A Organização Das Nações Unidas e o Desafio Das Intervenções Humanitárias

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  • RENATA AVELAR GIANNINI

    A ORGANIZAO DAS NAES UNIDAS E O DESAFIO DAS INTERVENES

    HUMANITRIAS

    So Paulo

    2008

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  • RENATA AVELAR GIANNINI

    A ORGANIZAO DAS NAES UNIDAS E O DESAFIO DAS INTERVENES

    HUMANITRIAS

    Dissertao apresentada ao programa interinstitucional (PUC-SP/UNESP/ NICAMP) de mestrado em Relaes Internacionais como parte dos requisitos para obteno do ttulo de Mestre.

    rea de concentrao:Poltica Externa.

    Orientador: Prof. Dr. Hector Luis Saint-Pierre

    SO PAULO2008

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  • RENATA AVELAR GIANNINI

    A ORGANIZAO DAS NAES UNIDAS E O DESAFIO DAS INTERVENES

    HUMANITRIAS

    Dissertao apresentada ao programa interinstitucional (PUC-SP/UNESP/ NICAMP) de mestrado em Relaes Internacionais como parte dos requisitos para obteno do ttulo de Mestre.

    rea de concentrao:Poltica Externa.

    Orientador: Prof. Dr. Hector Luis Saint-Pierre

    SO PAULO2008

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  • velhinha, pelo entusiasmo e apoio incondicional ...

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  • AGRADECIMENTOS

    Primeiramente, gostaria de agradecer aqueles que permitiram a realizao deste trabalho do ponto de vista financeiro, ou seja, a CAPES e minha me.

    Em seguida, agradeo queles que estiveram presentes durante este perodo e que dividiram comigo momentos de incertezas, desafios, alegrias, raiva e apreenso. Enfim, aos colegas do mestrado Henrique, Mrcio, Thiago, pelas boas piadas e histrias; e em especial, Andr, Mojana e Priscila pelos pedidos atendidos de socorro, pela lealdade e acima de tudo amizade.

    Aos colegas do Gigante, aqueles que j partiram, Juan e Mnica, os de sempre, Leo e Luara, e o novo, Gustavo, pela compreenso e acima de tudo pacincia.

    Aos amigos de toda vida, Willian, Didi, Bruna e Leo, que sempre transformaram essa existncia boba em uma grande aventura e contriburam para dar sentido a ela.

    Ao Paulo por tudo e mais um pouco, mas principalmente pela pacincia ilimitada.

    Nanny pela eterna amizade, sinceridade e transparncia.

    Ao meu orientador Hector, no somente pelos debates acadmicos e por ter desempenhado brilhantemente seu papel de orientador, mas principalmente pela considerao e amizade, e Suzeley, que acompanhou tempos atrs meu amadurecimento, se que posso cham-lo assim, acadmico.

    E acima de tudo minha velhinha que tornou tudo isso possvel e me fez achar que tudo era fcil e que o mundo estava pronto para me servir. Acabou que o mundo no estava to pronto assim, mas pelo menos, eu acreditei que estava, e isso j foi um grande passo.

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  • RESUMO

    Este trabalho tem como objetivo analisar as intervenes humanitrias empreendidas pela Organizao das Naes Unidas. Para tanto analisamos a estrutura e as diferentes formas de ao neste campo, privilegiando-se o sistema de segurana coletiva e posteriormente as misses de paz, bem como o sistema de assistncia humanitria da organizao. Neste sentido, estudamos tambm o contexto em que se inserem estas intervenes quando de sua euforia no perodo posterior Guerra Fria, destacando-se o surgimento dos chamados Estados falidos e colapsados, a incluso de temas no tradicionais noo de segurana internacional e, finalmente a intensa codificao dos Direitos Humanos, que passam a figurar como motivo para ruptura da paz e segurana internacional e, portanto, sujeitos ao uso da fora. Por fim, analisamos alguns conceitos considerados primordiais para compreenso do atual status das intervenes humanitrias, quais sejam, o prprio conceito de interveno humanitria, o de soberania e finalmente o de emergncia complexa. A confuso relativamente a estes termos tem contribudo para a politizao das aes humanitrias e para a confuso acerca do significado do termo. As implicaes destas ltimas so o foco desta dissertao.

    PALAVRAS CHAVES: INTERVENES HUMANITRIAS - ORGANIZAO DAS NAES HUNIDAS DIREITOS HUMANOS SEGURANA INTERNACIONAL EMERGNCIAS COMPLEXAS

    ABSTRACT

    The objective of this study is to analyze the humanitarian interventions established by the United Nations Organization. For this purpose we analyzed the structure and its different forms of action in this specific field, priorizing the coletive security system, and later the peacekeeping missions, as well as, its humanitarian assistance system. Furthermore, we studied the context in which these interventions took place in the post Cold War period, specially the appearance of the so called Failed and Colapsed States, the inclusion of non traditional themes in the international security field, and finally, the intense human rights codification, which contributed to its consideration as a factor to the break down of international peace and security. Finally, we analyzed some concepts that are very important to the comphension of the actual status of the humanitarian interventions nowdays. The studied conpts were: humanitarian intervention, sovereignty, and complex emergencies. The existent confusion in reference to these terms has contributed to the politization of humanitarian actions. The implications of this last fact will be the focus of this dissertation.

    KEYWORDS: HUMANITARIAN INTERVENTIONS UNITED NATIONS

    17

  • ORGANIZATION HUMAN RIGHTS INTERNATIONAL SECURITY COMPLEX EMERGENCIES

    RESUMEN

    El presente trabajo tiene como objeto analisar las intervenciones humanitarias emprendidas por la Organizacin de las Naciones Unidas. Para lo cual analizaremos la estructura y diferentes formas de accin en dicha rea, privilegiado el sistema de seguridad colectiva y posteriormente las misiones de paz, como sistema de asistencia humanitaria de la mencionada organizacin. En este sentido, tambin estudiaremos el contexto en el cual se incertan las intervenciones, con su auge posterior a la Guerra Fria, destacandos el surgimiento de los llamados Estados fallidos y colapsados, la inclusin dentro de la nocin de seguridad internacional de temas no tradicionales y finalmente la intensa codificacin de los Derechos Humanos, que aparecen como motivos de quebrantamiento de la paz y seguridad internacional y por tanto sujetos al uso de la fuerza. Finalmente, analizaremos algunos conceptos considerados como primordiales para la comprensin del actual status de las intervenciones humanitarias, o sea, el propio concepto de intervencin humanitaria, el concepto de soberana y finalmente el concepto de emergencia compleja. La confusin relativa a estos trminos ha contribuido a la politizacin de las acciones humanitarias y a una confusin sobre el significado de las mismas. Las implicaciones de estas ltimas sern el foco de la presente disertacin.

    PALABRAS LLAVES : INTERVENCIONES HUMANITARIAS ORGANIZACIN DE LAS NACIONES UNIDAS DERECHOS HUMANOS SEGURIDAD INTERNACIONAL EMERGENCIAS COMPLEJAS

    18

  • LISTA DE FIGURAS

    1. Organograma do Departamento de Operaes de Paz .................... 402. Organograma Diviso Militar............................................................... 453. Mapa da presena do OCHA no mundo ........................................... 604. Organograma OCHA........................................................................... 65

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  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS*

    Alto Comissariado das Naes Unidas para Refugiados (ACNUR)Agncia de Coordenao de Emergncias (Emergency Liason Branch ELB)Agncia de Resposta a Emergncias Complexas (Complex Emergency Response Branch CERB) Autoridade de Transio no Camboja (Transitional Authority in Cambodia - UNTAC) Centros de Operaes Civil-militares (Civil-Military Operations Center CMOC)Comit Interinstitucional Permanente (Inter Agency Standby Comittee IASC)Conselho de Segurana (CS)Departamento de Assuntos Humanitrios (DHA)Departamento de Operaes de Manuteno de Paz (DPKO) Escritrio de Coordenao de Assuntos Humanitrios (OCHA)Fora das Naes Unidas de Emergncia (UNEF I)Fundo Central de Emergncia (Central Emergency Revolving Fund CERF)Fundo das Naes Unidas para a infncia (UNICEF)Grupo de Assistncia das Naes Unidas para o Perodo de Transio (UN Transition Assistance Group in Namibia -UNTAG)Grupo de Observadores das Naes Unidas na Amrica Central (United Nations Observer Group in Central America - ONUCA)Grupo de Observadores Militares no Ir e Iraque (UN Iran-Iraq Military Observer Group UNIIMOG)Misso das Naes Unidas para Assistncia em Ruanda (UN Assistence Mission in Rwanda - UNAMIR) Misso de Bons Ofcios no Afeganisto e Paquisto (UN Good Offices Mission in Afghanistan and Pakistan UNGOMAP)Misso de Observao das Naes Unidas para Verificao do processo eleitoral na Nicargua (ONUVEN)Misso de Observao em El Salvador (ONUSAL) Misso de Verificao da Angola (I UNAVEM)Operao de Manuteno da Paz da ONU no Chipre UNFICYPOperao das Naes Unidas em Moambique (UN operation in Mozambique - ONUMOZ)Operaes das Naes Unidas no Congo (ONUC)Organizao das Naes Unidas (ONU)* Em razo da dificuldade em encontrar a traduo em portugus de alguns termos ou a referente sigla em portugus, deixamos a sigla correspondente ao termo em ingls.

