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A ODISSEIA DE TIBOR LOBATO - O OITAVO VILAREJO - LIVRO I

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Sinopse: “A ODISSÉIA DE TIBOR LOBATO – O OITAVO VILAREJO – LIVRO UM Já imaginou se deparar com um saci velho em meio à floresta? Ou quem sabe descobrir ser descendente de alguém como o Curupira? Ou ainda ser possuidor de um amuleto que pode te dar poderes inimagináveis? Tibor Lobato e sua irmã Sátir são filhos de ciganos. Após perderem os pais em um terrível incêndio, vão morar no sítio de sua avó, onde conhecem o grande amigo Rurique. Mistérios e perigos passam a cair de pára-quedas sobre a vida dos três e a Odisséia que eles têm de enfrentar, os fará reconhecer valores e virtudes como a amizade, a coragem, a esperança e o amor. E para o seu azar ou a sua sorte, é tempo de quaresma e ambos já foram alertados do que essa época é capaz de trazer consigo. Tibor Lobato O Oitavo Vilarejo” é o primeiro romance da série que marca sua estréia como escritor.

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TENHA UMA BOA QUARESMA!

SUMÁRIO 1 . CHEGADA NO SÍTIO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

2 . ASSOMBRAÇÕES E CELULARES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27

3 . O GORRO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43

4 . É TEMPO DE QUARESMA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55

5 . PERDIDOS NA MATA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73

6 . A BRUXA DESAPARECIDA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89

7 . O MOINHO DOS TRASGOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105

8 . MUIRAQUITÃ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121

9 . O SONHO DE TIBOR . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137

10 . PRENÚNCIO DE MORTE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153

11 . DU AVESSU . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169

. 12 . SR. ICAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 183

13 . RAPTO A GALOPE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 197

14 . O OITAVO VILAREJO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 211

15 . BOITATÁ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 227

16 . DIA DE ALELUIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 239

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A odisse ia começou com um pesadelo. . . O caos predominava por todo o ag r upamento de

c ig anos, que naque la semana se insta l ara próximo a uma pequena c idade à beira de uma f loresta . Alguns tentavam reaver seus per tences, outros tentavam apagar as labaredas que eng olfavam os panos das bar racas. Tibor cor r ia desesperado entre as tendas em chamas, em busca de seus pais e de sua i r mã, t inha cer teza de que ouvi ra a lguém g r i tar o nome de seu pai na direção da tenda de Rafaelo, mas l á chegando só v iu fog o. Tentou então na bar raca de Dona Amél ia , que f icava log o ao lado. Nada. Procurou pelas tendas de Jonas e de Ana, mas essas já não ex is t iam mais. Olhou ao redor quando um chiado chamou sua atenção. Devia ser impressão sua, mas o fog o parecia estar v ivo. Em questão de segundos, uma parede de l ínguas ardentes de mais de um metro de a l tura cercou

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Tibor, chiando e zunindo, fechando-o dentro de um círculo infernal . O garoto se dei tou no chão de ter ra bat ida e g r i tou por seus pais e por sua i r mã, mas ninguém veio em seu socor ro. Com um crepi tar que vez ou outra s imulava uma gargalhada fantasmagór ica , o fog o se aproximou lentamente fazendo Tibor se debater em suor quando uns bons chacoalhões o desper taram de seu sono.

Sát i r o acordara . Sua i r mã era dois anos mais velha que e le.

–Aquele sonho de novo? – quis saber. O garoto assent iu l impando o suor da testa com a

manga da blusa e agradecendo em pensamentos a quem fosse pelo fato das chamas estarem apenas em seu sonho.

As duas cr ianças estavam no banco de t rás de um car ro que mais parecia uma car roça de tanto que pulava e rangia . O motor is ta , por conta do caminho pedreg oso e esburacado da estrada de ter ra , d i r ig ia numa velocidade reduzida. Era noi te, e para Tibor a paisagem lá fora era um tanto quanto sombria . Mesmo tendo v iv ido por muito tempo entre c ig anos, acampando aqui e acolá , sempre estava próximo da c iv i l ização, mas naquele lugar Tibor duvidava que a lguém soubesse da ex is tência de palavras como poste de luz ou te lefone públ ico!

–Fal ta mui to pra gente chegar? – perguntou Tibor ao motor is ta , que respondeu que dal i a quinze minutos

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estar iam lá . Tibor confer iu o horár io em seu celu lar, fa l tavam exatos quinze minutos para as dez da noi te.

Fora um doming o exaust ivo, quase o dia inte i ro sacole jando dentro daquele car ro. No rádio, só chiado. Sát i r e Tibor estavam com fome desde a hora do a lmoço. Pararam num posto de gasol ina e comeram apenas um salg ado cada um.

Mais um tempo se passou e o car ro ag ora se inf i l t rava numa mata fechada que se debr uçava preguiçosa por c ima da estrada es tre i ta .

– Será que e la é gente boa? – perguntou Tibor à i r mã.

–Acho que s im, maninho. . . – e deu uma pausa s ignif icat iva olhando para o lag o escuro que aparecia à esquerda da estrada – Mas aconteça o que acontecer, você tem a mim e eu tenho você. Isso basta pra tudo dar certo! – disse ela com um ar acolhedor que o lembrava sua mãe – Vamos apostar nossas f ichas nessa senhora, af inal e la é nossa avó de sangue e tem nos procurado desde sempre, como disseram as pessoas lá do orfanato. – Tibor assent iu novamente.

Pouco depois, os faróis f racos do car ro pousaram numa cerca de madeira à f rente, que estava presa apenas por uma cor rente. O motor is ta desceu e abr iu a por te i ra , a luz da lua deixava o big ode do homem eng raçado. O car ro se foi , desceu mais à f rente, j á nas dependências do s í t io da ta l senhora.

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O car ro parou e o homem que o dir ig ia se v i rou para trás :

–Cá estamos, meninos, vocês devem estar ans iosos, vamos lá? – disse o big ode do motor is ta , já que esse cobr ia toda a sua boca dando ao chumaço de pelos uma aparência bem viva .

Tibor sent iu um fr io na bar r ig a que v inha lhe acometendo muito nos ú l t imos meses, o lhou para Sát i r como se buscasse um por to seguro. Ele sabia que e la estava com o mesmo medo, mas, mesmo amedrontada, e la manteve seu olhar f i r me e com um sor r is inho que deixou Tibor mais ca lmo. Saiu do car ro e foi pegar suas coisas no por ta-malas.

O garoto desceu e se deparou com uma casa bem g rande. Mesmo com os faróis f racos do car ro e a luz da lua entrecor tada pelas nuvens, d is t inguiu dois andares de acabamento rúst ico, com janelas e por tas de madeira ; cantei ros recheados de f lores de diversas cores. Uma escadinha subia para uma varanda tér rea antes de chegar à por ta pr incipal .

De repente essa por ta se abr iu e lá estava e l a , uma senhora não muito a l ta nem muito baixa ; nem muito mag ra , nem muito g orda; a senhora aparentava o auge dos seus se tenta e poucos anos, mas parecia t ing ir o cabelo, po is apesar de ter f ios brancos, a predominância era de f ios r u ivos ; seu rosto à pr imeira v is ta era bondoso, isso confor tou Tibor, o que foi

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bom para que suas mãos começassem a parar de suar. Reparou que sua i r mã anal i sava a senhora de baixo a c ima, como se est ivesse aval iando se e l a ser ia uma boa pessoa.

Adorava quando sua i r mã fazia i sso, se sent ia bem mais tranqui lo quando suas expectat ivas eram atendidas ; se est ivesse bom para e la , estar ia bom pra e le também!

–Ah! Até que enf im. – diz ia a velhota enquanto descia as escadas em direção ao car ro – Mal posso acredi tar que es tão aqui no meu s í t io ! Esperei muitos anos por esse momento. – se aproximou de Tibor e Sát i r – Nossa ! Como vocês cresceram desde a ú l t ima vez. . . – Tibor tentava uma retrospect iva rápida em sua mente, a f im de lembrar quando foi que v i ra aquela senhora em sua v ida . Antes de sua mente constatar que não t inha nenhum reg is tro disso, fo i inter rompido de seus pensamentos por um abraço for te da velhota ; notou a lg o estranho: o cheiro da mulher parecia fami l iar. – Só deus sabe o quanto eu procurei por vocês, meus netos.

–Deus e eu. Não é mesmo, Dona Gaílde? – perguntou o big ode do motor is ta colocando as malas dos garotos aos seus pés.

–Mas é c laro, Raul ! – d isse Gaí lde sor r indo e com os olhos br i lhando. – Você acompanha a minha luta há

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anos, sabe o quanto eu amo meus netos antes mesmo de qualquer coisa .

–É! Eu sei e espero que se jam muito fe l izes aqui . – d isse Raul para os g arotos.

–Darei o melhor de mim para que tudo seja perfe i to. – fa lou Dona Gaí lde – Oh, vocês devem estar com fome. Preparei um lanche, espero que g ostem de bolo de fubá. Não tem problema se não g ostarem, f iz bolo de cenoura também! – e v i rou-se para Raul – Não quer v i r? Deve ter s ido uma v iagem cansat iva até aqui , duvido que não este ja com fome!

–Não quero incomodar ninguém, a lém do mais, essa noi te é especia l pra vocês, de ixare i que se conheçam, prometo vol tar qualquer d ia para ver se está tudo bem. Amanhã, às duas da ta rde, tenho uma reunião com poss íveis invest idores e não posso perder por nada!

–Amanhã não é fer i ado de carnaval? O homem f icou meio ner voso e suas bochechas

coraram. – Pois é ! Não é mesmo?! Esses homens de negócios es tão f icando cada vez mais malucos !

Raul se despediu de todos e vol tou pro car ro que ao dar a par t ida , fazia o motor pipocar, manobrou o “car ro-car roça” e foi -se embora.

Tibor e Sát i r, a convi te de Dona Gaí lde, pegaram

suas malas e entraram na casa . O lugar t inha uma

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aparência quente e acolhedora , ao colocarem os pés no tapete do hal l sent i ram que as coisas i r iam começar a melhorar e que eram muito bem-vindos a l i .

As janelas estavam cober tas com uma cor t ina de reta lhos. Um espelho com ar mação de madeira f icava bem à f rente da por ta . Sát i r achou que o ref lexo dos três combinava com uma famí l ia de verdade, e la es tava cansada do orfanato e sent ia fa l ta de uma famí l ia reunida. O piso era de madeira escura , sa lp icado com tapetes desenhados em deta lhes ver melhos. As paredes eram amarelas e tudo era muito l impo.

O crepi tar de fog o chamou a atenção de Tibor mais que depressa . Era só uma lare i ra no meio da sa l a que estava acesa e mantinha o ambiente numa temperatura ag radável . Uma cadeira de balanço estava à f rente da lare i ra com per tences de crochê sobre seu estofado. Tibor imaginou que aquele seria o passatempo favorito daquela senhora. Abajures ant ig os enfei tavam a sala de maneira única. Os olhos dos garotos reg is travam tudo o que v iam, mas o ápice para Tibor e Sát i r se deu quando se depararam com a mesa do café que Dona Gaí lde havia preparado. A boca do es tômag o dos dois reagiu da mesma forma, roncaram alto em ag radecimento.

Eram quatro t ipos de bolo: mi lho, fubá, cenoura e chocola te.

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Tinha de tudo, café , achocolatado, chá. Tibor obser vou que o le i te era g orduroso, d i ferente do que estava acostumado a tomar a té então.

Gaí lde pediu para que deixassem as malas ao pé da escada no hal l e se acomodassem à mesa, o que foi atendido depressa .

Os dois i r mãos não se lembravam quando fora a ú l t ima vez que haviam vis to uma mesa tão far ta como aquela e só pra e les.

Nos pr imeiros minutos o s i lêncio pai rou a l i na mesa, Tibor e Sát i r a inda não t inham tocado na comida dire i to, quer iam mostrar que eram educados ; Gaí lde deve ter percebido, pois log o disse :

–Ora, achei que estivessem com fome, não se prendam, meninos, f iz i sso especia lmente pra vocês e se não comerem, tudo isso i rá estragar ; o que será um pecado porque esse bolo de cenoura es tá rea lmente. . . – enf iou um pedaço inte i ro na boca e completou com a boca cheia – . . .d iv ino! Hummm!

Foi o estopim para que saciassem, à vontade, sua fome. Empanturraram-se de maneira prazerosa daquelas guloseimas por um bom tempo.

Tibor até se sent iu t r i s te de tanto comer. Depois se dirigiram à sala, Gaílde se sentou em sua

cadeira de balanço começando um tricô rápido e ensaiado, Sátir se esparramou no sofá e Tibor deitou no tapete mantendo uma distância segura das labaredas da lare i ra .

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–Tive medo de nunca encontrá- los. – começou Gaí lde – Nossa ! Como vocês são boni tos e cresceram bastante, mas é c laro que não se l embram; Tibor a inda era um bebê e Sát i r estava começando a dar seus pr imeiros pass inhos.

–Por que não nos encontrou antes e o que fez você se d is tanciar da gente? – perguntou Sát i r.

A velhota colocou o tr icô de lado, o lhou para a menina e com um suspiro começou:

–Meu f i lho, Leonel Lobato. . . Ah que saudades dele ! – d isse e la com um olhar de devaneio – e le sempre g ostou das matas, com cer teza puxou o avô; e le se casou com Hana; a mãe de vocês era como ele, ambos amantes do mato. Eles resolveram um dia largar tudo, suas v idas na c idade e seus empreg os, para v iver com um ag r upamento de c ig anos. Eu disse que ser ia loucura , estavam com dois f i lhos pequenos e ta lvez não fosse seguro. Suger i que v iessem morar comig o aqui no s í t io, mas es tavam entus iasmados demais para des is t i r da ideia . – deu um sor r is inho sonhador – Foi bom pra e les enquanto durou! S into muito a fa l ta deles ; às vezes a inda parece que estão v ia jando, acampando aqui e a l i , cur t indo a v ida como sempre quiseram. Foi d i f íc i l para mim, o contato era quase nulo. – Tibor notou que os olhos dela começavam a marejar – Soube do incidente pela TV, chorei demais e acabei por me desfazer do aparelho,

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como podem ver, não tenho nenhuma TV aqui ! – Nessa hora Tibor até se preocupou um pouco, mas pensou que v iveu tanto tempo acampando sem te lev isão, não se impor tar ia de cont inuar sem uma, estava acostumado. – Comecei então a procurar nos orfanatos próximos ao ocor r ido, mas t ive a lguns. . . – nesse momento, Gaí lde levou as mãos ao pingente verde que car regava no pescoço e o movimento não passou despercebido para Sát i r – . . . contratempos. . . – d isse e la pausadamente – que me impediram de cont inuar a busca por vocês. S into muito por deixá- los dois anos naquele orfanato! Espero fazer o que puder para compensar i s so. – e la l impou a lág r ima que escor reu em sua bochecha esquerda e mostrou um sor r iso contente. – Quero que se jam fe l izes aqui ! – e vol tou a tr icotar.

Um tempo passou contado apenas pelo crepi tar das brasas da l are i ra e Sát i r perguntou:

–Que t ipo de contra tempo a senhora teve? –Sát i r ! – Adver t iu Tibor, achou que a i r mã estava

indo longe demais. –Tudo bem, Tibor! – tranquilizou Gaílde colocando

as agulhas ao lado do abajur mais próximo – é justo que saibam o que fez com que ficassem tanto tempo naquele lugar; e imagino que não gostavam de lá, certo?

Os dois f izeram que s im com a cabeça quase sem pensar.

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–Vocês têm o dire i to de saber o que me fez inter romper as buscas por vocês nesses dois anos. Eu que sou tudo o que resta do mesmo sangue de vocês, em quem podem conf iar, pena que esse assunto requer talvez um pouco de... – ela parecia escolher as palavras cuidadosamente – . . . conhecimento!

Um s i lêncio apela t ivo se deu enquanto os dois o lhavam para a avó.

–Como ass im? – inter rompeu Tibor. –Vocês vão saber que ex is tem coisas a lém da

expl icação! – parou aqui para escolher o melhor je i to de fa lar e cont inuou – Que é preciso ver para entender. Hoje é doming o e imagino que em breve vocês saberão do que estou fa l ando.

Tibor e Sát i r não eng ol i ram aquela expl icação e esse era o assunto que ia es tar em pauta em seus pensamentos por um bom tempo.

–Eu prometo que vocês saberão, mas ta lvez não se ja esta a hora cer ta de dizer. – completou Gaí lde e depois puxou outro assunto. – Eu estou vendo uma pessoa pra ens inar vocês, não podem f icar sem estudar ! A mãe de um garoto dessa v i l a é professora , ser ia uma ót ima opção pra vocês.

–Estudar ! Que droga. – d isse Tibor se vol tando pra lare i ra .

–Meu nobre rapaz, o saber é a g rande v i r tude de um ser !

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–Eu sei, eu sei. Só não gosto de estudar! – falou ele – prefiro liberdade.

–Hahaha – riu Gaílde – pois então se prepare! Nesse sítio o que não falta é liberdade, vai implorar por um pouco da paz que um bom livro pode lhe proporcionar. Isso eu garanto!

–Rá! Disso eu duvido!

E todos r i ram na sa l a .

Conversaram sobre diversos assuntos, Gaílde contou sobre coisas que o pai deles aprontava na adolescência, Tibor e Sátir contaram coisas sobre o acampamento com os ciganos e como eram tratados no orfanato. Percebiam mais e mais que a vida entre eles iria ser boa, os três se davam bem.

Enquanto a noi te passava pela conversa deles, a lare i ra baixava seu fog o e as sombras ondulantes pela sa la se tornavam maiores.

–Devem estar com sono, crianças! – falou ela – ficamos tão entretidos na conversa que nem mostrei o resto da casa pra vocês e agora devem estar tão cansados que dor mirão no cor redor enquanto mostro a cozinha. – todos deram risada e era bem verdade, os três estavam com as pálpebras pesadas de tanto sono, Tibor se pegou babando por duas vezes. – Bom, espero que aguentem até o quar to de vocês !

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Tibor subia a escada atrás de Gaí lde e seguido por Sát i r, e l e fo i pensando se t inha escutado dire i to : – Quar tos? Quer dizer um para cada um?

–Mas é c laro! – respondeu a avó. –Uau! Nunca t ive um quar to, e esse é só pra mim!

– disse e le ao chegar à por ta do seu quar to. Sát i r teve a mesma reação somada a um abraço

aper tado em Gaí lde; a mesma retr ibuiu com uma intens idade que Sát i r sent iu que f inalmente tudo estava bem e que poder ia dor mir em paz pela pr imeira vez em dois ter r íveis anos no orfanato.

Os quar tos eram rúst icos como o resto da casa , o de Sát i r t inha um enor me espelho com uma penteadeira , o de T ibor t inha um baú com car r inhos de coleção. Antes de fechar os olhos, Tibor dei tou em seu colchão log o depois que a avó se despediu com um bei jo de boa noi te e começou a pres tar atenção no som da chuva que começava a ca i r devagar lá fora .

Ouvia os bar ulhos da mata ao redor, os cr icr i s de g r i los preenchiam a música se lvagem que começava a tocar na cabeça do garoto. Aos poucos a melodia s incronizada dos insetos e os ping os da chuva que começavam a ca i r ao redor eng olfavam Tibor a um sono profundo antes mesmo de chegar a um poss ível refrão. Não demorou muito para que os i r mãos Lobato apagassem nas suas respect ivas camas, o sono pesado dos dois indicava como t inham t ido um dia exaust ivo.

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Ao acordar pela manhã, Sát i r fo i até o quar to de Tibor, sentou-se na beirada da cama do i r mão e o acordou:

–Ei , maninho, acorda! – Tibor abr iu um olho revelando sua cara inchada – E a í , como está se sent indo?

Ele se espreguiçou e fa lou com a voz embargada com os braços est i cados e um sor r iso – Ah! Melhor imposs ível !

–Uau, também acho! Dor mi muito bem e aqui parece ser legal e e la parece se impor tar mesmo conosco. – a menina mudou de fe ição – só f iquei encucada com o que e la d isse que aconteceu a e la nos ú l t imos dois anos.

–Ou melhor, não d isse, né? – completou Tibor cr uzando os braços atrás da cabeça.

–Reparou na pedra que e la t inha no pescoço? - perguntou Sát i r.

–Não! O que tem a pedra?

–Não sei ! Só achei estranha a maneira como ela a aper tou quando disse que teve uns c ont ra t empos . Outra coisa : Não temos TV!

–Ah, Sát i r ! Pra que precisa de uma? Lembra como era quando acampávamos? Você es tá ass im por causa da novela que você ass is t ia escondida na sa la da

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Romilda do orfanato. Vivemos a v ida toda sem uma, não vejo problema em cont inuar ass im.

Tibor e Sát i r t inham olhos verdes e cabelos castanhos c laros, e l e t inha treze e e la quinze anos de idade. Ela era pouca coisa mais a l ta que e le. Sempre se ut i l izava dessa pouca a l tura que t inha a mais para se colocar como protetora of ic ia l do i r mão. Desde que sua mãe mor reu, esse perf i l se intens i f icou, Tibor até g ostava, mas t inha medo de que a i r mã se preocupasse demais com ele e se esquecesse de s i mesma.

Devia ser por vol ta de umas onze da manhã e o cheiro de comida os v is i tou lá em cima, e les desceram mais que depressa e encontraram uma matut ina Gaí lde já atarefada.

–Bom dia ! – d isseram os dois.

–Oh! Que bom que acordaram! Bom dia pra vocês também, mais um pouco e eu i r ia t i r á- los da cama, estou ans iosa para que conheçam o s í t io. – e la t i rou o aventa l que usava e pendurou num preguinho na parede; l evou uma for ma do forno à mesa e d isse : – Venham tomar um rápido café da manhã que já está quase na hora do a lmoço, f iz uns pães de quei jo !

Os dois se esbaldaram de novo, Tibor notou que se continuasse assim, em poucas semanas se transformaria numa bola.

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Visitaram a casa toda. Viram o quarto da avó, viram o porão e a despensa, saíram para a varandinha da frente da casa e puderam ver a extensão do sítio, a uns quatrocentos metros ficava a porteira que atravessaram de car ro na noite anterior, ao lado tinha uma mangueira alta e for te que estava car regada de mangas. Vis i taram o celeiro que tinha uma vaca leiteira, a Mimosa. Vis i taram o gal inheiro, onde Gaí lde se muniu de ovos para o a lmoço e v i ram também o poço; atrás da casa havia uma hor ta com diversos t ipos de legumes e verduras. De tão per i to que era no assunto, Tibor Lobato só reconheceu o a l face:

–Aqui lo a l i é a l face? – ar r i scou o garoto. –Cer ta resposta , 10 pontos pra você ! – d isse

Dona Gaí lde e todos ca í ram na gargalhada. Ao long o do dia , os laços deles se afe içoaram

mais. Sát i r e Tibor a judaram a avó com o a lmoço e a louça suja . Gaí lde ens inou que para ter le i te dever iam t i rá- lo da vaca, ter iam também que a l imentá- la ; o mesmo com as g a l inhas. Todos os dias dever iam cumprir a lgumas tarefas para manter o s í t io em ordem.

–Como a senhora mantém tudo is so nessa organização sozinha? – perguntou Sát i r.

–Ah! Obr igada, sa iba que nem sempre foi ass im! Há se is ou sete anos, mais ou menos nessa época, parecia que um vendaval t inha passado por aqui . Não adiantava limpar nada, o vento era tão forte que assobiava

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al to e dava nó nas cr inas dos cavalos, nos rabos das vacas e dos cachor ros, mas não cuido sozinha do s í t io ! Eu conto com a a juda de um garoto for midável , acho que e le tem a sua idade, Sát i r. Ele mora nesse v i lare jo mesmo e é f i lho da mulher que dará aula a vocês ! O nome dele é Rur ique. Irão conhecê- lo. Um garoto muito amável , e l e i rá ens inar a vocês como cumprir todas as tarefas, pedire i também que mostre um pouco da v i la pra vocês, fa lando nisso, e l e já está atrasado!

Mais tarde Tibor se dei tou na g rama de bar r ig a para c ima, pensou que aquelas tarefas ser iam moleza, dar ia conta ; o lhou para o céu azul onde duas borboletas laranja br incavam como se dançassem um tang o no ar. Seu coração estava fe l iz , não haver ia mais bronca ou cast ig o da senhora Romilda e nem br ig as com o Marcinho do orfanato, es tava sonhando acordado e aquele s í t io era perfe i to em todos os aspectos.

Um ranger chamou a atenção de Tibor, sentou-se e v iu um garoto mag relo vest indo um macacão abr indo a por te i ra . Gaí lde es tava com Sát i r mexendo nas f lores em vol ta da varandinha tér rea da casa .

–Boa tarde! – d isse o garoto ao passar por Tibor. –Tarde! – Tibor em resposta . –Você deve ser o Tibor e aquela é sua i r mã Sát i r.

Tibor conf i r mou com a cabeça. –Sua avó fa la muito de vocês. Vieram da c idade?

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–Mais ou menos i sso. Você é Rur ique, cer to? –Sim, sou eu! – falou o garoto magrelo – Bom! Prazer

em conhecer você. Vou até ela pra ver se precisa que eu faça a lg o, até mais.

–Até. . . Tibor f icou obser vando, v iu a avó sor r ir ao ver o

garoto e apresentá- lo a Sát i r, depois e la acenou para que Tibor fosse até e les enquanto se d i r ig iam ao cele i ro.

Aprenderam com o garoto mag r icela a pr imeira tarefa : t i rar o le i te da vaca. Essa tarefa rendeu boas r i sadas, Tibor e Sát i r conseguiram meio balde de le i te, o resto estava no chão e nas roupas deles. Seguiram depois ao gal inheiro. Sát i r cor reu de um galo que a perseguiu em fúr ia por duas vezes, mas enf im aprenderam como al imentar as g a l inhas e l impar o gal inheiro.

Ao f inal , sa í ram de lá com as roupas e os cabelos cheios de penas. Ao s inal de que i r ia começar a anoi tecer, Rur ique se ret i rou, t inha de chegar cedo em casa ou sua mãe i r ia puxar sua orelha, d isse e le.

O sol a inda podia ser v is to se ret i rando por detrás de uma colina próxima, alguns pássaros passavam depressa pelo céu em busca do seu retiro noturno. Tibor, Sát i r e Gaílde agradeceram e se despediram de Rurique enquanto os cr icr i s dos g r i los recomeçavam pouco a pouco a preencher o s i lêncio e a lua se ex ibia majestosa no céu

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azul petróleo. Tudo ao redor era perfe i to, os g arotos só lamentavam o fato de não ter conhecido aquele s í t io antes.

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Os três, Tibor, Sát i r e Rur ique estavam sentados nos galhos da mangueira , ao lado da por te i ra , no dia seguinte. As mãos pingavam com o suco da f r uta . Tibor chupava um caroço de manga.

–Humm! Essa é a melhor manga que já comi na v ida ! – d isse e le com a boca empapada.

–Você disse i sso ao f inal de todas as quatro mangas que comeu! – fa lou Rur ique descascando mais uma.

–É! Eu sei ! Enganei -me antes. Essa ú l t ima foi def in i t ivamente a melhor ! – e se desfez do caroço.

Sát i r estava no galho mais a l to, estava vendo a paisagem lá de c ima; v ia col inas e mais col inas ao longe.

–Puxa, como é l indo aqui ! – d isse e la bocejando – Ai , Rur ique! Eu br ig ar ia com você por ter nos

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acordado tão cedo, mas por conta dessa paisagem, eu te perdoo!

–Não sei como é na c idade, mas por aqui , todo mundo acorda cedo! – retr ucou e le. – E olha que a inda não os acorde i no horár io que dever ia ! O cer to é acordar junto com o cantar do galo, ass im você aprovei ta bem mais o dia . Você vê o sol levantar e se dei tar. Olha só que absurdo! Já é quase meio-dia !

A por te i ra r angeu, era Gaí lde chegando.

Tibor pulou da ár vore e foi a judá- la com as sacolas que trazia , Rur ique fez o mesmo.

–Aonde você foi , vó? – perguntou Tibor

Gaí lde deu um sor r is inho contra ído com o ter mo “vó” que Tibor sol tara e fez uma cara de quem t inha ganhado o dia com aquela palavr inha de duas letras.

–Fui até o s í t io de Rur ique tra tar com a mãe dele sobre os seus estudos e o de sua i r mã, mas e la só vai estar d isponível depois da quaresma; é c laro que não imaginei o contrário, essa época realmente é conturbada por aqui , mas nada que não sobrevivamos não é? – Tibor não entendeu nada.

–Perguntou a e la o que te pedi , se posso dor mir aqui hoje? – quis saber Rur ique.

–Perguntei , s im! Ela d isse que se você quiser, está l iberado!

–É claro que eu quero! – disse e le sor r indo.

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Tibor e Rur ique começavam a fazer p lanos para aquele d ia , o que já inclu ía fazer fogueira , br incar de esconde-esconde entre outras coisas.

Sát i r os a lcançou e peg ou mais uma sacola para a l iv iar o peso da mão da avó.

–Humm! Laranja ! – fa lou a menina abr indo a sacola .

–Eu achei uma laranje i ra recheada na beira da estrada e trouxe a lgumas laranjas para casa , por i sso demorei um pouco. Devem es tar com fome, já deixei a lgumas coisas adiantadas, log o ter mino o a lmoço. – disse Gaí lde.

–Acho que não estamos com fome não, vó! – fa lou Tibor – comemos muita manga!

–É verdade! Minha bar r ig a está até doendo! – completou Rur ique.

Colocaram as laranjas na f r ute i ra da cozinha junto às bananas e jambos; e foram para o g ramado de f rente à casa , se sentaram na sombra de uma ár vore e começaram a decidi r o que fazer pr imeiro, já que as tarefas daquele d ia j á t inham s ido todas cumpridas.

O dia passou depressa e fora maravilhoso, os três correram e pularam bastante tomaram banho de mangueira à tarde e cochilaram ao sol até se secar, quando estava anoitecendo, Rurique e Tibor foram buscar madeira para

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fazer fogueira e Sátir foi ajudar Gaílde a embalar batatas-doces em papel-alumínio.

Entre uma coisa e outra , Rur ique expl icou para os dois sobre os v i lare jos, d isse a e l es que ant ig amente tudo era apenas uma cidade e que um prefei to maluco um belo dia resolveu div id i r a c idade em 7 v i las, n inguém entendeu nada, mas a ideia foi executada e a c idade foi d iv id ida . Rur ique os infor mou que o v i lare jo onde moravam t inha o nome de Vi lare jo ou Vi la do Meio, pelo fato de es tar rodeada pelos outros v i lare jos.

–Fal ta de cr ia t iv idade da pessoa que deu esse nome, não acham? – comentou Sát i r.

Rur ique disse também que eram poucos os s í t ios v iz inhos ao da Dona Gaí lde, a não ser pelo seu própr io s í t io, um outro s í t io de um fazendeiro chamado Perei ra e mais um s í t io que os donos nunca apareciam, lá morava apenas o casei ro, um ta l de “João a lguma coisa” ; o res to da v i la era uma f loresta densa e fechada.

Quando a lua se fez a l ta no céu, a r maram e acenderam a foguei ra . Quando a madeira começou a for mar brasa , já era bem tarde.

Gaí lde se despediu e foi dor mir, mas os três estavam com a adrenal ina a mi l , pois Rur ique disse que i r ia contar h is tór ias de ter ror que aconteceram nos v i lare jos.

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Muniram-se então de refr ig erantes e se sentaram em pedaços de tronco em vol ta da fogueira . O garoto sabia fazer suspense, pois os olhava com uma cara medonha.

–O que querem saber? – perguntou Rur ique fantasmagór ico.

–Não sei , não sabemos de nenhum assunto ou boato para perguntar. – respondeu Sát i r – escolha um você!

–Está bem! Mas não quero ser responsabi l izado por fa l ta de sono e nem camas molhadas de suor f r io ou x ix i . Entenderam bem?

Todos deram al tas g argalhadas que ecoaram de maneira es tranha. Rur ique foi o pr imeiro a f icar sér io e Tibor e Sát i r f izeram o mesmo.

Os três se olharam em s i lêncio por um tempo.

–Tudo começa com a quaresma! – começou o garoto mag r icela .

Tibor já levantou as orelhas e um ar repio lhe subiu pela espinha, sua avó t inha comentado a lg o com essa palavra , mas j á não lembrava mais o que era .

–A quaresma é um per íodo de mais ou menos 40 dias em que coisas es tranhas acontecem, pr incipalmente por aqui ! – Rur ique deu uma pausa e o lhou para os dois, Sát i r aval iava se sua bata ta-doce já estava boa para comer quando o garoto cont inuou. –

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Neste ano, o per íodo da quaresma começa no dia 17 de feverei ro. . .

–Que dia é hoje? – inter rompeu Tibor já com um medo estranho e deu uma g olada no refr ig erante para d isfarçar.

–Terça-fe i ra , d ia 16 ! Amanhã será quar ta- fe i ra de c inzas, esse é o tercei ro dia que estão aqui ! – d isse Rur ique.

GLUP! Foi o som que veio da garganta de Tibor ao eng ol i r o refr ig erante de tubaína.

– . . . e a quaresma ter mina no dia 2 de abr i l , na sexta-fe i ra da paixão!

–Que t ipo de coi sas acontecem por aqui? – perguntou Sát i r sem demonstrar medo a lgum.

–Ah! Vocês sabem. . . coisas. – se desconcer tou Rur ique.

–Não, não sabemos! – retr ucou e la , inqu ir idora .

–Nunca ouviram fa lar de uma ta l mula que anda por a í sem cabeça?

–Ei , i sso é folc lore ! É lenda que as pessoas contam. – disse Tibor.

–É? E de onde acha que v ieram essas lendas? – indag ou Rur ique.

Tibor deu de ombros e d isse :

–Sei lá ! São his tór ias inventadas.

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–Que são inventadas, eu posso af i r mar que são, mas também af i r mo que foram cr iadas a par t i r de fatos rea is.

–Ahá! Você quer me botar medo com histor inhas de folc lore? Tenha paciência ! – d isse Sát i r – Alguém quer bata ta-doce? Já estão prontas.

Ninguém respondeu e Rur ique começou: –Eu mesmo nunca v i , só ouvi . Ela passa num

galope rápido e ner voso, meu pai a v iu quando estava vol tando de uma pescar ia na Lag oa Cinzenta que f ica no Vi lare jo do Braço Tur vo. Disse que era noi te e e la veio em sua direção, e le rapidamente se encolheu no chão, fechou a boca e escondeu os dedos.

–Por que ele fez isso? – perguntou Tibor interessado. –A mula é atra ída pelo branco dos dentes e pelas

unhas. Se e la o v i r, i rá atacá- lo a té a mor te ! – Rur ique deu uma pausa para ver a reação deles – Meu pai deu sor te, e la passou direto como se e le nem est ivesse a l i .

Sát i r não acredi tava de maneira nenhuma e Tibor já estava completamente atento ao conto, o lhava para os lados inquieto e não parava de tremer.

–Não acredi ta não é? – perguntou Rur ique à Sát i r. –Nem um pouco, desculpe! –Pois o lhe seu celu lar ! –Meu celu lar? O que tem ele? – perguntou cét i ca . –Quando estamos na quaresma ou próximo dela ,

a maior ia dos apare lhos e letrônicos para de funcionar

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por aqui . Não sei qual a expl icação para i sso. Olhe seu celu lar e nos dig a se está funcionando!

Ela o ret i rou do bolso e constatou que estava sem s inal .

–Não disse?

–Isso não prova nada! Como vou saber se quando chegamos aqui e le f icou sem s inal? Não o usei nem o consul te i desde então.

–Eu s im. Coloquei nossos dois ce lu lares para car regar e não estavam sem s inal . – d isse Tibor.

–Talvez você não se lembre porque não precisou usá- lo. O que quero dizer é : você não sabe se es tava sem s inal , pois quando o colocou para car regar, não estava pres tando a a tenção nisso e o fato de estar sem s inal pode ter passado despercebido! – disse Sát i r.

Tibor parou para pensar e começou a dar razão à i r mã quando se l embrou:

–Mas eu o usei no car ro na v inda para cá e e le estava com s inal há três d ias.

Ela se manteve em s i lêncio por um breve instante e completou: – Ainda acho que esse papo dos celu lares não prova nada! – e deu uma mordida na bata ta-doce - es tamos no meio do nada.

–Tá bom! Você não quer acredi tar, mas quando a v i r, não diga que não avise i e lembre-se de esconder os dedos e os dentes.

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Mantiveram-se quietos e comeram as batatas, ner vosos, com exceção ta lvez de Sát i r que mantinha sua “ lóg ica racional” v iva na cabeça.

A fogueira esta lava quando Rur ique começou a dar r i sada.

–O que foi? – quis saber Tibor – O que é tão eng raçado? – e Rur ique r iu mais a l to – Vamos, d ig a !

–Sua cara de medo é eng raçada! – r iu-se e le quando Tibor o acer tou com uma bol inha de papel a lumínio – Eu concordo que a his tór ia é meio medonha, mas eu também tenho minhas dúvidas se e l a é rea l , apesar de meus pais não g ostarem que eu sa ia nas noi tes de quaresma. E que eu me lembre, toda época de quaresma coisas estranhas acontecem por aqui , mas tudo v ira boato depois de um tempo. – disse Rur ique.

