais para o âmbito deste trabalho é ter em mente que essa
importância dos títulos de crédito se deu em face da forma segura com que permitem
o crédito circular. Manuel Broseta Pont (2007, p. 401), inclusive, ressalta que os títulos
de crédito permitem a transmissibilidade dos direitos de conteúdo patrimonial de
forma rápida, simples e segura.
Inclusive, sobre a questão da segurança jurídica no âmbito dos títulos de crédito, este
autor e o Professor Jean Carlos Fernandes (2015, p. 198/201) tiveram a oportunidade
de reafirmar, em trabalho publicado pelo Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-
Graduação em Direito (CONPEDI), que a segurança que os títulos de crédito geram no
mercado é essencial para dar agilidade e dinamismo aos negócios, havendo um papel
fundamental da formalidade.
A necessidade de certeza no direito e segurança na sua realização faz com que sejam
criados institutos que satisfaçam essas exigências (ASCARELLI, 2013, p. 35). Nesse
contexto, estão os títulos de crédito, cuja principal finalidade é estabelecer a circulação
do crédito com facilidade e segurança, servindo como meio de prova entre as partes
envolvidas.
Mas, como já explicado, houve uma adaptação dos títulos de crédito, que deixaram de
ser precipuamente formas de pagamento para serem formas de captação de recursos,
como valores mobiliários.
Érica Gorga (2013, p. 258/263) coloca que, originalmente, os títulos de crédito
englobavam os valores mobiliários, sendo gênero e espécie. De acordo com a doutrina
italiana, por exemplo, as ações seriam títulos de crédito impróprios e as notas
promissórias títulos de crédito próprios.
Todavia, para Ary Oswaldo Mattos Filho (1985, p. 34/35), a diferença nas características
exigiria uma categoria conceitual própria e independente para os valores mobiliários.
Os títulos de crédito seriam títulos de emissão restrita ou de quantidade relativamente
pequena, gozavam de literalidade da obrigação e de autonomia do direito dos
sucessivos credores, e a relação obrigacional originalmente incutida na cártula somente
poderia ser alterada com o consentimento das partes envolvidas. Os valores
mobiliários, por sua vez, seriam títulos de massa, sendo possível que a relação
obrigacional original fosse alterada sem o consentimento de todos os credores; a
relação cartular não é literal; e resultam de um contrato afetando a autonomia do título
de crédito.
Dessa forma, o art. 2º da Lei n. 6.385/1976, que traz o rol dos valores mobiliários, foi
reformulado incluindo instrumentos contratuais que não seriam títulos de crédito.
Percebeu-se uma dissociação entre os conceitos, mas isso não impediu que alguns
instrumentos jurídicos se adequassem a ambas categorias conceituais.
Direito Izabela Hendrix – vol. 18, nº 18, julho de 2017 31
O importante é que determinado título de crédito poderá se configurar valor mobiliário
ou não, a depender das circunstâncias particulares pelas quais foi emitido e distribuído,
observadas as características do inciso IX do art. 2º13.
Nas palavras de Érica Gorga (2013, p. 276), “a caracterização desses títulos de crédito
como valores mobiliários é fundamental para tutelar os interesses dos investidores e do
mercado, visando-se a uma maior transparência das informações disponibilizadas junto
ao público”.
E, nesse contexto dos títulos de crédito como valores mobiliários, torna-se comum a
expressão títulos valores, sendo bons exemplos desses títulos de crédito os que estão
registrados na CETIP, que é a integradora do mercado financeiro ao exercer a função
de entidade administradora de mercado de balcão organizado. Nela que os títulos de
crédito escriturais encontram-se registrados em sistema de registro e de liquidação
financeira de ativos.
Reafirmando a importância dos títulos de crédito na contemporaneidade, em
12/11/2016, em consulta ao Boletim CETIP, encontrou-se em títulos de crédito a soma
de R$1.835.703.892.176,29, ou seja, o tema é de tamanha relevância que, em números,
é próximo de dois trilhões de reais. Apenas em Letra Financeira, havia o registro de
R$318.243.809.140,46, sendo um importante instrumento de captação das instituições
financeiras. Com a evolução dos títulos de crédito, propõe-se uma nova classificação
para o instituto, notadamente quanto ao suporte e quanto à finalidade.
Quanto ao suporte, os títulos de crédito podem ser cartulares, como a letra de câmbio,
nota promissória e cheque, ou escriturais, como a letra financeira e a letra imobiliária
garantida. Embora se tenha o costume de chamar os títulos escriturais de virtuais ou
eletrônicos, é importante ressaltar que todo título de crédito escritural, que é registrado
na escrituração do emitente, é nominativo, porém há títulos virtuais, como a duplicata
virtual, que não são escriturais e não assumem os contornos de título nominativo
(FERNANDES, 2015, p. 260).