    20

  • Organizao das Naes Unidas para o Socorro em Desastres (UNDRO)Organizao de Alimentao e Agricultura (FAO)Organizaes Intergovernamentais (OIGs)Organizao Mundial de Sade (OMS).Organizaes no governamentais (ONGs) Plano de Ao Humanitrio Comum (Common Humanitarian Action Plan CHAP)Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento(PNUD)Programa Mundial de Alimentos (PMA)Sistema de Chamadas Unificadas (Consolidation Appeal Process CAP)

    21

  • SUMRIOINTRODUO............................................................................................ 12

    PARTE I: A ORGANIZAO DAS NAES UNIDAS: ESTRUTURA E FUNCIONAMENTO

    CAPTULO I: O SISTEMA DE SEGURANA COLETIVA........................... 19

    1.1 AS EXPERINCIAS ANTERIORES: O CONCERTO EUROPEU E A LIGA DAS

    NAES 19

    1.2 O SISTEMA ONUSIANO: PRINCPIOS E AES .............................. 23

    1.3 AS OPERAES DE PAZ DAS NAES UNIDAS ............................ 29

    1.4 O DEPARTAMENTO DE MISSES DE PAZ DAS NAES UNIDAS 39

    CAPTULO 2: O SISTEMA DE ASSISTNCIA HUMANITRIA ............... 52

    2.1 ORIGENS, PRINCPIOS E ESTRUTURA DE FUNCIONAMENTO .... 53

    2.2 O ESCRITRIO DAS NAES UNIDAS PARA ASSUNTOS HUMANITRIOS

    ............................................................................................................................... 60

    PARTE II :AS INTERVENES HUMANITRIAS E AS NAES UNIDAS

    CAPTULO 3: AS INTERVENES HUMANITRIAS E OS NOVOS TEMAS 76

    3.1 ESTADOS FALIDOS: ORIGENS E DEFINIES .............................. 78

    3.2 A SEGURANA INTERNACIONAL E AS NOVAS AMEAAS .......... 85

    3.3 OS DIREITOS HUMANOS E AS INTERVENES HUMANITRIAS. 91

    CAPTULO 4 : ANLISES TERICAS DAS INTERVENES HUMANITRIAS 100

    4.1 ENTENDENDO O CONCEITO DE INTERVENES HUMANITRIAS 102

    22

  • 4.2 A SOBERNAIA E A NO INTERVENO........................................... 105

    4.3 AS EMERGNCIAS COMPLEXAS E A NECESSIDADE DE INTERVIR 115

    CONSIDERAES FINAIS .................................................................... 125

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ....................................................... 128

    23

  • Introduo:

    O objeto de estudo desta obra as intervenes humanitrias

    empreendidas pela Organizao das Naes Unidas (ONU). Acreditamos que a

    percepo dos atores acerca de alguns termos e fatos aliados a altos nveis de

    consideraes polticas esto intrinsecamente relacionados ao atual status das

    intervenes humanitrias empreendidas por esta organizao. Esta percepo se

    traduz na interpretao pelos diversos atores acerca dos conceitos fundantes da

    discusso do tema, notadamente o de interveno humanitria, o de soberania e o

    de emergncia complexa. Essa interpretao, por sua vez, relaciona-se a suas

    respectivas agendas internas, evidenciando a politizao da prtica humanitria.

    Para esta anlise, trataremos deste tema a partir da sua realizao

    emprica e do ponto de vista conceitual. Do ponto de vista emprico, analisaremos

    a estrutura da organizao incumbida desta tarefa, assim, trataremos do sistema

    de segurana coletiva e das misses de paz, particularmente aquelas de segunda

    gerao que incluem a assistncia humanitria s suas prerrogativas, bem como o

    sistema ONU de assistncia humanitria ainda pouco estudado na academia. Por

    outro lado, alguns conceitos essenciais para o entendimento da questo

    humanitria, enfatizando as conseqncias da politizao dos mesmos pelos

    diversos atores. O objetivo ser, pois, investigar em que medida a ausncia de

    uma definio clara e objetiva de certos termos contribuem para a seletividade

    24

  • poltica das intervenes humanitrias, sujeita presso do interesse particular

    dos Estados membros individualmente.

    Abordamos trs conceitos principais: 1) interveno

    humanitria; 2) soberania; e , finalmente, 3) emergncias complexas.

    Enfatizamos este ltimo dado que o estabelecimento das intervenes

    humanitrias dependem em grande medida da percepo deste termo por parte

    dos atores. Assim, o conceito de emergncia complexa enquanto uma crise

    humanitria de grandes propores - nos parece fundante do debate em torno da

    legalidade das intervenes humanitrias e sua autorizao por parte da ento

    instituio internacional responsvel pela manuteno da paz e segurana

    internacional no mundo, a ONU. Embora as crises humanitrias sempre tenham

    existido ao longo da histria observamos, entretanto, que as aes da ONU nesse

    mbito aproximavam-se da tradicional ajuda humanitria prestada especialmente

    por organizaes no governamentais, como a Cruz Vermelha. Todavia nas crises

    humanitrias ocorridas antes da dcada de 90 no havia um rgo centralizador

    de esforos a fim de coordenar a ao humanitria internacional, que o que

    caracteriza o fenmeno recentemente.

    Com o fim da Guerra Fria, no entanto, observamos uma

    transformao no Sistema Internacional. Um dos elementos responsveis por

    essa mudana a ecloso de conflitos de natureza civil, que, em sua maioria, vm

    acompanhados de graves crises humanitrias e falncia estatal. A ONU, por sua

    vez, alm de aprimorar seu sistema de assistncia humanitria, principalmente

    25

  • atravs da criao de um rgo centralizador e coordenador, o Departamento de

    Assuntos Humanitrios (DHA) depois incorporado pelo Escritrio de Coordenao

    de Assuntos Humanitrios (OCHA), passa a autorizar o uso da fora, mediante a

    aprovao de seu Conselho de Segurana, para prover assistncia humanitria.

    Dessa forma, surgem as intervenes humanitrias sob a bandeira da ONU.

    Passados os primeiros anos de euforia, as intervenes so gravemente criticadas

    e tornam-se alvo de intensos debates acerca de sua legalidade e legitimidade.

    Observamos, concomitantemente a ausncia de uma definio

    clara e precisa por parte da ONU relativamente ao que seja uma uma emergncia

    complexa e ainda mais, qual fator presente nesta situao de crise que permitiria

    uma interveno legtima dessa organizao. Com isso, observamos que o termo

    passa a ser empregado indiscriminadamente pelos pases, provocando uma

    confuso relativamente aos reais objetivos de uma interveno humanitria.

    O humanitarismo, princpio regente da assistncia humanitria

    provida pela ONU, seja atravs das intervenes ou pelo simples deslocamento

    dos agentes humanitrios da organizao, privilegia a imparcialidade e a

    neutralidade de suas aes. Estas duas condicionantes imparcialidade e

    neutralidade tornam a prtica humanitria apoltica. No entanto, na medida em

    que as crises humanitrias de grandes propores passam a ser chamadas de

    emergncias complexas, e estas exigem a interveno pelo uso da fora, o

    humanitarismo torna-se um argumento poltico, e depender da agenda implcita

    dos atores humanitrio envolvidos.

    26

  • Neste sentido, estruturamos a obra em duas partes principais.

    A primeira estuda a constituio formal e operacional da ONU, buscando analisar

    a estrutura da organizao, mostrando a evoluo da instituio no campo da

    ao humanitria, e enfatizando a incluso do uso da fora atravs das misses

    de paz, para a proviso desta assistncia.

    No primeiro captulo trataremos da origem e funcionamento da

    ONU no campo da manuteno da paz e segurana internacionais, privilegiando a

    incluso da questo humanitria s prerrogativas do Conselho de Segurana (CS)

    e das misses de paz por ele estabelecidas. Assim, analisaremos a origem do

    sistema de segurana coletiva e seus pressupostos legais, alm do surgimento

    das misses de paz e da incluso de novas funes s suas antigas prerrogativas

    na dcada de 90. Por fim, trataremos da estrutura dessas misses, especialmente

    o Departamento de Operaes de Manuteno de Paz (DPKO) e suas divises

    militar e policial. Este estudo se mostra importante para compreenso da parte

    operacional das intervenes humanitrias.

    Por outro lado, as intervenes humanitrias contam com a

    assistncia humanitria como importante componente. Assim, no segundo

    captulo, exporemos a evoluo da ONU no campo da assistncia humanitria,

    dando especial ateno evoluo da ajuda tradicional humanitria - que se

    baseava principalmente na assistncia emergencial de entrega de alimentos e

    medicamentos, construo de abrigos, etc - para um sistema coordenado de

    assistncia humanitria. Assim, sero abordados os principais rgos

    27

  • responsveis pela proviso de assistncia humanitria, bem como seus princpios

    e formas de ao. A nfase aqui dada ao OCHA, rgo coordenador dos

    esforos humanitrios da organizao e que mantm estreita relao com o

    departamento de misses de paz quando do estabelecimento de uma interveno

    humanitria.

    A segunda parte abordar o contexto em que se inserem

    essas intervenes e conter a discusso terica propriamente dita. O objetivo

    mostrar as transformaes do contexto internacional e relacion-las s mudanas

    ocorridas tambm na prtica humanitria. Alm disso, dado o fato de que tais

    transformaes no vieram acompanhadas de reflexes profundas acerca dos

    conceitos utilizados no campo humanitrio, observamos tambm grande

    ambigidade relativamente a certos termos empregados nessa rea. O objetivo

    final ser abordar em que medida a ambigidade ou incerteza presente nestes

    conceitos contribuem o estabelecimento seletivo das intervenes e a politizao

    da prtica humanitria.

    Dessa forma, o captulo trs enfatizar alguns aspectos das

    intervenes humanitrias ocorridas na dcada de 90. Assim, analisaremos as

    transformaes do sistema internacional e que provocaram o surgimento de certos

    fatores que culminaram com o estabelecimento das intervenes humanitrias.

    Destacamos trs deles: 1) o surgimento dos Estados falidos e dos conflitos intra-

    estatais deles resultantes, que provocam graves crises humanitrias em

    ambientes extremamente criminalizados e nos quais a autoridade estatal fraca

    28

  • ou ausente; 2) a transformao emprica e conseqentemente conceitual da

    segurana internacional, que contribui para a incluso de novos temas no

    tradicionais s prerrogativas da segurana e, por fim; 3) o desenvolvimento e

    codificao dos direitos humanos, que contriburam para a incluso de sua

    violao como fator ruptura da paz e a conseqente autorizao do uso da fora

    pelo Conselho de Segurana.

    Finalmente, no quarto e ltimo captulo, abordaremos os

    problemas conceituais da terminologia humanitria e os problemas advindos da

    politizao da ajuda humanitria. Muito embora o caminho escolhido pela maioria

    dos acadmicos seja inverso, ou seja, tratar dos conceitos e abordagens tericas

    no primeiro captulo, acreditamos que para os fins deste estudo, que tem como

    cerne, justamente o problema da conceitualizao de certos termos utilizados no

    mbito humanitrio, caber ao ltimo captulo trazer a tona estas contribuies.

    Dessa forma, discutiremos 1) os conceitos de interveno humanitria,

    soberania e emergncia complexa, levando em considerao os atuais

    documentos da ONU que empregam os termos; 2) os interesses nacionais dos

    Estados em participar das intervenes humanitrias atravs da anlise dos

    pases participantes em misses de paz da ONU, e, 3) por fim, o documento

    Responsabilidade de Proteger, interpretado por muitos como a legalizao das

    intervenes humanitrias e os problemas advindos dessa realidade. O objetivo

    deste captulo e da obra como um todo discutir o emprego poltico da

    terminologia humanitria e apontar as possveis conseqncias desta ao.