–Então o papo da mula é furado? – Tibor quis se cer t i f icar.

–Pode ser que s im e pode ser que não ! Eu não se i , mas bem que eu quer ia descobr i r.

–Eu também! – disse Sát i r, o que fez Tibor achar estranha sua at i tude. – Ora Tibor – começou ela , p iscando um olho para e le, mas e le não entendeu seu plano – o que me diz de uma aventura? Poder íamos i r para a estrada ag ora e esperar que essa ta l mula apareça , o que acha?

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Tibor pensou e d isse incer to : – eu não acho que se ja uma boa. . .

Sát i r p iscou mais umas duas vezes para que e le entrasse na dança dela .

–Sim?! – disse e le pressent indo estar em apuros.

–Ótimo. E você, Rur ique, o que me diz?

Rur ique manteve-se f i r me e f ing iu-se de bobo, pois percebeu o plano da garota . Ela quer ia ver se e le era rea lmente cora joso. “Não de ixar ia n enhuma meninaz inha da c idad e s e r mai s co ra j o sa que e l e” , pensou. Ser ia um desaforo e então fez outra proposta :

–Eu sei de a lg o melhor !

–Rá! Sabia que fug ir ia ! – d isse e la .

–Não estou fug indo de nada, quero propor a lg o mais exci tante ! – d isse e le – O s í t io mais próximo, seguindo pela es trada velha, é do velho Perei ra que está desaparecido há quase dois anos e todo mundo acha que e le mor reu. O s í t io está abandonado desde então, nenhum parente veio saber dele ou da casa . – s e é que e l e t em par ent e s ! – Dizem que o s í t io é assombrado pelo seu fantasma e quem entra lá nunca mais sa i . – Rur ique percebeu no olhar de Sát i r que e la i r ia des is t i r e resolveu a l f inetar – Mas é c laro, i sso é só his tor inha de assustar cr iança!

Sát i r se levantou e d isse num tom de desaf io :

–Onde f ica esse s í t io? Vamos ag ora?

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–Calma a í , pessoal ! Não precisamos i r a lugar nenhum e nem provar nada pra ninguém. Vamos entrar e tomar mais refrigerante e... – quando Tibor percebeu, estava fa lando pra t icamente sozinho, pois Rur ique e Sát i r estavam cor rendo para dentro da casa . Tibor disparou log o atrás – Ei , vocês me deixaram aqui fora sozinho. Que br incadeira mais id iota !

Entrou na casa , mas Tibor percebeu que os dois não t inham entrado para botar medo nele e deixá- lo lá fora , pois Sát i r pegara sua mochi la e colocara uma lanterna dentro dela e Rur ique pegara um canivete e um es t i l ingue e colocara no bolso. – Não estão pensando em invadi r o s í t io desse ta l Perei ra , estão?

–Shh! Fale baixo ou vai acordar a vó! – disse a i r mã.

–Sát i r, o que pensa que es tá fazendo? – perguntou Tibor.

–Maninho! – cochichou ela em seu ouvido evi tando que Rur ique a ouvisse – esse menino es tá querendo botar medo na gente contando baboseiras. Só quero provar que nós, que v iemos da c idade, não temos medo dessas menti ras que contam para cr ianças. Além do mais, va i ser uma aventura e tanto, bem melhor que qualquer novela ou f i lme da TV. E a í , o que me diz?

–Que você está louca!

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–Ok, então f ique aqui que eu vol to log o mais com um Rur ique de ca lças molhadas de tanto medo.

–Não! Eu vou com você! – d isse Tibor. –Maninho! – e então e la f icou sér ia – Você sabe

que não vou deixar nada acontecer com você, não sabe? Estou fazendo isso porque tenho cer teza que e le des is t i rá antes mesmo de cr uzar a por te i ra deste s í t io.

Tibor se sent iu mais conf iante, se era só até a por te i ra não haver ia problema a lgum.

Sa í ram os três de mochi la nas cos tas e lanternas

na mão. O frio parecia bem mais presente do que antes lá fora.

Tibor olhou para a fogueira sozinha ao longe e achou que e la parecia assustadora ag ora . “É só a t é a por t e i ra e i s so t udo é papo f urado !” pensava e le. “Não ex i s t e e s sa h i s t ó r ia de mula ou a ssombra ção, é tudo conto pra pôr medo em c r ian ças !”

Chegaram até a por te i ra e se encararam. Sát i r e Rur ique se fa iscavam com o olhar em desaf io.

Estavam esperando para saber quem des is t i r ia pr imeiro, mas como nenhum deles des is t iu , Rur ique já abr ia a por te i ra enquanto Sát i r o lhava s ignif icat iva para o i r mão.

“Ok! Então só até essa tal de estrada velha e vo l tamos !” fa lava Tibor em voz baixa para s i mesmo . “Não ex i s t e mula e nem assombra ção !”

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Passaram a por te i ra e começaram sua pequena jornada pela r uazinha de ter ra que levava até a estrada velha.

Andavam num passo acelerado e com as lanternas mostrando o caminho. Sát i r, a todo momento, ver i f icava se o i r mão estava bem. Não demoraram muito e chegaram à estrada velha. Se naquela noi te que chegaram de car ro, há três d ias, acharam a estrada medonha, não era nada comparado a ag ora ! O facho de luz, que as lanternas proporcionavam, i luminava pouca coisa ante a g rande escur idão ao redor. Per maneceram parados na es trada por um tempo. Sát i r e Rur ique se encararam novamente, mas Tibor ag ora v ia que esse desaf io os levar ia longe demais e consta tou es tar cer to quando os dois se puseram a seguir em frente novamente. O garoto sabia que a i r mã estava com medo, mas, como sempre, e la não demonstrava.

Seguiram r umo ao s í t io abandonado descendo a estrada esburacada. Tibor sent iu o cheiro for te de mato e pôde ver a f loresta nas latera is da estrada. Era uma mata bem fechada.

Mirava sua lanterna para todos os lados freneticamente e percebia que seu medo era compartilhado pelos outros dois.

–Pessoal , vamos parar com isso! Só estou eu aqui a lém de vocês e se i que são corajosos o suf ic iente para

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i rem em frente, então não precisam tentar me provar nada. Por que não vol tamos para o s í t io? – e le esperou a lguma resposta , mas essa não veio – Sát i r ! – chamou em súpl ica – por favor !

Sát i r balançou ao pedido do i r mão e após um breve inter valo de tempo respondeu:

–Tá legal ! Vamos vo l tar. Foi quando ouviram um bar ulho na estrada atrás

deles v indo de onde v inham. –Apaguem as lanternas ! – d isse Rur ique e todos o

f izeram – Me s ig am, rápido! – e cont inuaram a descer a estrada, já que quem quer que fosse estava bloqueando seu caminho de vol ta .

Passaram por uma cerca de arame farpado e f icaram obser vando a estrada de trás de um arbusto. O coração dos três estava acelerado, não conseguiam parar de tremer e tentavam segurar a respiração pesada para não fazer bar ulho.

Foi quando v iram o que era . Uma senhora v inha caminhando lentamente pela es trada, sem lanterna ou lampião, mas parecia estar procurando a lguma coisa e sem problemas de fazê- lo no escuro.

Tibor não sabia por que, mas sent iu a lg o de per ig oso na mulher e não foi o único, pois Sát i r já o chamava para cor rer dal i quando a velha parecia estar mais per to. Os três se depararam com uma casa log o à f rente.

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–Esse é o s í t io do ta l Perei ra – disse Rur ique com medo na voz – preci so confessar, es tou mor rendo de. . .

–Eu também! – inter rompeu Sát i r t remendo. – E ag ora , o que faremos?

–Não sei! – respondeu Rurique. – dizem que quem entra aí, nunca mais sai!

–Você não mora nesse v i lare jo? Dever ia saber o que fazer, não conhecemos nada por aqui ! – d isse Tibor, bravo.

Mas antes que a lguém se pronunciasse, a resposta do que fazer veio com um bar ulho da cerca onde passaram. Tibor notou que a velha estava fazendo a lguma coisa no arbusto onde est iveram há pouco. Não t inha muita cer teza , mas parecia que e la estava f a r e j ando o local . Sem pensar, os três cor reram na direção da casa e resolveram entrar e se esconder. Rur ique encontrou uma janela semiaber ta e a judou Sát i r a pular pra dentro, depois a judou Tibor e pulou por ú l t imo. Rur ique trancou a j anela por dentro e pediu para que todos f izessem s i lêncio.

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Puderam ouvir os passos abafados da velha se

aproximar pelo lado de fora da casa . Os três estavam sentados de cos tas para a parede

e tremiam sem parar, parecia que o coração deles i r ia sa l tar pela boca. Sent i ram que a velha parara do lado de fora da janela onde estavam, pequenas e for tes fungadas foram escutadas por e les, pouco depois e la pôs-se a andar novamente e parecia estar indo embora.

–O que foi i sso? – sussur rou Tibor a Rur ique. –Eu não se i ! –Ela estava nos fare jando, aquela velha estava nos

fare jando! – diz ia e l e indignado. –Shh! - Fez Sát i r quando ouviram passos na por ta

da entrada da casa . TOC TOC TOC Com o susto, os três levaram as mãos à boca tentando

conter seus próprios sons.

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–Ela sabe que es tamos aqui . – sussur rou Tibor o mais baixo que pôde.

TOC TOC TOC – bateu a velha novamente mai s pausadamente.

Tibor, Sát i r e Rur ique se mantiveram quietos e , após a lgum tempo, e la se foi . Mesmo ass im eles esperaram. Foram até a janela e não v i ram ninguém do lado de fora .

Tinham outro problema em mente, estavam dentro da casa que diz iam ser assombrada.

–Será que essa velha é a assombração que dizem? – perguntou Tibor.

–Não mesmo! O que dizem é que o fantasma que habi ta aqui é o do fazendeiro Perei ra . – d isse Rur ique – Vamos vol tar ag ora para o s í t io, antes que dê meia-noi te !

–Você é louco, es tamos mais seguros aqui dentro que lá fora ! – d isse Sát i r – Talvez o melhor a fazer se ja esperar amanhecer.

–De je i to nenhum, essa casa é assombrada! Não f ico aqui mais nenhum minuto. Daqui a pouco é o in íc io da quaresma e eu não quero estar aqui quando ela começar.

–Escutem aqui vocês dois ! – fa lou Tibor – Não vamos nem sai r e nem f icar até o amanhecer, mas sug iro esperar pelo menos um pouco mais aqui dentro, pois não sabemos se essa velha es tá nos esperando a í

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fora . – e completou a inda – E vocês são bur ros demais. Mais uma disputa por orgulho de vocês e vamos acabar mor tos !

Rur ique e Sát i r eng ol i ram o orgulho e consta taram que Tibor, apesar de mais novo que os outros, estava com a razão. Então resolveram esperar.

A casa parecia estar abandonada inclus ive pela ta l

assombração, nada se movia a l i dentro e tudo parecia estar no mesmo lugar desde que o ta l fazendeiro sumira há quase doi s anos. Tudo t inha uma camada de quase um cent ímetro de pó e um cheiro estranho que i r r i tava as nar inas dos três.

–Se essa assombração est ivesse mesmo aqui , e la ter ia atendido a por ta não acham? – Sát i r ar r i scou uma piada, mas ninguém r iu .

Andaram pela sa la o lhando os móveis e mobí l ias. A casa do fazendeiro não era maior que a de Gaí lde, mas t inha sua pompa. Nas paredes, ao invés de quadros, haviam enfei tes fe i tos de bambu. Sá t i r percebeu que não só os enfei tes pendurados eram de bambu, como todo o resto : sofás, mesas e cadeiras.

–Que es tranho! – di sse e la . –Ai ! – d isse Rur ique de um canto da sa la

apontando a lanterna para o chão. –O que foi? – disseram Tibor e Sá t i r juntos, já

esperando pelo pior.

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–Nada! Tropecei num pé de sapato! – disse e le ex ibindo o sapato preto em que tropeçara, para o a l ív io dos dois i r mãos.

Tibor reparou que não havia nenhuma foto emoldurada na mobí l ia , também não t inha geladeira na casa , nem TV.

A casa era tér rea e só t inha um quar to, mas não t inha nenhuma cama.

–Esse cara era esquis i to ! – constatou Tibor. Abr iram o guarda-roupa, encontraram-no vazio. –Estou começando a achar que esse cara não

mor reu. Ele foi embora por conta própr ia e levou suas roupas ou então t inha mania de andar pelado por a í ! – d isse Tibor – Você não se lembra dele, Rur ique? Se e le sumiu há dois anos, deve se lembrar.

–Pior que não! Ele não devia dar muito as caras pela v iz inhança. – respondeu e le.

–Estou mor rendo de sono – disse Sát i r – ta lvez se ja a hora de i r.

–Concordo! – disse Tibor. –Ei ! Olhem o que encontre i . Que esquis i to ! –

d isse Rur ique com um g or ro cor de v inho nas mãos. –Chega, pessoal ! Não dever íamos f icar fuçando a

casa dos outros. Rur ique! Devolva esse g or ro onde o encontrou e vamos embora! – fa lou Sát i r.

Rur ique foi colocar o g or ro no lugar onde o encontrara quando um som es tranho sa iu do g or ro.

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–Ouviram isso? – perguntou o garoto para l i sado.

Tibor e Sát i r adorar iam dizer que não, mas era prat icamente imposs ível não assumirem que escutaram alg o, só não sabiam ident i f icar o que era . Foi quando o bar ulho acometeu seus ouvidos outra vez.

Um som que mesclava vozes com bar ulho de mato sa ía de dentro do g or ro amar rotado e sujo, hora baix inho, hora bem al to ; e então emudecia .

Rur ique sol tou o g or ro no chão mais que depressa e se afas tou: – É! Acho que é hora de sa i r mos daqui !

Foi então que o inacredi tável aconteceu.

O g or ro f lutuou no ar a um metro e meio do chão. A boca do g or ro estava v i rada para os três que não sabiam o que fazer. O g or ro começou a chiar a l to e balançar, um vento começou a soprar de dentro dele fazendo os cabelos deles e tudo o mais por a l i esvoaçar.

Cor reram para a j anela de onde t inham vindo, mas essa parecia estar emper rada. Tentaram outra e mais outra , mas nenhuma das janelas abr ia .

O pânico começou a tomar conta dos meninos, o g or ro chiava cada vez mais a l to e sempre aumentava sua ra jada de vento pra c ima deles. Fugiram então para outro cômodo da casa e, antes de fechar a por ta , puderam ver que a força do vento se intens i f icava a

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ponto de começar a der r ubar as cadeiras e os enfei tes das paredes.

Estavam no quar to sem cama, Sá t i r tentava a janela , mas o tr inco estava enfer r ujado e emper rado; e como todas as outras janelas, essa também não abr iu .

–E ag ora , o que faremos? – perguntou Rur ique. –Ah, você não é o cora joso aqui? – disse Sát i r. –

Poder ia i r lá fora e pedir pra , o que quer que se ja , parar de soprar pra c ima da gente.

O garoto fez uma careta e d isse : –Pelo que eu sa iba você também não deu o braço

a torcer que estava com medo antes de chegar aqui e o lha só! Estamos presos por uma assombração, ou se j a lá o que for, que está soprando a trás desta por ta . Duvido que tenha uma expl icação lóg ica para i sso, sabichona! – retr ucou Rur ique f icando ver melho. – E ag ora não sa i remos daqui nunca mais !

Quando Sát i r fez menção de responder, Tibor inter veio :

–O que há com vocês dois? – ber rou e le, pois o zunido do vento estava cada vez mais a l to do lado de fora do quar to. – Estamos numa s i tuação de r i sco aqui ! Precisamos pensar juntos ou não sa i remos dessa casa sem ser mos soprados por esse chapéu maluco!

A por ta começou a tremer e então se abr iu v iolentamente, puderam ver que o g or ro estava f lutuando no cor redor em frente à por ta , como se

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soprasse a f im de der r ubá- la . Os três pensaram a mesma coisa e ao mesmo tempo. Cor reram para a porta e a forçaram para fechá-la, por sorte conseguiram e enquanto Tibor e Rur ique a seguravam, Sát i r cor reu e peg ou uma cadeira do quar to para escorar a maçaneta .

Sol taram a por ta e o lharam o trabalho que f izeram. Perceberam que não durar ia muito tempo, pois o g or ro transfor mara o vento em vendaval no cor redor atrás dela . Precisavam de uma a l ternat iva com certa urgência, pois a porta tremia assustadoramente.

Entraram no banhei ro do quar to ao mesmo tempo em que a cadeira e a por ta cediam at i radas à outra extremidade do cômodo e se espat i favam em vár ios pedaços na parede.

Fecharam a por ta do banheiro, perceberam que havia uma janel inha no a l to da parede e que poder iam passar por e la .

–Tibor, você vai pr imeiro! – d isse Sát i r decid ida – eu faço “pézinho” pra você. – fa lou a menina estendendo as mãos com os dedos cr uzados para que o i r mão subisse. A por ta do banhei ro começava a zunir e tremer – Lá fora , cor ra como nunca cor reu antes e não espere por nós ! Suba a est rada velha, vá para o s í t io e peça a juda pra vó, entendeu? – e fez uma cara que lembrou Hana Lobato, a mãe dos dois.

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–Mas e se essa toca voadora der r ubar a por ta e. . . – começou ele quando um BUM na por ta cor tou o que estava dizendo.

–Rápido, Tibor, você precisa cor rer, eu e Rur ique estaremos log o atrás de você! – prometeu e la .

A por ta se abr iu , mas Rur ique a segurou com as costas e colocou os pés na parede usando-a de apoio.

–Vá log o, Tibor ! – g r i tou Rur ique.

Tibor não queria deixá-los, mas sua irmã praticamente o obrigou com o olhar inquir idor da mãe. E e le foi , p isou nas mãos da i r mã, e la o e levou até o parapei to da janel inha que não estava emper rada e Tibor pulou para fora da casa .

Lá fora es tava bem escuro e Tibor olhou ao redor a inda com medo daquela velha estranha es tar à esprei ta , mas tudo o que v iu foi uma plantação de bambus de uns se is metros de a l tura , a uns c inquenta metros de onde estava.

Ouviu o g r i to da i r mã e não teve forças e nem coragem para cor rer e deixar a i r mã e o amig o para trás.

–Sát i r ! – g r i tou e le.

A cabeça da i r mã então apareceu do lado de fora da janela , Rur ique segurava a por ta com um pé e a judava a menina a passar pelo buraco. Ass im que e l a conseguiu sa i r da casa , Rur ique sol tou a por ta , subiu

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na pia do banheiro e sa l tou pela janela mais que depressa .

–Tá todo mundo bem? – perguntou Sát i r. Todos assent i ram – Então vamos embora daqui !

E cor reram ainda escutando o g or ro assobiar lá dentro.

Tibor olhou para tr ás por um breve momento e v iu todas as j anelas da casa se abr i rem quase ao mesmo tempo. Algumas cadeiras foram at i radas para fora , até o sofá da casa voou longe. Os meninos subiram a estrada velha e deixaram de ver a casa do fazendeiro desaparecido.

Continuaram cor rendo sem dizer palavra a lguma, entraram na es tradinha que levava ao s í t io de Gaí lde, passaram pela por te i ra . A fogueira ag ora ardia apenas em brasa .

Entraram voando pela por ta e a t rancaram. Chegaram à sa la e os três espar ramaram-se no tapete.

Após um tempo em que só se ouvia a respiração acelerada, Tibor foi o pr imeiro a quebrar o s i lêncio :

–O que era aqui lo? –De qual aqui lo você está fa lando? Da velha

macabra ou do g or ro assombrado? – perguntou Rur ique.

–Nossa! Meu coração está a mi l ! – d isse Sát i r. –O que far ia um fantasma destr uir sua própr ia

casa? – perguntou Tibor – Se aqui lo que movia o

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chapéu doido era o ta l Perei ra , por que e le quebrar ia suas por tas e jogar ia tudo o que era seu , janela a fora? Quero dizer, é sua própr ia casa !

–Talvez aquele não se ja o fantasma do fazendeiro! – especulou Rur ique.

–Que e le quer ia nos expulsar dal i , estava c laro! Mas o que aquela velha quer ia com a gente? – perguntou Tibor.

–Não sei ! Talvez nada, mas ta lvez. . . – Rur ique deixou a f rase no ar.

Mais um breve s i lêncio pairou até que Sát i r se pronunciou:

–Acho que não devemos dizer nada à Gaí lde ou e la perderá a conf iança em nós ! Amanhã, vamos tentar ag i r como se nada t ivesse acontecido, ok?

–Não sei ! – d isse Tibor – ta lvez e la devesse saber. Na verdade, i sso aumentar ia a conf iança! Mas é c laro que uma boa bronca nós i r íamos l evar !

–A nossa sorte é que já estamos aqui e ainda estão fa l tando cinco minutos para a meia-noi te. O que dizem é que log o depois da meia-noi te é que o bicho pega! – d isse Rur ique.

–Talvez a vó até sa iba o que é aquele g or ro. – fa lou Tibor – Eu g ostar ia de saber o que era . Sabemos que é bem poderoso !

–Ah, i sso é ! – d isse Sát i r – Espero jamais me deparar com um objeto que sopra e voa novamente!

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Tibor e Sát i r confer i ram seus celu lares, o dele estava sem s inal e o dela já não funcionava mais. Parecia ter um leve cheiro de coisa queimada sa indo do te lefone.

–Mas que droga! – reclamou ela e deixou o celu lar de l ado numa mobí l ia sob a luz amarelada de um abajur.

O sono começou a u l tr apassar a adrenal ina , concordaram então em não dizer palavra do que acontecera naquela noi te para Dona Gaí lde e resolveram subir para seus quar tos.

Rur ique dor mir ia no quar to de Tibor e antes de se separarem de Sát i r no cor redor do pr imeiro andar, se o lharam e deram r isadas.

Então Rur ique disse :

–Bom! Pelo menos t ivemos nossa aventura ! – cada um foi para o seu quar to quando o re lóg io da sa la bateu por doze vezes marcando o in íc io da quaresma.

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Quar ta- fe i ra de c inzas ! O céu es tava nublado, uma garoazinha f ina ca ía

vez ou outra de leve sobre a Vi la do Meio. Gaí lde estranhou que os três, Tibor, Sát i r e Rur ique t ivessem levantado tão cedo. Ela preparou o café enquanto e les cumpriam as tarefas mais que depressa .

L imparam a suje i ra que deixaram ao redor da fogueira , depois Tibor se encar reg ou da vaca no cele i ro, Sát i r e Rur ique f icaram com as g a l inhas. Ter minaram as tarefas e tomaram o café da avó que inclu ía até quei jo com g oiabada.

–Que del íc ia ! – d isse Tibor ao f inal de mais uma t ig e la .

Após se ret i rarem da mesa, foram os quatro para a sa la , Dona Gaí lde se sentou em sua cadeira de balanço e começou seu rápido tr icote, Tibor percebeu que e la es tava tecendo uma toalha roxa.

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–Vocês sabem que hoje é o pr imeiro dia da quaresma, cer to? – perguntou a avó.

Todos assent i ram mudos. –Então, espero que se compor tem, po is nesses

tempos, fenômenos que não entendemos bem são mais comuns! – e l a percebeu os olhares sedentos por infor mação e cont inuou – Quando chegaram aqui no doming o, eu est ive nesta mesma cadeira e d isse para vocês que ex is t iam coisas sem expl icação e que ter iam de ver para entender, pois bem, essa é a época! Serão mais de quarenta d ias que essas forças terão a opor tunidade de se mostrar !

–Por que essas ta is forças são r uins? – perguntou Rur ique.

–Ruins? O que o faz pensar ass im? – perguntou Gaí lde.

Os três g arotos se olharam em s i lêncio e a avó cont inuou:

–Não sei de onde t i rou essa ideia , mas posso assegurar que não são forças r u ins ! Bem, nem posso dizer que são de todo boas, vamos dizer que ex is te um equi l íbr io, a lguns desencadeiam coisas boas, outros, coisas r u ins e outros apenas são o que são! – Gaí lde achou es tranho o fato de estarem entendendo tudo o que e la fa lava e resolveu perguntar – Vocês por acaso presenciaram algum t ipo de manifestação ontem à noi te?

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Todos f izeram que não com a cabeça, mas é c laro, i sso não convenceu Dona Gaí lde. Mesmo ass im ela apenas sor r iu e d isse :

–Pois bem! É bom que vejam com os própr ios olhos, mas tomem cuidado! Existem forças que prezam pelo mal também e que infe l izmente cr iam asas nessa época! – os três se ar repiaram da esp inha à nuca e então e la mudou de assunto – Rur ique! Acho bom você v is i tar sua mãe hoje !

–Dona Gaí lde! Eu g ostar ia de saber se eu poder ia passar a quaresma aqui no sítio com vocês! – perguntou o garoto magricela. Tibor e Sátir ficaram fel izes com a vontade do amig o e pediram para que a avó ass im o per mit i sse.

–Façamos o seguinte, então: vá até sua casa d izer que está bem e converse com sua mãe sobre o assunto; se por e la es t iver tudo bem, por mim está bem também! – disse e la .

–Vamos com você! – fa lou Tibor. Mais tarde sa í ram pela por te i ra , os três. Era por

vol ta das dez da manhã e e les seguiram a estrada velha r umo à casa de Rur ique, que f icava mais à f rente da casa do fazendeiro Perei ra . Tremiam só de pensar em passar na f rente do s í t io do Perei ra , mas o fato de estar de dia os encorajava. Ao chegar à f rente da casa abandonada, v i ram que as janelas se encontravam

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escancaradas e pedaços de cadeiras e mesas, bala ios e enfei tes a inda estavam espalhados pela g rama ao redor, ar remessados da noi te anter ior ; os g arotos olhavam incrédulos, mas não v iam nem s inal do g or ro voador que soprara todas aquelas coisas.

Tibor achou pegadas próximas à cerca de arame farpado que t inham cr uzado.

–Venham ver só essas pegadas, são enor mes! – disse e le.

E rea lmente eram, t inha mais que duas vezes o tamanho de pé padrão para um adul to, era um pouco larga e bastante comprida.

–Será que essa é uma pegada daquela velha de ontem? – perguntou Sát i r. – se s im ela deve ter uma enor me dif iculdade em achar sapatos !

–Vamos log o com isso, quero vol tar cedo para o s í t io de vocês ! – d isse Rur ique cont inuando a descer a estrada velha.

Desceram e ao f inal da estrada havia uma cur va e em meio a a lgumas ár vores estava uma por te i ra bem capenga.

–Lar, doce lar ! – d isse Rur ique t i rando a cor rente que a prendia e abr indo para os amig os passarem.

Era um s í t io bem pequeno, a lgumas gal inhas cacarejavam para l á e para cá ! A mãe de Rur ique logo apareceu e veio até e les já abraçando o f i lho bem for te.

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–Olá! – cumprimentou e la – Vocês são os netos de Gaí lde, cer to? Tibor e Sát i r? – assent i ram – eu sou Dona Eulá l ia , a fu tura professora de vocês ! Vamos entrar?

E acei taram! A casa era pequena, proporcional ao tamanho do ter reno, eram dois quar tos, uma sa la junto com a cozinha e um banheiro.

–Que bom que v ieram, estou preparando um peixe que meu mar ido pescou esta manhã! – disse e la .

Tibor pôde ver o peixe assando no forno à lenha e com o cheiro era imposs ível de se negar um convi te daqueles.

–Cadê meu pai? – perguntou Rur ique. –Está no banho, fa le i pra e le tomar e apesar de

muito protesto e le foi ! Estava cheirando a peixe! – Eulá l ia mexia um panelão com ar roz.

Rur ique mostrou seu quar to para os dois, mostrou também que t inha cer ta habi l idade em marcenar ia .

–Essa cama e esse ar már io fu i eu que f iz ! – foi até um baú no canto do quar to e t i rou duas espadas de madeira . – essas espadas também!

Tibor adorou a espada e os dois foram para fora br incar de luta de espadas.

Sát i r só os obser vava do deg rau de entrada da casa e pensava nas coisas que t inham presenciado na noi te anter ior ; s e rá que s e r i a as s im todo s o s d ias? Se s im, o

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que v e r iam naque l e d ia? Sabia que o s í t io era perfe i to demais para ser verdade, mas mesmo sabendo das assombrações não trocaria essa vida nova por nenhuma outra!

Tibor foi a nocaute por Rur ique todas às vezes.

–Eu prat ico com essa espada todo santo dia !

–Com quem? – quis saber Tibor.

–Oras ! Sozinho!

–Ei , g arotos ! – d i sse um homem mag r icela á por ta .

–Oi , pai ! – fa lou Rur ique.

Era imposs ível não saber que eram pai e f i lho, o pai era um Rur ique mais a l to e com barba.

–Muito prazer, eu sou Avel ino, o pai de Rur ique!

Todos se cumprimentaram e Avel ino os av isou que a comida es tava na mesa.

Já era pouco mais de meio-dia e o peixe t inha s ido ót imo, os pais de Rur ique e os g arotos conversaram bas tante durante o a lmoço. Avel ino pescava todos os dias pela manhã na Lag oa Cinzenta no v i lare jo do Braço Tur vo; Eulá l ia cuidava do s í t io e dava aulas para as cr ianças dos v i lare jos v iz inhos em um cômodo em Diniápoles.

–Mas em tempo de quaresma eu me ret i ro, tenho medo! – disse e la .

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A vida por a l i não era tão di ferente que no s í t io de Gaí lde, apesar da casa ser pequena. T ibor e Sát i r se sent i ram bem confor táveis e os pais de Rur ique eram bem acolhedores. Avel ino e Eulá l ia deviam ter g ostado mesmo dos dois, pois não quer iam deixá- los i r embora.

Rur ique perguntou sobre f icar no s í t io de Gaí lde até que passasse a quaresma.

Seus pais per mi t i ram com a condição de que, ao anoi tecer, vol tasse para o s í t io e de lá não sa ísse até o dia seguinte ; com o que e le concordou mais que depressa , e fo i aprontar sua mochi la com algumas roupas.

Sa í ram de lá por vol ta das duas da tarde.

–Seus pais são muito legais – disse Tibor. – g ostar ia de pescar com seu pai um dia desses.

–É só dizer i sso a e l e, que e le te leva com prazer !

E seguiram viagem r umo ao s í t io de Gaí lde. Passaram novamente pelo s í t io do Perei ra , mas não pararam desta vez. Chegaram à costumeira por te i ra e subiram na mangue ira . Rur ique deixou a mochi la no chão próximo à ra iz .

–Nada como uma manga de sobremesa! – d isse e le.

Pouco depois, os três ouviram as galinhas cacarejarem em pânico no galinheiro.

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–Tem alg o acontecendo lá ! – d isse Sát i r. – Só me fa l ta ser uma assombração! – E desceram da ár vore para ver o que era .

Os cacarejos eram al tos e desesperados. Lá chegando, Tibor abr iu a por ta do gal inheiro e de onde fug iram duas g a l inhas. As outras g r i tavam assustadas. – O que será que as deixou ag i tadas ass im? – perguntou Tibor.

–Não sei , mas o que quer que se ja a inda está por aqui – disse a menina.

Um le i tão pequeno apareceu cor rendo desor ientado em meio à palha no chão, era bem rosa e menor que uma ga l inha, seu r o inc - r o i n c soava a l to e agudo.

Sát i r peg ou o porquinho nas mãos e após se ag i tar e chacoalhar bastante, f icou mais ca lmo. – Que boni t inho! – disse e la – será que podemos f icar com ele?

–Acho que não terá problema! – disse Rur ique – mas é bom perguntar para a sua avó.

Tibor e Rur ique colocaram as duas g a l inhas fu jonas de vol ta no gal inheiro e Sát i r fora cor rendo até a avó perguntar se poder ia f icar com o porco.

Gaí lde segurava a bar ra da sa ia enquanto descia as escadas, ao ver Sát i r perguntou:

–O que aconteceu no gal inheiro? Ouvi as g a l inhas desesperadas !

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–Não foi nada demais, vó! – disse a menina com o porco nas mãos – a não ser por essa cois inha que apareceu lá dentro e as deixou ag i tadas !

–Um le i tão desse tamanho sozinho? – disse a vó examinando o porco – a mãe desse pobre coi tado deve estar procurando-o!

–Podemos f icar com ele? – pediu Sát i r e vendo a cara que Gaí lde começou a fazer, completou – e le deve es tar com fome e, até que encontremos sua mãe, poder íamos mantê- lo em segurança aqui no s í t io !

Gaí lde botou as mãos na c intura e d isse : – Tudo bem! Mas você está incumbida de cuidar do pequenino! – Sát i r abr iu um sor r iso enor me e deu um bei jo no le i tão, Gaí lde cont inuou – Ar r ume um lugar pra e le no cele i ro ao lado da Mimosa e cuide para que não fuja de lá ! Um porquinho deste tamanho cor re um mi lhão de per ig os andando sozinho por a í !

Sát i r ag radeceu e cor reu para o cele i ro com Tibor e Rur ique.

–E a í? – quis saber Tibor – o que e la d isse?

–Que e le pode f icar ! – respondeu e la – mas só a té encontrar mos a mãe dele !

–Que legal ! – d isse Rur ique – ag ora precisamos dar um nome pra e le !

Sát i r o l evantou pos ic ionando-o de for ma a olhá-lo de f rente – e l e tem cara de. . . não se i ! O nar iz dele

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parece mais uma tomada! Talvez devemos começar a pensar por a í !

–Eu colocar ia Suíno, af inal de contas e le é mesmo, não? ! – d isse Tibor.

F icaram um bom tempo escolhendo um nome, a té f inalmente chegarem a conclusão de que o bicho roncava demais e lhe deram o nome Roncador !

–É legal , mas e le é tão pequenininho, poder ia ser Ronquinho ou Roncadorzinho! – disse Sát i r.

–Ele é macho e imagina só quando crescer, duvido que vai querer um nome ter minado com “inho”! – fa lou Rur ique e todos concordaram.

Tiraram um pouco de le i te da Mimosa que f icava ao lado para dar ao pequeno l e i tão. Ele estranhou no começo, mas tomou todo o le i te. A vaca, muito cur iosa , enf iou a cabeça com seus chif res enor mes por c ima da separação do estábulo e f icou olhando espantada para aquele ser cor-de-rosa que roncava toda hora . Buscaram um balde com água do poço e despejaram onde Roncador estava, para que a l i se tornasse um chiquei ro improvisado.

O porco se esbaldou e chafurdou-se tranquilamente pela lama que se formou.

O dia foi passando e a garoa que caía se transformara em uma chuva torrencial, raios e relâmpagos enchiam o sítio de flashes medonhos. Os três jantaram a macarronada de Gaílde o mais rápido que conseguiram, pois Roncador

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parecia estar bem assustado com os trovões, gritava como um bebê cada vez que um lampejo cortava o céu. Naquela noite Tibor, Sátir e Rur ique eram obser vados de per to por Gaí lde, que f icou maravi lhada com a at i tude das cr ianças e resolveu não interfer i r. Eles levaram um cober tor para cada um deles para o cele i ro e passaram a noi te lá com Roncador e Mimosa. A presença dos três deixava os animais mais ca lmos, apesar de Mimosa já estar acos tumada a chuvas e trovoada. O sol ra iou a l to no dia seguinte , os três acabaram acordando bem depois do cantar do galo, pois t inham dor mido muito tarde na noi te anter ior. Algumas poças de bar ro se for maram ao long o do s í t io, mas o céu estava l impo e sem s inal de que chover ia novamente naquele d ia . Gaí lde levou o café da manhã no cele i ro para e les e levou um pouco de quirera de mi lho para o porco que comeu tudo em menos de um minuto. F izeram as at iv idades matut inas e, um por um, foram tomar banho.

Rur ique foi procurar a mochi la com as roupas e se lembrou ter deixado ao pé da mangueira , estava encharcada, Gaí lde o a judou a lavá- l as e colocá- las para secar no vara l per to da hor ta atrás da casa .

Sol taram Roncador pelo s í t io e br incaram com o porco pelo res to da manhã e um pedaço da tarde.

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Os dias iam passando no s í t io, as quaresmeiras se enchiam de f lores roxas por todo o v i lare jo. Quase todas as manhãs, Gaí lde colocava a lgumas f r utas embaixo da mangueira : abacates, mamões, bananas ; pois a l i por per to havia uma famí l ia de tucanos que já estavam acostumados com essa mordomia e, quando ninguém es tava vendo, desciam cinco ou se is deles para fazer sua refe ição, sossegados.

Cer to dia , Sát i r e T ibor se pegaram conversando sobre a quaresma:

–Até que não é tão r uim ass im, nada aconteceu até ag ora ! – d isse Tibor.

–É! São só boatos que o povo conta mesmo! – completou Sát i r. – Aquela velha que nos perseguiu devia ser só uma velha doida e nada mai s !

–E o g or ro? – perguntou Tibor. –Bom! Não sei e nem g ostar ia de saber ! – d isse a

menina – pra fa lar a verdade, já estou até começando a esquecer esse episódio!