Quanto à finalidade, os títulos de crédito podem ser para pagamento e desconto, como
ocorre com a letra de câmbio e nota promissória; representação de direito real sobre
mercadorias, sendo exemplo a warrant; financiamento, como as cédulas e notas de
crédito; e investimento e captação de recursos, como a letra financeira e letra de
arrendamento mercantil. Destaca-se que essa classificação representa a evolução dos
títulos de crédito, porque eles surgiram inicialmente como formas de pagamento e
desconto, mas atualmente a maioria dos valores que circulam em títulos de crédito são
para captação de recursos, como serão verificados nos títulos registrados na CETIP,
sendo títulos recentes.
13“Art. 2o São valores mobiliários sujeitos ao regime desta Lei: [...] IX - quando ofertados publicamente,
quaisquer outros títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de
parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do
esforço do empreendedor ou de terceiros.”
Direito Izabela Hendrix – vol. 18, nº 18, julho de 2017 32
Então, não é mais possível sequer cogitar o fim dos títulos de crédito por conta da
diminuição do uso do papel, pois eles se readequaram, falando-se na Teoria
Contemporânea dos Títulos de Crédito. Hoje se apresentam em valores altíssimos
como instrumentos de captação de recursos. Para efeito comparativo, o Produto
Interno Bruto (PIB) brasileiro fechou o ano de 2015 em aproximadamente cinco trilhões
e novecentos e quatro bilhões de reais (OLIVEIRA, 2016), logo o valor dos títulos de
crédito registrados na CETIP seria equivalente a mais de 30% do valor do PIB brasileiro.
Conclusão
Fazendo uma retrospectiva do presente trabalho, verifica-se que um dos seus maiores
desafios já se iniciou na escolha dos títulos de crédito como tema, uma vez que a teoria
dos títulos de crédito passa por uma mudança de paradigma, notadamente por conta
da evolução tecnológica.
Os títulos de crédito, que surgiram na Idade Média, tiveram o papel fundamental de
conseguir exteriorizar o crédito para que ele circulasse de forma rápida, ágil e segura,
sendo de extrema relevância para o mercado. Ocorre que no cenário evolutivo desse
instituto, observou-se um abandono da cartularidade, notadamente nas operações
creditícias de maior vulto.
Mas os títulos de crédito não exigem como um dos requisitos a cartularidade? Com o
estudo feito, verificou-se que nem sempre. Como bem lembrado por Tullio Ascarelli, os
títulos de crédito são documentos antes de tudo, e não cártulas. Falava-se apenas em
cártula antigamente porque não existia o meio digital.
A função da cartularidade sempre foi dar uma segurança para a circulação do crédito,
de modo que o possuidor do título podia guardá-lo consigo ou onde quisesse, sendo a
forma de exteriorizar o crédito. E essa segurança também é atingida com o documento
eletrônico, que se baseia na criptografia.
Com isso, supera-se o clássico conceito de Vivante quanto aos títulos de crédito, de
modo que os novos conceitos devam levar em conta a possibilidade do suporte
eletrônico e as novas funções que os títulos de crédito vêm desenvolvendo no
mercado. Atualmente, a principal função deles não é serem utilizados como forma de
pagamento, mas como instrumentos de captação de recursos no mercado financeiro. É
a Teoria Contemporânea dos Títulos de Crédito.
E, nesse contexto, torna-se um tema de extrema relevância para a economia
contemporânea, encontrando-se no Boletim CETIP em 12/11/2016 o valor de
R$1.835.703.892.176,29 em títulos de crédito. Mas esse valor não é formado pelos
títulos de crédito clássicos, para pagamento e desconto, e sim pelos títulos de crédito
para captação de recursos financeiros.
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Como a internet tem como fator principal o conhecimento, não se vê limites para a
economia por ela criada, então que este autor e o leitor possam continuar
acompanhando as evoluções que ainda estão por vir.
The new reality of credit titles as securities
Abstract: Credit title play a key role in the market, allowing credit to circulate quickly
and securely. However, credit securities arose in the Middle Ages, and it is natural that
they have evolved as a function of technological modernization, observing an
abandonment of creditworthiness in the larger credit operations, although it was one of
the principles of credit titles. What is verified is a huge strength of credit bonds in the
current economy, but not as classical credit title (paper and for payment and discount),
but as instruments of fundraising. There are currently almost two trillion reais in debt
securities registered at CETIP. This work, then, analyzes these titles and their importance
in contemporary economics. As a research method, the exploratory was used, so that
the object of the research was studied through specialized doctrine, with a market
analysis.
Keywords: Business Law; Credit titles; Economy; Fund-raising.
Referências
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