    29

  • PARTE I:

    A ORGANIZAO DAS

    NAES UNIDAS: ESTRUTURA

    E FUNCIONAMENTO

    30

  • As intervenes humanitrias empreendidas pelas Naes

    Unidas tm dois componentes principais: o uso da fora e a assistncia

    humanitria. Ambos se complementam de modo que a utilizao da primeira visa

    a proviso da segunda. No caso da ONU h dois sistemas para o tratamento de

    cada uma dessas questes. Enquanto o uso da fora regulamentado pelo

    Conselho de Segurana (CS), a assistncia humanitria incumbida a uma srie

    de agncias especializadas da organizao sob a coordenao central do

    Escritrio das Naes Unidas para Assuntos Humanitrios, criado somente em

    1998.

    O uso da fora o componente central do sistema de

    segurana coletiva da organizao criado quando de sua fundao em 1945. Este

    sistema foi pensado objetivando a defesa comum dos Estados frente s mazelas

    oriundas de aes que ameaassem a paz e segurana internacional.

    De forma geral, a assistncia humanitria a prtica do auxlio

    a vtimas de desastres naturais ou daqueles causados pelo homem. Atualmente

    as principais situaes que demandam a assistncia humanitria de organizaes

    internacionais so os conflitos intra-estatais, nos quais a populao civil acaba

    sendo alvo das partes em conflito.

    As intervenes humanitrias, por sua vez, envolvem o uso da

    fora para a defesa da populao civil de uma regio atingida por um conflito

    interno ou internacional com o objetivo de por fim ao sofrimento desta populao

    31

    LetRealce

    LetRealce

    LetRealce

  • mediante a defesa dos direitos humanos e proviso de assistncia humanitria.

    Embora existam h muitos anos, tais aes tornaram-se famosas na dcada de

    90, quando da ecloso de uma srie de conflitos internos nos quais se observava

    o agravamento das condies humanitrias.

    32

  • CAPTULO 1 :

    O sistema de segurana coletiva

    A existncia de organizaes internacionais e de aes

    coletivas em prol da paz e segurana tem suas origens no sculo XIX, quando do

    crescimento da cooperao europia na era ps-napolenica. Neste perodo, os

    grandes poderes europeus, na tentativa de manter a ordem internacional mediante

    a interesses particulares, deram os primeiros passos na tentativa de realizar uma

    ao coletiva na defesa da paz entre Estados.1 Tais interesses particulares

    referiam-se, em sua maioria, tentativa de manuteno do status quo, de forma

    que os grandes poderes se mantivessem no poder. Os esforos resultantes disso

    foram, ento, institucionalizados no sculo XX com a criao da Liga das Naes,

    organizao que primeiro organizou um sistema de segurana coletiva, muito

    embora o mesmo no possusse a ao coercitiva em seus princpios.

    Em razo mesmo dessa ausncia e de outros fatores

    importantes como a no adeso dos Estados Unidos organizao, a Liga das

    Naes logo foi levada ao descrdito e substituda pela Organizao das Naes

    Unidas. A ONU ento criada e estruturada para atender s necessidades da

    1 BELLAMY, A.; WILLIANS, P.; GRIFFIN, S. Understanding Peacekeeping. Cambridge: Polity Press, 2004.p. 59

    33

    LetRealce

    LetRealce

  • ordem internacional em formao, e neste sentido, incorporou s suas

    prerrogativas o uso legal da fora.

    1.1As experincias anteriores: O Conserto Europeu e a Liga das Naes

    Durante o Congresso de Viena, estabelecido com o fim de

    selar a paz com o fim das Guerras Napolenicas, em 1815, tambm

    estabelecido o Concerto Europeu, unio das grandes potncias europias

    (ustria-Hungria, Gr Bretanha, Prssia e Rssia) pela manuteno da ordem

    internacional.2

    O sistema ento proposto buscava gerenciar

    diplomaticamente os conflitos das grandes potncias europias e coordenar a

    ao coletiva em resposta s ameaas dos movimentos independentistas na

    Europa.3 Dessa forma, foi firmado tambm em 1815 o Tratado de Paris, que aludia

    responsabilidade comum das grandes potncias em preservar a paz na Europa.

    Esse interesse se traduzia na realidade na vontade em manter

    o status quo internacional e assim preserv-lo evitando o possvel revanchismo

    francs e outros movimentos nacionalistas. Apesar disso, o Conserto europeu

    assinalado por Bellamy, Willians e Griffins4 como a manifestao de uma

    comunidade de interesses e interdependncia entre estas naes. 2 idem, p.603 ibdem4 ibdem

    34

    LetRealce

  • Embora importante, esta manifestao acabou no se

    institucionalizando e foi esquecida com as revolues de 1830 e 1848 que

    reduziram o consenso entre as grandes potncias, e dessa forma minou as

    possibilidades de se institucionalizar a ao coletiva. O sistema europeu rompeu-

    se com a ecloso de diversas guerras na Europa5 e somente foi reorganizado com

    o fim da Primeira Guerra Mundial e a criao da Liga das Naes, organizao

    com alcance maior que o antigo concerto europeu.

    Devemos destacar, todavia, que o conselho agiu em diversas

    ocasies nos moldes das organizaes internacionais, embora no tenha logrado

    estabelecer o Estado de direito nem tenha produzido uma agncia imparcial

    politicamente superior aos interesses nacionais e capaz de manter padres morais

    em uma comunidade mais ampla. 6

    O arranjo institucional-legal em prol de uma ao coletiva mais

    eficiente surgiu, ento, somente em 1919 quando da criao da Liga das Naes.

    A chamada Liga das Naes, tambm conhecida como Sociedade das Naes

    (SDN), surgiu a partir da assinatura do Tratado de Versalhes que selava o fim da

    primeira grande Guerra Mundial em 1919. Tendo em vista as mazelas

    ocasionadas pelo referido conflito, os Estados atentaram para a necessidade de

    se criar sistemas mais eficientes na preveno da violncia interestatal.7 Nesse

    5 A Guerra da Crimia, a unificao italiana, a Guerra austro-prussiana e a franco-prussiana, por exemplo.6 CLAUDE, 1923, p.28. Apud in BELLAMY;WILLIAMS;GRIFFINS. Understanding peace keeping. Cambridge: Polity Press, 2004,p.637 De acordo com Bellamy; Williams e Griffins, com o fim da primeira Guerra mundial, os principais lderes mundiais tiram algumas concluses acerca do conflito, destacamos aqui: 1) A Guerra um ato insensato; 2) que as causas da guerra esto nos desentendimentos entre os lderes estatais e

    35

  • sentido, as instituies internacionais ganharam impulso e dessa forma estruturou-

    se o primeiro sistema de segurana coletiva de uma organizao internacional

    com alcance supostamente8 global.

    A idia de segurana coletiva resulta dos chamados 14 pontos

    de Wilson, nos quais se previa um sistema que contivesse trs caractersticas

    principais: a certeza, a utilidade e a incluso.9 O elemento de certeza seria ento

    dado atravs da obrigao de responder agresso. Esse elemento, conforme

    trataremos adiante, ser erodido pela necessidade de obter a unanimidade no

    Conselho de Segurana para a implementao de uma ao. Relativamente

    utilidade, a organizao deveria ser capaz de mobilizar todas as formas

    diplomticas, morais, econmicas e militarmente coercitivas dispostas pelos

    Estados membros.10. Tambm este elemento no pde ser implementado

    segundo originalmente concebido, uma vez que as aes militares foram

    excludas da carta constitutiva desta organizao. Finalmente em relao ao

    terceiro dos elementos, a incluso, a Liga de fato tinha como objetivo a incluso

    do maior nmero de Estados possveis, no entanto, o que se notou foi a ausncia

    na ausncia ou falta de princpios democrticos nos Estados envolvidos; e finalmente 3) as tenses formuladoras da rationale do conflito poderiam ser removidas pela manifestao do estado de direito e democracia entre os Estados. 8 A Liga representava uma tentativa mais ambiciosa que o conserto europeu na medida que buscava um gerenciamento da sociedade internacional como um todo no se limitando regio europia. Quando de seu fim, sessenta e trs Estados haviam sido membros da Liga por determinado perodo. (Alguns Estados como os Estados Unidos nunca chegaram a fazer parte da Liga, enquanto outros como o Brasil fizeram parte por um espao de tempo e acabaram abandonando a instituio)9 BELLAMY, A.; WILLIAMS, P.; GRIFFINS, S. Understanding Peacekeeping. Cambridge: Polity Press, 2004. p.6610 idem. P.67

    36

    LetRealce

    LetRealce

  • de importantes membros nos diferentes perodos de sua existncia11 e, ainda, a

    apreenso em aceitar a incluso de certos Estados cujos governos eram

    considerados dbios e impopulares.12

    O sistema de segurana coletiva desta organizao descrito

    nos termos do artigo 10 de sua carta constitutiva e seu funcionamento

    explicitado atravs dos artigos 11 a 17 da mesma. Assim, os Estados membros

    deveriam:

    () agir contra agresso externa e respeitar e preservar a integridade territorial e a independncia poltica de todos os membros da Liga. No caso de uma agresso deste tipo ou ameaa e/ou perigo dessa agresso, o Conselho deve advertir nos termos atravs dos quais esta obrigaes devem ser cumpridas.13

    Da mesma forma que a ONU, tambm a Liga tinha uma

    Assemblia Geral da qual todos seus membros faziam parte, e um Conselho de

    Segurana do qual participavam somente alguns Estados selecionados como

    membros permanentes e outros enquanto membros provisrios. O Conselho

    normalmente lidava com questes de paz e segurana, todavia ressalta-se a falta

    11 Quando do fim da Liga importantes pases haviam se retirado da Liga como Japo e Alemanha recm membros e logo ausentes e a Unio Sovitica, expulsa da organizao, bem como, claro a ausncia dos Estados Unidos desde sua criao.12 Como a prpria Alemanha recm derrotada na Guerra.13.Do original: The Members of the League undertake to respect and preserve as against external aggression the territorial integrity and existing political independence of all Members of the League. In case of any such aggression or in case of any threat or danger of such aggression the Council shall advise upon the means by which this obligation shall be fulfilled . A carta da Liga das Naes parte do Tratado de Versalhes. Disponvel em: http://net.lib.byu.edu/~rdh7/wwi/versa/versa1.html . Acesso em: 10 de setembro de 2007.

    37

    LetRealce

  • de clareza relativamente diferenciao das funes incumbidas Assemblia e

    ao Conselho.14

    No que se refere ao sistema ali viabilizado, os artigos 11 a 17

    aludiam medidas a serem tomadas na hiptese de agresso ou ameaa dela

    pelos Estados membros. Entre seus mecanismos, previa-se a resposta conjunta

    de todos os membros em caso de desestabilizao da ordem pacfica entre os

    Estados, e, assim, era possvel recorrer a sanes de ordem econmica ou militar.