Já passava de duas semanas que es tavam morando no s í t io, adaptaram-se bem ao lugar, Rur ique ia de vez em quando para sua casa para v is i tar os pais, mas log o vol tava para o s í t io, adorava os amig os novos. Tibor e Sát i r também aparec iam por lá de vez em quando para a lmoçar com Avel ino e Eulá l ia . Conheceram o Lag o Cinzento em Braço Tur vo, num dia em que Tibor fora pescar com Rur ique e seu pai , Avel ino; Sát i r optou por

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f icar na casa de Rur ique e a judar Eulá l ia com os preparat ivos do a lmoço que os “homens da casa” , como disse Eulá l ia , t rar iam.

Foi uma boa pescar ia se anal i sar mos pelo lado de Avel ino! O pai de Rur ique foi o campeão do dia com dois pacus g randes e duas t i lápias médias, só por a l i o a lmoço j á estar ia g arant ido, mas para aqueles que quisessem comer um pouco mais da conta , Rur ique se encar regava do fardo, com mais um pacu médio e uma t i lápia bem g rande. Essa t i lápia t inha dado uma trabalheira enor me, Rur ique a puxou desesperadamente ass im que o peixe mordeu o anzol e Tibor tentou a judá- lo ! Por muito pouco o barco não v irou de tanto que os meninos se chacoalhavam. Tibor, por sua vez, conseguiu gastar todas as i scas que trouxera , a leg ou a todo o momento que os peixes as roubavam de seu anzol e fug iam, quando na verdade não conseguia era prender a i sca da maneira cor reta a deixando frouxa no anzol .

Avel ino passou por um apuro danado naquele d ia quando o barco quase v i rou, mas não se impor tou nem um pouco, marcou outro dia de pescar ia com os meninos às g argalhadas.

Os três, Tibor, Rur ique e Sát i r v is i taram também Diniápoles uma vez. Diniápoles era o v i lare jo com mais habi tantes e por conta disso era bem diferente dos outros que só t inham chácaras e s í t ios, Diniápoles

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era uma cidadezinha de in ter ior com r uas de para le lepípedo e pequenas cas inhas. Tinha um mercadinho onde podiam comprar refr ig erantes ; havia padar ia , lo jas de roupas e acessór ios ; no centro da c idade havia uma pracinha, onde comiam pipoca lado a lado com as pombas sedentas por mi lho. Nesse dia levaram Roncador junto. Sát i r t inha improvisado uma cole i ra para o bicho.

Todos os olhares na c idade eram vol tados para a menina e seu porco, mas os três não estavam nem aí . Roncador fazia jus ao nome e parecia querer conversar com todo mundo que passava e afag ava sua cabeça rosa . No f im desse dia , as três cr ianças e o le i tão chegaram hipercansados no s í t io. Pegaram no sono na sa la mesmo. Gaí lde esperou que acordassem para dar uma bronca em todos por deixar Roncador dor mir dentro de casa e t iveram que passar o resto do dia seguinte l impando as pat inhas de bar ro que o bicho deixara por toda a sa la .

Cheg ou a semana de lua cheia , uns u ivos de noi te eram escutados ao longe e apesar de Rur ique contar suas teor ias e boatos sobre um ta l de lobisomem, nada aconteceu que pudesse provar a ex is tência de um. Tibor e Sá t i r já estavam se acos tumando com o fato de todo mundo pedir para tomarem cuidado com a época em que es tavam e nada acontecer, f icavam até tarde nas dependências do s í t io mesmo com tantos av isos de

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que estavam em um tempo perigoso. Gaílde até chamava a atenção, mas não adiantava. No dia seguinte, lá estavam os três de vol ta com os tre inos de espada de madeira , ou apostando cor r ida , ou br incando de pega-pega, ou de esconde-esconde, amarel inha, pula-corda. Na g rande maior ia das br incadeiras, Roncador também par t ic ipava como se fosse uma quar ta cr iança, só que t inha problemas de dicção, pois tudo o que sabia d izer era :

–Roinc-roinc!

E tudo isso depois de o sol já ter se ret i rado para dor mir.

Foi numa segunda-fe i ra , d ia 15 de março, que a lg o f inalmente aconteceu.

O sol se despedia do dia dando espaço para uma lua completamente nova, os g r i los e as c ig ar ras começavam sua pontual orquestra , Sát i r estava levando Roncador para o ch iqueiro e Rur ique vencia Tibor em mais um combate de espadas de madeira .

Tibor ca iu no chão com a invest ida que Rur ique dera contra e le quando um le i tão passou cor rendo desesperado per to da cabeça de Tibor. Os meninos pararam de br incar e g r i taram:

–Sátir! O roncador fugiu do chiqueiro! – e correram para pegar o porco fujão.

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–Como ass im? – g r i tou a menina de dentro do celeiro. – estou dando leite pra ele nesse exato momento!

Tibor só acredi tou na i r mã quando e la sa iu do cele i ro com Roncador no colo. O garoto e Rur ique pararam de tentar pegar o outro porco que cor r ia em disparada pelo s í t io e o lharam ao redor na direção de outro ronco, mais dois le i tões pequeninos apareceram do outro lado da cerca do s í t io. Gaí lde ouviu os bar ulhos e foi a té e les, os três se juntaram a e la na f rente da varandinha tér rea e f icaram obser vando quando mais um porquinho entrava por debaixo da por te i ra e se juntava a cor rer ia desenfreada. Nem um minuto se passou e, contando com Roncador, se somavam sete le i tões. Foi quando um ronco a l to e g rave se deu entre as ár vores da f loresta que começava do lado dire i to do s í t io. Os quatro v i raram suas cabeças na direção do ronco ater rador e presenciaram os se is porcos que cor r iam i rem em direção de uma enor me porca que estava na penumbra cr iada por duas ár vores. Os le i tõez inhos se aninharam ao redor das pernas da porca . A le i toa era duas vezes o tamanho de um porco nor mal ; g rande e g orda, e la o lhava para os quatro como se esperasse a lguma coisa e impaciente deu um ronco mais a l to e mais for te !

–Acho que é hora de dizer adeus ao pequeno Roncador, Sát i r ! – d isse Gaí lde colocando as mãos nos

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ombros da garota . – Saiba que e le estará mais seguro com a sua mãe de verdade!

A menina sabia o que tinha de ser feito, mas era bem difícil, uma lágrima desceu de seus olhos pesarosos, ela deu um beijo no porquinho, Tibor e Rurique acariciaram a barriga do bicho uma última vez e Sátir o colocou no chão. Roncador cor reu para a porca g ig ante que lhe recebeu com fungadas ao long o do corpo todo.

–Ele vai f icar bem, sabe disso! – d isse Tibor confor tando a i r mã que chorava.

Ela f icou olhando quando a porca deu as cos tas para e les e se foi , sumindo na escur idão da mata .

–Adeus, Roncador ! – d isse Sát i r. –A porca dos se te le i tões ! – d isse Dona Gaí lde. –O que disse, vó? – perguntou Tibor. –Aquela não é uma porca qualquer ! Nunca

ouviram fa lar da porca dos se te le i tões? – os três f izeram que não com a cabeça. – é uma lenda que as pessoas contam, sobre uma mãe que foi transfor mada em porca por um fei t ice i ro. Ela cor re pela mata em busca de seus sete f i lhos que também foram transfor mados em le i tões. Essa é uma das forças que fa le i que não é boa e nem r uim, e la apenas é ! – d isse e la com os olhos vol tados para onde a porca es tava segundos antes – Essa época, a quaresma, propic ia cer tas apar ições como essa que acabaram de presenciar ! – um s i lêncio pairou enquanto Sát i r

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enxugava a lág r ima do rosto. –Vamos entrar, cr ianças, vou fazer uma x ícara de chocolate quente pra vocês ! – d isse a avó.

Os quatro já subiam o ú l t imo deg rau da entrada da casa quando um galho no meio do mato esta lou desper tando a atenção de Sát i r. O que e la v iu a deixou espantada. Alguns meninos no meio do mato munidos de lanças af iadas entraram na mata , no mesmo lugar que a porca t inha acabado de entrar.

–Eles vão caçar a porca ! – g r i tou e la cor rendo em direção à mata .

Tibor e Rur ique foram atrás dela . –Cr ianças, vol tem aqui ! – g r i tou a avó – Está

anoi tecendo, não é seguro entrarem na mata em tempo de quaresma! – mas era tarde demais, Tibor e Rur ique g r i tavam por Sát i r que adentrava fundo na mata para sa lvar Roncador e sua famí l ia .

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Tibor e Rur ique cor reram atrás de uma Sát i r enlouquecida, de ár vore em ár vore se embrenhavam na mata mais e mais. Tibor percebeu que havia a lg o er rado quando v iu a lgumas cr ianças cor rendo em para le lo a e le e Rur ique. O garoto teve a impressão de que a porca não era o a lvo a l i .

Cor reram mais quando se deram conta de que Sát i r estava quase desaparecendo à f rente de tão rápida que cor r ia .

–Sát i r, espere ! – g r i tou Rur ique.

Encontraram-na parada e respirando pesado numa clare i ra . A luz da lua cr iava tons azulados na mata ao redor.

–Sát i r? Está tudo bem? – perguntou o i r mão preocupado.

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Tibor viu que ela olhava fixamente em uma direção e voltou seus olhos para o mesmo lugar.

Al i estava a porca e seus le i tões olhando para Sát i r, ass im f icaram por um bom tempo quando a porca começou a br i lhar, uma luz dourada encheu toda a c lare i ra e quando se apag ou, a porca e seus f i lhotes haviam sumido em questão de segundos.

–Pra onde e la foi? – perguntou Sát i r.

–Ora, não ouviram Dona Gaí lde dizer? – começou Rur ique – essa porca não é uma porca comum, e la sabe se cuidar, n inguém conseguir ia caçá-la !

Sát i r procurou por todos os lados.

–Vamos vol tar para o s í t io ! – d isse Tibor.

E começaram um caminho de vol ta , vez ou outra f icavam em dúvida quanto ao caminho que pegavam: procurar suas própr ias pegadas no escuro não era uma opção.

–Onde estão as pessoas que estavam cor rendo atrás da porca? – perguntou Rur ique. – será que foram embora? E tão rápido ass im?

–Acho que não! S into estar mos sendo obser vados aqui , acho que não era a porca o a lvo deles ! – fa lou Tibor olhando de canto toda vez que pensava ter escutado a lg o.

–O que quer d izer? – retr ucou o amig o.

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–Ei ! – g r i tou Sát i r assustando a todos e olhando para cer to ponto na f loresta .

–O que foi , maninha? Está g r i tando para quem? – perguntou Tibor.

–Eu v i um garoto a l i ! – d isse e la apontando para uma ár vore à f rente – ta lvez e le possa nos dizer como vol tar ao s í t io !

Ao chegarem à ár vore não havia s inal de garoto nenhum.

–Que estranho! – disse a garota – por que alguém agiria dessa forma?

Os três se olharam esperando que um deles pudesse responder, mas permaneceram quietos. Rurique pareceu pensar que a menina estava imaginando coisas, preferia pensar assim para não ficar com medo, mas Tibor sabia que a irmã tinha visto algo.

Ouviram passos correndo apressados pela direita, mas não enxergaram nada com aquela escuridão.

–Bom, acho melhor escolher mos um caminho e seguir por e le, tenho quase cer teza de que v iemos daquele lado! – concluiu Rur ique.

E seguiram! Sát i r fo i à f rente abr indo passagem, Tibor log o atrás e Rur ique no f im da f i la .

–Ah! Fui uma tola cor rendo atrás daquela porca , f iquei com medo que machucassem o Roncador ! – fa lou Sát i r desabafando enquanto passava por entre a lguns galhos que ev i tavam a passagem.

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–Não se culpe por i sso! – começou Tibor – acredi to que todos nós far íamos a mesma coisa !

–Na verdade f izemos e olha onde v iemos parar ! – d isse Rur ique parando e colocando as mãos na c in tura . – Ei , pessoal , tenho a leve impressão de que v iemos daquele lado a l i , acho que me lembro daquela ár vore com o casco ar ranhado!

–Pensem comig o! – começou Tibor – Se essa f loresta f ica no meio dos v i lare jos, qua lquer lado que escolher mos, se seguir mos reto, é cer to que chegaremos a a lguma v i la !

Andaram em l inha reta , o que pareceram horas e nem s inal do s í t io, começavam então a duvidar se aquela ser ia a melhor maneira de sa i r dal i , j á que não sabiam qual a extensão daquela mata . Uma r isada de cr iança era escutada ao longe, vez ou outra ; o que causava ar repios desag radáveis nos três.

–Droga! Ao menos se t ivéssemos uma lanterna! – fa lou Rur ique tentando enxergar a lg o na escur idão ao redor.

Sát i r de repente fez s inal para que f icassem quietos e apontou numa direção. Puderam ver, com o pouco de luz que a lua proporcionava, um menino tra jando roupas bem sujas e rasgadas que estava andando devagar pela mata .

–Talvez se o seguíssemos poder íamos chegar a a lgum lugar ! – sussur rou e la .

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Era a única ideia que t inham e não era má, af inal não sabiam para qual d i reção f icava o s í t io da avó e estava escuro e em tempo de quaresma, se o menino andava tranqui lo por a l i , é por que dever ia morar a l i per to ou saber como sa i r da mata . Tinham de decidir o que fazer e então fazer depressa a f im de chegar a a lgum lugar onde pudessem estar seguros.

Seguiram então o g aroto de roupas sur radas por uns quinze minutos, iam sor rate i ros para que não percebesse a sua aproximação e após v i rar atrás de uma ár vore o menino desapareceu.

–Porcar ia ! – x ing ou Tibor – para onde e le foi? Um tempo depois, o lharam ao redor procurando

pelo garoto. . . –Al i está e le ! – d isse Rur ique apontando para um

outro lado. –Aquele a l i não parece ser o mesmo garoto! –

conclu iu Tibor. –Acho que é o mesmo s im! – disse Sát i r. –

Vamos! E vol taram a seguir o g aroto. O menino usava roupas velhas, r asgadas e sujas e

sempre andava de costas para e les, ev i tando desse modo que pudessem ver o seu rosto.

Assim foi pela noite toda, seguiam o garoto que depois de um tempo sumia e aparecia em outro lugar, tornavam a segui-lo e ele desaparecia novamente. Chegaram à conclusão

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de que estavam dando voltas pela mata, pois Rurique encontrou a árvore do casco arranhado outra vez, apesar de Tibor e Sátir acharem se tratar de outra árvore!

–Não saíremos daqu i desse je i to nunca! – d isse Tibor se sentando num tronco der r ubado quando perderam o garoto de v is ta mais outra vez.

Rur ique também se sentou e d isse : –Estamos fer rados ! Perdidos no meio de a lgum

lugar dessa mata e na quaresma! –Ah, parem de se lamentar vocês doi s ! – d isse

Sát i r – confesso não saber como nos t i rar daqui , mas não estamos tão mal ass im, cer to?

–Como ass im? – perguntou Tibor. –Oras, estamos bem, apesar de perdidos, nada

nos aconteceu. . . – . . . a inda! – inter rompeu Rur ique. – Rá! “Não

estamos tão mal” – imitou Sát i r – Pirada, i sso s im! –Ei ! Qual é ! Podemos passar a noite por aqui e

amanhã, com a luz do sol , acharemos o caminho de vol ta para o s í t io !

–Simples ass im? – d isse Rur ique com cinismo. –É! – respondeu e la sentando-se ao lado do

i r mão. – a lguma sugestão melhor? Ninguém respondeu . Por a l i se a je i taram, para for rar o estômag o,

conseguiram umas bananas e umas f r utas amarel inhas, que depois descobr i ram se tratar de gabiroba. Por

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ins is tência de Rur ique, combinaram de fazer v ig í l ia noturna, um f icar i a de olho na mata enquanto os outros dois dor mir iam.

–Não acho que se ja necessár io ! – d isse Sát i r. –Ah, c laro, se está querendo ser devorada por

uma onça pintada, por mim tudo bem! – disse Rur ique. –Parem de br ig ar vocês dois, já es tamos numa

s i tuação precár ia aqui , tudo o que não precisamos é de br ig a , ok? – disse Tibor – eu faço o pr imeiro turno!

–Não! Vá dor mir, deixa que eu f ico de olho na ta l onça! – fa lou Sát i r – Se é que ex is te mesmo uma nessa f loresta !

E ass im foi . Rur ique não se ofereceu porque estava rea lmente

cansado, Sát i r f icou com o pr imeiro turno da v ig í l ia , Tibor e o amig o se acomodaram na ár vore mais próxima e pregaram os olhos.

Tibor começou a ter o pesadelo que mais odiava: a mor te dos pais. Era como se rev ivesse o acontecido de dois anos a trás no presente. Sent ia as mesmas sensações de pânico da noi te do ocor r ido; sent ia até o ca lor das chamas que levaram Hana e Leonel para longe dele e de sua i r mã e mais uma vez a parede de chamas queimou e destr u iu tudo ao redor. Tibor acordou empapado em suor f r io e v iu Sát i r ao seu lado de olhos fechados e respiração pesada. Imaginou a ra iva que Rur ique ter ia dela se a pegasse dor mindo

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dessa maneira no meio do seu turno de v ig í l ia . Já que não conseguir ia dor mir por conta do sonho e sua i r mã devia estar muito cansada, resolveu e le mesmo assumir o turno dal i .

Tibor olhava ao redor tentando t i rar a mor te dos pais da cabeça, mas era d i f íc i l , mesmo dois anos depois o luto a inda era recente e o garoto duvidava que um dia deixasse de ser. A saudade do sor r iso do seu pai e do car inho de sua mãe aper tava o seu pei to com força a ponto de se sent i r sufocado. Resolveu levantar e o lhar ao redor. As ár vores eram bem al tas e os fachos da luz da lua br ig avam com os galhos para chegar até o chão, mas poucos eram for tes o bastante para i sso; o que fazia com que a f loresta fosse um breu profundo. Se cer rasse os olhos poder ia enxergar pouco mais à f rente, mas mesmo ass im era quase imposs ível de se seguir uma tr i lha e achou rea lmente que a ideia da i r mã de parar para descansar e cont inuar no dia seguinte era a mais sensata . Se ao menos t ivesse herdado o senso de di reção de seus pais. . . Tibor se lembrou de quantas vezes seus pais e sua i r mã se enf iaram na mata e sa í ram com a faci l idade de um cão fare jador, nunca deu muita atenção ao fato e só ag ora em uma s i tuação dessas é que aprendeu a apreciar a habi l idade deles. Fog o! Tibor imaginou se sent i ram dor no momento da mor te, torceu para que a resposta para essa dúvida

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fosse “não”. Só de pensar por um instante no s im, seus olhos já sol taram lág r imas dolor idas de saudade. Essa ta lvez fosse a razão de temer tanto o fog o.

O garoto olhou para c ima, por uma brecha entre a lguns galhos de uma ár vore que o per mit iam ver apenas um pedacinho do céu e d isse baix inho para o nada:

–Pai ! Mãe! S into a fa l ta de vocês ! – deu uma pausa – quer ia que est ivessem aqui com a gente ! – enxug ou as lág r imas e vol tou para o tronco onde dor mira .

O amig o Rur ique estava babando, Sát i r respirava fundo e ambos pareciam es tar tranqui los, sem a preocupação de estarem perdidos numa mata daquelas. O garoto se sentou com as cos tas numa ár vore e aper tou os joelhos contra o pei to. Admirou o escuro, era assus tador, mas admirável : mant inha a mata numa penumbra f requente e mergulhada em s i lêncio. Parecia que nada se movia em um ra io de qui lômetros de dis tância . Tibor pensou nos garotos que seguiram Roncador e sua famí l ia e nas r i sadas de cr iança que os seguiram por todo o percurso até a l i . Desde quando cor reram atrás de Sát i r, Tibor t ivera a impressão de que o a lvo dos garotos não eram os l e i tões ; quando pensou no moleque de roupas sur radas que vez ou outra sumia e reaparecia , suspei tou de que o plano das

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cr ianças mister iosas fosse exatamente t i rá- los do s í t io e fazer com que f icassem perdidos pela mata .

Deviam estar no meio do nada ag ora , conclu iu e le ; mas para quê? Qual s e r ia o pr opó s i t o de l e s em faz e r i s so?

Foi a í que escutou um bar ulho v indo de trás de a lgumas ár vores à f rente, cer rou mais os olhos mirando uma sombra que se aproximava sor rate i ra , percebeu que era o menino de roupas rotas e sujas. Ele parou num ponto a uns oi to ou nove metros e f icou encarando Tibor por um tempo. Outros começaram a aparecer, meninos e meninas que aparentavam idades di ferentes paravam em meio às ár vores de modo a deixar sua s i lhueta com uma aparência fantasmagór ica , Tibor reparou que uma das cr ianças car regava um bebê no colo.

–O que querem conosco? – g r i tou Tibor se levantando e sua voz ecoou por todas as ár vores ao redor.

Ninguém respondeu e Rur ique e Sát i r não acordaram. Tibor percebeu que apesar do medo, não sabia o porquê, mas sent ia um pouco de pena deles ; mesmo no escuro, v ia que a lguns deles possuíam olhares tr i s tes e profundos.

–Esse era o plano, não era? – cont inuou Tibor, encarando todos e les ao mesmo tempo – nos confundir até nos deixar perdidos nessa mata? – foi a í

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que percebeu que os meninos sur rados estavam ao redor deles, fazendo uma perfe i ta c i rcunferência os mantendo cercados.

Tibor não conseguia pensar no que fazer e só os encarava tentando não demonstrar medo.

Um dos meninos o lhou para outro que com um s inal de cabeça peg ou um saco g rande e andou na direção de Rur ique.

–O que vai fazer? – g r i tou Tibor entrando na f rente do estranho que tentou desviar sem lhe dar atenção.

Tibor perguntou mais uma vez, mas o garoto avançou como se não t ivesse ninguém bar rando o seu caminho.

Então Tibor lhe deu um empur rão no pei to – Ei ! Estou fa lando com você! – d isse e le percebendo o rosto pál ido do menino encarando-o com uma expressão vazia no rosto.

O menino o empur rou de vol ta , e le ca iu no chão assustado com a força do empur rão. Pôde notar que outro menino desc ia até Sát i r com outro saco nas mãos e uma menina começava ag ora a v i r em sua própr ia d i reção. Previu que a lg o r uim i r ia acontecer.

–SÁTIR! RURIQUE! ACORDEM! – g r i tou Tibor. Os dois acordaram assus tados e v i ram os

estranhos que v inham em suas di reções, os três se debateram e lutaram com seus raptores. Tibor se

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sol tou da menina que tentava colocá- lo dentro do saco aos chutes, se muniu de um pedaço de madeira e acer tou a cabeça do que prendia sua i r mã. Os dois, Tibor e Sát i r, lutaram com o tercei ro que prendia Rur ique e desamar raram o saco t i rando o amig o de dentro. Postaram-se costas com costas no meio da roda, quando os meninos que por tavam o saco vol taram para junto dos seus.

Os três encaravam as v inte e tantas cr ianças de rostos pál idos que retr ibuíam o olhar em s i lêncio.

Tibor sussur rou para a i r mã e o amig o – Não teremos chance contra e les, temos que cor rer daqui !

–Não sei se você percebeu Tibor, mas estamos cercados ! – respondeu Rur ique no sussur ro.

–Não se mirar mos em um deles e cor rer mos em sua direção! Conseguiremos furar o cerco e a í então é cor rer sem parar ! – d isse Sát i r.

–Ok, mas qual deles, mana? – perguntou Tibor. –Vocês são loucos? – gemeu Rur ique incrédulo. –Aquele mag r icela baix inho per to da ár vore mais

g rossa à minha dire i ta ! – d isse a menina decidida. –Seremos massacrados ! – gemeu mais uma vez

Rur ique. –No três? – perguntou Tibor. –Um.. . – começou Sát i r. –Não! Esperem deve ter outra solução. . . –

Rur ique se desesperava.

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–Dois. . . –Esperem, por favor ! E se não der cer to? ! –TRÊS! – g r i tou Sát i r e os três par t i ram na

direção do menino mag relo. Sát i r e Tibor passaram pelo cerco sem problemas,

mas Rur ique bateu de f rente com o garoto. –AAH! – g r i tou Rur ique ca indo no chão a inda

dentro do cí rculo. Voltaram na mesma hora para a judar, Tibor

der r ubou dois com o por rete enquanto Sát i r levantava Rur ique. O cerco inte i ro ag ora cor r ia para c ima deles.

Os três puseram-se a cor rer como nunca na v ida . Era uma escur idão profunda, só conseguiam desviar de a lguma ár vore quando estavam prestes a bater com o nar iz nela . O som de mais de v inte pés os perseguiam por toda a mata .

Tibor, Sát i r e Rur ique tentavam não se d is tanciar um do outro.

–Posso ouvir a lg o à f rente ! – g r i tou Tibor. –Eu também! Parece bar ulho de água! – d isse

Sát i r aos ber ros. –Deve ter uma cachoeira ou um r io em algum

lugar por aqui ! – d isse Tibor. Rur ique só cor r ia quieto, Tibor podia sent i r os

joelhos do amig o tremerem ao seu lado. Os passos os cercavam rápidos pelos l ados, mas

nenhuma voz era escutada. Isso intr ig ava Tibor, sabia

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que não eram cr ianças nor mais, mas o fato de não emit i rem nenhum som as deixava mais macabras do que pareciam. – Continuem cor rendo, parece que estamos chegando! – g r i tou e le para os outros.

À frente puderam ver a lua ref let ida na água, um r iacho cor r ia rápido e bar ulhento. Os três entraram sem pensar duas vezes espir rando água para todos os lados.

–Temos de tentar a t ravessá- lo. – g r i tou Sát i r.

Mas ao andarem mais, os três ao mesmo tempo deixaram de sent i r o chão do r iacho, não imaginaram que poder ia ser fundo e começaram a ser ar rastados pela cor renteza.

–Nadem! Tentem nadar para o outro lado! – se desesperou a menina.

Tibor percebeu que as cr ianças que os seguiam estavam paradas na borda do r io e apenas obser vavam seus esforços em vão contra a força das águas.

Seguiram por uma cur va que o r io fazia à f rente e Tibor v iu que as cr ianças mister iosas f icaram para trás.

–Um galho à f rente ! – g r i tou Tibor. Os outros puderam ver que um galho g rosso se estendia de uma ár vore até a água como se fosse um braço enor me de madeira . – Agar rem-se em mim quando eu me segurar no galho!

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Dito e fe i to. Tibor prat icamente abraçou o galho e Rur ique veio em seguida e se agar rou em Tibor. Sát i r tentou, mas não conseguiu, e ao passar d i reto por e les, Rur ique a inda teve tempo de segurar a mão da amiga e puxá- la contra a cor rente.

Os três tentavam achar a lguma for ma de subir pelo galho até a margem, mas a água parecia não querer colaborar. Em uma das tentat ivas, Tibor conseguiu encontrar um bom lugar para apoiar o pé e estava quase t i rando o corpo inte i ro para fora d ’água quando o galho se quebrou e os colocou novamente à mercê da força do r io.

Os meninos se olharam sem esperança e se debat i am sem sucesso. Tibor pôde notar uma queda d’água à f rente e a única coisa que conseguiu dizer antes de chegarem ao l imite da cachoeira foi :

– Preparem-se! Uma confusão de bolhas os eng olfou e tudo se

apag ou quando Tibor Lobato bateu com a cabeça em uma pedra no fundo do r iacho.

O menino não sent iu nem ouviu mais nada!

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O sol estava a l to, mas se escondia atrás das nuvens de um dia nublado que estava com cara de que trar ia chuva log o mais. Foi o que Tibor constatou quando abr iu os olhos. Sua cabeça g i rava e, ao tentar se levantar, uma dor excr uciante tomou conta de todo o seu cérebro; pensou melhor e prefer iu cont inuar dei tado onde estava.

Como sa í da água? O que a cont e c eu com Rur ique e minha i rmã? Se rá que aque las c r ianças e s t ranhas con segu i ram nos pegar?

Isso era o que se passava na cabeça de Tibor entre uma osci lação de dor e outra . Ainda ouvia bar ulho de água. Tateou sua bar r ig a e sent iu que suas roupas estavam secas. O bar ulho do canto dos pássaros ser v iu de tr i lha sonora para o tempo que Tibor levou para reorganizar os pensamentos.

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Percebeu vozes ao redor e f icou com medo de que o pior t ivesse mesmo acontecido.

–Vejam! Ele acordou! – disse uma voz de adul to que Tibor não reconheceu, tentou v irar para olhar, mas não conseguia por conta da dor absurda que o acometia .

Um rosto barbado e r u ivo apareceu em seu campo de v isão e o assustou.

–Você está bem? – perguntou o rosto desconhecido. – o que está sent indo?

Tibor tentava for mular a lguma pergunta inte l ig ente, mas seu inst into fa lou pr imeiro:

–Onde estão Sát i r e Rur ique? –Se acalme, g aroto ! – disse o rosto com uma

r isada que pareceu a Tibor uma r isada de a l ív io. O homem virou para trás como se conversasse com alguém e disse – Ei , pessoal , e le es tá bem! Está consciente ! – e o homem se vol tou para Tibor – Eu sou João Málabu, sua i r mã e seu amig o estão bem! Eu mesmo os t i re i da água. Dona Gaí lde me mandou para que os encontrasse e os levasse em segurança de vol ta ao s í t io. Tibor f icou mais tranqui lo ao se lembrar que t inha mesmo um ta l de “João a l guma co i sa” que tomava conta de um s í t io próximo ao deles.

–O que aconteceu comig o? – perguntou Tibor. –Você bateu a cabeça com força em alg o bem

duro, uma pedra, ta lvez; e acabou desmaiando! Teve

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sor te, o cor te em sua cabeça é superf ic ia l ! F iz um curat ivo improvisado que vai a judar até vol tar mos para o s í t io. – d isse Málabu a judando o garoto a se sentar, Tibor pôde ver que Sát i r e Rur ique estavam em pé ao seu lado. – traga para mim aquela mochi la , Rur ique! – pediu Málabu.

A mochi la estava recheada de f r utas f rescas.

–Coma! Vai lhe fazer bem! – disse o homem r uivo estendendo para Tibor uma fr uta estranha e laranja .

–O que é i sso?

–Chama-se ar t icum, uma fr uta t íp ica dessas reg iões ! – d isse Málabu. – Coma!

Enf iou na boca e parecia a f r uta mais g ostosa do mundo. Tibor jog ou o caroço fora e achou que seu estômag o ag radecer ia para sempre por aquela f r uta . Comeu mais, em s i lêncio, e em ques tão de minutos devorou o pedaço que t inha em mãos por completo. Sua cabeça estava melhorando, apesar de a inda doer bastante.

–Fiquei preocupada, maninho! – disse Sát i r sentando-se ao seu lado – você f icou desacordado por mais de doze horas !

–Doze horas? – repet iu Tibor embasbacado – puxa, deve ter s ido uma pancada e tanto !

–É, e foi ! – conf i r mou olhando para o topo da cabeça do i r mão com uma cara pouco sat i sfatór ia .

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Tibor levou as mãos à cabeça e percebeu que havia a l i um pano enrolado que proteg ia o machucado.

Rur ique estava a judando João Málabu a aprontar uma fogueira . Log o à f rente um r iozinho manso descia devagar pelo seu caminho.

–Nem parece o mesmo r io, não é mesmo? – disse Tibor puxando conversa .

–É verdade, pelo que v i , pouco depois de onde ca i a cachoeira e le f ica manso, nós demos o azar de entrar nele em sua par te brava! – d isse a i r mã.

–O que aconteceu depois que eu apaguei? – perguntou e le.

–Vi sangue na água e f iquei desesperada quando percebi que você es tava mole e boiando daquele je i to. Consegui com muito custo te a lcançar e te prender às minhas costas. Me perdi de Rur ique, que foi levado pelas cor redeiras bem mais à f rente que eu. – e la deu uma pausa e o lhou para as montanhas no vale que se estendia à f rente – O dia começava a c larear e tudo parecia perdido para mim depois de horas seguindo o curso do r io. Ouvi uma voz me chamando e de uma das extremidades v i João encharcado deixando Rur ique no chão em segurança e vol tando para a água para me pegar. Foi muita sor te, eu já não t inha mais forças para nadar e já t inha eng ol ido muita água! – Ela olhou para Málabu – e le parece ser um bom suje i to, nos a l imentou e cuidou de sua cabeça. Parece que foi

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mesmo nossa avó quem o mandou! Ele d isse que deve muito a e la ! A e la e a nossa famí l ia , só não se i a inda o porquê!

Tibor notou que a superf íc ie l i sa da água começou a ser sa lp icada por a lgumas g otas de chuva. Estavam em um pedaço par t icular mente boni to da f loresta . Ag radeceram a quem quer que fosse pelo fato de poderem ver o céu novamente sem se sent i rem sufocados pelas ár vores.

–Escutem bem o plano que i remos seguir – começou Málabu – Tibor está f raco, não i rá fazer bem aos seus machucados ar r i scar uma caminhada de vol ta ao s í t io ag ora , apesar de não es tar mos tão longe ass im, daqui a duas horas o céu i rá começar a escurecer ! – d isse e le o lhando para as redondezas – Considero este um lugar seguro para passar mos a noi te, Rur ique está me a judando com a fogueira que nos manterá aquecidos. Tenho um pedaço de lona que nos manterá proteg idos da chuva que vem vindo e. . . – apontando para o r io disse – . . . temos um vasto a l iado contra a sede aqu i ao lado! Para a fome, minha mochi la está recheada de f r utas e a lguns pedaços de bolo que Dona Gaí lde mandou!

–E contra aquelas estranhas cr ianças que tentaram nos raptar? – perguntou Tibor – tem alg o nessa mochi la que possa nos defender? – o própr io Tibor achou es tar sendo um pouco ar rogante com o

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homem que sa lvara suas v idas, mas a dor era tamanha em sua cabeça que achou que Málabu i r ia entender e deixar passar.

–Quanto a isso, eu posso dar um jeito! – disse João Málabu. Foi só aí que Tibor notou o tamanho do homem e percebeu que existia uma grande probabilidade de não serem mesmo incomodados pelas crianças medonhas que tentaram raptá-los.

Mais tarde, a lua nova estava bem al ta , a chuva j á

passara e vol tara umas duas vezes. Ba ixaram a lona mais uma vez e se aproximaram da fogueira que se aguentou acesa apesar de toda a água que ca iu sobre e la . Todos já t inham se a l imentado. T ibor, apesar de a inda sent i r as dores na cabeça, já ar r i scara a lguns passos a té o r iacho para matar a sede por conta própr ia . João Málabu contou a e les que aquele r iacho nascia fora dos l imi tes dos v i lare jos e cor tava, a lém da Vi la do Meio, também a Vi la Serena, e era um dos r ios que desembocava na Lag oa Cinzenta no Vi lare jo de Braço Tur vo. Nesse momento, Tibor sol tou um r is inho baixo ao ter uma breve lembrança do dia em que pescaram com Avel ino, o pai de Rur ique; e quase tombaram seu barco.

Málabu também contou que trabalhava como casei ro do s í t io da famí l ia Bronze, que moravam na c idade e v inham uma ou duas vezes por ano passar uns

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dias na casa . O s í t io da famí l ia Bronze também f icava na Vi la do Meio e era pouco depois do s í t io do desaparecido Senhor Perei ra .

Eles lhe contaram exatamente os f atos que aconteceram com os três desde que se d is tanciaram do s í t io. Ci tando a porca , Roncador e as cr ianças estranhas e pál idas.

–João Málabu? – chamou Rur ique a l imentando o fog o com alguns galhos secos que protegeram da chuva embaixo da lona.

–Sim? –Você por acaso sabe o que eram aquelas cr ianças

e o que elas queriam com a gente? – perguntou Rurique. – Talvez eu tenha uma ideia do que se jam s im,

mas é só uma suposição! Duvido que se ja verdade! Talvez não se ja eu a pessoa adequada para contar essas coisas para vocês ! – respondeu e le sér io.

–Ou ta lvez se ja s im a pessoa cer ta ! Já que estamos no meio do nada e não temos nada mais a fazer. . . – d isse Sát i r, d i reta como sempre.

João Málabu pensou um pouco. Sua fe ição de uns quarenta e tantos anos f ranzia na testa um quê de preocupação. Seus olhos eram envol tos por olheiras fundas e sua pele era marcada por dezenas de ar ranhões c icatr izados.

–Está bem, mas não se i a h is tór ia completa e muito do que dire i d iz respei to à famí l ia de vocês

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dois ! – d isse e le num tom g rave apontando para os dois irmãos.

Tibor e Sátir se entreolharam espantados e surpresos. –Como ass im? – qui s saber Tibor. –Houve um tempo em que todas as v i las eram

uma só c idade, um. . . – . . . prefe i to maluco as d iv id iu em sete v i las sem

motivo! É, Rur ique já nos colocou a par dessa his tór ia ! – completou Tibor – Só não entendo o que i sso tem a ver comig o e com minha i r mã! – o menino começou a achar que estava adquir indo o hábi to de ser d i reto e ar rogante como a i r mã faz ia de vez em quando, pensou até se e la sofr ia de dores de cabeça, pois as dores na sua é que o estavam obr ig ando a fa lar ass im.

