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6 O CHUMBO DO ENRIQUECIMENTO INJUSTIFICADO PELO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Em 29 de maio de 2015, a Assembleia da República aprovou o regime que institui o crime de enriquecimento injustificado, por via do Decreto n.º 369/XII. A OPINIÃO DE Catarina Vaz Gomes, Advogada na Sociedade Gameiro e Associados S ucede que o diploma, que previa duas normas, suscitou dúvidas ao Presidente da República, que, consequentemente, apre- sentou junto do Tribunal Constitucional o pedido de fiscalização de constitucionalidade das normas em questão, constantes do n.º 1 do seu art. 1.º, na parte em que aditava o art. 335.º- A ao Código Penal, e do seu art. 2.º, na parte em que aditava o art. 27.º-A à Lei n.º 34/87 de 16.07, que aprova o regime dos crimes de respon- sabilidade dos titulares e cargos políticos. O pedido de fiscalização de constitucionalidade teve na sua base os seguintes fundamentos. Por um lado, não estaria em causa matéria nova no ordenamento jurídico português, sendo que já durante a presente legislatura o Parlamento havia aprovado o regime do então designado “enrique- cimento ilícito”, através do Decreto n.º 37/XII, o qual havia sido objeto de fiscalização preventiva da constitucionalidade, tendo o Tribunal Consti- tucional decidido pela inconstitucionalidade das suas normas, no Acórdão n.º 179/2012, com fun- damento na indefinição do bem jurídico protegi- do, na indeterminação da ação ou omissão con- cretamente proibida e na violação do princípio da presunção de inocência. Apresentando a sua concordância com os funda- mentos invocados no Acórdão, acrescentou que, por outro lado, o diploma violaria o princípio da proporcionalidade, na vertente da necessidade, porquanto no Direito Penal estão em risco va- lores máximos da ordem jurídica num Estado de Direito, como a liberdade, não podendo, por esse motivo, subsistir a dúvida sobre a incriminação de condutas. Com esta motivação, apresentou o Presidente da República o pedido de fiscalização preventiva da constitucionalidade do Decreto n.º 369/XII, por violação dos artigos 2.º, 18.º/2, 29.º e 32.º/2 da Constituição da República. Consequentemente, pronunciou-se o douto Tri- bunal, com a fundamentação seguinte. Em primeiro lugar, o Decreto n.º 37/XII já havia sido devolvido ao Parlamento, na sequência da pronúncia de inconstitucionalidade e retirava-se da leitura de “exposição de motivos” do proje- to de lei n.º 798/XII que esteve na origem do Decreto n.º 369/XII que o legislador manteve a medida de política legislativa criminal análoga ao primeiro, não obstante determinadas diferenças que se expõem sumariamente, que não justifica- riam decisão diferente do Tribunal: o Decreto n.º 369/XII apenas prevê a introdução de dois tipos legais de crime, abandonando a incriminação au- tónoma do crime em questão quando praticado por funcionário; neste Decreto prevê-se o crime de enriquecimento injustificado e já não de enri- quecimento ilícito; foi eliminado o elemento re- ferente à ausência de origem lícita determinada; foi eliminada a expressão “se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal”; o conceito “bens legítimos” deu lugar ao conceito “bens declarados ou que devam ser declarados”; o legislador vem enunciar os bens jurídicos que visa proteger; já não se prevê que o Ministério Públi- co faça a prova de todos os elementos do crime de enriquecimento ilícito (agora injustificado). Também no entendimento do Tribunal, o princí- pio da necessidade da pena, sediado no art. 18.º/2 DIREITO

A OPINIÃO DE Advogada na Sociedade Gameiro e Associados O ... · 16.07, que aprova o regime dos crimes de respon - sabilidade dos titulares e cargos políticos. O pedido de fiscalização

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O CHUMBO DO ENRIQUECIMENTO INJUSTIFICADO PELO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL

Em 29 de maio de 2015, a Assembleia da República aprovou o regime que institui o crime de enriquecimento injustificado, por via do Decreto n.º 369/XII.