    Cabe ressaltar que embora a aplicao das medidas financeiras e comerciais

    contra um agressor fosse obrigatria aos Estados contratantes, as aes de cunho

    militar tinham carter recomendatrio. Por essa razo, Dinstein15 defende que no

    se pode falar ainda em um sistema de segurana coletiva verdadeiro, em razo da

    no obrigao por parte dos Estados membros em aplicarem as referidas sanes

    militares16.

    Esta vem a ser tambm uma das principais razes da falncia

    da Liga e constitui a principal diferena com o sistema de segurana coletiva

    proposto na atual Organizao das Naes Unidas.

    1.2 O sistema onusiano: princpios e aes

    14 WEISS, T. G.; FORSYTHE, D. P.; COATE, R. A. The United Nations and Chaging World Politics. Boulder: Westview Press, 1997.p.2515 DISTEIN, Yoram. Guerras, agresso e legtima defesa. Barueri: Manole2004.p.38016 Deve-se destacar, entretanto, os esforos em tornar a guerra como ato ilegal excetuando-se os casos de auto-defesa. Ou seja, postulava-se que a fora no deveria ser utilizada at que se conclusse um processo de pacificao e na impossibilidade de realizao do acordo, os Estados membros tinham a obrigao legal de utilizar a organizao. (WEISS. FORSYTHE; COATE, 1997, p.25)

    38

  • O termo segurana coletiva normalmente se refere a um sistema regional ou global, no qual cada estado participante aceita que a segurana de um concerne a todos, e concorda em juntar-se a uma resposta coletiva a dada agresso. Neste sentido, diferente e mais ambicioso que os sistemas de alianas de segurana, nos quais grupos de Estados aliam-se uns a outros, principalmente contra possveis ameaas externas.17

    A ONU foi criada tendo como principal objetivo organizar as

    relaes internacionais, seguindo o parmetro de um sistema genuno de

    segurana coletiva, no qual se buscaria a manuteno da paz e segurana

    internacional. Segundo tal sistema, tendo se esgotado todas as outras vias de

    negociao com o pas infrator, previa-se a utilizao de coao blica pelos

    pases contratantes contra o agressor comum.

    O conceito de segurana coletiva, norteador das principais

    atividades desenvolvidas em seu Conselho de Segurana, embora no

    explicitamente redigido na Carta, contemplado ao implicar reaes conjuntas a

    violaes de um direito comum.18 A assinatura da Carta da ONU na cidade de So

    Francisco em 1945 deu origem a mais um captulo na histria da segurana

    coletiva. A identificao de um agressor deveria ter como resposta a garantia de

    uma ao em conjunto regulamentada, principalmente nos captulos VI e VII da

    presente Carta.

    17 Do original : The term colletive security normally refers to a system , regional or global, in which each participating state accepts that the security of one is the concern of all, and agrees to join in a colletive response to agression . In this sense it is distinct from, and more ambitious than , system of alliance security, in which groups of states ally with each other, principally against possible external threats. (ROBERTS, 1996. p.310. Apud in BELLAMY; WILLIAMS; GRIFFINS, 2004.p.66)18 FONTOURA, Paulo Roberto C. Tarisse da. O Brasil e as operaes de manuteno da paz das Naes Unidas. Braslia: FUNAG, 1999.p.49

    39

    LetRealce

  • Tratando-se mais detalhadamente da Carta, em seu artigo

    primeiro a mesma deixa transparecer quatro princpios considerados essenciais:

    1) manuteno da paz e segurana internacional; 2) desenvolvimento de relaes

    amistosas entre as naes; 3) cooperao na resoluo de problemas globais e

    promoo de liberdades fundamentais; e, finalmente, 4) agir como centro

    harmonizador desses esforos.

    Apesar disso, a Carta de So Francisco j demonstrava as

    discrepncias de ideologias das duas grandes potncias da poca, os Estados

    Unidos e a Unio Sovitica. As posies conflituosas refletem-se na falta de

    clareza e coeso da Carta que resulta em grande poder de interpretao ao

    Conselho de Segurana uma vez que em muitos de seus artigos fica a cargo do

    mesmo definir o que vem a ser ameaa paz ou ainda as formas de

    constrangimento a essa ameaa. Tais nebulosidades so em sua maioria

    pontuadas no captulo VII da Carta que trata justamente da Ao relativa e

    ameaas paz, ruptura da paz e atos de agresso.19

    A Carta das Naes Unidas objeto de severas crticas por

    anacronismo devido inadequao da realidade em que foi escrita com a

    atualidade e, ainda, devido s brechas de interpretao que permite aos membros

    do CS, principalmente os permanentes, agirem com maior flexibilidade. Para ser

    modificada a Carta precisa da aprovao de dois teros da Assemblia Geral,

    19 ORGANIZAO DAS NAES UNIDAS, 1945. Disponvel em: http://www.onu-brasil.org.br/doc3.php . Acesso em: 10/09/2007.

    40

    LetRealce

    LetRealce

  • inclusive a aprovao dos cinco membros permanentes, o que torna a tarefa

    bastante difcil.20

    Relativamente ao sistema de segurana coletiva da

    organizao, a Carta enfatiza a necessidade de resoluo de controvrsias por

    meios pacficos em primeira instncia, havendo recurso s foras armadas

    somente com autorizao do Conselho, e aps esgotamento das tentativas

    descritas no captulo VI, responsvel por sanes de ordem no militar. Disputas

    legais consideradas pelo Conselho de Segurana como ameaa manuteno da

    paz devem passar por avaliao do mesmo, sendo possvel o emprego das

    medidas coercitivas presentes no captulo VII que trata da utilizao de foras

    militares na resoluo de conflitos ou situaes de ruptura da paz.

    O CS possui, pois o monoplio de autorizao das medidas

    coercitivas acima descritas, o que concede ao rgo ampla liberdade de ao.

    No exerccio da segurana coletiva, o Conselho de Segurana no somente livre para decidir quando e como utilizar a fora, como tambm tem a liberdade de faz-lo e contra quem faz-lo. Como a Carta parece dar liberdade para a avaliao de uma determinada situao, o Conselho pode iniciar uma guerra preventiva antecipadamente a uma violao futura da paz (figurando apenas como ameaa paz no momento da ao), um privilgio que a Carta nega a qualquer Estado individual ou grupo de Estados quando agindo sozinhos [...].21

    Alm disso, esse sistema de segurana coletiva previa a

    formao de uma fora tarefa internacional que pudesse ser acionada sempre que

    20 ibdem21 DISTEIN, Yoram. Guerras, agresso e legtima defesa. Barueri: Manole, 2004.p.386

    41

  • houvesse graves casos de ameaa ou ruptura da paz. Assim, ONU era facultado

    o direito de convocao desse exrcito internacional sob seu comando. No

    entanto, o crescimento das rivalidades Washington/Moscou tornou tal medida

    invivel. A tentativa de se organizar essa instituio militar foi ento abandonada

    em 1948, surgindo somente em 1992 na publicao do Uma agenda para a paz22

    pelo ento Secretrio-Geral, Boutros Boutros Gali. Nesta ocasio, essas foras

    seriam deslocadas preventivamente mediante o consentimento das partes ou

    governos envolvidos. A presena da organizao visaria desencorajar as

    hostilidades alm de prover um ambiente seguro para as negociaes e o auxlio

    humanitrio imparcial.

    Em condies de crise no interior de um pas, quando o governo requer ou quando todas as partes consentem, o deslocamento preventivo pode ajudar de diferentes formas a aliviar o sofrimento e a limitar ou controlar a violncia. A assistncia humanitria, imparcial, pode ter importncia crtica; assistncia manuteno da segurana, seja atravs de meios militares ou civis, pode salvar vidas e desenvolver condies de segurana para que as negociaes ocorram; as Naes Unidas podem ajudar tambm na reconciliao, caso seja esta a vontade das partes.23

    Relativamente ao relacionamento da ONU com outras

    organizaes regionais, embora os fundadores da ONU desaprovassem a

    formao de alianas exclusivas no captulo VIII, a Carta reconhece a utilidade

    dos arranjos regionais, desde que estivessem de acordo com os princpios da

    organizao. Neste sentido, a Assemblia Geral mantm consulta formal a 22 Disponvel em: http://www.un.org/Docs/SG/agpeace.html . Acesso em 30/01/0823Ibdem .Do original: In conditions of crisis within a country, when the Government requests or all parties consent, preventive deployment could help in a number of ways to alleviate suffering and to limit or control violence. Humanitarian assistance, impartially provided, could be of critical importance; assistance in maintaining security, whether through military, police or civilian personnel, could save lives and develop conditions of safety in which negotiations can be held; the United Nations could also help in conciliation efforts if this should be the wish of the parties.

    42

    LetRealce

    LetRealce

  • diversos organismos regionais, destacando-se a OTAN, a Unio Europia (UE), a

    Organizao dos Estados Americanos (OEA) e a Organizao da Unio Africana

    (OUA).

    Durante a Guerra Fria, esses arranjos regionais,

    destacadamente a Organizao do Tratado do Atlntico Norte (OTAN) e o Pacto

    de Varsvia, acabaram por trabalhar contrariamente aos princpios preconizados

    pela organizao, uma vez que cada uma delas preocupava-se com a segurana

    de sua prpria regio e a elas faltavam o esprito de solidariedade necessrio

    para a efetividade do trabalho da organizao mundial.24 No entanto, conforme

    destaca o j mencionado documento Uma Agenda para a Paz :

    (...) nessa nova era de oportunidades, arranjos ou agncias regionais podem render grandes servios se suas atividades so realizadas em maneira consistente com os propsitos e princpios da Carta, e se seu relacionamento com as Naes Unidas, e particularmente com o Conselho de Segurana, governado pelo captulo VI.25

    O documento destaca ainda que no objetivo da

    organizao estabelecer uma diviso de trabalho entre estes arranjos regionais e

    a ONU ou padres formais de relacionamento entre eles. As organizaes

    regionais tm, no entanto, grande potencial a ser aproveitado pela organizao

    24 ORGANIZAO DAS NAES UNIDAS. An Agenda for Peace.1992 Disponvel em: http://www.un.org/Docs/SG/agpeace.html. Acesso em 30/01/08.25 Ibdem. Do original: (...) in this new era of opportunity, regional arrangements or agencies can render great service if their activities are undertaken in a manner consistent with the Purposes and Principles of the Charter, and if their relationship with the United Nations, and particularly the Security Council, is governed by Chapter VIII.

    43

  • que poder inclusive deixar a seu cargo a conduo das aes em determinadas

    ocasies.

    Finalmente, tratando-se da ao coercitiva prevista no captulo

    VII podemos defini-la por duas vias principais, a do isolamento e a da interveno.