Málabu o f i tou de uma maneira que Tibor não soube interpretar, e o menino achou melhor não o inter romper mais daquele je i to.

O homem de barba e cabelos cur tos e r u ivos deu um suspiro profundo e cont inuou:

–Já que parecem bem sabichões a respeito da história, vou contar algo que não sabem e é isso que tem a ver com vocês! – disse Málabu. – Há muito tempo, pelas redondezas viveu uma bruxa! – Sátir se arrumou onde estava, lembrou-se das histórias de assombração que Rurique lhes contou dias atrás e como presenciaram muitas coisas realmente intrigantes desde então, resolveu não dar uma de cora josa

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como aquele d ia e se manteve bem quieta em seu lugar. – Era uma velha asquerosa , com o rosto enr ugado e olhos neg ros, a lguns diz iam que lembrava muito um jacaré por conta das r ugas que a deixava rea lmente medonha. Ela fazia muitas coisas r u ins na c idade, depois que meu. . . – Málabu parou aqui como se escutasse a lg o na mata atrás deles.

Todos f icaram em s i lêncio e atentos. –Dizem que quando fa lamos sobre assombrações,

atra ímos coisas r u ins para per to de nós ! – sussur rou Rur ique que também ouviu a lg o v indo do mesmo lugar.

Málabu o encarou e cont inuou: – Pois bem, a c idade então foi tr ansfor mada em sete v i lare jos e a br uxa não deu trégua a nenhuma das v i las !

–Que t ipo de coi sas acontecia por aqui? – perguntou Tibor.

–Plantações eram consumidas ou apodreciam misteriosamente, galinheiros e celeiros eram devastados, casas eram colocadas a baixo, fora os envenenamentos de vár ios c idadãos que adoeciam e a lgumas vezes mor r iam; e tudo se intens i f icava na época da quaresma. – Málabu deu uma parada e ar r umou a lenha da fogueira fazendo o fog o aumentar para aquecê- los, pois a noi te es tava bem fr ia . – Isso é o que o povo diz , mas pode ser tudo uma mera coincidência . Cer to dia , um g r upo de mais ou menos quarenta

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pessoas se reuniu em Diniápoles. Essas pessoas quer iam fazer just iça com as própr ias mãos. L igaram os fatos e chegaram a uma suposta conc lusão de que a ta l br uxa ta lvez morasse na Grande Floresta , que por acaso ou não, é essa f loresta em que estamos sentados ag ora ! – um ar repio subiu na espinha de Tibor e pelo je i to que Sát i r e Rur ique se mexeram, a espinha deles também devia ter recebido um balde de água f r ia . Málabu cont inuou – foi um mutirão organizado! Munidos de tochas, arpões, enxadas e machados; espingardas e p is tolas, essas quarenta e poucas pessoas par t i ram, numa das noi tes da quaresma, a caminho da suposta morada da ta l br uxa . Via jaram por a lgumas horas pela estrada velha e cheg aram à margem desta f loresta . Eles d izem que a lguns poucos des is t i ram ao cheg ar aqui , mas a g rande maior ia cont inuou, adentraram na mata em busca de um f im para as maldições que e la impunha à sociedade como um todo. – João Málabu olhou para o mesmo ponto que o bar ulho veio da outra vez, Tibor fez o mesmo, mas não v iu nada e nem ouviu nada. – Andaram por um bom tempo por essa mata e o que encontraram nela foi uma espécie de moinho, o velho moinho de um fazendeiro que fa l iu e mor reu de depressão. Como não deixou nenhum descendente, suas ter ras e seus bens f icaram sem um herdeiro e como se diz ia que a br uxa rondava por a l i , o moinho f i cou por anos

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abandonado e ass im cont inua até hoje em algum lugar aqui dentro dessa mata !

–Acharam a ta l br uxa? – quis saber Tibor. Málabu coçou a cabeça antes de cont inuar. –Não encontraram nada, o moinho rea lmente

estava abandonado, mas a lg o de r uim ocor reu! – disse Málabu.

Tibor, Sátir e Rurique estavam vidrados na história e pelo fato de estarem na mesma mata do acontecido, um medo apavorante os rondava.

–As quarenta pessoas vol taram para suas casas na mesma noi te, a inda esperando ter a tão esperada v ingança, mas ao chegarem a seus lares t iveram a maior e p ior das surpresas ! Seus f i lhos e f i lhas, adolescentes ou cr ianças, meninos ou meninas haviam sumido! Nenhum deles es tava em suas camas onde dever iam estar. – Os três entraram em choque, Sát i r levou as mãos à boca, mas Málabu cont inuou – Era o preço por mexerem com alg o tão poderoso e mal igno, não se br inca com esse t ipo de coisa e não se in terfere em seus planos se jam eles quais forem! Naquela noi te, o caos se espalhou pelos sete v i lare jos, as buscas foram incessantes pelas semanas seguintes, mas nenhum ras tro das quarenta cr ianças fo i encontrado! – Málabu os encarou por um tempo – Mas a lg o a inda estava para acontecer ! Menos de um mês depois, a lgumas pessoas di sseram ter presenciado uma br ig a

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entre dois seres na mata da Vi la Guará . Guará é o maior dos v i lare jos, d izem que um dos seres era a br uxa e o outro um ser fantást i co! Um ser desses que é considerado mito ou lenda que se conta por todos os lugares de gerações para gerações !

–Que ser era esse? – quis saber Tibor.

–Não sei ao cer to o seu nome, mas se i que era um suje i to bas tante cora joso para enfrentar a ta l br uxa, sozinho! – disse João se a j e i tando no tronco onde estava sentado, e os três concordaram com a cabeça – Os re latos dessa br ig a não são muito c l aros pra mim, ouvi a h is tór ia de diversas maneiras e uma versão bem diferente da outra . A única coisa que se i é que esse ser fez just iça pelo povoado dos v i lare jos. Não pôde trazer seus f i lhos de vol ta , o que foi muito tr i s te, mas depois dessa br ig a que se deu na f loresta da Vi la Guará , a br uxa desapareceu e nunca mai s foi v is ta !

–Quanto tempo faz i sso? – perguntou Sát i r.

–Exatos doze anos ! – respondeu Málabu .

–E quanto às cr ianças, por acaso acha que ex is te a poss ib i l idade de serem essas que. . . – começou Rur ique.

–Exatamente! As pessoas as chamam de trasgos! Trasgos são espíritos de crianças perdidas, provavelmente... Ouçam bem! Não dig o que o que presenciaram foram trasg os, mas há uma g rande poss ib i l idade de serem os espír i tos

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das quarenta cr ianças que foram levadas embora pela br uxa e nunca foram encontradas !

Os três se olharam incrédulos desejando muito estar no s í t io o mais rápido poss ível .

–Se são fantasmas, como puderam nos tocar? Chegamos a lutar com alguns deles ! – perguntou Sát i r.

–Não sei ! – respondeu Málabu – já escutei boatos de fantasmas que se mater ia l izavam para cumprir cer tos fe i tos entre os v ivos, mas não cre io que se j a este o caso!

–Há pouco tempo, v imos uma velha. . . – Tibor parou e olhou da i r mã para o amig o como se pedisse per missão para quebrar o juramento de não comentar sobre assunto que i r ia abordar. Como não se pronunciaram, e le resolveu cont inuar – . . . uma velha nos seguiu na estrada velha, e la nos. . . – Tibor tentava encontrar a palavra adequada - . . . fare java!

–Li tera lmente! – completou Sát i r. –Querem saber se há a poss ib i l idade de essa velha

que os seguiu ser a br uxa desaparecida há doze anos? – os três f izeram que s im com a cabeça – Não acredi to que se ja , pois e la rea lmente não deu as caras desde então! Por tanto, cre io que se ja só uma velha louca que andava por lá na mesma hora que vocês ! – concluiu Málabu.

–Sabemos que os pés dela eram enor mes! – disse Rur ique. – v imos suas pegadas no dia seguinte !

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Málabu o olhou rápido como se Rur ique t ivesse di to a lg o rea lmente intr ig ante, mas log o depois d isfarçou. Tibor e Sát i r notaram que João Málabu escondera a lguma coisa .

–Bom, já cheg a cr ianças, é bom tentarem dor mir ! – d isse o r u ivo mudando de assunto. – pelo que vejo a cabeça do senhor Lobato aqui já es tá bem curada a ponto de amanhã ter mos uma long a caminhada a seguir !

Os três acharam realmente di f íc i l pensar em dor mir depois de uma histór ia daquelas, mas se ar r umaram depressa . Ninguém quer ia contrar iar aquele br utamonte.

Málabu foi a té a beira do r io para encher sua caneca de água. A lua brilhava na superfície br uxuleante do r iacho que seguia à f rente até se perder de v is ta no vale mais próximo.

–Percebeu que e le sabe a lg o sobre aquela velha? – sussur rou Tibor para a i r mã.

–Claro que percebi , mas ta lvez não se ja a br uxa! – sussur rou a menina de vol ta .

–Por que acha i sso? – quis saber Tibor.

–Ora, se e la era tão poderosa , não acha que ter ia entrado na casa e nos peg o lá dentro? A não ser que quer ia apenas nos assustar ! – d isse e la .

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–Ou sabia do per ig o que es távamos cor rendo na casa com aquele g or ro maluco! – sussur rou Rur ique entrando na conversa .

–Sendo a br uxa ou não! Escondendo a lg o ou não! Ainda fa l ta uma coi sa que e le não nos contou! – disse Tibor.

–E o que é? – perguntou Rur ique.

Tibor andou na direção do r io, a inda quer ia t i ra r uma infor mação de João Málabu.

–Málabu? – chamou ele. Rur ique e Sát i r se colocaram ao lado do menino.

–Sim? – perguntou o r uivo g randalhão após dar uma g olada na água gelada da caneca.

–O que essa his tór i a toda tem a ver comig o, com a minha i r mã e com a nossa famí l ia?

Sát i r deu um sobressa l to. Tinha esquecido disso, f icara tão temerosa com o lugar em que estavam e com os fatos ter r íveis de estarem na noi te anter ior sendo caçados por fantasmas de cr ianças desaparecidas, que acabou se esquecendo do que Málabu dissera . Que a his tór ia ter ia uma l i g ação direta com eles.

Então Málabu encarou os dois e fa lou:

– O ser que enfrentou a br uxa e a fez desaparecer há doze anos, fazendo just iça e trazendo a paz a todos os moradores dos v i lare jos até os d ias de hoje, é o pai de Dona Gaí lde, o b isavô de vocês !

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Tibor estava quase ador mecendo embaixo da

lona. Enquanto não pegava no sono, se lembrava que, segundo Málabu, seu bisavô era um ser fantást ico. Seu bisavô era lembrado em lendas e mi tos que eram contados há vár ias g erações. “Quem era e l e?” “Já e s cu tara a l g o sobr e o b i sa vô?” “Onde s e e s c ond ia?” “Como f ez pa ra sumi r com a bruxa?” “Se rá que t inha pod er e s?” “Se s im, s e rá que ex i s t ia a r emota po s s ib i l i dade de sua avó t e r herdado a l gum de l e s?” “Ou e l e mesmo ou t a l v ez sua i rmã?”.

O garoto se perd ia em perguntas sobre sua famí l ia até seu lado inconsciente tomar conta de sua razão e mergulhá- lo de vez em um sono tranqui lo e profundo. Pouco antes de ador mecer desejou sonhar com seu bisavô, quer ia mesmo saber quem era .

Não sabia d izer se t inha dor mido há um bom

tempo ou se ador mecera naquele instante, mas no

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momento, a lguém o acordara com bastante v iolência , pensou que se fosse sua i r mã ser ia muita g rosser ia acordar a lguém ass im; se fosse Rur ique ou Málabu, estar iam forçando a amizade.

–Ei , minha cabeça! Cuidado com minha cabeça! – d isse Tibor a inda sonolento enquanto mãos rápidas o chacoalhavam frenet icamente. – o que es tá fazendo?

Abr iu um olho e enxerg ou um pouco embaçado e o que v iu não lhe ag radou muito, na verdade quando seu cérebro processou o que estava acontecendo entrou em pânico e começou a g r i tar :

–AHHHH! Sát i r, socor ro! Ei Rur ique! Eles estão aqui ! Estão me levando! ACORDEM!

Tibor se deu conta de que fora preso dentro de um saco e estava sendo car regado nas costas de a lguém como se fosse um saco de bata tas.

Podia ouvir bar ulho de lu ta do lado de fora , mas não dis t inguia nenhum som, a não ser o bar ulho do r io se d is tanciando. Sua adrenal ina subiu t i rando de vez qualquer resquíc io de sonolência de seu corpo. Sua cabeça recomeçava a latejar. “Estou s endo s eque s t rado po r uma daque la s c r i anças” pensava e le. “Onde e s tão me l e vando?” ; “Ah, Não i r e i tão fá c i l a s s im, dar e i um pouquinho de t raba lho !” .

Dito e fe i to ! Tibor Lobato começou a se sacudir e chutar as costas do seu raptor pelo l ado de dentro do saco. Parecia que quem quer que fosse que o est ivesse

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car regando, não i r ia parar por nada. Após uns quinze chutes, o saco fora sol to com ferocidade no chão machucando as costas de Tibor.

Pancadas v ieram de todos os l ados de fora do saco, o menino mal teve tempo de proteger seu rosto. Fora fer ido nas costas, nas pernas, nos braços e na cabeça, o que o i r r i tou bastante.

Sent ia mui ta dor pelo corpo todo e quando o saco fora reerguido de novo, Tibor começou um choro baix inho e decidiu f icar quieto dentro do saco seguindo as reg ras de seus ag ressores.

Aval iava os danos em seu corpo e parecia ter quebrado a perna dire i ta , a dor que v inha dela era for te demais. Estava tremendo de medo. Sabia que a coisa que estava do lado de fora não quer ia br incadeiras.

Depois de muito caminhar a esmo, o saco fora colocado no chão.

Tibor ouvia bar ulho de vár ios pés ao redor, apurou os ouvidos e pôde ouvir os g r i tos de outro garoto ao longe:

–O que estão fazendo? Parem! Deixem-me i r ! – a voz do garoto demonstrava pânico.

“O que e s tá a cont e c endo lá f o ra?” pensava e le desesperado.

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Abriram o saco e ass im que colocou a cabeça para fora , Tibor pôde ass imi lar muitas coi sas ao mesmo tempo.

Estava f inalmente sob a custódia das cr ianças mister iosas que poss ivelmente eram fantasmas de cr ianças mor tas há doze anos. Estava numa enor me clare i ra no meio do mato e as mais de quarenta cr ianças estavam espalhadas por toda a extensão ao redor. Pôde notar uma casa enor me, toda suja e quebrada com uma espécie de roldana g ig ante que ant ig amente se u t i l izava de água para mover mós que moíam o que fosse. Tinha cer teza que aquela casa era o ta l moinho abandonado que Málabu d issera , mas não havia água para a ro ldana por a l i há mui to tempo.

Tibor era ar rastado por um menino e uma menina, sua perna devia mesmo estar quebrada, pois estava com dif iculdades em se apoiar nela .

O garoto passou pela menina que car regava um bebê no colo e e la o encarava com a mesma expressão vazia e pál ida que todos ex ibiam estampadas no ros to.

Tibor fora amar rado a um tronco e notou que ao seu lado t inha um garoto mais a l to e mais for te que e le. O menino t inha sangue escor rendo do nar iz e estava v ivendo a mesma s i tuação.

–Ei ! O que está acontecendo aqui? – perguntou Tibor.

O garoto parecia em choque e respondeu:

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–Não sei ! Eu não f i z nada! Por favor, a lguém! –Garoto! Se acalma a í ! – Tibor pensou no

absurdo que pediu ao menino, já que e le mesmo não conseguia parar de tremer – Me dig a o que está acontecendo!

O garoto olhou para Tibor com os olhos ar regalados e d isse babando loucamente:

–Esse é o sacr i f íc io para a Cuca, a br uxa que desapareceu!

Tibor gelou ao ouvi r aquele nome: “Cuca” . Olhou ao redor e percebeu que as cr ianças estavam se posic ionando em círculo.

–O r i tual está começando – cont inuou o garoto – dizem que todo ano e la ex ige ao menos um sacr i f íc io em seu nome e aquele que foi sacr i f icado vag a para sempre em meio aos trasg os da f loresta !

–Ok, espera um pouco a í ! Está me dizendo que i sso aqui é um r i tual de sacr i f íc io? Que e les i rão nos. . .

Antes de ter minar a f rase, Tibor notou que as cr ianças começaram a g i rar em seus lugares e pela pr imeira vez pôde ouvir sons das bocas delas. Sol tavam um mur múrio de palavras que e le não entendia . Pouco depois de começarem a mur murar, pôde sent i r uma presença nas redondezas da c l are i ra em meio às ár vores. Tibor sent iu uma maldade emanada da cr iatura que a l i estava e pensou que ta lvez aquele fosse seu executor ou ta lvez a própr ia br uxa.

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–Eu não quero acabar ass im! – mur murava o garoto que chorava com um ar de insanidade.

Tibor achou que as coisas ruins estavam acontecendo rápido demais e, a f im de dar um je i to nisso, tentou forçar a corda que prendia seus braços, mas os nós que o aper tavam eram muito for tes.

“Fora tudo em vão ! Não ad iantou fug i r em e br i gar em com o s ta i s f anta smas nas no i t e s ant e r i o r e s . Nem mesmo o brutamont e Málabu não pôde faz er nada !” .

Tibor quer ia ao menos saber como es tavam sua i r mã e seu amig o. Se pudesse fazer um úl t imo desejo, g ostar ia de estar em seu quar to dei tado na cama, de banho tomado só esperando o sono chegar.

Mas sua s i tuação era bem tensa no momento. Nada podia fazer a não ser esperar por aquele r i tua l id iota . Imaginou como todas aquelas cr ianças pareciam babacas ao g i rarem daquele je i to, quanto mais g i ravam, mais o ser mal igno que rondava sor rate i ro se fazia presente.

Implorava em pensamentos para que parassem com aqui lo, não quer ia saber o que rondava a mata , já t ivera muitas surpresas. O garoto pensou em como aqui lo i r ia ter minar : se fosse de maneira dolorosa , que fosse logo. A espera era uma coisa horrível e inter minável . Lembrou novamente dos pais. “Será que o s en t imento que t i v e ram, ant e as chamas que o s l e va ram, f o i o mesmo s ent ido por T ibor ago ra?” .

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Não quer ia saber ! O que quer que fosse acontecer estar ia pronto para enfrentar ; ou pelo menos ass im g ostar ia de acredi ta r, af inal só t inha treze anos e sua v ida dever ia ser longa naquele s í t io, para compensar tudo de r u im que v ivera depois da mor te dos pais f icando naquele orfanato nojento.

Duas cr ianças sa í ram da roda e v ieram em sua direção com alg o nas mãos. Tibor não conseguiu saber o que car regavam, pois o objeto estava enrolado em um pano sujo de l imo.

Confor me as duas cr ianças com cara de zumbi chegavam mais per to, o pei to de Tibor arfava mais rápido e mais for te, suas pernas começaram a amolecer e sua tremedeira passou a ser incontrolável . Tentou por vár ias vezes se l ivrar da corda, mas era inút i l .

–Isso é covardia ! – g r i tou e le – estão em maior número e a inda ass im nos mantêm amar rados aqui dessa for ma! – a roda de cr ianças cont inuava a g i rar e mur murar. As duas cr ianças ag ora chegavam até Tibor e o outro pr is ioneiro.

Retiraram os panos sujos do objeto que car regavam e Tibor pôde notar duas taças pra teadas, uma com cada cr iança, a taça por tava um l íquido neg ro e pegajoso.

–Não vou beber i s so! – d isse Tibor quando o menino fantasma que es tava à sua f rente segurou com força o seu queixo com os dedos f r ios.

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Não conseguia mover nem as pernas e nem os braços, o melhor que pôde fazer foi cuspir no menino.

O garoto zumbi recebeu uma cusparada no olho e nem piscou.

–Isso é imposs ível ! – mur murou Tibor antes de receber um soco em seu estômag o. Tibor enverg ou o corpo o máximo que pôde com a dor que veio com a pancada, o lhou para o lado e ao ver o outro menino sendo sucumbido à vontade da cr iança macabra , g r i tou: – Ei ! Não beba i sso! Não se entregue! – mas parecia ser tarde demais, o menino ao l ado não mostrava res is tência a lguma e bebia ag ora o úl t imo g ole da taça prateada.

Após beber, abaixou a cabeça e começou a tremer v iolentamente. Tibor podia ouvir os dentes do menino rangerem de onde estava.

Outra vez o ag ressor segurou o queixo de Tibor que pensava consig o mesmo:

“Acabou! É agora ! Adeus a t odo s, Maninha , vó , Rur ique, mãe e pa i . . .

. . .Aqui s e dá o f im de T ibor Lobato !” Pôde sent i r o g osto amarg o do l íquido neg ro

encostando-se em sua l íngua. Um som de luta t i rou Tibor de seu transe causado

pelo pânico e a l imentou suas esperanças novamente. O menino que segurava a taça olhou para trás e v iu o

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mesmo que Tibor : uma porca, duas vezes maior que um porco adul to, ve io “toureando” as cr ianças da roda como se fossem pinos de bol iche. Málabu aparecia de outro lado da c lare i ra com Rur ique ao seu lado e par t iam log o para a br ig a .

Tibor mordeu a borda da taça , t i rou da mão do menino zumbi e antes de tomar o menor dos g oles, a jog ou para o lado der ramando o l íquido pegajoso no chão. Pela pr imeira vez Tibor pôde notar a lgum t ipo de expressão na cara do menino pál ido e f icou fe l iz quando percebeu que sua expressão era de desespero.

O menino fantasma mirou outro soco no estômag o de Tibor que nunca cheg ou ao seu dest ino, pois uma Sát i r insana voava pra c ima dele.

Tibor não sent iu mais a presença r u im que rondava por a l i e quando o r i tua l fo i inter rompido de vez, a br ig a comeu sol ta por toda a c lare i ra .

Mesmo com a a juda da porca e todos os outros, a inda s im es tavam em desvantagem.

Sát i r desamar rou o i r mão e o menino ao lado que ag ora estava desacordado. Rur ique e Málabu cor reram até e les enquanto a porca lhes dava cober tura . Málabu colocou o menino desmaiado nas costas e Rur ique apoiou Tibor em seu ombro.

–Vamos embora daqui d i reto para o s í t io da avó de vocês ! – d isse Málabu.

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E cor reram. Tibor olhou para trás e parecia imposs ível escapar dessa vez. O rosto das cr ianças demonstrava ra iva e indignação. Tibor sabia que até para um fantasma aqui lo já era demais. Pedaços de pau e pedras v inham na direção de Tibor e seus amig os. Por todo o tempo, cor r iam aprovei tando a vantagem que a porca deu ao se colocar no caminho dos trasg os.

Pena que e la não os segurou por muito tempo! A le i toa começou a br i lhar, uma luz dourada emanou de seu corpo todo, o que fez com que os trasg os tapassem os olhos, dessa maneira Tibor e os outros g anharam um pouco mais de tempo; e ass im como a porca veio, e la se fo i !

–Obrigado! – sussur rou Tibor direcionando seus pensamentos para a mãe de Roncador.

Embrenharam-se na mata o mais rápido que puderam, pois es tavam em condições precár ias marcadas pelo cansaço de todos e a perna machucada de Tibor.

A porca lhes conseguiu uma boa vantagem ao cegar os meninos temporar iamente; vantagem essa que os trasg os recuperavam cada vez mais.

Uma pedra do tamanho de uma mão fechada at ing iu o ombro de Sát i r com força , mas e la não parou de cor rer.

Tibor via as silhuetas se aproximando e preenchendo cada espaço vag o por entre as ár vores, parecia mesmo

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imposs ível escapar, mas como t inham se safado de tudo a té a l i e apesar dos pesares estavam todos prat icamente inte i ros, Tibor a inda t inha fé que sa i r iam com vida dal i .

Cor reram desenfreados por mais de meia hora , até que Málabu g r i tou:

–Por aqui !

E notaram uma tr i lha que começava a l i no meio da mata . Seguiram por e la por mais um bom tempo e começaram a subir um mor ro. Tibor achou aquele mor ro fami l iar e constatou que rea lmente era quando Sát i r d isse :

–Ei , a l i na f rente foi onde nos despedimos da porca dos se te l e i tões pela pr imeira vez !

E era mesmo, onde e la br i lhou e se foi pela pr imeira vez e de onde par t i ram para a sua perdição na f loresta .

Subiam mais e mais, sem parar, pois os passos das cr ianças fantasmas não deixavam de se fazer presentes na cola deles. Chegaram a uma par te plana e cor reram em l inha reta , podiam ver a cerca do s í t io se aproximando.

Os trasg os ag ora es tavam mais per to. Outra pedra foi at i rada e a t ing iu a cabeça de Rur ique em cheio.

Tibor e o amig o foram ao chão no segundo seguinte.

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–Não, Rur ique! Não desmaie ag ora , vamos, levante-se ! – g r i tava Tibor balançando o corpo do amig o.

–Desmaiar ag ora? – disse Rur ique levantando a cabeça com um f i lete de sangue descendo pela latera l do seu ros to. – nem pensar ! – e se pôs de pé novamente dando supor te a Tibor.

Passaram pela cerca de madeira e cor reram na direção da casa rúst ica e imponente da avó. Os corações de todos se a leg raram em al ív io ao ver a casa . Os trasg os já pulavam a cerca em seu encalço e invadiam o s í t io todo.

–Vó! – g r i tavam os netos antes mesmo de chegar per to da varandinha tér rea . – abra a por ta , vó!

Subiram depressa a escada da varandinha, quando Sát i r colocou a mão na maçaneta a sent iu g i rar antes dela mesmo o fazer e a por ta se abr iu revelando uma Dona Gaí lde pál ida .

–Entrem rápido, cr ianças ! – d isse e la com a voz num tom apressado.

Todos passaram cor rendo para o hal l .

–Málabu! – cumprimentou Gaí lde.

–Senhora! – d isse e le em resposta cur vando de leve a cabeça.

Gaí lde bateu a por ta a trás de João Málabu e fechou o tr inco.

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Estavam todos em choque e o pavor aumentou quando um BUM na por ta foi escutado. Os trasg os já estavam al i e i r iam invadir a casa se nenhuma providência fosse tomada.

–Rur ique e Málabu! – chamou Gaí lde autor i tár ia – Coloquem Tibor e o garoto desacordado no sofá da sa la e fechem todas as janelas e por tas da casa ! Sát i r ! – d isse e la se v i rando para a menina que segurava o braço machucado – busque em meu quar to uma maleta de pr imeiros socor ros embaixo da minha cama!

Os três obedeceram e Gaí lde seguiu para a sa l a se cer t i f icando se as janelas es tavam trancadas.

Todos se encontram na sa la de vol ta em um minuto.As luzes da casa se apagaram com um estrondo e Rur ique já acendia a lanterna que peg ou enquanto fechava as janelas do quar to de Tibor.

Sob a f raca luz da lanterna, todos f icaram em s i lêncio apenas ouvindo os pés apressados que cor r iam ao redor da casa . Eram mais de quarenta cr ianças medonhas do lado de fora querendo entrar. Tibor segurava a perna com força no lugar em que parecia ter quebrado e se last imava por estar em ta l s i tuação, quer ia se munir de a lg o para proteger a casa , caso a lgum deles a invadisse.

Bat idas nas por tas e janelas eram escutadas por todos os lados.

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–Será que machucarão a Mimosa e as g a l inhas? – perguntou Sát i r.

–Não, e les querem outra coisa ! – d isse a avó com ar mister ioso. – Algum plano foi colocado em prát ica e i sso era o que eu temia !

–Do que es tá fa lando, vó? – perguntou Tibor ao lado do garoto desacordado.

Espantaram-se ao ouvir uma janela ser quebrada na cozinha. Parecia que es tavam conseguindo entrar. Nem um segundo depois a por ta dos fundos pareceu ser ar rombada.

–Não tenho tempo para expl icar i sso ag ora ! – d isse Gaí lde para T ibor, levando as mãos ao pingente verde que car regava no pescoço. – Se ag r upem na sa la e mantenham-se unidos aconteça o que acontecer !

Tibor pensou que ser ia o f im, as cr ianças i r iam invadir e atacá- los a l i mesmo, e pelo que pôde perceber, e les não t inham dó nem piedade, o far iam sem pes tanejar.

Sát i r pegara um abajur e o segurava em posição de ataque, Málabu cer rava os punhos esperando quem quer que fosse e Rur ique i luminava cada canto da sa la no aguardo para denunciar o pr imeiro in tr uso.

Gaí lde se d i r ig iu ao hal l e se pos ic ionou em frente à por ta . Ergueu uma das mãos aber ta e fechou os olhos, a outra mão segurava com força o pingente.

–O que vai fazer, vó? ! – g r i tou Sát i r.

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–Expulsar esses int r usos do nosso s í t io ! – g r i tou a avó.

Sát i r fez menção de i r até e la . –Não sa ia daí ! F ique junto de seu i r mão! – disse-

lhe a avó. Uma cor rente de ar começou a passar por toda a

extensão da casa . Uma luz verde se acendeu do lado de fora , todos vol taram suas cabeças para ver o que era e presenciaram a lg o in imaginável .

Labaredas se mater i a l izaram a par t i r do nada na f rente da casa e tomaram a for ma de uma enor me serpente fe i ta de fog o.

–Essa não! O que é i sso ag ora? – ber rou Rur ique. Até Málabu pareceu estar apavorado com a

apar ição. A cobra devia ter de dez a doze metros de

comprimento e suas presas eram brancas como marf im. A cobra se manteve enrolada em seu própr io corpo com a cabeçor ra de pé. Em chamas, encarou a todos por um tempo.

Abr iu a boca em ameaça para os trasg os e um segundo depois deu o bote se transfor mando num fogaréu que torneou a casa toda afastando as cr ianças zumbis para longe. De dentro da casa , v ia-se fog o de todas as j anelas ao mesmo tempo i luminando as paredes e os móvei s de verde. Tibor pôde ver vár ios trasg os em fuga.

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Pulavam as cercas de madeira em direção à mata . Pensou que far ia o mesmo se es t ivesse no lugar deles, mor r ia de medo de fog o e estava di f íc i l não g r i tar de pânico sent indo o ca lor das labaredas que cor r iam por toda a extensão da casa . Log o depois, o fog o se ext inguiu no ar, já não havia cobra nenhuma e o s i lêncio se ins ta lou na sa la .

Tibor, t remendo assustado, chamou: –Vó!? Gaí lde se apoiava com uma das mãos t rêmulas na

parede do hal l , Sát i r cor reu até e la em auxí l io e a segurou no momento em que a avó desabava desacordada.

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Sát i r percebeu que a avó respirava devagar e sua fe ição indicava que não estava nada bem. Colocou a mão na testa dela e notou que estava gelada.

–Socor ro! – g r i tou a menina – o que eu faço?

Málabu dei tou Gaí lde no sofá em frente à lare i ra – Ela precisa de descanso, está esg otada , só i sso! Não há com o que se preocupar ! Pelo menos não em relação à sua avó! – e se d i r ig iu à janela para ver como estavam as coisas l á fora .

Sát i r começou a chorar em s i lêncio, o que cor tou o coração do i r mão, odiava ver a i r mã desolada. Rur ique também estava af l i to ; a inda com medo de uma poss ível invasão e daquela estranha apar ição que queimara tudo lá fora .

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Ficaram em s i lêncio no breu da sa la , não se atreveram a sa i r do lado da avó, como se a inda seguissem sua úl t ima ordem.

O sol começava a p intar, com cores v ivas, toda a extensão do s í t io e os objetos dentro da sa la .

Tibor, Sát i r e Rur ique, apesar de exaustos, não conseguiam pregar os olhos.

Málabu f izera cura t ivos na perna de Tibor e ref izera o cura t ivo em sua cabeça, cuidara também do machucado à pedrada da cabeça de Rur ique e do braço de Sát i r ; quanto ao menino desmaiado, o que Málabu pôde fazer foi uma compressa na testa do garoto, mas parecia ser inút i l .

O corpo de Tibor estava todo dolor ido, sent i a que a próxima vez que se despisse para tomar banho, ver ia um corpo i r reconhecível de tantos hematomas. Sent ia ra iva dos ta i s trasg os, se pudesse, l iquidava-os um por um.

Tinham violado um lugar que era como o para íso para e le, seu lugar sag rado, o único lugar em que era fe l iz , desde os tempos do orfanato. P ior que i sso, atentaram contra a v ida de sua avó, com cer teza não os perdoar ia por essa .

Gaí lde sol tara um gemido e todos na sa la

vol taram a atenção para e la . –Todos estão bem? – Dona Gaí lde perguntou.

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A pergunta soou i rônica , já que eram eles que dever iam fazê- la .

Gaí lde se sentou e d isse :

–Málabu! Obr igada por guiar e trazer meus netos e Rur ique em segurança pela mata ! – Málabu fez um aceno de cabeça, depois Gaí lde se vol tou para os três – Sei que têm mi lhões de dúvidas ! Então vamos por par tes ! Cheg ou a hora de saberem algumas coisas, mas, antes, preciso saber o que aconteceu com vocês e com esse g aroto – e apontou para o menino desacordado.

Tibor lhe contou todos os fatos, desde quando sa í ram do s í t io tentando sa lvar Roncador ; contou como a porca br i lhou e sumiu; comentou sobre a br ig a que tiveram com os trasgos quando foram encur ra lados ; fa lou também de seu rapto e do r i tua l de sacr i f íc io, quando comentou sobre a taça prateada a avó perguntou:

–O que t inha na taça? Como era o l íquido cont ido nela?

–Neg ro, pegajoso e. . . amarg o! – disse Tibor rapidamente.

–Veneno! – sussur rou e la – Elas es tão juntas novamente, é p ior do que imaginei !

–Veneno? Elas o f izeram tomar a taça inte i ra ! – d isse e le assustado. – e le f icará bem? Quem está junto novamente?

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Gaí lde peg ou da maleta de pr imeiros socor ros, um frasco que cont inha um l iquido transparente, abr iu a boca do menino e despejou o conteúdo dentro.

–Ainda há chance de e le desper tar, mas receio que i sso levará a lguns dias, ou semanas ! Teremos que tomar conta dele a té acordar, depois descobr i remos quem é, onde mora e a í o levaremos para sua casa ! – Se v i rou para João Málabu e d isse – deve estar cansado, se quiser i r para casa eu assumo daqui ! – o homem r uivo olhou desconf iado pela janela – Não tema! Lá fora está seguro ag ora !

–Gostar ia de pedir uma coisa se não for um incômodo – disse Málabu com um respei to absurdo para com Gaí lde – Sei que não é uma hora opor tuna, mas tenho menos de duas semanas. . . a senhora sabe que. . .

–Seu r eméd io es tá na segunda por ta à d i re i ta do ar már io branco da cozinha! – disse e la . Boa sor te nos próximos dias, se precisar de a juda, não ouse deixar de me procurar ! Você nunca será um incômodo para mim! – e ter minou com um sor r is inho no rosto.

Málabu se despediu de todos, peg ou a lguma coisa na cozinha que ninguém pôde ver que t ipo de remédio era e se foi .

Gaí lde se sentou na cadeira de balanço, cr uzou os dedos em cima das pernas e começou – Vamos aos fatos ! Dire i coisas a vocês que podem parecer

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absurdas, mas como já puderam perceber, em época de quaresma, por essas ter ras, os absurdos são muito rea is ! – os três estavam atôni tos. – Gostar iam de perguntar a lg o antes de eu começar?

E os g arotos então se ag i taram. –O que era aquela cobra de fog o? Os trasg os vão

vol tar? – perguntou Rur ique. –Por que disse que ag ora está seguro lá fora?

Quem é a br uxa desaparecida? O que é essa pedra que a senhora tem no pescoço?– perguntou Sát i r.

Gaí lde esperou a té que os dois fa lassem e percebeu que Tibor estava em s i lênc io. –Tibor? – chamou ela – não tem nenhuma pergunta para me fazer?

–Tenho! –Pois então? – disse Gaílde levantando as sobrancelhas. Tibor se ar r umou no sofá e a je i tou a perna de

for ma que as dores não lhe incomodassem. –Quem era meu bisavô? – perguntou e le sér io. Por um breve instante a sa la per maneceu em

s i lêncio. –Bom, acho que a conversa vai durar mais tempo

do que pensei ! – d isse Gaí lde pondo-se de pé – acho melhor i rem se lavar pr imeiro enquanto preparo um lanche pra vocês, a f inal passaram dias na mata sem banho e sem comida de verdade! Devem es tar se sent indo um caco!

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–Não! – disse Tibor – Desculpe, vó, mas precisamos saber pr imeiro! – deu uma pausa. – Eu preciso saber ! – Rur ique fez uma careta , parecia que prefer ia a comida e o banho antes das infor mações, mas ninguém percebeu.

Gaí lde encarou o neto com uma profundidade no olhar como se v isse a lguém que a mui to não v ia .