A OPINIÃO DE Catarina Vaz Gomes, Advogada na Sociedade Gameiro e Associados

S ucede que o diploma, que previa duas normas, suscitou dúvidas ao Presidente da República, que, consequentemente, apre-sentou junto do Tribunal Constitucional

o pedido de fiscalização de constitucionalidade das normas em questão, constantes do n.º 1 do seu art. 1.º, na parte em que aditava o art. 335.º-A ao Código Penal, e do seu art. 2.º, na parte em que aditava o art. 27.º-A à Lei n.º 34/87 de 16.07, que aprova o regime dos crimes de respon-sabilidade dos titulares e cargos políticos.O pedido de fiscalização de constitucionalidade teve na sua base os seguintes fundamentos.Por um lado, não estaria em causa matéria nova no ordenamento jurídico português, sendo que já durante a presente legislatura o Parlamento havia aprovado o regime do então designado “enrique-cimento ilícito”, através do Decreto n.º 37/XII, o qual havia sido objeto de fiscalização preventiva da constitucionalidade, tendo o Tribunal Consti-tucional decidido pela inconstitucionalidade das suas normas, no Acórdão n.º 179/2012, com fun-damento na indefinição do bem jurídico protegi-

do, na indeterminação da ação ou omissão con-cretamente proibida e na violação do princípio da presunção de inocência.Apresentando a sua concordância com os funda-mentos invocados no Acórdão, acrescentou que, por outro lado, o diploma violaria o princípio da proporcionalidade, na vertente da necessidade, porquanto no Direito Penal estão em risco va-lores máximos da ordem jurídica num Estado de Direito, como a liberdade, não podendo, por esse motivo, subsistir a dúvida sobre a incriminação de condutas.Com esta motivação, apresentou o Presidente da República o pedido de fiscalização preventiva da constitucionalidade do Decreto n.º 369/XII, por violação dos artigos 2.º, 18.º/2, 29.º e 32.º/2 da Constituição da República. Consequentemente, pronunciou-se o douto Tri-bunal, com a fundamentação seguinte.Em primeiro lugar, o Decreto n.º 37/XII já havia sido devolvido ao Parlamento, na sequência da pronúncia de inconstitucionalidade e retirava-se da leitura de “exposição de motivos” do proje-

to de lei n.º 798/XII que esteve na origem do Decreto n.º 369/XII que o legislador manteve a medida de política legislativa criminal análoga ao primeiro, não obstante determinadas diferenças que se expõem sumariamente, que não justifica-riam decisão diferente do Tribunal: o Decreto n.º 369/XII apenas prevê a introdução de dois tipos legais de crime, abandonando a incriminação au-tónoma do crime em questão quando praticado por funcionário; neste Decreto prevê-se o crime de enriquecimento injustificado e já não de enri-quecimento ilícito; foi eliminado o elemento re-ferente à ausência de origem lícita determinada; foi eliminada a expressão “se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal”; o conceito “bens legítimos” deu lugar ao conceito “bens declarados ou que devam ser declarados”; o legislador vem enunciar os bens jurídicos que visa proteger; já não se prevê que o Ministério Públi-co faça a prova de todos os elementos do crime de enriquecimento ilícito (agora injustificado).Também no entendimento do Tribunal, o princí-pio da necessidade da pena, sediado no art. 18.º/2