    A via de isolamento prev sanes de ordem no militar enquanto a outra

    possibilita a utilizao de uma fora tarefa internacional que agir de acordo com a

    vontade dos membros do CSNU. Essa constatao diverge dos termos presentes

    no artigo 2.7 da Carta que afirma a soberania dos Estados no que tange a sua

    jurisdio interna, muito embora, o prprio artigo em questo exima-se das

    atitudes previstas no captulo VII, em sinal de subordinao dos princpios

    essenciais da Carta s interpretaes e conseqentemente ao interesse daqueles

    que compem a principal instncia executiva da ONU.26

    A principal dificuldade enfrentada pela organizao com o fim

    da Guerra Fria e a retomada das atividades do ento paralisado Conselho de

    Segurana encontra-se justamente neste ponto em que concomitantemente

    autorizao de medidas militares de ordem coercitiva, a instituio probe a

    ingerncia em assuntos internos aos pases. Conforme podemos, pois, perceber,

    a concepo de guerra proposta na organizao refere-se, essencialmente, a

    disputas armadas entre entidades soberanas distintas, tendo como base os

    26 Artigo 2.7 Nenhum dispositivo da presente Carta autorizar as Naes Unidas a intervirem em assuntos que dependam essencialmente da jurisdio de qualquer Estado ou obrigar os Membros a submeterem tais assuntos a uma soluo, nos termos da presente Carta; este princpio, porm, no prejudicar a aplicao das medidas coercitivas constantes do Capitulo VII. Disponvel em: http://www.onu-brasil.org.br/doc1.php . ltimo acesso em: 07/09/2007.

    44

  • princpios westfalianos de independncia soberana.27 Em contraposio a isso,

    observa-se, no cenrio internacional, desde a intensificao das atividades do

    Conselho de Segurana a partir da dcada de 90, que a natureza dos conflitos

    mudou substancialmente, destacando-se aqueles de carter intra-estatal, no

    previstos pela Carta e cujos esforos para sua elucidao so restritos pelos

    prprios termos da Carta dispostos do artigo 2.7.

    Estes conflitos de natureza civil, conforme ser analisado

    posteriormente em maiores detalhes, so caracterizados por graves crises

    humanitrias e violaes dos direitos humanos. Neste contexto, a ONU passou a

    autorizar com maior freqncia operaes de paz que buscam alm da

    pacificao das partes conflitantes, o auxlio humanitrio. Dessa forma, as

    intervenes humanitrias ganham grande visibilidade no ps Guerra Fria e pouco

    se debateu a respeito das conseqncias da unio entre ao coercitiva militar e o

    auxlio humanitrio.

    1.3 As Operaes de paz das Naes Unidas

    As operaes de paz das Naes Unidas tm sua raiz

    constitucional nas medidas provisrias de que trata o artigo 40 da Carta28 (captulo

    VII). Dados os empecilhos advindos da bipolaridade no Conselho de Segurana 27 HOLSTI, Kalevi. The State, Wars, and the State of War. Cambrigde: Cambridge University Press, 1999.p.128 Apesar disso no h um consenso internacional acerca da base constitucional das operaes de paz. O ento secretrio geral da ONU, Dag Hammarskjld, chegou a cunhar a expresso captulo seis e meio ao referir-se expanso do captulo VI para atender as demandas exigidas pelas misses de paz.

    45

    LetRealce

  • durante a Guerra Fria, eram, em princpio, autorizadas a partir da Assemblia

    Geral.29

    Essa prtica inicia-se em 1948, com o envio de uma misso

    militar de observao da organizao ao Oriente Mdio30. No entanto, o termo

    operao de manuteno da paz foi utilizado pela primeira vez somente em

    1956, com o estabelecimento da Fora de Emergncia das Naes Unidas

    (United Nations Emergency Force - UNEF I) durante a crise do canal de Suez.31

    Desde ento, as operaes de paz da ONU ascenderam em importncia e se

    tornaram um componente central do cenrio internacional.

    De acordo com o Manual da International Peace Academy, as

    operaes de paz so definidas como :

    [...] a preveno, a conteno, a moderao e o trmino de hostilidades entre os Estados ou no interior de Estados, pela interveno pacfica de terceiros, organizada e dirigida internacionalmente, com o emprego de foras multinacionais de soldados, policiais e civis, para restaurar e manter a paz.32

    29 CARDOSO, Afonso Jos Sena. O Brasil nas operaes de paz das Naes Unidas. Braslia: Instituto Rio Branco; FUNAG; CEE, 1998. P. 4130 Essa misso foi estabelecida em 4 de novembro a partir da resoluo 61 disponvel em: http://daccessdds.un.org/doc/RESOLUTION/GEN/NR0/047/86/IMG/NR004786.pdf?OpenElement . Acesso em 27 de abril de 2006. 31 CHETAIL, Vincent. Ad-Hocism ans the rules of Coletive Security: is peacekeeping still relevant for maintaining international peace an security? Refugee Survey Quaterly, Vol. 23, n 4, 2004. p. 2 . As resolues referentes a essa misso podem ser acessadas em: http://www.un.org/documents/ga/res/11/ares11.htm . Acesso em 27 de abril de 2006. (Resolues 1120,1121 e 1122)32INTERNATIONAL PEACE ACADEMY, apud in CARDOSO, Afonso Jos Sena. O Brasil nas operaes de paz das Naes Unidas. Braslia: Instituto Rio Branco; Fundao Alexandre de Gusmo; Centro de Estudos Estratgicos, 1998.p.17

    46

  • Somando-se a isso, como sublinha este autor, tais operaes

    no podem representar ameaa para as partes no conflito nem serem percebidas

    como tal, da a restrio do uso da fora a nveis de autodefesa e a exigncia de

    imparcialidade por parte dos integrantes da misso de paz. Embora a manuteno

    da paz seja o maior objetivo da organizao, a Carta da ONU no contm nenhum

    dispositivo explcito que autorize as operaes de paz, constituindo-se em um

    mecanismo criado pelas prticas subseqentes da organizao e reconhecido

    judicialmente pela Corte Internacional de Justia em 1949.33

    De 1948 a 1987 os peacekeepers, ou seja os soldados de

    uma operao de paz, tinham duas funes principais: 1) observar a paz atravs

    do monitoramento do cessar fogo; e 2) manter a paz, atravs da criao de zonas

    tampo neutrais entre os beligerantes. Tais misses desempenhavam funes

    bastante simples se comparadas s misses atuais que incorporam uma srie de

    novas funes. As foras eram compostas por tropas de pequenos Estados em

    sua maioria no alinhados ao conflito bipolar. Os membros permanentes do

    Conselho de Segurana e outras potncias somente contribuam com tropas em

    circunstncias bastante excepcionais.34

    Deve-se ressaltar que as tropas eram levemente armadas e

    eram estabelecidas simbolicamente entre os beligerantes que haviam concordado

    com a pacificao. Neste perodo, a influncia das Naes Unidas resultava mais

    33 FONTOURA, Paulo Roberto Campos Tarisse da. O Brasil e as Operaes de Manuteno da Paz das Naes Unidas. Braslia: Fundao Alexandre de Gusmo, 1999. p. 6634 WEISS, T. G.; FORSYTHE; D. P.; COATE, R.A. The United Nations and Changing World Politics. Boulder: Westview Press, 1997.p.55

    47

  • da cooperao entre os beligerantes e do peso moral da comunidade internacional

    do que do poderio blico militar.

    Alm disso, neste perodo, no qual prevaleciam questes

    militares tradicionais entre Estados soberanos, as operaes dependiam de

    alguns fatores essenciais, a saber: serem estabelecidas com base em um amplo

    marco internacional, contar com o consentimento das partes envolvidas, uso

    restrito da fora, imparcialidade,35 lograr efetiva cooperao poltica das partes

    conflitantes, apoiar-se em mecanismos claros e aceitos para concesso de

    pessoal e correspondente reembolso, colocar no cenrio uma presena militar ou

    quase militar internacional, e por fim, objetivar a preveno ou conteno de

    violncia atravs de solues pacficas.36

    Dentre esses pontos, o uso restrito da fora e o consentimento

    das partes evidenciam-se como os fatores mais controversos para as operaes

    de paz estabelecidas pela organizao no perodo subseqente. Com o fim da

    Guerra Fria e o consenso entre os membros permanentes do Conselho de

    Segurana da ONU, a autorizao destas operaes voltou s prerrogativas do

    Conselho e tornaram-se cada vez mais constantes.

    Quando o lder sovitico Gorbachev sobe ao poder e institui

    uma reforma poltica e econmica em seu pas, tambm as suas relaes com as

    Naes Unidas so revigoradas. A mudana na poltica sovitica resultou da

    35 A imparcialidade, para Cardoso (1998, p.17), faz-se imprescindvel ao permitir que os participantes das operaes sejam vistos como terceiros capazes de contribuir para o equacionamento do conflito e no como parte envolvidas nele.36 CARDOSO, Afonso Jos Sena. O Brasil nas operaes de paz das Naes Unidas. Braslia: Instituto rio Branco; Fundao Alexandre de Gusmo; Centro de Estudos Estratgicos, 1998. p. 18

    48

  • necessidade deste pas retirar o suporte anteriormente dado a certos conflitos e

    direciona-lo para a reforma econmica. 37 Dessa forma, o apoio da ONU foi pedido

    para a retirada das tropas soviticas de seus antigos Estados satlites, como o

    Afeganisto.38

    Da mesma forma que a Unio Sovitica, tambm os Estados

    Unidos mudaram sua atitude relativamente organizao, tendo seu ento

    presidente Ronald Reagan, ressaltado em 1988 o importante papel a ser

    desempenhado pela organizao na manuteno da paz e segurana

    internacional.39

    Findada a Guerra Fria, entre 1988 e 1989 cinco misses de

    paz foram estabelecidas pelo Conselho e finalizaram-se todas at 199340. Embora

    tenham sido as primeiras autorizadas no perodo imediatamente posterior

    bipolaridade mundial, suas funes pouco se diferenciavam das tradicionais

    misses de paz, tendo incorporado somente algumas outras funes.