–Você me lembra seu pai de vez em quando! – disse e la baix inho, deu um suspiro e vol tou a se sentar na cadeira de balanço. – Muito bem, infor mações pr imeiro! – apontou para Rur ique – Se os trasg os vão vol tar? Não, pelo menos por enquanto, devem estar tremendo no canto mais longínquo da Grande Floresta , apesar de serem espír i tos, seus medos a inda são meramente infant is, por tanto, por hora , estamos seguros ! Aquela cobra de fog o? Para poder fa lar dela , tenho que contar sobre essa pedra – olhou para Sát i r e apontou para o seu pingente verde – mas para contar sobre a pedra , tenho que fa lar do bisavô de vocês, o meu pai ! – e o lhou para Tibor. – Daí , cheg o ao desaparecimento da br uxa!

Os passar inhos diurnos começaram a piar lá fora . E o galo já cantarolava a l to, o seu desper tador matut ino.

Os três estavam de orelha em pé, estavam prontos para ouvir e acei tar, o que quer que fosse. Ser ia imposs ível que as infor mações que Gaí lde estava para

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revelar fossem mais absurdas do que as coisas presenciadas a té a l i .

–O meu pai era um protetor da natureza, sempre foi ! E meu f i lho, Leonel Lobato, a l ém puxar o avô, se casou com uma mulher que t inha as mesmas caracter ís t icas que as suas. Meu pai v i rou uma lenda bem antes de eu nascer, seus fe i tos são contados até hoje em diversos lugares ao long o do país inte i ro ! A maior ia o conhece como. . . Cur upira ! – nessa hora Tibor, Sát i r e Rur ique f icaram de queixos ca ídos e de olhos ar regalados.

–O Cur upira é rea l? – perguntou Tibor.

–Sim, e e l e é o seu bisavô! Se e l e t inha os pés para trás como contam? S im! Esse foi um defei to de nascença que acabou v irando sua maior ar ma contra os caçadores, os der r ubadores de ár vores e destr uidores de f lorestas. Ele os fazi a se perder na mata e deixava tr i lhas que levavam ao meio da se lva de onde ser ia d i f íc i l sa i r, suas pegadas eram ao contrár io, quando as seguiam pensando ser uma tr i lha , os malfe i tores iam direto para o coração da se lva e lá aprendiam a l ição. Mas não era só ass im que e le defendia as matas, enf im, não é esse o caso aqui !

Tibor olhava para o chão perdido em questões.

–Onde e le es tá ag ora? – perguntou e le.

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–Infel izmente e le está mor to! Caiu numa ar madi lha pregada por um de seus maiores amig os e acabou sendo assass inado por um g r upo de caçadores !

Tibor e Sátir ficaram pensativos. Tentavam imaginar como ele era. Pelas h is tór ias d iz ia-se que o Cur upira era r u ivo, o que já expl icava o cabelo da avó e de Leonel , o pai deles, mas os cabelos de Tibor e Sát i r puxaram os castanhos c laros de Hana.

–O Cur upira t inha um al iado na luta para proteger a natureza , um espír i to da f loresta chamado Boitatá ! – Tibor encarou a avó com a atenção a mi l – Boi tatá vem das l ínguas indígenas e s ignif ica cobra de fog o, nada mais é que um espír i to da f loresta que mantém o equi l íbr io entre os seres da mata . É um ser fantást ico daqueles que não é nem bom e nem mau, e le s implesmente é !

–Aquela cobra que apareceu lá fora e expulsou os trag os daqui era o Boi tatá? – quis saber Rur ique pasmo.

Gaí lde assent iu deixando o menino mais pasmo ainda e emendou – Eu o invoquei aqui , precisávamos de a juda e era a única coisa que eu t inha a fazer, precisava apelar !

–E apelou mesmo! – disse Rur ique.

–Você o conjurou com a pedra , cer to? – quis saber Sát i r.

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–Conjurei , não! Eu o chamei ! Boi tatá é um espír i to muito poderoso, n inguém pode ou consegue controlá- lo ! Você o chama, mas e le vem por vontade própr ia , e se naquele momento e le reso lvesse não v ir, estar íamos fr i tos ! – d isse Gaí lde.

–Tem razão! – concordou Sát i r.

–Mas, s im, foi com a a juda dessa pedra ! – t i rou o pingente do pescoço e passou para que v issem.

A pedra era verde e t inha o for mato de uma rã ou um sapo, era pequena, leve e f r ia .

–Ele se chama Muiraqui tã ! – fa lou Gaí lde – é um amuleto indígena esculpido em jade, que era presenteado às pessoas a f im de trazer proteção e sor te ! O Boita tá me reconhece por conta desse Muiraqui tã ! Sem ele, o Boi tatá não sabe quem eu sou e tenho cer teza que se eu est ivesse sem ele quando os trag os atacaram, eu poder ia tê- lo chamado, g r i tado o seu nome; e e le muito provavelmente não v ir ia em meu socor ro! Meu pai me presenteou com essa pedra , po is e la tem uma l ig ação com o Boitatá , e le me deu o amuleto pouco antes de mor rer para que eu pudesse me proteger, já que sou a única da f amí l ia sem poder a lgum!

–Como ass im? – perguntou Tibor devolvendo o amuleto à vó.

–Sou a caçula de três i r mãs ! As duas mais velhas são filhas de outro pai, mas da mesma mãe!

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Tibor ligava os fatos devagar, era muita infor mação de uma vez só! Cheg ou à conclusão de que t inha duas t ias-avós.

–Enquanto crescíamos. . . – cont inuou ela . – . . . eu era o a lvo de suas exper iências, me usavam como teste para seus poderes que estavam af lorando! Meu pai sempre me t i rava das g ar ras delas, mas com o tempo, se tornaram bem poderosas. Uma delas é a br uxa que sumiu, seu nome é Cuca! – Gaí lde deu uma pausa deixando que os três ass imi lassem os fatos na cabeça.

Tibor lembrou de já ter escutado o nome. O garoto desacordado no sofá t inha di to enquanto es tava amarrado sob o moinho, que estavam sendo sacr i f icados em nome da Cuca, o que quer ia d izer que quase fora mor to em nome da sua própr ia t ia-avó.

–Então Cuca era o nome da br uxa desaparecida – disse Rur ique l ig ando as coisas – quer d izer que o bisavô de vocês foi quem sumiu com a br uxa?

–Exatamente. Ele não aguentou quando ela fez quarenta cr ianças desaparecerem de suas casas ! Travaram uma lu ta v io lenta ! O Cur upira já es tava bem fraco, os anos já o a lcançavam mesmo sendo um ser fantást ico e e le não conseguiu acabar com ela ! No entanto, usou seus poderes para cr iar uma espécie de pr isão para a Cuca , há doze anos ! Ele i solou uma par te do v i lare jo Guará e cercou esta par te com os seus poderes ! Ninguém entrar ia ou sa i r ia de lá ! Pelo

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menos era o que e le pensava! A pr isão a inda ex is te, nós a chamamos de Oitavo Vi lare jo, mas já não é a Cuca quem está encarcerada por lá !

–Como ass im não é e la quem es tá lá? Ela por acaso fug iu? – Sát i r quis saber.

–Fugiu há dois anos e a inda não se i como! Ela é tra içoeira , seus métodos e planos sempre acabam em doença ou mor te ! Por conta dessa fuga, t ive de inter romper as buscas por vocês ! Por causa dela , vocês f icaram por dois long os e árduos anos no orfanato! Tive de aprender os poderes cont idos no Muiraqui tã e buscar a br uxa desaparecida , que mesmo depois de fug ir de sua pr isão ass im se manteve. Mas parece que ag ora e la colocou a lgum plano mal igno em prát ica e o cuidado que teremos de tomar daqui pra f rente deve ser dobrado!

O s i lêncio tomou conta por breves quinze minutos.

–Ouvi você dizer que e las es tavam juntas de novo quando soube do l íquido que os trasg os o f izeram tomar ! – fa lou Tibor apontando para o garoto desacordado.

–Me refer i à outra i r mã! Também é um ter ror, mas não tanto quanto a Cuca! Não sei onde se esconde, não a vejo há muito tempo! Com cer teza a Cuca deve tê- la procurado para tramar sua v ingança contra mim, af inal , a maior d iversão de las sempre foi

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me ver sofrer ! – Gaí lde disse i sso mudando suas fe ições como se l embrasse de tempos ter r íveis. – Temia que i sso ocor resse justamente quando v iessem para o s í t io ! Ela sabe que se f izer a lg o contra vocês, estare i vulnerável , por i sso resolv i aprender os poderes da pedra e os quis sob minha proteção ao invés de deixá- los à mercê das traças em um orfanato qualquer ! – encarou-os e cont inuou – Vocês são meus netos e são bisnetos do Cur upira ! O lugar de vocês é per to da natureza!

Tibor não sabia como, mas não deixar ia n inguém encostar um dedo em sua avó e nem em sua i r mã. Soube que Gaí lde t inha razão quanto ao lugar deles, sempre g ostou da natureza e se sent i a bem demais acampando com os pais.

–Bom, já contei tudo o que se i ! Pelo menos eu acho que contei ! – d isse e la se levantando. – Já passa da hora de se lavarem, eu mesma não estou aguentando o cheiro de vocês ! Ajudem-me a acomodar o garoto no quar to de Tibor. – Rur ique e Sát i r pegaram o garoto e começaram a levá- lo escada a c ima.

Tibor f icou no sofá esperando que Rur ique vol tasse para a judá- lo a subir, por conta da perna machucada, e o lhava pensat ivo pela janela .

–Sanei todas as suas dúvidas, Tibor? – perguntou a avó ass im que os outros deixaram a sa la .

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Ele assent iu .

–Então o que foi que o deixou pensat ivo?

Ele pensou antes de dizer :

–Só nós três sobramos de nossa famí l ia ! Quero dizer, somos os ú l t imos! Gostar ia de ter conhecido meu bisavô! – o menino diz i a enquanto suas mãos tremiam – Essa br uxa velha quase me levou em sacr i f íc io hoje ! Ela está ameaçando tudo o que eu amo e aprecio ! Gostar ia de encontrá- la ag ora ! Ia fazê- la pagar ! – fa lou e le com os punhos cer rados e os olhos ver melhos e marejados.

–Cuidado, Tibor ! – adver t iu a avó o f i tando – Essas são palavras muito for tes para um garoto de apenas treze anos ! Isso pode levá- lo a um caminho er rôneo e sem vol ta , ta l qual o que minhas duas i r mãs tomaram. – e l a parou e es tudou seu compor tamento – É preciso saber dosar sua ra iva ! Quanto à Cuca, não deseje encontrá- la nem em um mi lhão de anos ! Não sabe o g rau de maldade que minha i r mã at ing iu ! Se houvesse a lg o mais f r io que o gelo, d i r ia que era esse o sent imento dela para com os seres ao seu redor ! – parou para escolher as palavras e cont inuou – Quero apenas que f ique longe de problemas e que quando esses problemas v ierem atrás de você, fu ja o mais rápido que puder !

–Está me pedindo para ser um covarde?

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Gaí lde se assustou com a pergunta e respondeu de antemão.

–Se for para ser um covarde v ivo, s im! Estou lhe pedindo para ser um covarde! De nada me vale um neto herói mor to!

–Meu bisavô é um herói mor to! – disse e l e r i spidamente.

Gaí lde pensou um pouco e se sent iu mag oada com as palavras dele, mas deu cer ta razão para o neto. Era muita coisa para ass imi lar ao mesmo tempo e achou que era muito cedo para conci l iar tudo. Estava ner voso por estar confuso.

–Só dig o isso para o seu bem, Tibor ! Quero ver vocês longe dos per ig os por que os amo! E os amo demais ! Se acha que será um covarde se fug ir então lhe darei outro conse lho! Um conselho melhor ! Um conselho que meu pai me deu: Siga s empr e o s eu co ra ção ! A razão é impo r tant e , mas o co ração é a f ont e de tudo ! S i ga -o e vo c ê e s ta rá andando no caminho c e r t o, s e j a qua l f o r a sua de c i são ! Acr ed i t e n i s so !

Os dois se olharam por um tempo, Tibor sent iu vontade de abraçá- l a , não quer ia ter mag oado a avó e sabia que o t inha fe i to, mas não sabia por que! Sua cabeça não conseguia pensar em pedir desculpas a inda. Mi l perguntas e mi l poss íveis respostas g i ravam à sua f rente e era d i f íc i l se concentrar em alg o com as dores na sua cabeça e na perna, mas Gaí lde não o

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press ionou e nem o culpou por nada, o que o deixou mais a l iv iado.

Rur ique veio descendo as escadas.

–Ag ora é você, amigão! – disse e le sor r indo – bisneto do Cur upira , hein ! Que demais !

–Se aprontem rápido que levarei uns lanches quentes pra vocês já , j á ! – fa lou Gaí lde dando uma úl t ima olhada s ignif icat iva no neto com um sor r is inho que o tranqui l izou. Se dir ig iu à cozinha enquanto os meninos começaram a subir as escadas.

Mais tarde, de banho tomado e de pi jamas, os três estavam sentados no chão do quar to de Tibor, que refazia o cura t ivo de sua perna . O menino desacordado fora co locado em um colchão no chão ao lado da janela , Sát i r o cobr iu com um cober tor, caso sent isse f r io.

–O que acharam do que Gaí lde contou? – perguntou Tibor.

–Achei demais ! – d isse Rur ique. – bisnetos do Cur upira , por acaso sabem o que é i sso? Hehe! Puxa cara , sua vó tem aquela pedra que é uma espécie de t e l e f one d i re to para o Boi tatá ! Uhuu!

Parecia que Rur ique era o único desavisado, naquele quar to, do per ig o que cor r iam, pensou Tibor. Ou ta lvez não! Talvez Rur ique é quem estava cer to !

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Achara uma for ma de ignorar o medo que sent ia e se apegar às coisas boas vendando os própr ios olhos para as coisas r u ins a f im de aprovei ta r ao máximo o tempo que se t inha nas mãos.

Sát i r estava sér ia e pensat iva , apenas f i tou o i r mão.

Tibor retr ibuiu sabendo que e la e e le não par t i lhavam da v i r tude do amig o!

Sabia que os dois encaravam os fatos de f rente, da maneira como são, e ta lvez deixassem de cur t i r as coisas da maneira como dever iam! A v ida que levaram até a l i os expôs a s i tuações g randes demais para se supor tar e log o cedo t iveram de se apegar um ao outro para juntos aprenderem a superar esses momentos.

Tibor olhou fundo nos olhos da i r mã e depois nos de Rur ique, ao achar neles a cumpl ic idade que precisava, d isse :

–Acho que temos uma jornada pela f rente ! Acho que mais cedo ou mais tarde vamos nos deparar com essa br uxa velha! E quando est iver mos f rente a f rente, temos de estar preparados para enfrentá- la com o melhor que temos!

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Não foi tão di f íc i l dor mir naquela noi te. Só o

fato de estar de vol ta em sua cama depois de ter dor mido à luz da lua e se perdido na mata j á era reconfor tante.

O fato de saber que acordar ia pela manhã e tomar ia o café maravi lhoso da avó era melhor a inda. Então dor miu um sono sem sonhos, como uma pedra .

Tibor abr iu os olhos e olhou para a janela . O sol

já estava a l to, devia ter dor mido mais que o nor mal . Lembrou-se das tarefas do dia e tentou se levantar. Surpreendeu-se com a dor na perna e na cabeça, por um momento t inha esquecido dos acontecimentos recentes.

Per maneceu sentado na cama e passeou seus olhos pelo quar to. Nem Rur ique, que sempre acordava

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bem cedo, t inha acordado a inda. Muito pelo contrár io, estava roncando num colchão no chão e babava no travessei ro que Tibor lhe emprestara . O garoto resolveu marcar um lembrete na cabeça: não poder i a esquecer de pedir à avó para lavar bem aquela f ronha com bafo de baba de Rur ique.

Do outro lado do quar to, embaixo da janela , o outro garoto a inda mantinha-se na mesma posição em que fora dei tado na noi te anter ior. “Ainda bem que não t inha t omado o l íqu ido da ta ça p ra t eada ou dormir ia tan to quanto e l e ! ” , pensou.

Consta tou não saber qual era o dia em que estavam. Olhou para o cr iado mudo ao seu lado. Uma bandeja com três copos sujos e res tos de lanche estavam al i desde a noi te anter ior, eram os restos do lanche que a avó f izera pra e les antes de dor mir.

Tibor recapi tu lou o f im da noi te passada e não se lembrou do momento em que sua i r mã se despediu e foi para o própr io quar to, provavelmente e l e t inha s ido o pr imeiro a dor mir.

Mudou de posição na cama, t i rou o edredom azul que o cobr ia e se dei tou de for ma que o sol que entrava pela janela pegasse bem em seu rosto.

Pensou nas coisas que sua avó contara na sa la depois da expulsão dos maldi tos trasg os.

Era bisneto do Cur upira ! Estava orgulhoso por saber d isso, seu bisavô era lendár io e estava

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estampado em vár ios l ivros pelo país todo. Não ex is t i a ta lvez uma pessoa que não conhecesse o seu nome, com exceção de Málabu, ou o casei ro da famí l ia Bronze não quisera estragar a surpresa .

Sua mente vag ou por mais um tempo. Que t ipo d e r eméd io que sua avó f o r ne c i a Málabu pr e c i sa va? Não par e c eu do ent e enquanto e s t a va na mata , a não s e r pe l o s ar ranhõe s que t inha no r o s t o t odo ! Que t ipo de do ença causa r ia ar ranhõ es no r o s t o? Tibor não sab ia da ex i s t ênc ia de nenhuma!

Marcou mais um lembrete em seu cérebro: ass im que poss ível , vasculhar ia o ar már io branco da cozinha em busca de pí lu las ou l íquidos es t ranhos que se parecessem com remédios para br utamonte!

Fechou os olhos e rev iu a cobra de fog o se mater ia l i zar do lado de fora da casa , pôde rever suas presas branco-marf im se mostrarem em ameaça para os meninos-fantasmas. “Minha avó t em um amul e t o que pode invo car o Bo i ta tá” , pensou e le.

–O que mais eu quero da v ida? – disse e le em voz baixa com um sor r iso no rosto.

Imaginou a avó com uma roupa c láss ica de super-herói de quadr inhos, roupa colada com um t ipo de cueca por c ima da ca lça , andando pela mata com um desenho de uma rã , no for mato da pedra verde, estampada no pei to. Deu mais r i sadas enquanto se espreguiçava preguiçosamente.

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Pensou nas t ias-avós e a ra iva já lhe subia a cabeça. Por que e s sa t a l Cuca f ez o que f ez? O que a l e vou a s e r tão r u im? Quem e ra a out ra t ia -avó? S erá que ta l v ez f o s s e a v e lha far e j adora de p é s g rande s?

“Junta s d e novo !” A avó disse.

Quer d iz er que j á a tua ram j untas ant e s ! Será que t i v e ram a l go a v e r com a mo r t e d e s eu b i sa vô? Quem era e s s e amigo que f ez o Curupi ra ca i r em uma a rmadi lha? Tibor g ostar ia de conhecê- lo também! Quem quer que fosse, era um tra idor de mão cheia e dever ia pagar pelo que fez!

F icou em s i lêncio por um tempo, só escutando os sons dos pássaros do lado de fora . Nenhum bar ulho v inha da cozinha, a avó Gaí lde também parecia es tar dor mindo, também, pudera , a avó havia t ido uma noi te exaust iva .

Tibor tentou se levantar novamente. A dor em sua perna a inda pers is t ia , mas estava bem menos dolor ida que na no i te anter ior. Talvez não est ivesse com a perna quebrada, o que ser ia bom. Evi tar ia f icar engessado. Não aguenta r ia f i car d ent r o d e casa enquanto as sombraçõ e s d i v e r sas pas s eavam t ranqui l as s e d i v e r t i ndo soz inhas ao r edo r do s i t i o ! , pensou.

O menino conseguiu f icar de pé e andar vagarosamente num mancar compassado até a por ta . Foi ass im até o quar to da i r mã.

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A menina es tava acordada e enrolada em seu edredom cor-de-rosa , abraçada ao travessei ro.

–Tibor, o que faz de pé a essa hora? – perguntou e la . – Achei que só eu estava acordada.

–Pensei o mesmo e v im aqui pra atazanar minha i r mã mais chata ! – d isse o menino.

A i r mã sor r iu e sentou-se na cama deixando espaço para que Tibor se acomodasse.

–Como es tá essa per na? – quis saber Sát i r. –Melhorando! Minha cabeça dói mais ! E seu

braço? –Vou sobreviver ! Hehe! E Rur ique, babando

como um quiabo a inda? Tibor assent iu r i sonho. –E aquele menino, a inda não acordou? –Não! Continua na mesma posição que vocês o

deixaram ontem! –Puxa, que estranho! O veneno que tomou devia

ser bem for te ! – d isse Sát i r. Olharam-se por um tempo. –Bisnetos do Cur upira ! – d isse e la . – Até parece

menti ra , né? –É! Aposto que se t ivéssemos os pés para trás,

ser ia mais fác i l de acredi tar, não acha? ! –Com cer teza ! – E caí ram na gargalhada . Dona Gaí lde entrou no quar to.

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–Ah! Meus netos es tão acordados ! – e d is tr ibuiu bei jos de boa tarde, af inal , descobr i ram que já se passava do meio-dia . – Fiquem tranqui los quanto às tarefas do dia ! Eu já cuidei de todas e las por vocês. Acabei de vol tar do gal inheiro e os f i lhotes daquela g a l inha pintadinha nasceram hoje cedo!

–Que leg al ! – d isse Sát i r – Vou escovar os dentes e descer para vê- los ! – e sa iu do quar to para o banheiro mais próximo.

Tibor f icou a sós com a avó, exatamente como na noi te passada, e achou que lhe devia uma coisa .

–Vó! – começou ele. – Quer ia lhe pedir desculpas por ontem, fu i meio g rossei ro !

–Não me impor to! Eu sei que não fez por mal ! Ontem todos nós estávamos sob stress e levado, era nor mal que uma d iscussão ou palavras atravessadas aparecessem para trazer cer ta d iscórdia ! – A avó acar ic iou os cabelos do menino. – Mas meu conselho a inda vale : “Siga s empr e o s eu co ra ção, c omo e s tá faz endo ago ra !” – enfat izou e la .

Mais tarde, estavam reunidos na mesa da cozinha,

Rur ique es tava com a cara inchada de sono. Na janela em frente à p ia uma rachadura se fazia presente. A mesa es tava far ta , como sempre! O suco de laranja e o bolo de banana eram os mais d isputados pelos três. Empantur raram-se e foram lá pra fora . Gaí lde colocou

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sua cadeira de balanço na varandinha e enquanto tr icotava, era uma for ma de v ig iar os g arotos que estavam dei tados na g rama à f rente.

Tibor mancava bastante por conta da perna, mas Rur ique e Sát i r já es tavam bem melhores.

–Quanto tempo vai f icar com essa moleza f ing ida a í? – perguntou Rur ique ao amig o. – Aposto que está mancando apenas pra fug ir de mais um “round” de lut inha de espadas ! Sabe que você perde sempre e es tá cansado de apanhar de mim! Não é i sso?

–Rá! Espere mais uns dias e verá se o que está d izendo confere com a rea l idade! – e completou. – Se eu fosse você, tre inar ia a maior par te do meu tempo!

Cheg ou então o dia 20 de março, vez ou outra ,

Gaí lde der ramava o l íquido de um frasco na boca do menino desacordado. Apesar de e le a inda não se mexer, a avó diz i a que e le apresentava melhoras s ignif icat ivas. Tibor nem se lembrava, mas era o seu aniversár io. O pisc iano teve uma surpresa quando a avó e a i r mã lhe trouxeram um bolo de chocolate na cama. Rur ique acordou assustado com a invasão no quar to ao som de “parabéns pra você!” .

Tibor fez um pedido antes de soprar as velas do bolo, desejou que o s í t io fosse sempre ass im, que não mudasse em nada! Daquele je i to tudo era perfe i to ! E que se a lg o de r u im est ivesse para acontecer, que

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t ivesse forças para proteger o lugar da melhor maneira poss ível !

Soprou as velas e todos lambuzaram até o nar iz de cober tura de chocolate, menos o menino desacordado.

Sát i r a inda se deu o trabalho de cor tar um pedaço de bolo e deixar do lado do menino caso e le acordasse, mas o menino parecia uma estátua no colchão.

Quem traçou o bo lo no dia seguinte foram as for migas.

No dia 22 Tibor já andava nor malmente, a dor

a inda ex is t ia , mas nada que o impedisse de andar e cor rer por a í . A pr imeira coisa que fez depois das tarefas no gal inhei ro e no cele i ro foi perder no combate de espadas para Rur ique.

–Andou tre inando como eu o aconselhe i , não foi? – a l f inetou Tibor.

–Não! Não necess i to de tre ino para vencer você! Já é meu freguês ! – d isse Rur ique guardando a espada e estendendo a mão para levantar o amig o do chão.

–A sua sor te é que minha perna a inda não está cem por cento boa, ou ver ia só!

–Acho que sua cabeça é que não es tá tota lmente curada, ou não ter ia coragem de fa lar ass im com quem o subjuga sempre!

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Sát i r os obser vava da escadinha da varanda e g argalhava com o show de “elog ios” que faziam um ao outro.

Nesse mesmo dia , Tibor sent iu um peso em seus ombros. Parecia que precisava dor mir, mesmo tendo acabado de acordar de uma noi te long a de sono, pois a inda não estava nem próximo da hora do a lmoço. O cansaço dominou o seu corpo de ta l maneira que teve de se entregar.

Foi para o quar to e desmontou em sua cama. Tibor começou a sonhar com coisas estranhas,

teve vár ios sonhos em um só, como se t ivesse uma gaveta cheia de sonhos atrasados e empi lhados que foram despejados em sua mente de uma só vez!

O pr imeiro sonho fora a lg o bem maluco. Sonhou que entrava numa casa de a lguém conhecido, só não sabia quem! Na casa t inha uma festa rolando e v iu vár ias pessoas sentadas numa mesa cheia de comida. Pôde reconhecer na ta l festa , um menino chamado Marcinho. Esse fora o ter ror de Tibor por todo o tempo que f icou no orfanato, Marcinho era o l íder de uma ganguezinha organizada e sempre causava encrencas com Tibor. Na festa , percebeu que a g angue de Marcinho também estava presente, e mais estranho que i sso é que vár ios animais es tavam sol tos em meio aos convidados e se ser v iam nas bandejas espalhadas pela casa como se também f izessem par te da festa .

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Num canto da casa havia uma espécie de a l ta r com vár ias p lantas colocadas ao redor como enfei tes ou oferenda; ou ta lvez fossem presentes para o dono da festa . Nesse a l tar havia uma onça pintada dei tada tranqui la , obser vando tudo e balançando o rabo.

Tibor estremeceu quando Marcinho veio lhe cumprimentar d izendo:

–Cuidado com a onça, Lobat inho! – e com uma gargalhada es tranha e d is torcida o menino se afastou e sumiu por entre os convidados.

Uma música esqui s i ta e abafada tocava, mas ninguém parecia notar que o som estava uma porcar ia . Tibor percebeu que as pessoas andavam em câmera lenta e que a onça p intada o encarava com o olhar f ixo e assass ino que só um fel ino daquele tamanho consegue ter. Quando ela fez menção de se levantar do a l tar, Tibor se enf iou no banheiro da casa . Trancou a por ta e se olhou no espelho. Não conseguiu ver a própr ia imagem ref let ida , pois o espelho estava todo sujo e ar ranhado, o que lhe causou cer to pânico.

Abr iu a por ta do banheiro devagar e um pavão passava na sua f rente ev i tando que v isse o a l tar. O rabo azul do bicho sa iu do seu campo de v isão e Tibor pôde ver o a l tar vazio, a onça não estava mais lá . Um medo instantâneo lhe ar rematou! Viu em meio às pessoas o fe l ino com a pele p intada que v inha sor rate i ra em sua di reção. Entrou de vol ta no banheiro

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e trancou a por ta novamente. Tibor olhou para c ima e v iu uma janela no a l to que es tava aber ta , parecia muito com a janela da casa do desaparecido fazendeiro Perei ra . Passou pela janel inha e ca iu do lado de fora .

Ao se colocar de pé, percebeu estar em outro sonho.

Nesse segundo sonho, Tibor estava num lugar estranho, como se fosse um estacionamento na c idade g rande. Estava de noi te e nenhum car ro estava a l i . Ouviu uns mur múrios esquis i tos e v iu sua i r mã e seu amig o Rur ique amar rados de costas um para o outro, no centro do estacionamento. Meninos de roupas sujas e rasgadas, que pareciam aqueles que os perseguiram na mata , pulavam o muro do estacionamento e v inham na direção da i r mã e do amig o. Tibor achou um pedaço de pau no chão e começou a afastá- los, desesperado, temendo que machucassem os dois.

Eram muitos e de uma só vez! Mais deles pulavam o muro e se juntavam à br ig a . Tibor afastava um enquanto mais três se aproximavam.

–Não faremos par te do r i tual de vocês ! – d iz ia e le. – Está me ouvindo, sua br uxa velha, é preciso muito mais para me pegar ! – e ao dizer i sso, mais uns trinta meninos derrubaram o portão do estacionamento se juntando ao ag lomerado. Tibor não dar ia conta , sabia que não!

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–Não sou um covarde! Não posso fug ir ! – cont inuou batendo a esmo e de olhos fechados.

Abr iu os olhos e estava em outro lugar. Neste tercei ro sonho, andava por uma calçada

a inda na c idade. Subia uma ladeira , percebeu que a lguém vinha ao seu lado, mas não podia ver a pessoa. Tentou v irar a cabeça, mas não conseguiu ter o controle do própr io pescoço.

Tibor achou estranho e quando tentou parar de andar, também não conseguiu . Parecia que a única coisa que respondia ao seu comando eram os seus olhos. Era como se a lguém controlasse o seu corpo. Sent ia a presença de a lguém ao seu lado e quer ia saber quem era , parecia muito impor tante que soubesse. Um car ro, que Tibor reconheceu de cara , estava à f rente. Era o car ro de Raul , o homem do big ode v ivo, que os levara a té o s í t io há quase dois meses. O car ro-car roça estava es tacionado com duas rodas em c ima da ca lçada e estava estraçalhado e em chamas.

Um homem estava debr uçado sobre o capô aber to do car ro como se tentasse ver i f icar os danos, mas não era Raul . Até Tibor sabia que naquele estado o car ro não ter ia conser to.

Tibor foi se aproximando, sem querer se aproximar, pois sent ia que o caminho cor reto não era aquele que seu corpo seguia . Ao passar pelo car ro em chamas, o homem o v iu e o encarou dizendo:

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–Ei , g aroto, aonde pensa que vai? – Tibor tentou dizer que suas pernas não respondiam, mas constatou que sua boca também não! F icou mudo e cont inuou a andar, a única coisa que movimentava eram seus olhos que dançavam loucos nas órbi tas.

O homem desconhecido apareceu em sua f rente novamente, ber rando:

–Ei , seu maluco! Estou fa lando com você! – e deu um empur rão em Tibor que ca iu no chão devagar como se o tempo f icasse lento.

Quando caiu , não sent iu que o chão era de c imento e s im de g rama. Levantou-se percebendo que entrava ag ora em um quar to sonho.

Estava no meio de uma clare i ra a inda de noi te e ouviu uma voz que não conhecia d izendo:

–Controle sua fúr ia e o seu medo! – e repet ia sem parar – Controle sua fúr ia e seu medo! Controle sua fúr ia e seu medo!

Tibor olhava ao redor e não v ia nada, só sent ia que a lg o estava para acontecer.

–Controle sua fúr ia e seu medo! – cont inuava a voz.

Um clarão esverdeado se fez e a f loresta in te i ra se encheu de chamas. O calor fora in tenso e Tibor abaixou-se de medo.

Ouviu um g r i to de mulher seguido de outro g r i to de homem, reconheceu os dois.

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–Mãe! Pai ! – g r i tou e le o lhando para os lados, mas o fog o consumia tudo ao redor. – Onde estão vocês?

–Controle sua fúr ia e seu medo! – diz ia a voz sobrepondo-se ao som ensurdecedor do fog o. – Controle sua fúr ia e seu medo! – a voz foi aumentando de volume, Tibor se a joelhou no chão e levou as mãos ao ouvido, sent ia que seus t ímpanos i r iam estourar. . .

–Contr o l e sua fúr ia e s eu medo ! Cont r o l e sua fúr ia e s eu medo ! . . . sua fú r ia e s eu medo !

–CALE A BOCA!! ! – g r i tou Tibor se sentando na cama.

Gaí lde, Sát i r e Rur ique estavam de pé em seu quar to e o encaravam assustados.

Dois minutos se passaram até Tibor se dar conta de que já não sonhava mais. Sua pele ardia em febre e e le sent iu enjoo. Uma contração for te se deu em seu estômag o e e l e vomitou do l ado de sua cama antes de sent i r a cabeça g i rar.

Gaí lde sentou-se ao lado do neto e lhe ser v iu um chá quente.

–Beba! Irá lhe fazer bem! –Vó! - d iz ia e le tremendo – Eu t ive uns sonhos

malucos e. . . –Shh! – fez e la para que o menino parasse de

fa lar e tomasse o chá. – Eu sei , Tibor, eu se i !

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Tibor não entendia a que e la se refer ia , pois o sonho só se passara em sua cabeça.

Depois de tomar o chá, Tibor contou a todos e les cada um dos sonhos que teve. O da onça na fes ta ; o sonho da br ig a no estacionamento; o que aparecia o car ro de Raul , que não conseguia dominar o própr io corpo; por f im o do fog o na f loresta .

–Ouvi a voz dos meus pais em meio às chamas, fo i hor r ível ! – d isse e le.

Sát i r e Rur ique o olhavam, abismados. –Tibor, fo i só um pesadelo ! – d isse a i r mã

tentando confor tá- lo. –É, eu se i ! – d isse o menino. –Não cre io que tenha s ido só um pesadelo, Tibor !

– começou Gaí lde e ass im prendeu a atenção de todos na mesma hora . – Imaginei que i sso fosse acontecer cedo ou tarde, só não sabia que ser ia tão log o!

–O que quer d izer? – quis saber Tibor ev i tando olhar para seu vômito no chão.

–Parece que a lguém não perdeu tempo, não é? – começou ela . – Foi esperar sua perna f icar boa e já o colocou frente aos testes de apt idão!

–Testes de apt idão? – repet iu Sát i r. –Vocês tocaram no Muiraqui tã . . . e la deve ter

reconhecido o parentesco de vocês com o ant ig o dono. Os sonhos que e la causou em Tibor fazem par te do seu teste. Ela quer testar os seus medos e deixá- lo

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for te o bastante para um dia ser d igno de recebê- la ! – Sát i r f i tou o i r mão e Gaí lde olhou para e la . – Sua vez vai chegar também Sát i r, mais cedo ou mais tarde!

–Credo! Não quero ser perseguida por uma onça em uma fes ta ! – d isse a menina.

Gaí lde deu uma r isada e d isse : –Tibor, você vai f icar bem! Isso foi um teste, eu

também t ive de passar por i sso e lhe dig o: passei muito mal o dia todo! Parece que a pedra não peg ou muito pesado com você!

–Está br incando, né? Ela sor r iu mais uma vez e d isse : – Tire l ições do

que e la lhe diz , aprenda com o que e l a está tentando te passar ! Apesar de os sonhos parecerem não fazer muito sent ido à pr imeira anál i se, a Muiraqui tã coloca cer tos s ignif icados em suas a lusões da rea l idade!

Tibor tentou esquecer tudo o que parecia não fazer sent ido e se lembrou da es tranha voz que repet ia :

–Contr o l e sua fú r ia e s eu medo ! Um gemido foi escutado de um canto do quar to

bem embaixo da j anela de Tibor. Era o menino, que não estava mais desacordado.

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O menino se apresentou como Miguel Torquado,

d isse que podiam lhe chamar de Tork, era como seus amig os o chamavam.

–O que mais pode nos dizer sobre você? – perguntou Sát i r.

Estavam no quar to de Tibor. Gaí lde l impou o vômito do chão, mas o cheiro a inda causava náuseas no garoto. Rur ique entrou no quar to com um copo com água e açúcar nas mãos.

–Aqui está ! – e entreg ou o copo ao ta l Miguel . O menino tomou tudo como se saboreasse a lg o

pela pr imeira vez, o que Tibor achou estranho por se tratar de água com açúcar.

–Moro na Vi la Guará , t rabalho tomando conta de um senhor chamado Icas, o velho não tem uma perna, coi tado! – Miguel o lhou o quar to todo – Quanto tempo est ive desacordado?

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–Quase uma semana ! – respondeu Gaí lde. –Droga! Preciso me apressar, o velho não sabe se

cuidar sozinho, está muito debi l i tado! –Você também não está em condições de v ia jar

até a Vi la Guará ! – d isse e la – Estamos na Vi la do Meio! Pref i ro que f ique em obser vação por aqui mais uns dias. Você foi envenenado e ta lvez não este ja tota lmente curado!

Miguel o lhou-a pensat ivo, como se ponderasse a decisão dela .

–Não quero ser um incômodo aqui ! Pref i ro i r andando. . . – começou ele.