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da Constituição, é basilar, isto é, o bem jurídico protegido deverá relevar-se sempre digno de tu-tela penal e deverá revelar efetivamente carência de tutela penal, pelo que as sanções penais só serão constitucionalmente legítimas se visarem proteger bens jurídicos que se mostrem dignos de tutela penal.Igualmente ao abrigo do art. 3.º/1 da Constitui-ção, dever-se-á observar uma estrita analogia en-tre a ordem axiológica constitucional e a ordem legal dos bens jurídico-penais.Mais, toda a norma incriminatória na base da qual não seja suscetível de se divisar um bem ju-rídico-penal claramente definido, é nula, porque materialmente inconstitucional.Acresce que, o fim almejado pela criminalização – a preservação de um valor social – não poderá ser realizado por outro meio de política legislativa que não aquele que se traduz no recurso à inter-venção penal, porquanto o direito penal cumpre uma função de ultima ratio, devendo ser a inter-venção penal sempre subsidiária e fragmentária.De igual modo, o princípio da legalidade da pena, sob a veste de lex certa, previsto no art. 29.º/1 da Constituição, vincula igualmente o legislador no sentido de ter o dever de desenhar o novo tipo criminal de modo a tornar cognoscíveis para os cidadãos quais os factos voluntários que são me-recedores do juízo de desvalor jurídico-criminal.Acrescentou o Tribunal que, tanto o princípio da

necessidade da pena como o princípio da lega-lidade, integram valores nucleares do Estado de Direito na exata medida em que ambos expri-mem o valor da liberdade individual, pressupon-do ambos que, em casos de dúvida, prevaleça essa mesma liberdade: in dubio pro libertate.Defendeu ainda que o legislador não deve cons-truir as normas penais de tal modo que, através das suas formulações, possa o cometimento do crime presumir-se, ao que se opõe o princípio da presunção de inocência, previsto no art. 32.º/2 da Constituição.Em suma, num estado de Direito não poderão existir crimes e penas que não sejam previstos em lei que seja certa, bem como não se poderá presu-mir o cometimento do ilícito criminal, devolven-do-se a quem é desse cometimento acusado, todo o ónus da refutação da acusação, o que violaria o favorecimento da liberdade.Pelo exposto, decidiu-se o Tribunal, por una-nimidade, pela inconstitucionalidade das nor-mas constantes do diploma, por violação dos arts. 18.º/2, 29.º/1 e 32.º/2 da Constituição da República Portuguesa, por via do Acórdão n.º 377/2015 de 27 de julho de 2015.Atenta a decisão dos Juízes Conselheiros, é certo que o combate à corrupção ficará, de certo modo, prostrado, não obstante, conforme devidamente fundamentado pelo Tribunal, a ser aprovado, o diploma violaria a presunção de inocência cons-

titucionalmente consagrada, e fundamental no nosso Estado de Direito, por significar uma in-versão do ónus da prova relativamente à prática do ilícito criminal.Destarte, e dada a importância de criminalizar o enriquecimento injustificado, este deverá exis-tir para o conjunto da sociedade e, portanto, o comum dos cidadãos que tenha um acréscimo patrimonial injustificado deve ter o dever social de, perante os seus concidadãos, justificar esse acréscimo patrimonial, sendo que deverá haver um regime mais agravado para funcionários e ti-tulares de cargos políticos e altos cargos públicos, por estarem em causa dinheiros públicos, isto sem olvidarmos, reitera-se, o dever geral de transpa-rência que recaia sobre o conjunto da sociedade. Considerando ainda que na nossa sociedade te-mos vindo a conhecer atos de corrupção gravís-simos, tanto praticados por titulares de cargos públicos como no âmbito do setor privado, é jus-tificável que os atos praticados neste âmbito não deverão ficar impunes aquando da criminalização do enriquecimento injustificado.Assim, deverá o combate a esta forma de enri-quecimento prosseguir caminho com vista à im-plementação de um dever geral de transparência, que dissuada a prática dos mencionados crimes de corrupção, que tanto abalam a nossa sociedade como economia, mas sem nunca colocar em causa princípios basilares do estado de Direito.

“Atenta a decisão dos Juízes Conselheiros, é certo que o combate à corrupção ficará, de certo modo, prostrado, não obstante, conforme devidamente fundamentado pelo Tribunal, a ser aprovado, o diploma violaria a presunção de inocência constitucionalmente consagrada, e fundamental no nosso Estado de Direito, por significar uma inversão do ónus da prova relativamente à prática do ilícito criminal”