    Durante a Guerra fria, as misses ento estabelecidas

    caracterizavam-se especialmente como misses de observao, as quais incluam

    37 WEISS;FORSYTHE;COATE. The United Nations and Changing World Politics. Boulder: Westview Press, 1997.p. 6438 A misso l estabelecida intitulava-se The UN Good Offices Mission in Afghanistan and Pakistan (UNGOMAP) e tinha como objetivo verificar a retirada das tropas soviticas do Afeganisto. A retirada sovitica tornou-se um imperativo necessrio quando grupos rebeldes financiados pelo Paquisto e Estados Unidos passaram a atacar as tropas soviticas ali presentes, tornando a presena naquele pas por demais custosa.39 WEISS;FORSYTHE;COATE. The United Nations and Changing World Politics. Boulder: Westview Press, 1997.p. 6440 Essas misses foram: Misso de Bons Ofcios no Afeganisto e Paquisto (UN Good Offices Mission in Afghanistan and Pakistan UNGOMAP), Grupo de Observadores Militares no Ir e Iraque (UN Iran-Iraq Military Observer Group UNIIMOG), a primeira Misso de Verificao da Angola (I UNAVEM), Grupo de Assistncia das Naes Unidas para o Perodo de Transio (UN Transition Assistance roup in Namibia UNTAG) e Grupo de Observadores das Naes Unidas na amrica Central (United Nations Observer Group in Central America (ONUCA).

    49

  • como funes: investigao, superviso do armistcio, manuteno do cessar fogo

    e superviso de plebiscitos. Os casos supracitados tambm foram considerados

    misses de observao, muito embora seus mandatos tenham sido expandidos

    para a verificao da retirada de tropas, organizao e superviso de eleies,

    desarmamento voluntrio e verificao de direitos humanos.

    As novas funes conforme veremos adiante so importantes

    pontos das chamadas operaes de paz de segunda gerao, todavia, foram

    implementadas mediante a autorizao dos Estados envolvidos e, portanto, tendo

    respeitado os princpios de no interveno.

    No entanto, merece especial destaque a misso de

    observao implementada na Amrica Central Grupo de Observadores das

    Naes Unidas na Amrica Central (United Nations Observer Group in Central

    America - ONUCA) e que foi seguida do estabelecimento de outras misses na

    regio.41 Segundo Weiss, Forsythe e Coate42 a ao das Naes Unidas nessa

    regio apresenta-se como o ponto de transio entre as tradicionais operaes h

    pouco discutidas e as novas misses multifuncionais, objeto de anlise deste

    tpico.

    A razo para esta afirmao decorre do fato de que estas

    misses incorporaram uma srie de novas funes agenda da ONU, muito

    embora no tenham sido autorizadas mediante o captulo VII da Carta, ao esta

    41 Estas outras misses seriam ento: A Misso de Observao das Naes Unidas para Verificao do processo eleitoral na Nicargua (ONUVEN), a Misso de Observao em El Salvador (ONUSAL) e a Misso de Verificao do Processo Eleitoral no Haiti (ONUVEH)42 idem.p.69-72

    50

  • que viria a ocorrer somente em 1991 com a autorizao do uso da fora no conflito

    desembocado no Golfo Prsico.

    Dentre estas novas funes destacamos a verificao de

    todas as formas de assistncia militar s foras insurgentes, a preveno de

    financiamento de conflitos por parte de Estados insurgentes infiltrados nos pases

    vizinhos e a desmilitarizao de reas, atravs da coleta fsica e destruio de

    armamentos no caso da ONUCA. Estas tarefas so desempenhadas em locais

    amplamente armados e acabam sendo incorporadas s funes das futuras

    misses da ONU de forma expandida e rigorosa.

    A Misso das Naes Unidas para verificao do processo

    eleitoral na Nicargua (ONUVEN) considerada a primeira misso de observao

    da organizao, na qual uma equipe de civis participou de todo o processo

    eleitoral, figurando como uma intruso extraordinria nos termos das noes

    convencionais de jurisdio domstica.43 Outra grande inovao desta misso foi

    a participao da Organizao dos Estados Americanos OEA e outras

    organizaes no governamentais na misso. A ONU e a OEA cooperaram

    ativamente nos esforos diplomticos e na observao civil. Embora a Carta

    preveja a cooperao com organizaes regionais, essa foi a primeira experincia

    no campo de misses de paz e, portanto, digna de nota.

    Da mesma forma que a ONUVEN, a Misso de Verificao do

    Processo Eleitoral no Haiti (ONUVEH) tambm se configurou como misso de

    observao eleitoral, desta vez para o Haiti. A composio civil nessas duas 43 idem. p.70

    51

  • misses acabou por confundir a distino entre misses civis e militares e entre

    segurana e direitos humanos. Desde ento, embora ainda existam misses de

    carter essencialmente civil, as misses de paz da ONU so compostas pelos dois

    componentes civil e militar.44

    Finalmente, relativamente Misso de Observao em El

    Salvador (ONUSAL), observamos que a mesma foi estabelecida em meio a uma

    guerra civil na qual as violaes dos direitos humanos eram constantes. Estas

    violaes deveriam, ento, ser prevenidas atravs de um sistema de

    monitoramento e observao tanto do exrcito como do governo antes de um

    cessar fogo oficial. Alm disso, o pessoal da ONUSAL coletou e destruiu

    armamentos de posse dos rebeldes e auxiliaram na criao de um novo exrcito

    nacional, responsabilidade esta que passa a fazer parte das subseqentes

    misses estabelecidas pela organizao.

    Apesar das excepcionais caractersticas apontadas, as

    operaes estabelecidas no Golfo Prsico, em 1991, apresentam-se como

    importante marco para as futuras operaes de imposio da paz estabelecidas

    sem o consentimento das partes envolvidas e que vo de encontro s disposies

    do princpio de no interveno no artigo 2.7 da Carta das Naes Unidas.

    A Guerra do Golfo apresenta-se como linha de transio na

    histria do Conselho de Segurana, uma vez que a indita unanimidade dos cinco

    44 Os novos ambientes em que so estabelecidas essas misses, principalmente aquelas de carter intra-estatal exigem um forte componente civil, composto principalmente pela fora policial, observadores eleitorais e supervisores de violaes de direitos humanos. (WEISS; FORSYTHE;COATE, 1997, P. 67-72)

    52

  • membros permanentes possibilitou a adoo de uma srie de resolues nos

    termos do captulo VII. Atravs das resolues 660, 661, 665, 670 e por fim 678, O

    CS condenou primeiramente a invaso iraquiana ao Kuwait e, em seguida, deu

    incio a uma srie de medidas que visavam a retirada das tropas iraquianas,

    atravs de embargos e bloqueios econmicos, tendo finalmente, autorizado todos

    os meios necessrios para restabelecer a paz na regio, atravs do mecanismo

    de legtima defesa nos termos do artigo 51 da Carta Constitutiva das Naes

    Unidas.45

    Todavia, de todas essas resolues, a que se apresenta mais

    surpreendente e interessante para os fins desse estudo a de nmero 688 que

    determinou que as conseqncias da represso iraquiana sobre a populao civil,

    em especial os curdos, ameaava a paz internacional e a segurana da regio,

    insistindo com este pas que permitisse o acesso imediato das organizaes

    humanitrias internacionais, para todos aqueles que necessitassem assistncia,

    em todas as regies do Iraque e deixassem disponveis todos os recursos para a

    sua operao.46

    No s o auxlio humanitrio foi conseguido, como sob o comando

    militar das foras armadas estadunidenses foi criado um territrio curdo ao norte

    do Iraque, alm de uma zona de excluso area nas reas xiitas. A ajuda

    humanitria da ONU, autorizada a partir do Conselho de Segurana acabou por

    45 DISTEIN, Yoram. Guerras, agresso e legtima defesa. Barueri: Manole, 2004. p.398-40046 Documento disponvel em: http://daccessdds.un.org/doc/RESOLUTION/GEN/NR0/597/50/IMG/ NR059750.pdf?OpenElement . Acesso em 22 de junho de 2007.

    53

  • interferir nos domnios do territrio nacional iraquiano, sem o consentimento da

    parte envolvida e ainda a neutralidade necessria.47

    A Resoluo 688 constituiu o primeiro caso, no ps Guerra Fria, de associao de abusos macios e sistemticos de um Estado contra os direitos de seus prprios nacionais problemtica da segurana internacional, alm de sinalizar para uma mudana no papel do Conselho de Segurana no que se refere limitao da jurisdio domstica face proteo.48

    Apesar de no ser estabelecida nos marcos do captulo VII,

    esta resoluo alegou que a questo dos refugiados curdos ameaavam a paz e a

    segurana internacional, constituindo-se como importante passo dado em direo

    s intervenes humanitrias estabelecidas pela Organizao e inauguradas com

    as operaes de imposio da paz estabelecidas na Somlia.

    Assim, nos anos que seguiram ecloso da Guerra do Golfo,

    diversas outras resolues foram autorizadas pelo Conselho de Segurana e

    freqentemente mencionava-se o captulo VII, enfatizando-se a expresso

    ameaa contra a paz, suficientemente flexvel para possibilitar a ao coercitiva

    blica nos conflitos internacionais.

    Este novo cenrio inserido no documento Uma Agenda para

    a pazque alm de definir conceitualmente as operaes de manuteno da paz,

    define tambm outras tipologias de misses como a diplomacia preventiva, as

    47 DISTEIN, Yoram. Guerras, agresso e legtima defesa. Barueri: Manole, 2004. p 401.48 RODRIGUES, Simone Martins. Interveno Humanitria em Conflitos Internos: Desafios e Propostas. Center for Hemispheric Defense Studies (REDES 200): Research and Education in Defense and Security Studies, 7 a 10 de agosto, 2002, Brasilia, Brasil.p.121

    54

  • misses de construo da paz e as misses ps-conflito49. Todas estas misses

    afastam-se tanto conceitualmente como funcionalmente em relao quelas

    consideradas misses de primeira gerao ou clssicas, e o princpio de

    soberania relativizado frente aos novos desafios que o sistema traz.

    A pedra angular deste trabalho e continua sendo o Estado, o respeito a sua soberania e integridade fundamental crtico em todo processo internacional comum. No entanto, o momento da soberania absoluta e exclusiva passou, (...). Hoje os governantes de Estado devem compreend-la assim, e contrapesar as necessidades de uma boa gesto interna com as exigncias de um mundo cada vez mais interdependente. 50

    Complementarmente a este documento, em 1997, foi ento

    divulgado o chamado Suplemento de uma agenda para a paz51, que alm de

    tratar das mesmas transformaes ocorridas no cenrio internacional e na

    natureza dos conflitos trata das operaes de imposio de paz empreendidas

    pela organizao na Somlia, Haiti, Ruanda e Iugoslvia.