–Me conte o que aconteceu! – pediu e la . Ele pensou um pouco, como se tentasse se

lembrar de a lg o que se passou há muito tempo. –Eu estava dor mindo na minha casa , meus pai s

não es tavam; então e les v ieram numa noi te e me levaram!

Tibor pôde imaginar as cr ianças fantasmas invadindo uma casa e colocando o menino dentro de um saco.

–Acordei per to do moinho e aquelas cr ianças dançavam ao meu redor ! – Ele es tremeceu. – Foi hor r ível ! Fui amar rado em algum lugar. . . – Tibor pôde ver as marcas que as cordas aper tadas deixaram no pulso do menino, o lhou para o própr io pulso e notou marcas iguais a l i t ambém. – Elas d iz iam coisas que

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não faziam sent ido. Suspei te i que es t ivesse acontecendo a lg o que meu pai sempre me adver t iu !

–E o que era? – perguntou Gaí lde. O menino olhou para todos no quar to, seus olhos

t inham cor de mel . Miguel era maior e mais for te que Tibor. Seus cabelos eram loiros escuro. Tibor achou que t inha a cor da palha do cele i ro onde f icava a Mimosa.

–Um sacr i f íc io para a Cuca! – d isse e le. Tibor estremeceu ao ouvir o nome da t ia-avó

novamente. –Mas a Cuca não prat ica sacr i f íc io há doze anos !

– d isse Gaí lde. O garoto fez uma breve pausa e cont inuou. –Eu pude sent i r a lg o r uim dentro da mata quando

aquelas cr ianças começaram a dançar em círculo. – Fixou seu olhar em Tibor – Tenho cer teza que era e l a ! Talvez e le possa lhe af i r mar i sso!

Tibor fez que s im com a cabeça. –Ele foi trazido pouco depois que o r i tua l

começou! – disse Miguel . Virou-se para Tibor. – Eu v i como eles trataram você, v i quando o t i raram daquele saco, sua perna j á es tá to ta lmente curada?

–Mais ou menos! – respondeu Tibor. Miguel Torquado v irou-se para Gaí lde. –Então v ieram em nossa direção e me f izeram

tomar aquela coisa nojenta . Pr imeiro sent i f r io e

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depois sent i par te por par te do meu corpo se des l ig ar rapidamente, achei que estava mor rendo, mas acordei aqui e n isso sou g rato a vocês ! – d isse e le colocando o copo vazio em cima de um móvel no quar to.

–Consegue se l evantar? – quis saber Gaí lde.

O garoto tentou e ca iu por duas vezes antes que Rur ique o a judasse a f icar de pé. Gaí lde pediu para que Sát i r buscasse uma toalha de banho e lhe mostrasse o banheiro.

–Tome um banho quente. Vou providenciar umas roupas de Tibor pra você, i rão f icar um pouco aper tadas, mas é só até eu lavar e secar as suas. Vou preparar o a lmoço. Poderemos nos sentar e comer à vontade. Seja bem-vindo ao meu s í t io ! – f inal izou e la .

Sát i r t rouxe a toalha e lhe mostrou o banheiro. Expl icou como l ig ar a água quente e levou para e le a lgumas roupas de Tibor que a avó separara .

Miguel desceu as escadas e sua aparênc ia l impa o fez parecer outro menino. Aparentava seus dezesseis anos e por ser mais a l to que Tibor, as bar ras da ca lça ter minavam na canela e a manga da camiseta o aper tava embaixo do braço. Rur ique sol tou uma r isadinha ao vê- lo.

–Não se preocupe! Suas roupas estarão prontas hoje mesmo, já es tão no vara l atrás da casa ! – o

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tranqui l izou Gaí lde olhando fe io para Rur ique. – Venha! S i r va-se da l asanha enquanto es tá quente !

Todos comeram bastante. Miguel comeu saboreando cada pedaço como se não comesse a lg o há anos ; das duas tr avessas de lasanha com molho branco, o que restou fora apenas resqu íc ios de molho e quei jo.

–Se Roncador est ivesse aqui adorar ia lamber essas travessas ! – d isse Sát i r.

Rur ique concordou com a boca cheia .

Passaram-se dois d ias. O garoto parecia ser l egal , não fa lava muito por estar entre estranhos, mas se entur mara dentro do poss ível .

Rur ique g ostou da luta de espadas com o menino, pois era um adversár io à sua a l tura , senão maior que e le ! Vez ou outra Rur ique perdia ou Miguel perdia . Isso quando não acabava em empate; Tibor, que perdia todas as vezes contra Miguel , se deu conta de que era uma negação na luta com espadas ! Nunca durava um minuto.

Miguel dor mia na mesma cama que ar r umaram para e le, embaixo da janela no quar to de Tibor. Gaí lde um dia fez uma piada dizendo que estava transfor mando o s í t io em uma creche! O que de cer ta for ma era bem verdade!

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Os meninos ens inaram Tork a rea l izar as tarefas do dia .

–Se quer comer aqu i , tem que seguir as reg ras do s í t io ! – d isse Tibor ens inando Miguel , no gal inheiro, a escolher os ovos bons para o jantar.

Uma noi te, f izeram fogueira e comeram batata-doce, mas não se a treveram a sa i r do s í t io como da úl t ima vez que combinaram bata ta-doce com fog o. Contentaram-se em contar apenas a h is tór ia do ocor r ido naquele d ia para Miguel , e o f izeram jurar que não contar ia nada a avó dos meninos, que já t inha se ret i rado para dor mir há a lgumas horas.

–Está bem, eu juro! – disse e le sor r indo e mostrando as mãos sem os dedos cr uzados em f ig as – Apesar de se tra tar de uma his tór ia fasc inante, conheço quem se in teressar ia muito por e la !

O fog o esta lou no s i lêncio da noi te e a té a

espuma dos refr ig erantes era escutada quando ninguém fa lava.

–Conte-nos a lguma his tór ia ! – pediu Sát i r. –Não sei de nenhuma! – disse e le. –Ninguém conta nada na Vi la Guará? – quis saber

Rur ique. Ele fez que não com a cabeça – Não que eu sa iba ! –Eles não temem a quaresma? – perguntou Tibor. –Devem temer ! Eu é que não temo mais !

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–Como ass im, não teme mais? – quis saber Rur ique.

–O homem que tomo conta é uma espécie de xamã das matas ! Ele, de cer ta for ma, me ens inou a não temer a quaresma!

–Mas como? – ins is t iu Rur ique.

–Oras, quer que eu lhe conte meu seg redo para que aprenda a perder seu própr io medo, não é seu medroso? – fa lou Miguel fazendo com que todos dessem r isada de Rur ique.

F icaram mais um tempo, mas depois que as bata tas-doces acabaram e os refr ig erantes também, sent i ram-se entediados. Apagaram a fogueira e foram dor mir.

Dia seguinte. Rur ique foi até sua casa acompanhado de Tibor. Gaí lde pediu para Sát i r f icar, pois achava que o garoto Miguel a inda estava em obser vação e não dever ia sa i r do s í t io. Gaí lde pediu para que tomasse mais um pouco do l íquido do frasco, o que e le fez sem hes i tar.

Tibor e Rur ique seguiram na estrada velha e passaram pela casa do fazendeiro Perei ra . Estava como da úl t ima vez que a deixaram, seus móveis a inda estavam todos jogados no g ramado ao redor da casa e suas janelas e por tas escancaradas para fora . Não se

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demoraram al i . Chegaram ao s í t io de Rur ique e Tibor foi mais uma vez muito bem recebido.

Apesar de Dona Gaí lde fa lar que os meninos dever iam contar sobre o acontecido na semana anter ior, per maneceram bem quietos sobre o assunto.

Combinaram que não dir iam palavra sobre estarem perdidos e serem perseguidos por fantasmas.

–Pai ! Vamos pescar? – pediu Rur ique. –Já pesquei ontem, meu f i lho! – disse Avel ino. –

Colhi mi lho a manhã inte i ra e estou cansado! Se quiser, pode levar duas varas de pesca e pescar na margem do r io. Não posso deixá- los pegar o barco sem um adul to por per to!

Não t inham hora exata para chegar em casa , deram de ombros, pegaram as varas de pesca e par t i ram.

Andaram bastante até chegar a Braço Tur vo, andaram mais a inda para chegar ao Lag o Cinzento. Aprontaram as i scas nos anzóis e, sem demora, lançaram para a água.

O lag o era escuro e gelado, só os dois pareciam ter t ido a ideia de pescar naquela quinta-fe i ra de manhã. Tibor e Rur ique entraram até os joelhos dentro d ’água.

Uma hora se passou e nada. –Acho que o seg redo de uma boa pescar ia é estar

com o meu pai do lado! – disse Rur ique.

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Tibor se matou de dar r i sada. –É verdade! Todas as vezes que estou com ele

peg o um ou dois pe ixes, e o lha ag ora ! Nada! . . . Opa! – Rur ique sent iu que a lg o f i sg ara seu anzol .

Puxou com força , e o poss ível peixe puxava de vol ta . A l inha pareceu um cabo de guer ra , Tibor o a judou a puxar, mas Rur ique pediu para que se afastasse, pois aque le peixe ser ia só de le. Puxou mais uma vez, mas a força que empreg ou deve ter s ido muito g rande, v iu o peixe sa i r da água e ca i r a trás deles em meio às ár vores que margeavam o lag o.

-Uhuuu! – disse e le – Acho que era um peixe enor me! Não disse, meu pai nem prec isa estar aqui , fo i só dizer o nome dele e o peixe mordeu o anzol ! – e par t iu em direção às ár vores para buscar seu prêmio.

Tibor r iu do amig o e se v iu sozinho com os pés na água. O lag o era enor me, pôde ver toda a sua vasta extensão, e le era todo ladeado de f loresta , nenhum s í t io f icava à sua margem. Tibor pôde sent i r a lg o que esbar rou em sua l inha, mas não f i sg ou. Viu um rabo escuro de peixe aparecer por segundos ao longe.

–Rur iqueee! – chamou ele – Acho que v i um peixe g ig ante aqui ! – o amig o não respondeu.

Então Tibor entrou devagar na água para que o ta l peixe não sent isse sua presença e não fosse embora. Podia ver uma g rande s i lhueta que nadava em círculos à f rente. Achou esquis i to, pois o for mato do

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peixe não era comum. Constatou isso quando uma cabeça de mulher apareceu fora d ’água olhando f ixamente para e le.

Ela era l inda! Seus olhos escuros prendiam sua atenção de maneira estranha, parecia estar enfei t içado. Pôde ver que seus cabelos eram trançados em dr ead e t inha colares color idos em vol ta do pescoço moreno. A mulher parecia t r i s te e i sso cor tou o coração de Tibor. Um sent imento se apoderou dele, como se quisesse a judar a moça no que e la preci sasse. Ela abr iu a boca e uma mús ica encheu o ar ao redor. Tibor entrou no embalo da música e teve vontade de i r até e la . Pensou então que não dever ia entrar na água atrás da mulher, era como um sexto sent ido o a ler tando sobre um per ig o iminente. Larg ou a vara de pesca e cor reu para a are ia . Virou-se para a mulher e e la mergulhava de vol ta para o fundo da lag oa, a ú l t ima coisa que v iu foi seu rabo de escamas neg ras sacudirem a água antes de sumir.

Rur ique apareceu de vol ta e v iu Tibor olhando pasmo para o lag o.

–O que foi? O que aconteceu? – perguntou. Tibor chacoalhou a cabeça como se acordasse de

um transe. –Nada! – respondeu. – E o peixe, encontrou algum? Rur ique fez que não com a cabeça, mas Tibor j á

sabia que não antes do amig o responder !

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–Vamos vol tar para o s í t io, deve ser por i sso que ninguém vem pescar de quinta-fe i ra , os peixes devem dor mir nesse dia ! – Br incou Rur ique, mas Tibor não r iu .

Vol taram para o s í t io dos pais de Rur ique,

deixaram as varas de pesca e se despedi ram deles. –Ei , já que estamos per to, poder íamos dar uma

passada no s í t io da famí l ia Bronze e fazer uma v is i ta para Málabu, o que acha? – suger iu Rur ique.

Tibor assent iu , achou mesmo que ser i a uma boa ideia , e le poder ia lhes contar para que os remédios que Gaí lde lhe fornecera ser v iam.

Chegaram ao por tão da famí l ia Bronze, bateram palmas, mas ninguém atendeu.

–Deve ter sa ído para a lgum lugar ! – concluiu Tibor.

Quando es tavam des is t indo, ouviram um piar a l to de cor uja .

–Ei , o lhe aqui lo a l i ! – d isse Rur ique apontando para uma cor uja c inza que estava empolei rada no te lhado da casa dos fundos do s í t io. – É uma cor uja p iando em cima da casa de Málabu! – disse Rur ique assustado.

–O que tem isso? É só uma cor uja ! – d isse Tibor. –Só uma cor uja? – repet iu Rur ique – Preste

atenção em uma coisa : Essas cor ujas têm hábi tos

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noturnos! Na quaresma, quando uma cor uja ins is te em piar sobre o te lhado de a lguém, e la es tá fazendo um prenúncio da mor te do dono da casa !

E essa des is t iu a té de dor mir ! – conclu iu Tibor. Rur ique t inha razão, aquela cor uja dever ia estar dor mindo naquela hora .

–E se t i rássemos e la dal i ? – quis saber T ibor.

–Podemos não a l terar nada; ou podemos es tar sa lvando a v ida de Málabu! – disse Rur ique – Devemos isso a e le !

Tibor concordou e juntos se muniram de pedras e pularam o por tão do s í t io da famí l ia Bronze.

Tibor jog ou a pr imeira que passou longe da cor uja . Rur ique quase a acer tou, mas a cor uja só olhou para a te lha que a pedra acer tara e vol tou a piar mais a l to. Foi na tercei ra pedra que conseguiram espantá- la . Tibor jog ou a pedra que passou raspando a latera l d i re i ta da cor uja , e la se assus tou e par t iu num voo rápido.

Os meninos chamaram por Málabu ag ora da por ta de sua casa , mas como da pr imeira vez, n inguém atendeu.

–Ele rea lmente não deve es tar a í ! – conc lu íram.

Pularam para o lado de fora do s í t io e quando se puseram a andar novamente, a coruja voltou a empoleirar-se no telhado do caseiro.

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Os meninos se olharam perplexos e pularam o por tão novamente.

–Ô sua cor uja coi sa-r uim! Vá cantar em outro lugar ! – g r i tou Rur ique.

Conseguiam espantar a cor uja , mas e la cont inuava vol tando.

A at i tude do pássaro era incomum. Assustados, acharam melhor vol tar para o s í t io e pedir a juda à Gaí lde.

Já passavam das duas da tarde e Gaí lde apareceu

preocupada na varandinha de f rente à casa . –Achei que t ivesse acontecido a lg o com vocês ! –

d isse e la com as mãos na c intura . Contaram sobre a pescar ia e a cor uja , mas Tibor

nada fa lou sobre a apar ição na lag oa, mesmo porque não t inha cer teza do que v i ra .

Gaí lde lhes expl icou que não adiantar ia nada t i rar a cor uja de lá , se essa cor uja em espec ia l s ignif icasse um prenúncio, e la só era a mensageira da mor te e não a mor te em s i !

–Málabu es tá com uma doença di f íc i l de l idar. Ele parecia bem naquele d ia que esteve aqui , mas vez ou outra e l a vol ta a atacar ! Não acredi to que i sso o leve a mor te, ta lvez a cor uja se ja uma mera coincidência nessa his tór ia ! Sei que e le não es tá em casa , pois me contou que far ia uma v iagem visando sua cura e

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vol tar ia só depois que a quaresma ter minasse ! Eu mesma preparei a lguns remédios a mais para que pudesse levar consig o nessa v iagem! – disse e la colocando pedaços de bolo de cenoura num pote de plást ico. – O que podemos fazer é ped ir proteção por e le e focar nossas mentes com fé para que f ique bem! – e la tampou o pote e o colocou em uma mochi la . – Muito bem! Ag ora fa lando de outro assunto pendente! Acho que não há mais sent ido em manter mos nosso amig o Miguel Torquado aqui no s í t io em obser vação! Acho que já não há mais ves t íg io do veneno em seu corpo e o considero curado!

Miguel deu um sor r iso sat i sfe i to.

–Ar r umei uma mochi la com comida e bebida para que amanhã, depois das tarefas. . . – enfat izou – . . .o acompanhem até sua casa , já que estou idosa demais para uma caminhada dessa d is tância ! Tudo bem pra vocês? – Todos responderam que s im, quer iam conhecer o v i lare jo que Cur upira travara sua bata lha com a br uxa desaparecida – Lembrem-se bem de uma coisa ! Por todo o tempo que est iverem por lá , não ousem procurar pe lo Oitavo Vi lare jo ! – d isse e la olhando para Miguel, como se jogasse a responsabi l idade nele por ser mais velho e morar próximo ao lugar. – Enquanto não pensam na v iagem, – fa lou mudando de assunto com um sor r iso no rosto – Façam com que

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nosso convidado aprovei te seu úl t imo dia aqui no s í t io, cr ianças !

Todos o pegaram pelo braço e o l evaram para fora , deram um banho de mangue ira nele que aprovei tou e molhou todo mundo em troca.

Os quatro se d iver t i ram muito a té o ca i r do dia . O sol p intou o céu de magenta a roxo. Depois, ao

se pôr, o roxo escuro tomou conta e rapidamente o céu se tornou breu.

A lua , que estava quase cheia naqueles d ias, assumiu seu posto no teto estre l ado e l impo e br i lhou azulada ao long o de todos os se te v i lare jos.

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Tibor desper tou com o cantar do galo. Levantou

da cama e acordou Rur ique; o amig o balbuciou a lgumas palavras sem sent ido antes de abr i r os olhos.

Rur ique se encar reg ou de acordar Miguel , que apenas com o toque da mão do menino deu um suspiro rápido, abr iu os olhos e sentou-se na cama, tudo isso em apenas uma fração de segundo. Rur ique até deu um pulo para trás de sus to, com a reação do garoto.

Tibor encontrou a i r mã no cor redor. A menina estava escovando os dentes a l i mesmo e disse que estava v indo acordá- los.

–Achei que não t ivessem escutado o g alo cantar ! – d isse e la com a boca cheia de espuma da pasta de dentes.

–Não perco essa v iagem por nada! – d isse Tibor.

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Todos se aprontaram e desceram. Gaí lde já estava com o café da manhã pronto.

Dois sabores d i ferentes de gele ias para as tor radas ; café ou achocolatado e biscoi tos de le i te. Tibor sempre se surpreendia com a var iedade de coisas que havia nas refe ições do s í t io. Al imentaram-se bem e Gaí lde lhes trouxera a mochi la que t inha preparado na noi te anter ior. Parecia mais cheia . Com toda a cer teza , e la já t inha dado seus toques f inais naquela manhã.

Sa íam pela por ta enquanto Gaí lde lhes desejava

boa v iagem. O sol não t inha aparecido, por tanto o céu a inda es tava escuro, o que dava a impressão de estarem vivendo uma extensão da noi te anter ior.

Desceram a varand inha tér rea e a avó chamou Tibor e Sát i r de vol ta . Eles foram até e la ; Rur ique e Miguel aprovei taram para t i rar uma úl t ima disputa de espadas.

–Preciso pedir uma coisa e i sso é mui to sér io ! – começou Gaí lde para os netos que a o lhavam atentos. – Press into que a lg o está para acontecer, cr ianças ! Não sei por quê! Não s in to maldade nesse menino, mas s into que os eventos v indouros possam estar de cer ta for ma l ig ados a e le ! – Sát i r o lhou de esguelha para Miguel o medindo de c ima a ba ixo, querendo encontrar a lg o suspei to. – O que peço a vocês, nessa

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viagem, é : cu idado! Pelo fato de serem bisnetos de quem são, ex is tem seres que adorar iam se l ivrar de vocês ! – e la acar ic iou o rosto dos dois – Amo vocês ! Façam uma boa v iagem!

Tibor e Sát i r deram um abraço aper tado na avó e seguiram em frente.

Os quatro passaram pela por te i ra e seguiram pela r uazinha que os levar ia até a estrada velha.

Tibor deu uma úl t ima olhada no s í t io e v iu a avó na varandinha acenando para e le. Percebeu que também sent i a o que a avó sent ia . Suspei tou que Miguel já est ivesse bom para v ia jar desde que acordara do sono imposto pe lo veneno do sacr i f íc io, mas ta lvez a avó o tenha segurado no s í t io para poder v ig iá- lo de per to.

Chegaram à es trada velha e ao invés de descê- la como faziam para i r até a casa de Rur ique, começaram a subi- la em direção à outra estrada que os l evar ia à Vi la Guará .

Andaram pela estrada velha por dez minutos antes dos pr imeiros ra ios de luz despontarem no hor izonte atrás das col inas. Tibor pôde ver a nebl ina que se insta lava nas montanhas ao longe.

–Como é a sua casa , Miguel? – quis saber Sát i r. –Minha casa? É uma casa comum, nada demais !

Tem por ta e tem janela , se é o que quer saber ! – d isse e le.

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–Quanto tempo dá de v iagem até lá , mesmo? – perguntou Rur ique.

–Bom, se seguir mos nessa velocidade, com sor te chegaremos lá ao anoi tecer, mas se chegar mos amanhã pela manhã, a inda estaremos fazendo o percurso em um tempo bom!

–Você deve ter sofr ido muito nas mãos dos trasg os, não é mesmo? – começou Tibor. – Poxa v ida ! Foi raptado e colocado em um saco na Vi la Guará e só o t i raram de lá em frente ao moinho na Grande Floresta da Vi la do Meio. Um percurso bem long o, não acha?

Miguel Torquado apenas assent iu . Chegavam ag ora à outra estrada. –Essa é a Estrada Viena! Ela vai d i reto até a Vi l a

Guará e de lá estaremos próximos de casa ! – d isse Miguel . – É a maior e mais comprida estrada dentre todos os v i lare jos !

E seguiram por e la . Andaram por muito tempo a té sent i rem vontade

de parar para lanchar. O sol já estava a l to quando se sentaram na beira da estrada e t i raram um lanche de quei jo e presunto para cada um da mochi la . Sát i r ser v iu refr ig erante a todos, nos copos de plást ico, enquanto a inda es tava gelado. F icaram al i por quase quinze minutos descansando as pernas. Guardaram e l imparam tudo antes de prosseguir.

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A estrada não era reta , pelo contrár io, t inha muitas cur vas. Tibor imaginou que se e la fosse uma reta , encur tar ia o caminho em meio dia .

Já sent ia o cansaço começar a vencer. Desejou ser um g igante para pegar a estrada nas mãos e desencur vá- la .

No caminho, conversaram sobre diversos assuntos, cantaram músicas e contaram piadas. Por mais que a avó t ivesse os a ler tado de a lg o com relação a Miguel , Tibor já duvidava que o garoto es t ivesse escondendo a lg o ou fosse aprontar a lguma coisa com eles. Interpretou que o que pensou sent i r em relação a e le não fosse uma desconf iança, mas também não conseguiu achar outro s ignif icado para o ta l av iso em seu pei to.

O sol ca ía rápido pelo céu, parecia que a ú l t ima parada que f izeram para descanso t inha s ido há meses, pois já estavam famintos e exaus tos de novo. Descansaram à sombra de uma ár vore na beira da estrada. Al i comeram bem. Mais quinze minutos de descanso e es tar iam prontos para caminhar um pouco mais. A não ser ta lvez por Rur ique, que já v inha reclamando de bolhas nos pés.

Voltaram para o percurso. Miguel d issera que quer ia que conhecessem o xamã que e le tomava conta .

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–Ele é um sábio! Mas já es tá velho e precisa de cuidados! Nem imagino como se v i rou sem mim por todo esse tempo em que f iquei fora !

–Um sábio? – quis saber Tibor.

–Sim! Podem achá- lo meio bir uta à pr imeira v is ta ; pode até mesmo es tar um pouco nos ú l t imos tempos, mas não se enganem! Já está aqui por essas ter ras há muito tempo! Muito do que se i sobre as matas foi e le quem me ens inou ! Seu maior sonho é ter sua v i ta l idade de vol ta ! – d iz ia Miguel .

Andaram mais e mais até que o sol fo i dando adeus àquele sábado com a sensação de missão cumprida. A lua se fez presente e apesar de quase cheia , a inda era lua nova.

–Estamos quase chegando! – anunciou Miguel – Olhem à f rente, as luzes da Vi la Guará !

Todos puderam ver. Rur ique ans iava por um copo de água, pois o estoque deles já t inha acabado. Sá t i r imaginou um sofá bem macio onde pudesse descansar as pernas. Tibor es tava começando a ter sono e um bocejo sa iu de sua boca enquanto olhava para as luzinhas br i lhantes ao longe.

Bem antes de chegarem à entrada da Vi la , Miguel d isse :

–É por aqui ! – e entrou na mata na latera l d i re i ta da Estrada Viena.

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–Ei ! Espere! – d isse Tibor desper tando de sua sonolência . – Como ass im é por a í? A Vi la é pra lá !

–É! – emendou Sát i r. – Pra onde pensa que vai?

–Calma a í , pessoal ! – d isse e le reaparecendo por entre os arbustos e encarando-os confuso. – Não estou os levando para nenhum lugar per ig oso, se é o que temem! Aqui já faz par te da Vi la Guará ! Estou os levando aonde moro! E é por aqui ! Esse é o caminho, venham! – e Miguel desapareceu por entre duas ár vores.

Tibor e Sá t i r se entreolharam e Rur ique acendeu pr imeiro sua lanter na, seguindo pelo mesmo caminho que Miguel .

–Tudo bem! Desde que tenha água gelada por lá ! – d isse o menino mag r icela .

Todos entraram na mata . Tibor pôde notar que a vegetação do lugar era d i ferente da Grande Floresta da Vi la do Meio. Parecia estar seca . Andaram pelo mato e Tibor sent ia a pontada de desconf iança desper tar.

–A casa do Xamã f ica a quinze minutos mais à f rente ! – d isse Tork.

–Espere um pouco a í ! – fa lou Tibor parando e apontando sua lanterna para o menino. – Não disse que morava com seus pais?

–Não! – respondeu e le.

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–Disse s im! Você contou que seus pais não estavam em casa quando os trasg os entraram no seu quar to e o l evaram naquela noi te !

Sát i r se l embrou do que Miguel d issera e percebeu que as infor mações rea lmente não bat iam.

–Ei ! O que há com vocês, pessoal? – começou Miguel . – Por que estão ag indo dessa for ma? Fiz a lg o que os f izessem duvidar de mim? Estamos juntos há dias ! Vocês sa lvaram a minha v ida e sou g rato por i sso!

Rur ique também não entendia o motivo de tanta desconf iança de Tibor e Sát i r com relação a Miguel .

–Prestem atenção, vou esclarecer d i re i to : Meus pais têm uma casa na Vi la Guará , onde passo meus dias de folg a , mas e les nunca estão lá , pois moram na c idade g rande há um bom tempo! Eu tenho morado na casa do Xamã, pois tomo conta dele o tempo todo! O dia em que fu i levado! Era meu dia de folg a e eu estava na casa de meus pais ! Entenderam? Não es tou enrolando vocês ! – d isse e le perplexo.

–É! – disse Sát i r o lhando para o i r mão. – Faz sent ido!

–Podemos seguir v iagem, então? – fa lou Rur ique – Estou seco por dentro, preciso de água o quanto antes ou vou rachar no meio!

Com cer ta re lutância , Tibor se desculpou por ag i r daquela for ma com o novo amig o e cont inuaram a

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andar pela f loresta . Tibor conseguia ver as luzes da Vi la Guará por entre as ár vores que f icavam para trás, não estava sat i s fe i to com a ideia de deixar a c iv i l ização para trás, já t inha t ido l ições demais que provavam que era uma es tupidez andar ass im em uma noi te de quaresma.

Chegaram então a um lugar em que a f loresta parecia se d iv id i r em duas.

A div isão era fe i ta por uma fenda no chão, como se fosse uma rachadura de extensão inf in i ta , de quatro ou c inco metros de dis tância de uma extremidade até a outra , e de profundidade era d i f íc i l precisar com aquela escur idão toda.

–A casa é depois dessa fenda! – disse Tork. –Nossa! – se espantou Rur ique apontando a

lanterna para o fundo da fenda sem encontrar seu f im – Como vamos passar a í?

–Se acalmem, pessoal ! – d isse Miguel . – Faço sempre es te caminho para chegar ao Xamã!

–Por que e le mora tão afastado ass im? – qui s saber Tibor.

–Pelo s imples fato de amar a natureza! – respondeu Miguel com um sor r iso nos lábios.

Tibor f icou pensando se seu bisavô ser ia ass im, se t inha prefer ido v iver i solado da c iv i l ização. Se s im, não ter ia s ido di ferente de seus pais, que decidi ram largar tudo para v iver acampando com um

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ag r upamento de c ig anos e nem tampouco de sua avó, que v iv ia num s í t io na beira de uma f loresta .

Eles andaram à margem do buraco da fenda sem f im por mais a lguns minutos a té chegarem aos pés de uma ponte.

Todos olharam a ponte e à pr imeira v is ta não t inha nada demais com ela . Se Miguel não os bar rasse, i r iam passar por e la sem que v issem o per ig o que estar iam cor rendo.

Ele pediu para que todos parassem na f rente da ponte e começou:

–Essa ponte se chama Du Avessu! – e o lhou para todos com as sobrancelhas l evantadas. – Ela tem esse nome porque seu campo g ravi tac ional é ao contrár io !

–Hã? – disse Rur ique perplexo. –Vejam só! – disse Miguel . O garoto peg ou uma pedra e a jog ou na ponte, ao

bater no chão, a pedra ca iu para c ima ao invés de ca i r para baixo. Viram a pedra i r embora para o céu até desaparecer de v is ta .

–Hã! – conclu iu Rur ique, a inda perplexo. –A casa do Xamã é log o depois da ponte! Vamos,

não tem per ig o! É só me seguirem! Façam o que eu f izer ! – e Miguel fo i em direção da ponte, se sentou no chão, na latera l de sua base, e colocou os pés embaixo dela , se apoiou com as mãos numa corda que ser v ia de cor r imão na ponte e f icou de pé.

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Todos se espantaram com a v isão, Tork estava de pé, mas de ponta cabeça na par te debaixo da ponte.

–Venham! Asseguro a vocês que não tem per ig o nenhum! – e deu uns pul inhos para provar.

–Mas e esse abismo aí? – quis saber Rur ique olhando para o buraco neg ro que se estendia abaixo da cabeça de Miguel .

–Pode apostar que esse abismo. . . – d isse Tork apontando para o céu que estava sob seus pés – . . . é bem mais profundo!

Rur ique olhou para as estre las e eng ol iu em seco.

–Quem será o primeiro a tentar? – perguntou Miguel .

Tibor se pront i f icou , mas Sát i r fo i à f rente.

–Ei , mana! – disse o menino.

–Aguente a í , Tibor ! Vou ver se essa coisa é segura ! Se não for, você pelo menos es tará a sa lvo! – disse a menina.

–Tá bem! Mas e você? Já pensou no pior que pode acontecer a você?

Sát i r não respondeu e seguiu em frente.

Seguiu os passos de Miguel . Sentou-se ao lado da base e apoiou os pés na par te de baixo do chão da ponte. Miguel estendeu as mãos para que se apoiasse nele e e la se pôs de pé.

Era estranho ver a i r mã daquele je i to, nem seus cabelos pareciam es tar de ponta cabeça, a g rav idade os

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puxava na direção da ponte, era como se est ivesse de pé nor malmente, mas de ponta cabeça.

Rur ique pediu para i r antes de Tibor, que não entendeu o porquê do pedido, mas deixou que fosse. Rur ique se posic ionou da mesma for ma que os outros dois, mas teve problemas em se segurar no cor r imão da ponte, deu uma escor regada e sol tou sem querer a lanterna.

Tibor achou a imagem um pouco per turbadora. A lanterna subiu g i rando em direção ao céu até sumir. Mas Rur ique já es tava de pé na ponte também.

Cheg ou então a vez de Tibor. Seguiu o mesmo procedimento, segurou o cor r imão e impuls ionou o corpo se colocando de pé. Era uma sensação def in i t ivamente estranha! Olhou para c ima e o que v iu foi um abismo neg ro acima da cabeça, o lhou para baixo e v iu um céu estre lado abaixo de seus pés. Olhou para a f loresta e as ár vores todas estavam de ponta cabeça como se crescessem para baixo. A v isão causava cer ta tontura .

Andaram ao long o da ponte cur t indo cada passo. Estavam andando embaixo do chão dela , que acabava se tornando a par te de “cima”.

Chegaram à outra extremidade e da mesma maneira que entraram na ponte, sa í ram dela . Quando Tibor passou por ú l t imo, sent iu o ponto exato onde a g ravidade mudava de pos ição. Era como se entrasse

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em um por ta l para outro lugar. Era uma sensação bem diferente e esquis i ta , mas não pôde deixar de apreciar a exper iência única .

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Passaram a ponte e estavam em ter ra nor mal de

novo. A mata seguia à f rente e puderam notar uma espécie de chalé em meio às ár vores.

–Al i está ! A casa do xamã! A casa do Sr. Icas ! – d isse Miguel fe l iz .

Aproximaram-se e notaram que o chalé era fe i to inte i ramente de bambu, apesar de não haver bambu por per to. Uma luz laranja e f raca br uxuleava pelo buraco de entrada do chalé que não t inha por tas ou janelas.

–Você disse que sua casa t inha por tas e janelas ! – fa lou Sát i r para Miguel .

–Já d isse que essa não é minha casa , mas tenho morado aqui para tomar conta do Xamã! – disse Miguel Tork. – Sr. Icas? – chamou o menino entrando no chalé .

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–Êh êh ! – d isse uma voz v inda do mato em frente. – Tô aqui , menino!

Tibor pôde ver um senhor de cabelos cur tos e brancos, de pele bem escura , que v inha de muletas na direção deles.

–Sr. Icas ! Cheguei ! – d isse Tork. Tibor achou a reação do ta l Icas um pouco

inadequada para a ocas ião. –Êh êh ! Menino Tork se at rasô ! Mui to, mui to ! – d isse

o homem de muletas. Tibor achou o sotaque do velho bem diferente e

medonho de cer ta for ma. Quando diz ia “Êh êh” , o pr imeiro êh v inha numa nota aguda e o segundo numa nota g rave.

-Desculpe, senhor ! – d isse Miguel – Tive problemas e passei por apuros. Eles me sa lvaram, senhor ! – E abaixou a cabeça mostrando respei to ao velho.

O velho encarou Tibor e Sát i r por um tempo, depois v i rou para Tork novamente e d i sse apontando para Rur ique:

–O que o menino mag ro faz aqui no chalé de Icas? Êh êh ! Os outros dois eram esperados, mas esse era não!

Tibor achou a obser vação bem es tranha e imaginou se o ta l xamã também ser ia a lgum t ipo de adiv inho.

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Rurique se remexeu e não disse nada. Mesmo se quisesse d izer, não saber ia o que e deixou isso para Miguel .

–Ele é um dos que me sa lvou do per ig o, senhor ! – d isse Miguel – Eles cuidaram de mim por todo o tempo em que passei acamado e me f izeram companhia no caminho até aqui ! Esse é Rur ique, aquele é Tibor e essa é Sát i r ! – d i sse o menino apresentando os novos amig os. – Gostar ia de oferecer um lugar para passarem a noi te ! F izemos uma v iagem longa e cansat iva e amanhã e les i rão fazer o mesmo tra jeto de vol ta !

– Êh êh ! – começou o velho – Sabe que num g osto de v is i tas ! – e foi até Tibor e Sá t i r, mas parecia ignorar Rur ique por completo. – Têm fome, vo c ê s?

Tibor e Sát i r f izeram que s im com a cabeça, mas duvidava que o velho pudesse oferecer- lhes a lg o de bom para comer.

Icas entrou no chalé com as muletas e só quando entrou na f rente da luz br uxuleante e a laranjada da vela que estava acesa a l i dentro é que Tibor percebeu que o velho não t inha uma das pernas.

Miguel fo i até os meninos e d isse :

–Desculpe, pessoal ! Achei que a recepção dele fosse ser d i ferente, mas e le não vê pessoas há um bom tempo, então. . . me desculpem!

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–Tudo bem! – disse Tibor imaginando que o melhor ser ia i rem embora naquela noi te mesmo. Não fora nem um pouco com a cara do xamã.

Todos entraram no chalé e se sentaram no chão, a única cadeira que t inha estava ocupada pelo senhor Icas.

Miguel ser v iu a lgumas coisas para comerem como amendoins e cas tanhas de ca ju . – Desculpem! Como est ive fora por todos esses d ias, não pude renovar o estoque de comida!

–Tudo bem, desde que você tenha água! – d isse Rur ique.

Icas fuzi lou o menino com o olhar e Rur ique imaginou se t ivesse di to a lg o g rossei ro.

–Tenho, s im! - Miguel deu um copo de água da jar ra de bar ro que estava no chão per to de a lguns ca ixotes de madeira de onde e le t i rara os amendoins e as castanhas.

–Vocês dois v ivem aqui? –disse Sát i r o lhando o chalé todo e imaginando que ser ia muito pequeno a té para uma pessoa morar.

–Sim! – respondeu Miguel .

Sát i r reparou que o lugar não t inha cama.

–Menino Tork dor me lá ! – d isse Icas de repente apontando para um canto com palha amontoada.

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Tibor percebeu que os olhares do velho iam dele para a i r mã e v ice-versa , como se demonstrasse um interesse incomum nos dois. E isso o per turbava.

Comeram todo o amendoim e toda a castanha, também acabaram com a água de duas j ar ras ; ment i ram sobre estarem sat i sfe i tos, pois a fome e a sede aper tavam seus estômag os com uma força tremenda. Se soubessem como ser ia escassa a refe ição na casa do ta l xamã, ter iam reg rado a comida da mochi la no caminho até a l i .

–Qué dormi , menino? Qué? – d isse Icas para Tibor - Êh êh ! Vejo seu olho fechando depressa !

Aquele “Êh êh” es tava i r r i tando Tibor. –Não, obr ig ado! – respondeu e le. Senhor Icas fez um s inal incomum para Miguel ,

que entendeu e peg ou dentro do ca ixote um cachimbo e um pacote de fumo. O velho muniu o cachimbo com o fumo e o acendeu com a vela ao lado que era a única fonte de luz do chalé .

–Floresta per ig osa na quaresma! – disse o velho a esmo dando um trag o no cachimbo. – Quaresma per ig osa na f loresta ! – e soprou a fumaça enchendo o bar raco de bambu com o cheiro for te de fumo, após o trocadi lho.

Sát i r toss iu e d isse para Tibor num sussur ro: –Já sent i esse cheiro antes, mas não me lembro

onde!

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–Menina num g osta de meu fumo , não? – quis saber o velho. – Toss e f e i t o bode, t o s s e !

E f icaram em s i lêncio.

Tibor sa iu do chalé e foi o lhar a mata ao redor, nenhum g r i lo era escutado; nem uma cig ar ra ; nem uma cor uja . Parecia que a mata não t inha v ida .

Pôde ouvir o velho dizer : – Êh êh ! – lá dentro do chalé .

–Estranho esse ta l de Icas, não acham? – disse Rur ique para Sát i r e Tibor antes de Miguel chegar à roda.

–Se quiserem dor mir, separei um montante de palha para cada um usar de travessei ro ! – d isse Tork antes de entrar novamente no chalé , pois o velho o chamara.

–Diz que i sso é piada! – comentou Rur ique.

–Pessoal , es tou com vontade de i r embora hoje ! – d isse Tibor.

–Concordo plenamente! – apoiou Sát i r.

Tork sa iu da cabana de novo e d isse :

–O Senhor Icas d isse para passarem a noi te aqui , pois a lua está quase cheia e o lobi somem já tem rondado por essas bandas ! – os três o encararam surpresos. – Não se preocupem! O bicho não sabe atravessar a Du Avessu, estamos seguros aqui essa noi te ! – e vol tou para dentro do chalé mais uma vez.

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–Será que fa le i a l to demais sobre i r mos embora essa noi te? – sussur rou Tibor para os amig os.

–Não sei ! Vai ver e le é um adiv inho, por i sso o chamam de xamã! – disse Rur ique.

–Ou ta lvez es te ja estampado na nossa cara que estamos mor rendo de vontade de sa i r daqui deste chalé esquis i to ! – d isse Sát i r. Tibor achou a opinião da i r mã mais sensata , apesar de já não duvidar de mais nada.

Os três escutaram um uivo a l to ressoar nos ar redores e resolveram entrar depressa no chalé .

Cada um se dei tou no chão de ter ra com a cabeça apoiada num montinho de palha que pinicava o pescoço. Tibor pensou que ser ia bem dif íc i l dor mir por a l i .

Virou de um lado, v i rou de outro e se sentou. Senhor Icas estava sentado à f rente fumando seu

cachimbo perdido em pensamentos. –E então senhor Icas ! – começou Tibor – por que

o chamam de xamã? O velho deu uma tragada funda no cachimbo,

encarou o menino e respondeu secamente: –Porque sô um! Tibor apenas assent iu e não quis d iscordar do

velho. O homem t i rou o cachimbo da boca e aproximou

seu rosto do rosto do garoto.

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Tibor pôde ver que seus olhos eram levemente aver melhados quando ele os ar regalou dizendo.

–Sô mágico, menino! – Tibor balançou a cabeça fazendo menção de acredi tar, mas o velho parecia mais ser um maluco do que um mágico ou um sábio – Roubaram meus poderes ! Êh êh ! Uma br uxa velha! Eu quero de vol ta !

Tibor pensou em suas t ias-avós.

– Êh êh ! Você sabe quem é, num sabe? Ela escondeu meu poder de mim! Quero di vol ta , mas num posso t ê ! – d isse e le f icando em s i lênc io por long os quinze minutos em que o garoto f icou admirando a parede in terna do chalé de bambu.

–Fale-me do lobisomem! Quem é e le? – quis saber Tibor já que não conseguia dor mir. – O que e le faz?

–Um lobo-homem, é s im! Faz mal pros outros, f az s im! Mas num é homem mau não s inhô , é não ! – e cheg ou mais per to de Tibor, deu outra tragada no cachimbo e fa lou pausadamente – Foi amaldiçoado! Êh êh , s e f o i ! Ocê j á v iu “co i sa - ru im” por a í que eu se i ! Êh êh ! Se i s im! Conta pro v é i o o que o c ê v iu , conta?

Tibor assent iu e achou não ter problema em contar sobre a velha do pé g rande e a invasão do s í t io do fazendeiro Perei ra . O menino percebeu que Icas f icara fasc inado com a his tór ia toda.

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–Por acaso é essa a br uxa que roubou seus poderes? – quis saber Tibor, já que o velho mostrou-se bem interessado no assunto.

–Foi não ! É outra br uxa velha! –Talvez a Cuca? – tentou e le. O velho só o encarou desconf iado por um tempo

e ao invés de responder, deu outro trag o no cachimbo e e levou os olhos para o te to do chalé . Per maneceu ass im como se es t ivesse remoendo lembranças do passado.

–Provavelmente foi e la ! – cont inuou o menino desper tando a atenção de Icas novamente. – Essa maldi ta br uxa parece fazer mal para todas as pessoas que conheço! Um dia e la va i pagar por i sso!

O velho o olhou de baixo a c ima como Sát i r t inha costume de fazer quando es tudava a lguém.

–Vá dor mir menino -be s ta ! Tá fa lando muito já , t á s im! Seus colegas que são in t e l i g en t e , j á tão dor mindo, tão s im! Êh êh ! – d isse o velho com um ar i r r i tado.

Tibor não g ostou de ser chamado de besta , o lhou para os l ados e percebeu que Rur ique, Miguel e Sá t i r já estavam mesmo dor mindo. Quer ia f icar acordado, mas resolveu tentar dor mir quando o velho encer rou a conversa soprando a única vela do cômodo. O menino a inda v iu o cachimbo se i luminar no escuro com mais uma tragada funda do velho e então, pôs-se a dor mir.

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O sol já estava a l to no dia seguinte, Tibor se levantou e sentiu o corpo todo dolorido, pr incipalmente o pescoço. Tinha dor mido de mau je i to. Senhor Icas não es tava mais a l i , sua cadeira es tava vazia . Miguel também não estava no chalé .

Tibor acordou a i r mã e o amig o.

–Vamos, pessoal ! Já é hora de i r embora! Já é d ia !

O estômag o de Tibor roncou a l to quando sa iu do chalé .

Estava todo suado, pois o bambu esquentara demais com o ca lor, ta lvez por i sso t inha se levantado àquela hora , pois a inda t inha sono e com cer teza dor mir ia mais, mas o ca lor a l i dentro era insupor tável .

Tibor pôde olhar a f lores ta à luz do sol , consta tou que era fe ia ! Nunca v i ra uma f loresta tão fe ia como aquela . A maior ia das ár vores era seca e o sol entrava diretamente por e la sem inter venção de galhos e folhas verdes. O chão parecia estar bem seco também, como se a chuva não v is i tasse aquelas par tes da Vi la Guará há meses ou mais. O mais estranho foi a fa l ta do canto dos passar inhos. Onde e s ta vam os co l ib r i s e o s sab iá s? Os parda i s e o s bem- t e - v i s? Aquela f loresta era estranhamente macabra .

Olhou ao redor e v iu Miguel trazendo uma jar ra com água e ao seu lado v inha o velho de muletas andando com dif iculdade.

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Tibor entrou na bar raca e peg ou sua mochi la , sa iu de novo e Miguel a inda v inha na di reção do chalé , mas o senhor Icas já estava sentado em um tronco tombado próximo de onde es tava. Tibor olhou para o velho com o olhar confuso, o lhou para as muletas encostadas na ár vore ao lado de Icas e coçou os olhos pensando imaginar coisas, já que a inda t inha a v is ta embaçada por conta do sono.

–Bom! Miguel ! – começou ele enquanto Rur ique e Sát i r deixavam a bar raca . – Receio es tar na hora de seguir v iagem! – e v i rou-se para o velho – E obr ig ado por nos deixar passar a noi te em sua. . . casa? ! – d isse Tibor.

O velho fez um aceno de cabeça, mas não disse nada.

–Bebam um pouco de água antes de i r ! – d isse Miguel – devem estar com sede, s into por não ter um café da manhã melhor para ser v ir !

Tibor entendeu porque o menino comera a lasanha da avó com tanto g osto, não t inha nem condições de fazer uma comida boa a l i naquele chalé .

Beberam a água da jar ra toda, Miguel os levar ia até a ponte e de lá seguir iam viagem sem ele.

Antes de sa í rem, porém, o velho chamou Miguel de canto e cochichou coisas em sua orelha da mesma for ma que Gaí lde f izera com os netos no momento em que deixavam o s í t io. Enquanto isso, T ibor, Rur ique e

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Sát i r o esperavam para i r embora. Miguel levantou os olhos com uma expressão es tranha quando Icas ter minou de fa lar na orelha do rapaz. Miguel se despediu de Icas com um “até log o” e par t iu .

O velho acenou para eles enquanto se d is tanciavam e Tibor a inda pôde ouvir um “Êh êh !” ao longe.

–O que foi que e le cochichou que o deixou espantado? – quis saber Tibor quando chegavam à ponte.

–Espantado? Não f iquei espantado! – disse o menino – e le me di sse que não haver ia per ig o seguir v iagem ag ora , pois o lobisomem só sa i na lua cheia e que eu não me preocupasse, pois vocês es tar iam seguros no caminho de vol ta !

Mas Tibor desconf iou que o garoto est ivesse mentindo sobre o que o velho lhe dissera . Ora, t odo s sabem que o l ob i somem só sa i na s no i t e s d e lua ch e ia , po r qua l mo t i vo s enho r I ca s t e r ia d e l embrar Migue l de s s e f a to? E resolveu não comentar nada, estava doido para cheg ar log o no s í t io e comer as comidas da avó.

Despediram-se do amig o com abraços e passaram pela ponte deixando Miguel para trás.

–Obrigado, amig os, por tudo! Deem um alô à sua avó por mim! – g r itou e le do outro lado da ponte. – Espero os rever em breve!

Tibor, apesar de o menino não ter fe i to nada de er rado para e le, ao se d is tanciar, sent iu o aper to em

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seu pei to se afrouxar. Era como se est ivesse mais tranqui lo e um peso em suas costas deixara de incomodá- lo. Não quer ia ser r u im, mas não desejava o mesmo que seu amig o Miguel ! Seu coração sent ia que não quer ia vê- lo novamente tão cedo. Sua avó lhe dissera para seguir sempre seu coração, por tanto, tentar ia ev i tá- lo, se fosse poss ível !

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Sa íam ag ora da f loresta seca e entravam na

Estrada Viena novamente. Começaram a segui r o caminho inverso da noi te

anter ior, r umo ao s í t io. Tibor olhou para trás e pôde ver que, se quisessem ir à Vi la Guará , a inda ter iam de andar um bom pedaço.

–É! Não será dessa vez que conheceremos esse v i lare jo ! – d isse e le. – Não desviare i do caminho do s í t io de je i to nenhum, a inda tenho umas horas de sono a cumprir e pretendo fazer i sso a inda hoje e na minha cama! Já que o chalé do ta l xamã não nos proporcionou uma boa noi te de sono, não é mesmo?

–É! – foi a única coisa que Rur ique conseguiu dizer de tão cansado que estava.

O sol cast ig ava-os com seu ca lor abus ivo e quer iam parar para descansar.

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–Pessoal , quanto menos parar mos no caminho, mais cedo i remos chegar ao s í t io ! – d iz i a Tibor.

Isso era verdade e ser v ia de es t ímulo para que cont inuassem andando. Sempre que v iam uma sombra de ár vore, passavam por debaixo dela a f im de se refrescar ao menos um pouco.

Sát i r já t inha vasculhado todos os bolsos da mochi la de comida por vár ias vezes, na espera de achar a lg o escondido que pudessem div id i r entre e les ! Apesar de ser uma procura inút i l , l á ia e la vasculhar mais uma vez.

Tiveram de se entregar, não quer iam mais descansar, nec e s s i ta vam do descanso!

Pararam por v inte minutos na beira da estrada embaixo de uma ár vore robusta . Sua sombra era perfe i ta . Ansiavam por um g ole d ’água, mas sabiam que percor rer iam o caminho todo sem nem um ping o dela .

Continuaram o tra jeto, re lutantes. Rur ique já andava com a l íngua para fora da boca como um cachor ro cansado. T ibor não duvidar ia nada se olhasse para o amig o e o enxergasse como um vira- lata mag relo ao seu lado.

–Muito estranho esse ta l de Icas, não acham? – disse Tibor.

–Ahã! – fa lou Rur ique sem vontade.

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–Como fazem para v iver a l i ? – d isse Sát i r – Devem passar fome sempre! Comendo apenas amendoim e castanha de ca ju !

–E a inda f izemos o favor de acabar com o estoque deles ! – conclu iu Tibor.

Alguns minutos se passaram e Tibor perguntou: –Ouviram a his tór ia que e le me contou sobre seus

poderes? –Não! – responderam Sát i r e Rur ique juntos.

Tibor então contou que o velho disse que seus poderes foram roubados por uma br uxa velha.

–Com cer teza deve ter s ido a Cuca! – d i sse Tibor. – Ela está presente em todas as h is tór ias !

–Por que não perguntou a e le? – quis saber Sát i r. –Eu perguntei ! –E? –E ele desviou do assunto dizendo que eu era um

besta por dizer aquelas coisas ao invés de estar dor mindo!

Rur ique deu r i sada. – Ele te chamou de besta? –Chamou! – respondeu Tibor. –Achei que e le só diz ia baboseira , mas f inalmente

e le d isse a lg o que t inha razão! – disse Rur ique ca indo na gargalhada.

–Ei ! A única besta aqui é você! - Tibor deu um empur rão fraco no amig o, mas também caiu na r i sada.

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–Perceberam o sotaque chato que e le t inha? – perguntou Sát i r.

–Minha nossa ! Quase pedi que ca lasse a boca uma inf in idade de vezes ! – d isse Rur ique. – Mas de vez em quando ele me passava cer to medo, sab ia? ! Ainda bem que estamos longe de lá ! Não vol to a l i tão cedo, i sso se um dia vol tar !

E todos concordaram com a obser vação do amig o.

Tibor e Sát i r contaram a Rur ique o que a avó t inha di to sobre Miguel e o menino disse também sent i r uma pontada de desconf iança em relação ao garoto.

–Não sei por que, mas concordo com a avó de vocês ! Mas que o cara é fera na espada! Ah, i sso e le é ! Êh êh! – disse e le imitando o senhor Icas.

Todos mor reram de r i r. Depois de horas de caminhada, se sent iam fracos

por andarem de es tômag o vazio e por tanto tempo embaixo de um sol esca ldante. Rur ique passou então a d izer palavras de motivação:

–Banho de mangueira ! Tibor e Sát i r respondiam com: Humm! –Sor vete de l imão! –Humm! –Sor vete de creme! Suco de laranja gelado!

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–Bem gelado! – disse Sát i r. –Mousse de maracujá ! – cont inuou ele. E ass im passaram o resto da manhã e um bom

pedaço da tarde. Só c i tando coisas que adorar iam encontrar no s í t io quando chegassem. Para cada pensamento desses, conseguiam um bônus de dez passos à f rente, o que já era um lucro enor me.

Pararam uma segunda vez para descansar e av is taram ao longe, quando o sol começava a baixar, o começo da estrada.

–Ei ! Estamos chegando! – disse Tibor contente. –Menti ra ! – d isse Rur ique. –Verdade! –Verdade? –É! – conf i r mou Tibor. –Puxa, que ót imo! – a fa la de Rur ique estava a té

mole. F icaram sentados a l i por mais c inco minutos até

tomarem coragem para levantar. –Você pr imeiro, Tibor ! – d isse Rur ique. –Não! Ass im que você se levantar, eu me levanto !

– fa lou Tibor. –Está bem, vamos todos juntos ! – d isse Sát i r – 1 ,

2 e 3 ! E os três se levantaram e puseram-se a andar

novamente.

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Apesar de acharem estar per to da Estrada Velha, caminharam ininter r uptamente desde a ú l t ima parada e só chegaram até e l a quando anoi teceu . Seguiram por e la mais um bom pedaço até v i rarem na cur va que fazia e encontrarem a r uazinha que os levava até o s í t io de Gaí lde.

O intui to da v iagem não era só acompanhar o amig o Miguel até sua casa , mas também vis i tar a Vi l a Guará e saber mais sobre o ta l Oitavo Vi lare jo e as lendas que o rondam. Como não t iveram nem um décimo dessa vontade supr ida , se ar rependeram amargamente de tê- la fe i to !

Chegaram à por te i ra do s í t io com o sor r iso até as orelhas, mas notaram alg o estranho que os fez amar rar a cara .

A por te i ra estava escancarada.

–Gaí lde nunca a deixa aber ta dessa for ma! – concluiu Rur ique.

E mesmo sem a sens ibi l idade nas pernas encontraram forças para cor rer até a casa . Os três encontraram a por ta aber ta também. Entraram e se depararam com a casa toda rev irada, o espelho de f rente à por ta de entrada estava est i lhaçado, os abajures da sa l a estavam todos no chão e a lgumas das cor t inas t inham s ido ar rancadas dos g r i lhões da parede.

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–Parece que houve uma luta por aqu i ! – d isse Sát i r.

–Vamos nos separar para procurar ! – d isse Tibor subindo as escadas g r i tando pela vó.

Rur ique foi pela cozinha e Sát i r o lhava na sa la de jantar.

Tibor encontrou os quartos dele e da irmã intactos. Mas o quar to de Gaí lde estava uma zona gera l . A cama estava quebrada e as coisas de sua penteadeira estavam espalhadas pelo chão acarpetado. O desespero então o dominou. – Vó! – g r i tava e le, mas parecia que e la não estava por a l i .

Um minuto depois se encontraram de f rente ao espelho est i lhaçado do hal l de entrada.

–Acharam alguma coisa? Uma pis ta de onde possa estar? – perguntou o menino aos outros dois.

–Não encontramos nada! – d isse Sát i r.

Naquele momento, os três v i raram a cabeça para o mesmo lugar ao escutarem um es trondo a l to cor tar a noi te lá fora .

–Esse bar ulho veio do cele i ro ! – d isse Tibor – Vamos!

E cor reram em di sparada para o cele i ro onde f icava Mimosa. Ao se aproximarem, a por ta se abr iu v iolentamente com um coice de cavalo que foi dado pelo lado de dentro.

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O que v i ram os assustou bastante. Um cavalo branco estava sobre duas patas re l inchando ameaçadoramente para os três. Ao co locar as patas d iante i ras no chão, puderam ver que e le não t inha cabeça, em seu lugar um tufo de chamas se fazia presente.

–A Mula-sem-cabeça! – g r i tou Rur ique se jogando no chão em posição feta l escondendo as unhas e os dentes.

–Que imbeci l ! – d isse uma voz conhecida de c ima do ta l cavalo. Era Miguel Torquado. O menino es tava montado na mula com um g or ro cor de v inho nas mãos. Tibor pôde ver que também t inha uma pessoa dei tada de a travessado em cima da mula , na f rente do garoto com as mãos amar radas. O menino reconheceu na hora que era a sua avó.

–VÓ! – g r i tou e le, mas a avó es tava desacordada.

–O que pensa que está fazendo, Miguel? – perguntou Sát i r confusa .

–Desculpem por i sso, mas fu i obr ig ado a fazê- lo ! Juro que não t ive a intenção! Só quero meus i r mãos de vol ta !

Tibor não sabia o que dizer e sol tou:

–Podemos a judá- lo, mas coloque minha avó no chão!

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Tibor percebeu que a fe ição do menino estava fantasmagór ica e nem parecia ser o mesmo de quem se despediram pela manhã.

–Ajudar? Vocês não entendem, não é? Vocês foram par te do plano o tempo todo! A par te de vocês acaba aqui !

–Do que es tá fa lando, Miguel ! Pare com isso e sol te minha avó ag ora ! – d isse Sát i r com ra iva .

–Acham mesmo que fui envenenado de verdade? Nem sei se posso ser mor to mais de uma vez!

–O quê? – disse Sát i r sem entender nada e v i rou-se para Rur ique com verg onha a lheia do menino que a inda es tava encolhido no chão. – Levante-se já daí !

E o garoto se levantou.

–Você é um trasg o, não é? – perguntou Tibor encarando Miguel d i retamente nos olhos.

–Oh! Você é esper to, Tibor ! S im, fu i uma das quarenta cr ianças que foram levadas pe la Cuca há doze anos ! Quando meus pais v i ram que eu , minha irmã e meu irmão recém-nascido não voltaríamos mais, mudaram-se para a c idade g rande para não enlouquecer !

–Recém-nascido? – repet iu Tibor se lembrando da menina que v i ra segurando um bebê em meio aos outros trasg os. – Como os trará de vol ta se es tão mor tos?

–Eu pareço mor to pra você, Tibor?

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Tibor se lembrou de que Málabu contou que a lguns espír i tos parecem se mater ia l izar por a lgum tempo.

–Esse é o poder do xamã? Trazer os mor tos à v ida? – perguntou Tibor. – Foi o que e le lhe prometeu? Seus i r mãos de vol ta em troca da minha avó?

–Puxa, rea lmente o subest imei , Tibor ! – d isse o menino a inda dentro do cele i ro. Mimosa es tava impaciente com a v isão da mula e se ag i tava em pânico.

–Pelo que se i , não pode estar rea lmente v ivo! Ninguém pode vol tar dos mor tos, Miguel ! Isso é apenas temporár io ! Provavelmente só deve acontecer na quaresma, cer to? – disse Tibor. – Devolva a minha avó e vamos conversar !

Tibor percebeu que o garoto pesava suas palavras com cautela , o medo de ser verdadeiro o que Tibor dissera estava estampado em seus olhos.

–Sinto muito, Tibor ! Se quiser ter sua avó de vol ta , va i ter que buscá- la no Oitavo Vi lare jo. Ela ag ora faz par te do plano também, j á que vocês três descobr i ram onde o g or ro estava escondido!

Tibor não entendeu a lóg ica do que Miguel d issera por ú l t imo. O que o g or ro t inha a ver com a s i tuação toda?

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–Nos diga ao menos onde f ica esse ta l v i lare jo ! – pediu Tibor.

–Estava indo muito bem até ag ora , Tibor ! Comecei a achar mesmo que era inte l ig ente, mas vejo que não! – disse Miguel – Darei uma dica a vocês em nome da nossa cur ta amizade! – e le se a je i tou no cavalo branco sem cela e d isse – Est iveram por lá a inda es ta manhã!

Foi como se um balde de água f r ia ca ísse na cabeça do garoto! Fora muito bur ro em não perceber onde t inham estado pela manhã, passaram a noi te toda lá ! A fenda que div id ia a f loresta devia ser uma das proteções que o bi savô colocara em vol ta do lugar ev i tando, ass im, a sa ída de quem est ivesse preso lá dentro! Tinham estado no Oitavo Vi l are jo ! Tinham passado a noi te na ant ig a pr isão da sua t ia-avó!

Miguel não deu muito tempo para os meninos pensarem a respei to das revelações que ca íam de paraquedas sobre a cabeça dos três. A mula ateou fog o no teto do cele i ro no momento que um ra io cor tava o céu com um estrondo e par t iu em disparada por entre os três a g a lope.

Tibor só teve tempo de proteger o rosto quando a mula passou e o fez ca i r no chão por ser empur rado pelo corpo equino da assombração. O menino levantou a cabeça a inda em tempo de ver Miguel e a mula levarem sua avó e o g or ro por te i ra a fora .

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Antes de seguir no encalço do menino, Tibor, Sát i r e Rur ique precisavam apagar o fog o que tomava conta do cele i ro.

Tibor e Sát i r cor reram até o poço e encheram baldes de água, Rur ique foi até a mangueira e mirava um jato for te em direção às labaredas.

Mimosa mugia em desespero, estava presa lá dentro em meio ao inferno que tomava for ma à sua vol ta .

Tibor sent ia uma vontade absurda de esganar Miguel , sabia que a avó t inha razão quando suspei tou do menino! Seu própr io coração lhe av isou por diversas vezes que e le não era conf iável !

Apagaram com muito custo as chamas do cele i ro que acabou f icando parcia lmente destr uído.

–E ag ora? – perguntou Rur ique. –Temos que i r a trás daquele f i lho da mãe! – disse

Sát i r com as roupas sujas de fu l ig em. Nem pareciam ter v ia jado o dia inte i ro a pé, com

sede, fome e sono. Cor reram em disparada em direção à por te i ra com a velocidade de um projé t i l .

–Não acha que dever íamos ped ir a juda? Poder íamos chamar Málabu! – disse Rur ique enquanto cor r iam.

–Não! Perderemos tempo demais nos desviando do caminho! Af inal de contas, Málabu está v ia jando, se lembra? – disse Tibor – Tenho uma pequena ideia

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do que Miguel pretende fazer e i sso me assusta um bocado! Precisamos chegar lá o mais ráp ido poss ível !

–Quando chegar mos lá o que faremos? – perguntou Rur ique novamente.

–Não sei de vocês, mas eu pretendo socar Miguel Torquado até e le f i car desacordado como no dia em que e le entrou nesse s í t io pela pr imeira vez! – r ug iu Sát i r.

Eles cor r iam o mais veloz que podiam em direção à estrada. Ignoraram as dores que sent iam nas pernas e as bolhas que se a lo javam em seus pés, mas mesmo ass im, não v iam nem s inal da mula-sem-cabeça ou de Miguel à f rente !

Zi lhões de coisas se passavam na cabeça dos três. Tentavam imaginar uma for ma de ta lvez tentar cor tar caminho ou achar a lguma coisa que os f izesse i r mais depressa , mas nada podia os levar tão depressa ass im ao Oitavo Vi lare jo, af inal , precisar iam de a lg o que os levasse com a velocidade de um cavalo para a lcançar o menino tra idor !

–Droga! – disse Tibor indignado – Prec isamos de um mi lag re para a lcançá- los a pé!

E como se a lguém o escutasse, um car ro bar ulhento apareceu na cur va da Estrada velha com os faróis a l tos vol tados para e les.

Tibor conhecia aque le car ro.

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O menino entrou na f rente da luz, com as mãos estendidas fazendo de tudo para que o car ro parasse.

–Tibor, o que es tá f azendo? – quis saber a i r mã.

–Esse é o car ro-car roça do homem do big ode v ivo! Vamos! – g r i tou e le para os outros dois.

Sát i r entendeu log o, mas Rur ique: – Oh não! Outra assombração ! – exclamou ele, mas ao ver o motor is ta entendeu a par te do big ode v ivo e ao entrar no car ro compreendeu a par te do car ro-car roça!

Era Raul , o homem que os trouxera para o s í t io antes da quaresma começar.

F icou espantado ao vê- los sujos daquele je i to, andando no meio da estrada de noi te e d isse :

–Vim ver i f icar se es tavam bem, mas vejo que não estão! – Raul es tava perplexo e seguia-os com os olhos

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enquanto entravam em seu car ro – Terei de ar r umar outra famí l ia para vocês, estou cer to?

–Não é nada disso! – d isse Tibor fa lando depressa – Não temos tempo para expl icar ag ora e precisamos da sua a juda mais do que tudo no mundo!

–Como ass im? O que está acontecendo por aqui . . . Sibor?

–Meu nome é Tibor ! Ag ora feche a boca e d i r i ja ! F izeram o homem dar a meia vol ta e seguiram

muito rápido pela Estrada Velha, v i raram na cur va à f rente e cont inuaram pela Estrada Viena em direção à Vi la Guará .

Tibor v inha no banco do passageiro, ao lado de Raul ; Sát i r e Rur ique estavam no banco de trás.

–Podem me expl icar o que está acontecendo aqui , senhor e senhora Lobato? – perguntou o big ode do homem.

Eles bem que tentaram, mas quando a expl icação deles tocou no pr imeiro assunto de assombração, o homem pirou.

–Estão f icando malucos? Vocês entram na f rente de um car ro no meio da estrada e prat icamente abordam o motor is ta , que sou eu, o obr ig am a dir ig i r pra vocês por causa de his tór ias para cr ianças? – os encarou v ia retrovi sor e seu big ode já não parecia mais tão eng raçado. – Vou lhes d izer o que vamos fazer ! – d isse e le p isando no fre io fazendo todo

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mundo voar para a f rente. – Vamos vol tar para o s í t io ! Vou contar tudo à avó de vocês e vou suger i r a e la que providencie um bom cast ig o!

–Nãããão! – gritaram os três quando Raul começou a v i rar o car ro na estrada.

Tibor voou no volante enquanto Sát i r e Rur ique o seguravam por trás.

-O senhor não entende, não é? Nossa avó foi sequestrada! – d isse Tibor – Estamos atrás dela ! Ela foi levada para o Oitavo Vi lare jo e se demorar mos mais, não vol taremos a vê- la !

–Está louco, menino! – g r i tava Raul tentando se desvenci lhar dos braços que o agar ravam. – Aqui só tem sete v i lare jos, não ex is te um oi tavo!

–Existe e é pra lá que estamos indo ! – Tibor g r i tou mais a l to.

O pânico se insta lou dentro do car ro. Quem visse de fora não saber ia o que pensar. Um car ro velho, parado no meio da estrada, com três cr ianças e um senhor que g r i tavam, um mais a l to que o outro, coisas como mula-sem-cabeça e cur upira ; orfanato e cast ig o; menino-fantasma e g or ro maluco.

Até que. . . –ESTÁ BEM! – Raul d isse por f im e todos se

ca laram para que pudesse fa lar. – Está bem! Os levarei até a entrada desse ta l v i lare jo, se é que e le ex is te. . .

–Existe s im, pois. . . – começou Tibor.

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–Tá legal ! – cor tou o homem. – Vou levá- los e de lá i re i vol tar para o s í t io para ter uma conversa muito sér ia com a avó de vocês ! Temos um acordo?

–Temos s im! Ag ora podemos i r? – disse Tibor.

O homem encarou a todos e balançou a cabeça sem conseguir acredi tar no que estava acontecendo com ele. Deu a par t ida no car ro e seguiu v iagem.

O car ro era bem bar ulhento e parec ia que se desmontar ia a qualquer momento.

–Esse troço não vai mais rápido? – perguntou Sát i r.

–Minha nobre quer ida ! – d isse Raul sarcást ico – Estou dando tudo o que tenho! Considere i sso uma sor te !

Ela não disse, mas sabia que era uma sor te mesmo, se aquele car ro não t ivesse aparecido naquele exato momento, a inda estar iam entrando na Estrada Velha.

Passaram-se duas horas do lado de fora do car ro, já do lado de dentro, a adrenal ina era tanta que o tempo voava. F inalmente pareciam estar chegando.

–É al i ! – d isse Tibor apontando para os arbustos na latera l d i re i ta da estrada.

O menino abr iu a por ta e sa l tou do car ro antes mesmo que e le parasse. Os outros dois o seguiram apressados e todos entraram na mata .

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–Ei garotos, esperem! Não podem entrar na f loresta dessa for ma! – disse Raul sozinho parado na estrada. – Ei ! Me respondam! – fechou o car ro e resmungando decidiu i r atrás deles.

Os três andaram pelos g a lhos secos da mata da Vi la Guará tentando encontrar a fenda que div id ia a f loresta em duas par tes. Demoraram cinco minutos e encontraram. Seguiram margeando o buraco a té chegar à ponte Du Avessu.

Raul os a l cançou e quando os v iu atravessando a ponte de ponta cabeça abr iu a boca em completa descrença e deu no pé mais que depressa .

–Não acredi to nisso! – comentou Rur ique ao ver as pernas do homem sumirem por entre as ár vores secas.

F inal izaram a travess ia e encontraram o chalé de bambu completamente vazio e abandonado. O s i lêncio da mata os cercou devagar tornando o mínimo farfa lhar de folhas, um som ameaçador. Os três ouviam as própr ias respirações como se est ivessem ampl i f icadas em um megafone.

Tibor apontou sua lanterna para o chão onde achara pegadas e marcas de um corpo que fora ar rastado.

–Foram por aqui ! – d isse e le. E seguiram a tr i lha marcada por entre as folhas

secas. Tibor ia rezando para que nada t ivesse acontecido à avó. Nunca se perdoar ia se a lg o lhe

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acontecesse, t inha prometido a s i mesmo que não deixar ia n inguém encostar um só dedo nela e quando aconteceu nem por per to e le estava para protegê- la !

Sua ra iva aumentava g radat ivamente, pensou que fosse melhor que Miguel sa ísse do seu caminho quando o encontrassem, pois não responder ia pelos seus atos.

Começaram a perceber uma clare i ra à f rente, a lguns vul tos se moviam por entre as ár vores.

Tibor fez s inal para que se ag r upassem com ele. Sent ia o pei to pulsar constante e o sangue press ionar sua têmpora. Os t rês estavam agachados e juntos quando ele começou com a voz vaci lante, mas a inda ass im f i r me:

–Pessoal , é i sso! Estamos dentro do Oitavo Vi lare jo ! A ant ig a pr isão da Cuca! Não sei o que nos espera . Talvez nos deparemos com a própr ia br uxa! Estamos desar mados, por tanto temos que ag i r juntos e com inte l igência ! – d isse Tibor – Viemos para recuperar nossa avó de vol ta , cer to?

–Cer to! – concordaram. –Boa sor te a todos nós ! – f inal izou o menino. E par t i ram em direção à c lare i ra . Tibor cheg ou mais per to e conseguiu ver Gaí lde

sendo amar rada a uma ár vore por Miguel . O sangue lhe subiu a cabeça e fez menção de par t i r para c ima do menino, mas a mão da i r mã o deteve.

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–O que houve com agirmos juntos e com inte l igência? – disse e la .

Então se l embrou das palavras que uma voz estranha diz ia em seu sonho:

–Contr o l e sua fú r ia e s eu medo ! Controlar minha fúr ia . . . – pensou e le respirando fundo.

Com a cabeça mais ca lma, entrou na c lare i ra e andou a té o meio, Sát i r e Rur ique v ieram log o atrás. Não havia nem s inal da mula-sem-cabeça por per to.

–Miguel ! Sol te a minha avó! – ordenou Tibor. O menino se assus tou e olhou para os t rês. –Como conseguiram chegar aqui com essa

rapidez? – perguntou Tork. Os dois se fuzi laram com o olhar por um breve

espaço de tempo. –Disse para sol tar minha avó ag ora ! – a voz de

Tibor entregava que estava se enfurecendo de novo. – Estou lhe dando mais uma chance de se redimir, Miguel ! Podemos achar um je i to com re lação aos seus i r mãos, não precisa fazer i sso!

Tork encarou o menino por mais um tempo. –Ok, não me impor ta mesmo como chegaram

aqui ! – d isse e le andando a lguns passos na direção dos meninos. – O que impor ta é que f iz a minha par te !

–A sua par te? – quis saber Sát i r. –Exato! – conf i r mou Tork sor rate i ro – Como eu

já lhes d isse, vocês eram par te do plano todo o tempo!

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Foi d i f íc i l , confesso que me deram um pouco de trabalho quanto à c on f iança , mas mesmo ass im conclu í a minha tarefa !

–E deu conta dela muito bem, menino Tork! – d isse uma voz de sotaque ar rastado que reconheceram como sendo a voz do senhor Icas, que também aparecia na c lare i ra . Vinha com dif icu ldade andando com a a juda das muletas. – Terá sua recompensa como lhe prometi ! Terá s im!

–O senhor estava envolv ido? – perguntou Sát i r.

O homem encarou a menina com seus olhos aver melhados.

–Eu g ostar ia que me respondessem uma pergunta , uma só? Êh êh !

Os três o f i taram atentos. Miguel cont inuava parado onde estava.

–Gostaram quando menino Tork invadiu s í t io de o c ê s? Gos ta ram? – qui s saber e le.

Os meninos per maneceram quie tos. Tibor achou um insul to um inter rogatór io ser fe i to àquela a l tura do campeonato. O que aqui l o t inha a v e r com a s i tuação t oda?