    49 Alm das operaes de imposio da paz, o ex-secretrio descreveu tambm a diplomacia preventiva (preventive diplomacy), que seriam as aes implementadas de modo a prevenir possveis conflitos;as operaes de construo da paz ( peacemaking), ocorridas atravs de mediaes e negociaes com o objetivo de cessar o conflito entre as partes atravs de meios pacficos com base no captulo VI da Carta; as operaes de manuteno da paz (peacekeeping), j citadas anteriormente prevem a autorizao das partes para interveno da ONU; e finalmente, as operaes de construo da paz ps-conflito ( post-conflict peacebuilding), responsveis pela construo de infra-estutura econmica social e poltica com o objetivo de prevenir futuros conflitos. Ver tambm as definies a partir do documento An Agenda for Peace disponvel em: : http://www.un.org/Docs/SG/agpeace.html Acesso em 03 de junho de 2007.50 ORGANIZAO DAS NAES UNIDAS. An Agenda for Peace: Preventive Diplomacy, Peacemaking and Peace-Keeping, Report of the Secretary-General pursuant to the statement adopted by the Summit meeting of the Security Council. Nova York: United Nations, 1992. Disponvel em: http://www.un.org/Docs/SG/agpeace.html. Acesso em 10 de agosto de 2005.p.551 Documento disponvel em: http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N95/080/95/PDF/N9508095.pdf?OpenElement. Acesso em 6 de junho de 2007.

    55

  • Mais recentemente, o Conselho autorizou grupos de Estados membros a empreenderem uma ao de imposio, se necessrio, para a criao de condies que possibilitem o estabelecimento de operaes de alvio humanitrio na Somlia e em Ruanda e a restaurao da democracia no Haiti. Na Bsnia e Hezergovina, o Conselho de Segurana autorizou Estados membros, agindo nacionalmente ou atravs de organizaes regionais a utilizar a fora (...) para auxiliar as foras das Naes Unidas na antiga Iugoslvia a garantirem o cumprimento de seu mandato, incluindo a defesa do pessoal que pudesse estar sob ataque e a deteno de ataques zonas seguras. Os Estados membros em questo decidiram confiar estas tarefas Organizao do Tratado do Atlntico Norte (OTAN).52

    Neste contexto, percebemos que estas misses assumem

    caractersticas impositivas, j que admitem a utilizao de todos os meios

    necessrios para que se cumpra o mandato da organizao. Alm disso,

    observamos tambm que o escopo de ao da ONU transforma-se, incorporando

    funes que no foram inicialmente previstas nas chamadas operaes de paz de

    primeira gerao. Estas novas operaes refletem, ademais, mudanas

    significativas no ambiente poltico e legal internacional em que operam. Questes

    anteriormente preservadas legalmente pela organizao, tais como intervenes

    em guerras civis e crises humanitrias no mbito de Estados soberanos53, so de

    certa forma relativizadas.

    52Suplemento de Uma Agenda Para a Paz. Disponvel em: http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N95/080/95/PDF/N9508095.pdf?OpenElement. Acesso em 6 de junho de 2007. p.1853 O principal argumento contrrio s intervenes humanitrias leva em considerao o artigo 2 da Carta das Naes Unidas que diz o seguinte (...) Os membros devero abster-se nas suas relaes internacionais de recorrer ameaa ou ao uso da fora, quer seja contra a integridade territorial ou a independncia poltica de um Estado, quer seja de qualquer outro modo incompatvel com os objectivos das Naes Unidas; (...) A redao do artigo controversa e sujeito a interpretaes, o que gera grandes debates entre aqueles que defendem as intervenes e aqueles contrrios a elas. ntegra do documento em: http://www.un.org/spanish/Depts/dpi/portugues/charter/index.htm . Acesso em 4 de junho de 2007.

    56

  • Esse processo culminou, diversas vezes, na reinterpretao

    da Carta, tanto no que se refere aos objetivos da segurana coletiva como no

    tocante aos meios de garanti-la.54 Para Patriota, os pases alvos de sanes,

    como Somlia, Ruanda, Haiti, entre outros, foram

    (...) palco de experincias com implicaes para a teoria e a prtica da segurana coletiva que, embora no se tenham ainda cristalizado em uma doutrina ou em um conjunto de regras, vo articulando um paradigma novo pelos precedentes que estabelecem.55

    Na anlise deste novo paradigma, o autor56 delineia dois eixos,

    os fins e os meios. No primeiro, situar-se-iam as questes relacionadas aos

    objetivos de segurana coletiva, enquanto o ltimo trataria, essencialmente, das

    diferentes modalidades de ao praticadas pelo Conselho com o objetivo ltimo de

    garantir a paz internacional.

    Relativamente aos objetivos de segurana coletiva o autor

    destaca situaes de emergncia humanitria e violao dos direitos humanos,

    alm do combate ao terrorismo, a subverso ordem democrtica e a proliferao

    de armas de destruio em massa. No eixo referente aos meios, por sua vez,

    ressalta-se as misses de imposio, com a atribuio coercitiva s operaes de

    paz, o emprego de foras multinacionais ou alianas militares defensivas para a

    imposio de decises do Conselho, alm das trocas de idias e as iniciativas em

    54 PATRIOTA, Antnio de Aguiar. O Conselho de Segurana ps-Guerra do Golfo: a articulao de um novo paradigma de Segurana Coletiva. Braslia: Instituto Rio Branco; FUNAG; Centro de Estudos Estratgicos, 1998.p.15555 Ibdem56 Idem, p.156

    57

  • curso sobre como tornar mais eficientes as operaes de manuteno da paz,

    mediante o estabelecimento de standby arrangements e de Unidades de Estado-

    Maior de deslocamento rpido (Rapdly Deployable Headquarters Unit).57

    As questes aqui levantadas demonstram a incluso de uma

    srie de novos itens aos eixos esquematizados, aumentando, dessa forma, o

    escopo de ao do Conselho de Segurana.

    No tocante aos objetivos e finalidades das aes coercitivas

    do captulo VII, destaca-se a interveno coletiva em casos de emergncia

    humanitria suscitando importante debate relativo responsabilidade da

    comunidade internacional em face de fenmenos graves contra a humanidade,

    como a violncia sistemtica a minorias religiosas ou tnicas, violao de direitos

    humanos e ainda resgate ou proteo de cidados expatriados ou indivduos em

    perigo.

    Atualmente, as operaes de paz autorizadas pelas Naes

    Unidas so cada vez mais freqentes e numerosas. Embora a autorizao da

    misso dependa do Conselho de Segurana, foi criado um rgo para

    organizao e estabelecimento dessas operaes, o Departamento de Operaes

    de Paz das Naes Unidas .

    1.4 O Departamento de Operaes de Manuteno da Paz da ONU

    57 Ibdem

    58

  • O Departamento fruto da crescente importncia dada s

    operaes de paz a partir da dcada de 90. Criado em 1992, o rgo se dedica a

    organizar os esforos dos Estados Membros e Secretrio Geral direcionados

    manuteno da paz e segurana internacionais. Sua misso compreende o

    planejamento, gerenciamento e direo das operaes de paz autorizadas pelas

    Naes Unidas de maneira que as mesmas efetivem seus mandatos em

    concordncia com o Conselho de Segurana e Assemblia Geral.

    Como parte de suas funes, o DPKO detm a direo poltica

    e executiva das diversas misses, mantendo contato com o Conselho de

    Segurana, com contribuidores financeiros e de tropas, com as partes conflitantes,

    alm de prover suporte administrativo, logstico e de pessoal especializado.

    Embora cada operao de paz possua um mandato

    especifico, todas compartilham de certos princpios gerais que se adequam s

    causas comuns: o alvio ao sofrimento humano e a criao de instituies que

    promovam a paz e segurana pblica. Por essa razo, as operaes de paz

    possuem diversos componentes e sees especializadas: os componentes militar

    e civil, que se dividem por uma srie de sees conforme a necessidade da

    misso: destruio de minas, cessar-fogo, implementao de acordos de paz,

    assistncia humanitria, bem como o exerccio de funes administrativas e a

    reorganizao da base econmica da regio em questo.

    59

  • Fonte: Departamento de Operaes de Paz das Naes Unidas. Disponvel em:

    www.un.org/Depts/dpko/dpko/index.htm). Acesso em 11 de fevereiro de 2008

    O departamento possui ainda a diviso militar e policial, de

    modo a cumprir mais efetivamente com as novas funes desempenhadas pelas

    misses de paz da ONU.

    1.4.1 A Diviso Policial

    As misses de paz contemporneas possuem dois tipos de fora

    policial internacional: a civil e a militar. Ambas provm das contribuies de

    60

  • pessoal e equipamentos por parte dos pases membros da ONU. A polcia militar

    tem como tarefa principal o policiamento das reas determinadas pela a operao

    de paz e utilizada, ocasionalmente, juntamente s organizaes e pessoas

    responsveis pelo cumprimento da lei no pas anfitrio.

    A polcia civil, por sua vez, assume um papel de primordial

    importncia nas misses de paz. Tambm chamada de CIVPOL, suas funes

    variam desde o monitoramento e superviso das organizaes mantenedoras das

    leis locais, ao exerccio da autoridade responsvel pelo cumprimento da lei.

    Devido importncia conferida CIVPOL, foi criado, em

    outubro de 2000, o Departamento da Polcia da ONU58, como parte integrante do

    Departamento de Operaes de Manuteno da Paz, citado anteriormente, e com

    a funo de planejar e dar suporte ao trabalho dos oficiais policiais nas operaes.

    O debate em torno deste tema tem se intensificado ao longo

    da dcada de 90, no entanto, a presena das polcias internacionais no recente

    na comunidade internacional. As operaes de paz tm tido com freqncia um

    componente policial, ainda que conhecidas como aes policiais ou operaes

    policiais, enfatizando-se a funo de manuteno da lei e da ordem. Como

    exemplo pode-se citar as aes policiais em Creta (1896-97) e a operao policial

    em Sardenha sob a gide da Liga das Naes, em 1935.59

    58 Disponvel em: www.un.org/Depts/dpko/dpko/civpol/civpol_1.htm. Acesso em 24 de janeiro de 2007.59 SISMANIDIS, Roxane D. V. Police Functions in Peace Operations: Report from a workshop organized by the United States Institute of Peace. Peaceworks n14, 1997. Disponvel em: http://www.usip.org/pubs/peaceworks/pwks14.html . Acesso em 10 de fevereiro de 2008.p.3

    61

  • Na ONU, a polcia internacional foi pela primeira vez

    empregada no Congo (Operaes das Naes Unidas no Congo ONUC), em

    1960-65 e por mais de 30 anos na Operao de paz da ONU estabelecida no

    Chipre (Operao de Manuteno da Paz da ONU no Chipre United Nations

    Peacekeeping Force in Cyprus, UNFICYP) em 1964. Assim, as funes da polcia

    internacional em misses de paz desenvolveram-se acompanhando as mudanas

    ocorridas na natureza e complexidade de tais misses. Durante a misso no

    Congo, foram destacados contingentes policias de Gana e da Nigria para auxiliar

    na manuteno da ordem pblica naquele pas. A misso de paz no Chipre, por

    sua vez, marcou o incio da evoluo no policiamento internacional havendo

    monitoramento e superviso da polcia local pelos integrantes da fora policial

    internacional.

    Essa nova funo definitivamente incorporada pela misso

    de paz estabelecida na Nambia (Grupo de Assistncia das Naes Unidas para o

    Perodo de Transio - UN Transition Assistance Group in Namibia -UNTAG)) em

    1989. O pas foi dividido em sete distritos policiais, com um total de 49 delegacias

    policiais e contou com contingentes de 25 pases diferentes. Suas funes

    abarcaram desde o monitoramento e superviso da polcia local at o

    acompanhamento de eleies.

    Tais exemplos, conforme podemos perceber, correspondem a

    situaes em que j havia uma polcia local e onde as atividades da fora policial

    limitaram-se ao auxlio ao pessoal do pas anfitrio. Entretanto, ao longo dos

    62

  • ltimos anos, as Naes Unidas envolveram-se em operaes onde a superviso

    no era suficiente e responsabilizou seus oficiais das polcias internacionais pela

    formao e treinamento da polcia local. Alguns exemplos dessas misses foram:

    Misso das Naes Unidas para Assistncia em Ruanda (UN Assistance Mission

    in Rwanda - UNAMIR), em 1994; Operao das Naes Unidas em Moambique

    (UN operation in Mozambique - ONUMOZ), em 1992-95; e a Autoridade de

    Transio no Camboja (Transitional Authority in Cambodia - UNTAC) em 1992-93.

    Desde ento, o componente policial est presente em todas as

    misses de paz mais proeminentes das Naes Unidas e envolvem o treinamento,

    a reorganizao e o monitoramento das foras policiais locais. Nesse sentido, a

    seleo de policiais para composio dos quadros da polcia internacional de

    extrema importncia, bem como seu treinamento e adaptao.

    Dentre os principais problemas enfrentados atualmente pelas

    foras policiais, apontamos o baixo nmero de destacamentos policiais, a falta de

    padres gerais de treinamento, e a comunicao. Relativamente a tais desafios,

    deve-se salientar que a maioria dos Estados membros no possui destacamentos

    reserva que substituam os contingentes oferecidos s misses de paz, o que

    explica seu nmero bastante inferior se comparado aos destacamentos militares.

    Outra questo relacinada, diz respeito falta de padres

    gerais para o treinamento de soldados, j que cada destacamento tem um

    treinamento especifico de seu pas, bastante atrelado regio em que atua.

    Dessa forma, os treinamentos da ONU incluem a observao de certos padres

    63

  • gerais bem como alguns especficos do pas onde ocorrer a misso. Dentre

    esses princpios especficos, leva-se em considerao os aspectos culturais do

    pas anfitrio, bem como sua histria e geografia, o que aumenta o tempo de

    treinamento e seus custos.

    Por fim, relativamente comunicao observamos um claro

    problema relativamente s diferentes lnguas. Assim, como nas operaes

    militares, faz-se necessrio o conhecimento da lngua oficial da misso,

    normalmente o ingls, bem como da lngua local, o que dificulta o recrutamento.

    Isso ocorre porque na maioria das vezes os pases contribuintes de foras policiais

    so aqueles considerados em desenvolvimento que tm o ingls como segunda

    lngua e raramente tm conhecimento da lngua local. Os destacamentos policiais

    com um bom conhecimento da lngua inglesa muito inferior aos componentes

    das foras armadas que na maioria das vezes tm o aprendizado de lnguas

    estrangeiras em sua prpria formao.

    No entanto, o mais importante e complexo desafio imposto

    fora policial refere-se aos mandatos e s misses de paz que tm se

    estabelecido em pases onde a autoridade civil e o sistema criminal de justia

    esto parcial ou totalmente destrudos. Quando isso ocorre, a reorganizao de

    um sistema de leis essencial para a estabilizao da sociedade e reconstruo

    da autoridade civil. Com as experincias desastrosas da prpria ONU, o debate

    em torno da responsabilidade internacional na criao de um novo sistema de

    justia e no exerccio da autoridade de suma importncia.

    64

  • Sismanidis60 afirma no h unanimidade de opinies no que

    tange a esse tema dentre os especialistas no assunto, destacando que embora

    seja reconhecida a necessidade de um sistema de lei para reger a sociedade,

    muitos argumentam que esse novo sistema seria estabelecido luz dos princpios

    ocidentais, desrespeitando as tradies locais e muitas vezes levando

    desconfiana da comunidade local relativamente fora de paz internacional.

    Alm disso, h o problema do tempo de comprometimento que exigido para

    cumprimento dessa funo, uma vez que o capital e pessoal especializado

    disponibilizados s foras de paz so bastante reduzidos, impedindo o

    cumprimento efetivo dessa funo.

    No caso das misses com objetivos humanitrios a

    necessidade de estabelecimento de ambientes mais seguros e menos

    criminalizados para que as foras militares e os agentes humanitrios possam

    trabalhar com mais efetividade esbarra nos princpios de neutralidade e

    imparcialidade. No caso das intervenes humanitrias, o papel desempenhado

    por tais foras policiais se faz de extrema importncia dado que a proviso do

    auxlio humanitrio em um conflito civil caracterizado principalmente pelos

    elevados ndices de criminalidade, bastante difcil. Nestes casos, as

    negociaes com as partes envolvidas para que o auxlio seja prestado de forma

    adequada, por vezes acaba minando a percepo desses princpios necessrios

    para uma assistncia humanitria adequada e constituindo-se em uma das

    principais crticas s intervenes humanitrias atualmente.60 Idem p. 15

    65

  • Conforme podemos observar, a atual complexidade do

    Sistema Internacional, onde tm prevalecido conflitos de natureza intra-estatal traz

    diversos desafios ainda no solucionados pela comunidade internacional. A ONU

    tem trabalhado na elaborao de documentos que procuram exaurir o tema e

    esclarecer as melhores formas de ao. No entanto, tm prevalecido experincias

    muitas vezes desastrosas que no condizem com os mandatos e objetivos

    buscados por cada uma dessas misses.

    1.4.2 A Diviso Militar

    A Diviso Militar do Departamento de Operaes de

    Manuteno da Paz das Naes Unidas tem como principal objetivo dar suporte

    ao Secretrio Geral, Conselho de Segurana e outros rgos intergovernamentais

    em assuntos relacionados s misses implementadas pela organizao. Para

    tanto, tem como funo o pronto suporte e planejamento para o estabelecimento

    de uma misso de paz, que incluem a conduo, o gerenciamento e a direo das

    operaes de modo que as capacidades militares oferecidas pelos Estados

    Membros sejam melhor empregadas em cada uma das misses61.

    Os tipos de misses empregadas pela ONU requerem um

    claro entendimento relativamente a grande variedade de atores e locais em que

    podem ser estabelecidas. Dessa forma, percebe-se que a Diviso Militar

    responsvel por toda a parte estratgica das misses de paz, de modo que as 61 Informaes disponveis em: www.um.or/depts/dpko/milad. Acesso em 29 de janeiro de 2007.

    66

  • melhores anlises de informaes, planos, treinamento e pessoal estejam

    disponveis.

    Em razo da atual complexidade atingida pelas diversas

    misses de paz da ONU, diversas so tambm as exigncias para seu sucesso.

    Tais dificuldades referem-se tanto aos diversos ambientes em que tais operaes

    so estabelecidas, que determinam a necessidade de uma srie de

    especialidades e especialistas, quanto rapidez com que a ONU muitas vezes

    deve agir. Por essa razo a diviso militar possui diversas sees que tratam das

    diversas funes e regies incumbidas ao rgo.

    67

  • Fonte: Departamento de operaes de Paz da Organizao das Naes Unidas.

    Disponvel em: ww.un.org/depts/dpko/milad/md/organization.htm . Acesso em 17 de fevereiro de

    2008.

    Especial ateno deve ser dada ao Sistema de Pronto

    emprego da ONU (United Nations Stand-by Arrangements). Este sistema

    baseado no comprometimento em recursos e pessoal por parte dos Estados

    Membros e surgiu da necessidade de uma rpida resposta da comunidade

    internacional a diversos conflitos e crises humanitrias. Os recursos oferecidos

    68

  • vo desde formaes militares, pessoal especializado (civil e militar), a servios e

    equipamentos.

    O sistema mais um exemplo da atual complexidade atingida

    pelos conflitos encenados no Sistema Internacional, que exigem uma resposta

    rpida na ausncia de um governo responsvel pelo pas ou regio conflitiva.

    Assim, o envio de tropas por parte da ONU a tais regies tem sido recorrente e, da

    mesma forma, diversos temas receberam renovada ateno, em especial os

    direitos humanos62.

    Desde ento as intervenes tm se tornado cada vez mais

    constantes e, concomitantemente, as misses de paz tm adquirido especial

    importncia. Tais intervenes so fruto tambm da defesa da interveno das

    Foras Armadas no combate s novas ameaas, surgidas nos cenrios regional e

    domstico durante os anos 90.

    De acordo com Sain63, as novas ameaas referem-se ao

    (...) conjunto de riscos e situaes no tradicionais de conflito, ou seja, aquelas no geradas por conflitos interestatais derivados de discusses sobre limites territoriais ou de competio por hegemonia estratgica, e que, portanto, estavam sujeitas resoluo por meio do emprego, ou ameaa de emprego, das Foras Armadas dos pases contendentes.

    62MATHIAS, Suzeley; PEPE, Leandro. Segurana e Democracia: a atuao do Brasil no Haiti. Trabalho apresentado no Lasa's XXVII International Congress. San Juan, maro, 2006. Disponvel em:http://64.233.169.104/search?q=cache:V38XyQ4qJnIJ:www.resdal.org/producciones-miembros/art-mathias-lasamar06.pdf+mathias+pepe&hl=pt-BR&ct=clnk&cd=1&gl=br . Acesso em: 10 de fevereiro de 2008.p.1 63SAIN, Marcelo Fabin. Novos horizontes, novos problemas: As Foras Armadas argentinas frente s novas ameaas (1990-2001). P. 157-210. IN: MATHIAS, Suzeley K. ; SOARES, Samuel A (orgs). Novas Ameaas: Dimenses e Perspectivas. So Paulo: Sicureza, 2003.p.157-8

    69

  • Essas novas ameaas sugerem a reestruturao da agenda

    das Foras Armadas que passam a se envolver em questes que vo alm de seu

    papel tradicional e das relaes civil-militares. Este papel tradicional relaciona-se

    ao combate s ameaas externas, preparando-se para um possvel conflito blico.

    No entanto, conforme destacado, as novas ameaas exigem que sejam adquiridas

    novas funes incluindo aquelas no militare