–Êh êh ! Claro que num g ostaram! Gosta ram não ! – d isse Icas respondendo por e les. – ENTÃO POR QUE INVADIRAM MEU SÍTIO? – g r i tou e le assustando os três de uma vez.

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Tibor f ranziu o rosto, pensou que, se o homem est ivesse se refer indo ao Oitavo Vi lare jo, apesar de não se tratar de um s í t io, entraram com a per missão de Miguel .

–Não sabem que s í t io é o meu, não é? – Ele os c i rculava com as muletas e seus olhos aver melhados miravam de um para o outro numa velocidade que assustava – Eu vou contar um seg redo pra o c ê s ! – d isse e le chegando mais per to deles, nesse momento puderam sent i r o cheiro for te de fumo impregnado no velho Icas. - Há doze anos o bisavô de o c ê s constr u iu esse lugar pra s ê a pr isão da Cuca! Isso o c ê s j á sabe, num sab e? – e o lhou para Miguel fazendo um s inal e o menino entrou na mata . Menos de um minuto depois, Miguel trazia o cachimbo já aceso para o senhor Icas. – Ela foi muito má, sumiu com quarenta cr ianças numa noi te e num devolveu mais ! Não, não !

Tibor olhou para a avó que cont inuava imóvel . O céu trovejava ao longe indicando uma chuva que v i r ia em breve.

–Dez anos depois e la conseguiu achá um je i to de se so l tá ! – cont inuou ele. – enganou um cabra por a í e t i rô todos os seus poderes ! – Tibor começou a encarar o velho de outra for ma, sabia que estava contando sua própr ia h is tór ia , mas quem e ra e l e? Xamã da f l o r e s ta? Bobag em!

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–Esse cabra t en tô f ug i daqui , mas só conseguiu causá a mor te do c r iadô da ta l pr isão! – Tibor se enfureceu quando o senhor Icas fa lou do bisavô, a lg o subiu por dentro de sua bar r ig a até a sua garganta .

–Chega de enrolar, d ig a quem você é ! – g r i tou e le.

–Êh êh ! Quem sô eu? – d isse Icas – Há há! Num sabe não?

–Tibor ! – chamou Sát i r. – Ele d isse que a Cuca só conseguiu a tra i r a lguém para cá , depois de dez anos que f icou presa , ou se ja , o ta l “novo pris ioneiro” está aqui há dois anos e. . .

– . . . o s í t io que invadimos era do fazendeiro Perei ra ! – cont inuou Rur ique – Que es tá sumido coincidentemente há dois anos !

–O cheiro do fumo dele ! Ag ora eu se i de onde reconheci o cheiro ! Do s í t io dele. – concluiu Sát i r.

Tibor pesou as coincidências todas que os amig os lhe disseram e começou a perceber se tratar de fatos. Então vol tou-se para o Xamã.

–Você matou meu bisavô? Você era o amig o do Cur upira? – quis saber Tibor, sua voz, apesar de baixa , soava como um trovão.

–Amig o eu era ! Mas num matei n inguém não! Só a judei de cer ta maneira , né?

Tibor avançou para c ima do homem que desviou numa habi l idade surpreendente.

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Tibor o estudou, sabia que o velho não podia ser tão rápido ass im, sua idade não compor tava com sua ag i l idade.

–Quem é você? – perguntou Tibor mais uma vez.

–Êh êh ! Saci reno Perei ra , ao seu dispor ! – d isse o homem sol tando as muletas e se equi l ibrando em uma perna só enquanto Miguel lhe trazia um g or ro sur rado, cor de v inho. – Ou pode me chamar pelo apel ido, pode s im! Saci Perei ra ou Saci Pererê , como prefer i r ! Icas é só pra f az ê jus a p iadinha sem g raça que seu bisavô c ontô com aquela ponte, antes de mor rê !

Tibor se espantou com o velho, o lhou as muletas no chão e v iu como o homem se equi l ibrava bem em um pé só. Entendeu o que e le quis d izer com relação à ú l t ima piada, a ponte que o Cur upira constr uiu chamava Du Avessu , se ler o nome “Saci” do avesso, lerá “Icas” .

Sát i r e Rur ique es tavam boquiaber tos, sempre ouviram histór ias sobre o Saci e a l i es tava e le na f rente deles, e p ior : contra e les.

–Seu demônio! – g r i tou Tibor indo na sua direção novamente, mas com um pulo impuls ionado pela única perna, o Saci se esquivou outra vez.

–Não pode comig o! Pode não ! – e apontou para o g or ro descosturado em algumas par tes. – Tenho meu poder de vol ta ! Ah s e t enho ! – d isse e le dando um chute

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digno de capoeira bem no meio do pe i to do menino, que ca iu no chão com fa l ta de ar.

Sát i r não conseguiu f icar parada ao ver o i r mão ser g olpeado br uta lmente daquela maneira . Par t iu para a br ig a , mas tanto e la quanto Rur ique receberam o mesmo g olpe e, como Tibor, acabaram no chão.

–Menino Tork! – chamou Sacireno. – Começa log o esse r i tua l ! Quero sa í daqui a inda hoje ! Ah se quer o ! – e deu as cos tas para e les.

Tibor entendeu o que estava acontecendo e era exatamente o que temia . Saci reno i r ia trocar de lugar com Gaí lde, sa indo em l iberdade do oi tavo v i lare jo e deixando sua avó como pr is ioneira em seu lugar.

–Êh êh ! I rônico! É s im! F i lha vai f ica presa no lugar di eu , na pr isão que o própr io pai fez ! Vai s im! – d isse e le tragando seu cachimbo enquanto quarenta cr ianças sa íam do meio da mata para a c l are i ra e for mavam o c í rculo do r i tual .

Saci reno Perei ra pulava de a leg r ia quando Tibor avançou para e le uma tercei ra vez, fora inút i l , mais uma pesada o der r ubara de costas no chão a quase três metros de dis tância de onde estava. T ibor, a lém de dolor ido, estava f icando i r r i tado. Não conseguia se aproximar do velho.

Miguel levava uma taça para Gaí lde que a inda estava desacordada.

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Rurique olhou para Sát i r e sa í ram os dois em meio às cr ianças fantasmas, que nem lhes davam atenção, na direção de Miguel . Tibor percebeu o que os amig os estavam tramando e tentou ao máximo manter Saci reno ocupado. O que era bem dif íc i l , pois i sso inclu ía muitos pontapés. Rur ique fez s inal para Sát i r, e le trazia nas mãos uma das espadinhas de madeira com a qual acer tou o topo da cabeça do menino fantasma. A taça foi der r ubada, Miguel enfurecido se muniu com um pedaço de ár vore que estava no chão e começou a travar uma br ig a v iolenta com Rur ique.

O menino mag r icela , f i lho de Avel ino e Eulá l ia , parecia ter tre inado a v ida toda para aquele momento e não se int imidou perante o adversár io.

Sát i r desamar rou a avó que começou a acordar devagar.

Tibor já estava com o rosto ensanguentado e não aguentava mais apanhar do velho. Caía mais uma vez ao chão enquanto contava já ter perdido dois dentes da boca.

Tibor anal i sou a s i tuação e v iu que tudo parecia perdido! Os três se d iv id i ram, mas não adiantar ia . Sát i r estava com a avó e Tork era tão bom quanto Rur ique na espada, mas mesmo se vencesse o menino, mais quarenta cr ianças do a lém es tar iam prontas para a bata lha e e le mesmo, nunca conseguir ia vencer

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Sacireno, acredi tava que mais uma pesada daquelas ser ia o suf ic iente para subjugá- lo.

–SACIRENO PEREIRA! – chamou uma voz autor i tár ia em meio à mult idão de cr ianças macabras.

Tibor tentou ver quem fa lara , mas as cr ianças dançar inas e loucas tampavam sua v isão.

Saci reno, por sua vez, parou de pular e se v i rou para ver quem t inha chamado seu nome naquele tom de ameaça. Parecia ter se i r r i tado com as cr ianças sa l t i tantes também, pois deu um assobio que quase estourou os t ímpanos de todos a l i presentes e o r i tua l cessou.

Só ass im pôde ver quem o chamara, est icou sua cabeça medonha e ar regalou seus olhos ver melhos.

Era Gaí lde! Vinha andando abr indo caminho em meio aos trasg os, sua neta v inha a seu lado. Tibor pôde ver Rur ique e Miguel atracados mais atrás. Um breve g olpe de Miguel quebrou metade da espada de madeira que Rur ique t inha esculpido e o menino já se punha a atacar novamente. Pareciam dois g ladiadores lutando.

Saci reno encarou a avó dos meninos e sua face estava mais ameaçadora que nunca.

–Êh êh ! – começou o saci . – Resolveu aco rdá e br incá um pouquinho , f o i ?

–Já chega de br incadeiras ! – d isse e la ner vosa. Tibor nunca v i ra a vó daquele je i to e percebeu, dava

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at é medo ! Um pinguinho de esperança brotou no pei to do menino quando ouviu a avó dizer. – Vou fazê- lo pagar pelo mal que fez a toda a famí l ia Lobato!

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Um for te vapor pareceu v i r de todos os cantos da

c lare i ra quando Gaí lde fechou seus olhos. A pedra em seu pei to começou a br i lhar com uma tonal idade verde e Tibor pôde perceber que Sacireno f inalmente es tava assustado.

Os trasg os começaram a olhar ao redor para saber de onde aquele bafo quente es tava sa indo, fo i quando a cobra de fog o verde se mater ia l izou no meio da c lare i ra .

Seus doze metros de comprimento, const i tu ídos de chamas, fez com que todos os meninos fantasmas sa íssem cor rendo desesperados.

Miguel Torquado der r ubou Rur ique com um g olpe do pedaço de ár vore que t inha nas mãos, mas quando v iu a serpente g ig ante, larg ou o pedaço de pau e cor reu para a mata para junto dos seus.

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Tibor sent iu que não o ver ia mais, pelo menos não mais naquela quaresma; e f icou a l iv iado por i sso.

–Voltem, seus covardes ! – d isse Saci reno. – É só uma maldi ta cobra ! É s im!

A enor me cobra es tava enrolada em torno de s i mesma e encarava o Saci com as presas brancas à mostra . Seu s i lvo era a l to e ameaçador.

–É a hora da revanche! – pensou Tibor a inda no chão, com a bochecha inchada ao ver Saci reno a sós na c lare i ra , f rente a f rente com o Boitatá .

–Pensa que pode c on t ra eu? Pensa? – d isse Saci reno sem t i rar o cachimbo da boca. – Sô o Sac i Per e r ê ! – fa lou isso batendo as mãos no pei to nu e encarando Gaí lde por entre as labaredas da cobra . – Eu mando nas matas ! Mando s im! Seu pai fo i to lo de ca i r na ar madi lha que aprontei pra e le ! Ela quer ia que eu atra ísse você para o Oitavo Vi lare jo, para que o Cur upira pudesse v i r lhe sa lvar ! Quer ia s im! – deu uma tragada e sol tou a fumaça branca e fedorenta pelo ar. – E ele veio e e las o pegaram! Pegaram s im! As duas de uma vez só! Êh êh ! E f o i - s e embora pr o a l ém, s e f o i s im!

Gaí lde fechou a cara . Sem dizer palavra , estendeu sua mão dire i ta na direção de Sacireno e como se fosse uma ordem, a cobra deu o bote. No mesmo instante, Saci reno se esquivou com seu corpo velho e esguio.

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Boitatá a inda tentou cravar suas presas cor de marf im no Saci por mais umas duas vezes, mas com o g or ro, o velho parecia ter g anhado mesmo forças sobrenatura is.

Mais uma tenta t iva do Boitatá e dessa vez e le não fug iu , Tibor e os outros t inham, inclus ive, pensado que o Boi tatá conseguira pegá- lo, mas a verdade é que Sacireno g i rou em torno de s i , no mesmo lugar onde estava e se transfor mou em um pequeno furacão.

Tibor não podia crer naqui lo !

O mini tufão de Sacireno estava ev i tando a aproximação do Boitatá . A serpente de fog o esverdeado tentava re lutante dar o g olpe cer te i ro pelas latera is, por c ima e por baixo, mas o vendaval que o Saci provocara era tão for te que o repel ia em qualquer d i reção que tentasse.

A avó dos meninos parecia es tar fazendo uma força g ig antesca para manter o Boi tatá na invest ida . Estava tremendo, t inha ag ora as duas mãos estendidas à f rente e seus olhos cont inuavam fechados. Gotas de suor começavam a descer de sua testa enquanto Sacireno gargalhava de dentro do rodamoinho.

–É inút i l , sua velhota ! – d isse e l e debochado – Hoje o c ê va i ser presa aqui nesse Vi la re jo, va i s im! E num va i mais sa í daqui ! Nunca mais ! Vai não ! – g argalhou mais uma vez – O seu pai não lhe ens inô

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nada sobre o Mui raqui tã , não é mesmo? Esqueci ! Bateu as bo ta antes de en s iná !

Gaí lde tentava se concentrar tentando ignorar as provocações dele, mas ag ora o vendaval de Saci reno começava a empur rar e ar rastar a cobra para trás.

–O Boita tá aparece com a a juda do Mui raqui tã ! – começou o Saci . - A pedra precisa de energ ia pra pod ê mat e r i a l izá a cobra !

Os joelhos de Gaí lde começavam a ceder. Ela abr iu os olhos e sua expressão era de dor. Tibor tentou fazer a lguma coisa , mas ao se aproximar do rodamoinho, o vento que a l i g i rava mandou Tibor para longe. Rur ique se juntou à Sát i r, mas os dois também não podiam fazer nada.

-Ele usa a energ ia da v ida do por tador do Muiraqui tã ! – cont inuou Sacireno.

Tibor tentava se l evantar mais uma vez, mas rea lmente nada podia fazer a não ser torcer para que a avó conseguisse sub jugá- lo.

–Acha que pode v enc ê eu? Com essa cobr inha de fog o? Acha? – perguntou Sacireno. – Esse seu Boita tá é uma verg onha, é s im! Porque sua força v i ta l es tá f raca ! Porque o c ê tá ve lha demais para v enc ê !

Não g ostavam de ver a avó naquela s i tuação. Era como se e l a es t ivesse mor rendo na f rente dos olhos deles. Gaí lde tremia demais e parecia começar a perder o controle do espír i to de fog o da f loresta . Tibor podia

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ver as l ág r imas escor rerem dos olhos da avó e o aper to em seu pei to crescia mais e mais.

Então Sacireno Pere i ra aumentou a intens idade de seu vendaval e Tibor pôde ver a serpente vaci lar. Era como se o fog o est ivesse para apagar, como uma vela .

O furacão f icou duas vezes maior, soprou e soprou até que Boitatá foi se ext inguindo e de repente se apag ou por completo.

O fr io dominou a c l are i ra ass im como o medo e a escur idão.

Saci reno parou de g i rar e deu a l tas g argalhadas. Encarou Gaí lde nos olhos e desfer iu :

–Velhota ! Ocê já e ra ! Era s im! – d izendo isso foi pulando veloz a té e la e lhe mirou uma pesada no pei to.

Antes que Gaí lde pudesse reag ir, o pé de Saci reno at ing iu seu a lvo, acer tou bem no Muiraqui tã .

Tibor pôde ver a cena toda em câmera lenta . O Saci deu um impulso para trás e ca iu de pé, enquanto a avó voou para trás, no colo de Rur ique e da i r mã, mas a pedra mágica que car regava no pescoço estava espat i fada em fare los e cacos de jade.

Tibor levou as mãos à boca em desespero.

A pedra era a única for ma que t inham para deter Saci reno Perei ra e seu plano de prender a avó no Oitavo Vi lare jo. Sem ela es tavam fr i tos !

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Sua gargalhada era f r ia e causava ar repios. Os re lâmpag os no céu pareciam fazer par te de seu show al i na c lare i ra , pois seus f lashes luminosos deixavam a s i lhueta esguia do Saci com uma aparência bem medonha.

Tibor pôde vê- lo se aproximar da avó, Rur ique se colocou entre e le e Gaí lde, mas com um só g olpe, o Saci l ivrou o caminho até e la fac i lmente.

Foi a vez de Sát i r interfer i r, e lá se foi o pé ág i l de Saci reno direto no rosto da menina, sem dó e nem piedade.

Ele parecia es tar rea lmente doido para fug ir de sua pr isão.

Cheg ou até a avó dos meninos e d isse : –Suas i r mãs me prometeram l iberdade se eu

trouxesse os seus netos para cá , eu num podia sa í da pr isão então promet i coisas que todo fantasma sonha, a v ida ! Pr omet i s im ! Ass im consegui que Miguel se inf i l t rasse na v ida de o c ê s , esse era o plano delas ! Mas era tudo menti ra ! Era s im! Descobr i como funciona o Vi lare jo há tempos atrás ! – Ele a peg ou pelo pé e começou a ar rastá- la aos pulos até o centro da c lare i ra . – Não é preciso um ser fantást ico para ser apr is ionado aqui , não é mesmo? É necessár io apenas en t rá com um i tem mágico, ass im como elas f izeram comig o e com o meu g or ro e depois o t i rar da pessoa, b loqueando todas as suas fontes de poder ! Quando

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percebi , mudei o plano todo, mude i s im! – e le parou e sol tou a perna de Gaí lde, parecia que e la não conseguia mover nenhum músculo para se proteger. – Êh êh ! Acabei de f az ê i sso com você, t i r e i sua fonte de poder ! Tir e i sua pedr i nha , t i r e i s im!

Tibor se colocou de pé e não sabia como, mas pretendia voar d i reto no pescoço do Sac i .

–Sem meu g or ro eu não sô nada, sabe disso! – cont inuou Sacireno – Ocê fo i muito esper ta em escondê- lo de mim em minha própr ia casa , num fo i ? Pena que o dest ino é tra i çoeiro às vezes ! Olha a i ronia presente de novo! Seus própr ios netos o encontraram pra mim e bem debaixo do seu nar iz ! – e completou seu re lato com mais g argalhada.

Tibor tentou per manecer s i lencioso e, quando v iu a opor tunidade, cor reu na direção de Sacireno.

Bum!

–Êh êh ! É inút i l , g aroto, des is ta !

Tibor abr iu os olhos e estava novamente no chão, nem vira o g olpe que o at ing ira .

Saci reno se vol tou para Gaí lde e cont inuou:

–Não preciso daque les espír i tos covardes ! Sei f azê o r i tua l da troca sozinho. Foi mais uma piadinha sem g raça que seu pai deixou pra que eu possa dar r i sada quando sa i r daqui ! – E começou a mur murar cer tos encantamentos ao redor de Gaí lde.

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A chuva começava a ca i r sobre o Oitavo Vi lare jo, o céu fechado pelas nuvens pretas não dava mais o ar da esperança e Tibor sabia que tudo estava perdido. Do chão pôde ver Rur ique e a i r mã nas mesmas condições que e le ; es ta te lados no chão sem forças para reag ir, não sabia nem se estavam acordados.

O Saci c i rcundava aos pulos o corpo da avó iner te. Dizia palavras sem nexo e es ta lava os dedos, parecia estar em uma espécie de transe. O bisavô constr uíra a l i não só uma pr isão, mas uma for ta leza , pois ser ia imposs ível a lguém atravessar aquela fenda que c i rcundava toda a pr isão e ser ia improvável também que a lguém descobr isse como atravessar a única por ta de entrada, a Du Avessu.

A avó começava a t remer e sacudir o corpo todo no chão e o sor r iso que apareceu nos lábios de Saci reno comprovava que o r i tua l de troca es tava dando cer to. Trag ou mais uma vez o seu cachimbo fedorento e soprou a fumaça no rosto de Gaí lde, como se quisesse humi lhá- la .

Tibor, porém, começou a perceber a lg o acontecer. Sentiu uma presença poderosa se aproximar, mas não f i s icamente, era como se aproximasse de sua mente. Não era como da pr imeira vez. Era poderosa , mas não mal igna. Pensou es tar f icando louco por conta dos fer imentos e uma voz disse como que em resposta :

–Não! Não e s tá !

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Ele abr iu os olhos e percebeu que a voz fa lara apenas em sua cabeça.

–Quem é? - pensou e le reconhecendo a voz como sendo a do seu sonho. Os ping os f inos da chuva sa lp icavam seu rosto.

–Acha que o t e s t e que lhe ap l ique i f o i em vão? –Você s e r e f e r e ao meu sonho? –Exato ! – disse a voz em sua cabeça - Esco lh i vo c ê ! Tibor se lembrou do que a avó dissera sobre o

sonho, era um tes te de apt idão para um dia adquir i r o muiraqui tã .

–Ela s e enganou em sua in t e r pr e ta ção ! – disse a voz. – Esse é o MEU te s t e !

–Quem é vo c ê? – ins is t iu Tibor.

A resposta veio como um balde de água quente lhe trazendo esperança renovada.

–Eu sou o Bo i ta tá , o e sp í r i t o de f ogo que t raz o equi l í b r i o para as matas ! Sou amigo de Curupi ra , s eu b i sa vô ; e po r pa ssar no meu t e s t e , eu o r e conhe ço, T ibor Lobat o, c omo um l eg í t imo s e r d e co ra ção pur o. Mas a inda t e rá d e s e l embra r de uma co i sa . . .

E o menino sabia a que e le estava se refer indo:

–Contr o l e sua fúr i a e s eu medo ! – lembrou-se e le – Ter ia que cont r o lar o s eu medo e T ibo r mor r ia d e medo d e f ogo ! – Tudo fazia sent ido.

–Exatamen t e ! – disse- lhe a voz.

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Tibor respirou fundo, parecia que a té o ar que entrava em seus pu lmões ag ora era d i ferente, sent iu que poder ia fazê- lo, sent iu que era capaz, se concentrou e pensou:

–Ok! Estou pr onto ! Tibor começou a sent i r energ ia renovada em seu

corpo, parecia estar recar regando suas bater ias. –O que e s tá a cont e c endo comigo? – quis saber e le. –Este é o meu pr e s en t e ! Estou lhe con c edendo uma

chan ce de equi l i bra r o j og o ! Se qui s e r , po s s o de ixar que me comande em pr o l da v i t ó r ia !

–Clar o que quer o ! Pr e c i so sa l var minha av ó ant e s que s e j a ta rde !

–Então s e c o l oque d e pé e me convoque ! – d isse a voz g rave em tom de comando.

Tibor se levantou depressa e parecia não haver mais d i f iculdade nisso!

Saci reno o obser vou cur ioso. –O que tá fazendo, menino -be s t a? – d isse e le – Êh

êh ! É melhor f i cá no chão para não apanhá mais, é s im! O menino estendeu o braço na direção do Saci , o

tempo pareceu se congelar nesse instante. Sent iu a força descomunal que estava em seu poder e g r i tou:

-BOITATÁÁÁÁÁÁ! Labaredas verdes surg i ram de todos os lados da

c lare i ra e se uniram às cos tas de Tibor, rodopiaram trançando-se entre s i até for marem o corpo de uma

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cobra de uns tr inta metros de a l tura . Os olhos da cobra pousaram em Sacireno como se e le fosse um rato suculento que devia ser devorado.

Sát i r e Rur ique se sentaram onde estavam e f icaram vis lumbrados com a v isão.

–Meu i r mão. . . – sussur rou Sát i r pasma.

Saci reno começou seu g i ro f renét ico se transfor mando novamente em rodamoinho, mas Boi tatá o deu um peteleco com a ponta do rabo e o Saci voou direto para o chão.

Colocou-se de pé, apoiado em sua única perna e encarou o Boitatá por um tempo, aval iando suas poss ib i l idades !

–Ocê pen sa que a cabô , né menino -b e s ta ! Pensa s im! – d isse para Tibor. – Num a cabô não ! Hum hum! – d isse e le fazendo que não com a cabeça.

Tibor olhou para Boi tatá e a voz em sua cabeça disse :

–É com vo c ê T ibor !

–Não posso faz er i s so ! Se i o que va i a cont e c e r ! – pensou e le. –A f l o r e s ta t oda va i arde r em chamas ! Vi i s so a cont e c e r no meu sonho ! – lembrou-se de seu pesadelo.

–Que bom que pensa as s im! Mas vou lhe ens inar uma co i sa ! Acha me smo que o e sp í r i t o da f l o r e s ta i r ia de ixá- l a que imar?

–Como ass im?

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–Se conc ent r e naqui l o que que r e t udo pegará f ogo, mas soment e o que pr e c i sa s e r d e s t ru ído as s im o s e rá !

Sacireno, ta lvez, percebeu o plano nos olhos de Tibor e pôs-se a cor rer da mesma for ma que os trasg os cor reram. Tibor pensou: que covarde ! – pôde vê- lo se d is tanciando por entre as ár vores, v iu também que Sát i r e Rur ique conseguiram chegar até Gaí lde que ag ora estava acordada olhando para e l e.

Uma a leg r ia tomou conta do menino, fechou os olhos, imaginou Sac ireno Perei ra e os abr iu novamente ordenando:

–QUEIME-O! E a cobra se explodiu em chamas verdes que

seguiram queimando, em um tra jeto c i rcular, por toda a extensão do Oi tavo Vi lare jo. Um estouro tão bar ulhento que Tibor pensou terem escutado de todos os v i lare jos. Se não escutaram, ao menos v i ram o c larão esverdeado que se estendeu por qui lômetros ao redor.

Tibor pôde ver a mesma imagem de seu sonho, uma clare i ra envol ta em fog o por todos os lados, mas dessa vez não t inha mais medo!

E desmaiou.

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Tibor abr iu seus olhos e quase f icou ceg o quando

a luz do sol invadiu suas pupi las. Acostumou-se com a luz e notou que estava em seu quar to. Estava de vol ta ao s í t io. Como cheg ara até a l i ? A úl t ima coisa de que se lembrava eram os ping os de chuva ca indo em seu rosto em uma f lores ta incendiada.

Seu corpo parecia leve, era como se t ivesse nascido de novo!

–Ei , vó! – era a voz da i r mã – Cor ra ! Ele está acordando!

E reconheceu as três cabeças que apareceram em seu campo de v isão.

Eram Rur ique, Sát i r e Gaí lde. –Vocês estão bem? – perguntou e le como se

usasse sua boca pela pr imeira vez. Os três se entreolharam.

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–Se nós estamos bem? – disse Rur ique. – Nos dig a você! Está apagado nessa cama por três d ias !

–Três d ias? – repet iu . –É! Hoje é d ia 3 de abr i l ! Sabe o que i sso

s ignif ica? – perguntou Sát i r. –Não! –Que a quaresma j á acabou! – disse a menina. Tibor abr iu um sor r iso a l iv iado, ag ora entendia

bem porque todos d iz iam que a quaresma poss ib i l i tava a apar ição de seres fantás t icos.

–Não foi de todo r uim! – disse e le – Mas acho que todos nós preci samos de umas fér ias da quaresma, não acham?

E concordaram com a cabeça. Ajudaram Tibor a se sentar na cama. –O que é aqui lo? – quis saber Tibor ao ver um

pacote com l ivros e cadernos ao lado da cama. –Nosso mater ia l escolar ! – d isse Sát i r – Nossas

aulas com Dona Eulá l ia começam na semana que vêm! –Hum! – o garoto não pôde deixar de fazer uma

careta . Olhou para os três. –Vó! – chamou ele – O que aconteceu com

Sacireno Perei ra? Ela mudou sua expressão e f icou sér ia . –Receio que tenha conseguido escapar ! – d isse

e la . – Ass im como Miguel e os trasg os !

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–Então e les podem vol tar? Ela apenas assent iu . Ele parou e pensou um pouco. –Nossa br ig a no v i lare jo foi de cer ta for ma em

vão, não foi? –Não, Tibor ! – d isse e la – Não acredi to que tenha

s ido em vão! –Mas se Saci reno escapou, então. . . –Boitatá é um ser que traz o equi l íbr io ! Ele só

destr uiu aqui lo que precisava ser des tr uído. O Oitavo Vi lare jo foi ú t i l por long os anos, a té descobr i rem como ele funcionava, depois d isso, passou a ser uma ameaça!

–O Oitavo Vi lare jo foi destr u ído? –Completamente! – d isse a avó. Tibor lembrou-se que Boitatá lhe dissera que

poder ia controlá- lo para “equi l ibrar” o jog o em prol da v i tór ia ; e fo i o que aconteceu!

–Mas e a f loresta? – quis saber Tibor – Boi tatá me disse que não a queimar ia !

–E não a queimou! Após a chuva, o fog o se apag ou e as poucas folhas da f loresta cont inuaram al i sem nem mesmo um cent ímetro chamuscadas !

–E quanto à Cuca? –O que tem ela? –Onde es tá? Ela é o pivô dessa confusão toda e

nem deu as caras ! – d isse o menino.

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–Deve es tar em algum canto escondida, mor rendo de medo de um menino que tem o controle de uma cobra de fog o de tr inta metros de comprimento!

Tibor deu r i sada. –E quem é a outra i r mã? –Ela é conhecida como Pisadeira ! Não pense que

e la é menos per ig osa que a Cuca! É que a Cuca é ex ibic ionista e tem uma fama que a precede, mas não faz nada sem o consent imento da i r mã!

Tibor olhou pela janela lembrando-se da velha fare jadora que os perseguiu log o nos pr imeiros dias que estavam no s í t io. Pelo tamanho das pegadas que encontraram dia seguinte, pôde imaginar o porquê do codinome Pisadeira .

–Vó! –Hum? –Como o Cur upira foi mor to? Gaí lde respirou fundo por se tratar de um

assunto del icado, mas achou que o garoto dever ia saber.

–Saciereno me levou até a pr isão da Cuca, o que fez com que meu pa i o seguisse. Os doi s eram amig os e nunca i r ia imaginar uma tra ição v inda do Saci . Lá chegando, o Cur upira foi envenenado pelas duas br uxas. Tentou vol tar para a mata em busca de um ant ídoto. Além de tudo seu bisavô também era um curandeiro, e dos bons! Mas e las cuidaram para que

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não houvesse ant ídoto por per to e e le começou a ter a lucinações por conta do veneno. Acabou nas g ar ras de caçadores de onça que vendiam sua pele no mercado neg ro. Esses eram caçadores a quem o Cur upira t inha acabado de dar uma l ição, fazendo com que e les se perdessem pela mata . As a lucinações o deixaram tão desor ientado que nem soube de onde v ieram os t i ros de espingarda que o a t ing iram.

Tibor f icou imaginando a cena e seu ódio pelas t ias-avós cresceu a inda mais, mas percebeu que es tava f raco e pela exper iência que teve naquela quaresma entendeu que a inda t inha mui to o que fazer para estar pronto para encarar as duas.

–Como sa ímos do v i lare jo? –Ah! Encontramos Raul do lado de fora , ao lado

da Du Avessu, tentando atravessar. Ele fez o favor de nos dar uma carona e eu t ive de prometer que dar ia um cast ig o severo a vocês !

Todos r i ram no quar to. –Acha que estaremos em segurança até a próxima

quaresma? – quis saber Tibor. A avó pensou e respondeu com um sor r iso

car inhoso nos l ábios : –Acho que s im! Mais tarde Tibor desceu as escadas com a a juda

do amig o Rur ique e fez um t ou r pelo s í t io.

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Segundo a avó, aquele d ia era um dia especia l ! Não só por conta de a quaresma ter acabado ou porque os eventos que se iniciaram tinham prat icamente s ido conclu ídos ou porque es tavam todos bem, mas s im porque era sábado de a le lu ia .

Tibor não sabia exatamente o que isso signif icava, mas desceu a té a f rente da casa e fez questão de despir os sapatos. Precisava sent i r a g rama do s í t io entre os dedos. Olhou ao redor e v iu o cele i ro parcia lmente destr uído. Aleg rou-se ao ver a manguei ra car regada de mangas ; o poço, o ga l inheiro, apesar de tudo o que acontecera a l i , tudo estava bem.

Tibor e Rur ique se reuniram a todos os outros no quinta l . Al i es tavam Sát i r e Gaí lde, e Eulá l ia e Avel ino. Rur ique lhe contou que foi até o s í t io da famí l ia Bronze, mas parecia que Málabu a inda não t inha vol tado de v iagem e não havia nem s inal de cor uja por lá .

–Depressa , menino! – disse Gaí lde para Rur ique - Sabe o que fazer, não sabe?

–Sei ! – d isse e le indo para a cozinha e vol tando para o quinta l t razendo uma bacia g rande de meta l nas mãos.

O menino colocou-a no chão e parecia escolher um lugar cor reto para deixá- la .

–Não se esqueça de que a lguns cent ímetros fazem toda a d i ferença! – d isse a mãe do menino.

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–Eu sei mãe! – disse e le. Sát i r t razia um balde com água e o despejou até a

boca da bacia prateada. Rur ique olhava do céu para a bacia e fazia as ú l t imas cor reções quanto ao lugar cor reto que a bacia dever ia f icar.

Tibor também olhou para o céu e e le parecia tão nor mal quanto tantos outros dias ensolarados que t iveram; não entendia o que es tavam fazendo.

–Pronto? – quis saber Sát i r. –Pronto! Está perfe i to ! – respondeu a avó –

Ag ora é só esperar acontecer ! Todos se colocaram de pé ao redor da bacia , que

à pr imeira v is ta parecia apenas uma bacia de meta l com água.

–A qualquer momento! – disse a avó. Tibor só v ia o ref lexo do sol na água da bacia , fo i

ass im por dois demorados minutos. Olhou para todos para ter cer teza de que não estavam vendo nada mais do que e le. F i tou a i r mã que deu de ombros s imbol izando que também não es tava entendendo nada.

O fundo da bacia br i lhava enquanto a água se aquietava a l i dentro.

–O que se supõe que devemos ver? – perguntou Tibor.

–Shhh! – fizeram Rurique, Gaílde, Avelino e Eulá l ia juntos.

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–Você verá ! – d isse a avó.

Tibor sol tou uma r isadinha, pois achou estarem pregando uma peça nele, mas depois de uns segundos sem manifes tação de nenhum deles, percebeu que não estavam. O menino começava a f icar impaciente com a bacia que não t inha nada demais, quando. . .

–Olhem! – disse Rur ique.

Um círculo tão br i lhoso quanto o que ser ia o ref lexo do sol apareceu na bacia . Eram dois c í rculos gêmeos que a l i estavam. Tibor e Sát i r o lharam para o céu e só v i ram um sol a br i lhar, no entanto o ref lexo mostrava dois sóis. O que era aquele outro c í rculo e les não sabiam. Foi então que o c í rculo novo começou a c i rcular o ref lexo verdadeiro do sol . Se aproximando devagar passou a ocupar aos poucos o mesmo lugar, como se os dois sóis se fundissem dentro da bacia , depois esse mesmo cí rculo br i lhoso seguiu até a extremidade da bacia e sumiu.

Tibor e Sá t i r não sabiam o que t inham acabado de presenciar, mas certamente acharam muito interessante. Não sabiam de onde v inha aquele outro c í rculo que aparecera , e le apenas surg iu , passou pelo sol ref let ido e se foi .

Acabou! – disse Gaí lde – E a í? Gostaram?

–Acho que s im! – respondeu Tibor confuso.

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–Imaginei que ter iam essa reação – disse Gaí lde se refer indo ao ros to dos i r mãos que pareciam es tar perdidos e sem g raça .

–Adorei presenciar esse fenômeno com todos vocês, aqui , reunidos ! – começou ela se d i r ig indo a todos. – Esse é um evento único que acontece apenas uma vez por ano e é sempre no sábado de a le lu ia ! Muitos costumes se perderam com o tempo e esse é um costume que meu pai me ens inou a não esquecer ! – d isse e la com lág r imas nos olhos. – Ninguém sabe dizer o que é esse c í rculo mister ioso que aparece juntamente com o sol , dentro da bacia , por esse breve instante ! Mas meu pai me revelou o seg redo!

Todos f icaram atentos.

–O dia de a le lu ia é uma tradição de famí l ia ! É um fenômeno sem uma lóg ica . Meu pai acredi tava que aquele outro c í rculo era a Mãe D’ouro, uma espécie de espír i to protetor de todos os seres ! – expl icou Gaí lde – Meu pai d iz ia que vê- la é como receber sua benção! Traz boa sor te e reforça os laços afe t ivos entre as pessoas que a v i ram juntas ! Pena que na minha infância deixávamos escapar momentos como esse, ta lvez as coisas fossem diferentes hoje ! – Seus olhos f icaram dis tantes por um momento – Sou g rata por tê-los aqui em meu s í t io e que essa união que par t i lhamos j amais se ja desfe i ta !

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Tibor e Sát i r abraçaram a avó que durante seu discurso fa lava para todos, mas olhava diretamente para os dois.

–Jamais será desfe i ta , vó! – prometeu Tibor enquanto e la acar ic i ava seus cabelos e os de sua i r mã.

–Bom, a mesa do a lmoço es tá posta ! – d isse Gaí lde enxugando as lág r imas e mudando de assunto – f iz z i lhões de coisas g ostosas !

E Tibor não duvidava disso. Todos entraram cor rendo e o garoto f icou para

trás de propósi to. Respirou fundo e deu uma boa olhada no s í t io. Quis acredi tar no que a avó dissera em seu quar to! Que pelo menos até a próxima quaresma, tudo estar ia em paz!

Esta obra foi composta em Garamond em outubro de 2011 para a Edi tora Patuá.