310

A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

  • Upload
    doque

  • View
    302

  • Download
    4

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997
Page 2: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

A ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA

Richard Leakey

Tradução de ALEXANDRE TORT

Rio de Janeiro — 1997

Page 3: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

Título original THE ORIGIN OF HUMANKIND Copyright© 1994 by Richard Leakey e Orion Publishing Group Ltd. “O nome e a marca The Science Masters foram publicados com a autorização de seu proprietário John Brockman Associates, Inc.” Direitos mundiais para a língua portuguesa reservados com exclusividade à EDITORA ROCCO LTDA. Rua Rodrigo Silva, 26 — 5º andar 20011-040 — Rio de Janeiro, RJ Tel.: 507-2000 — Fax: 507-2244 Printed in Brasil - Impresso no Brasil Revisão técnica RUI CERQUEIRA

(Instituto de Biologia da UFRJ) CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos

Editores de Livros, RJ. Leakey, Richard E.

A origem da espécie humana / Richard Leakey; tradução de Alexandre Tort; coordenação editorial: Leny Cordeiro — Rio de Janeiro: Rocco, 1995. (Ciência Atual) Tradução de: The origin of humankind 1. Evolução humana. 2. Homem - Origem. 3. Pré-história I. Título, n. Série CDD — 575.01 95-0095 CDU —576.1

Page 4: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997
Page 5: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997
Page 6: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

Sumário Prefácio.................................................................................... 9

1 - Os primeiros humanos.......................................................16

2 - Uma família numerosa.......................................................33

3 - Um tipo diferente de humano ............................................51

4 - Homem, o nobre caçador? ................................................66

5 - A origem dos humanos modernos.....................................83

6 - A linguagem da arte.........................................................101

7 - A arte da linguagem.........................................................117

8 - A origem da mente ..........................................................134

Bibliografia e leituras adicionais............................................151

Page 7: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

Prefácio

É o sonho de todo antropólogo desenterrar um esqueleto

completo de um ancestral humano primitivo. Para a maioria de

nós, contudo, este sonho permanece irrealizado; os caprichos

da morte, o enterro e a fossilização conspiram para deixar um

registro insuficiente, fragmentado da pré-história humana

Dentes e ossos isolados, fragmentos de crânios, geralmente

são estas as pistas a partir das quais a história da pré-história

humana deve ser reconstruída Não nego a importância destas

pistas, embora sejam frustrantemente incompletas; sem elas

haveria pouco a ser dito sobre a história da pré-história humana

Também não descarto a excitação pura de sentir a presença

física destas relíquias modestas; elas são parte de nossa

ascendência, ligadas a nós por gerações incontáveis feitas de

carne e osso. Mas a descoberta de um esqueleto completo

permanece como o prêmio maior.

Em 1969, fui agraciado com uma sorte extraordinária. Tinha

decidido explorar os depósitos de arenito que formam a vasta

margem leste do lago Turkana, ao norte do Quênia — minha

primeira incursão independente na região dos fósseis. Eu

Page 8: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

estava motivado por uma forte convicção de que grandes

descobertas de fósseis seriam feitas lá, porque havia

sobrevoado a região um ano antes; percebi que os depósitos

em camadas eram repositórios em potencial da vida primitiva

— embora muitos duvidassem de meu julgamento. O terreno

era áspero e o clima implacavelmente quente e seco; mais

ainda, o cenário tem o tipo de beleza feroz que me atrai.

Com o apoio da National Geographie Society, reuni uma pe-

quena equipe — incluindo Meave Epps, que mais tarde tornou-

se minha esposa — para explorar a região. Uma manhã, vários

dias após a nossa chegada, Meave e eu estávamos retornando

ao nosso acampamento de uma excursão curta de exploração

por um atalho ao longo de um leito de rio seco, ambos

sedentos e ansiosos em evitar o calor escorchante do meio-dia.

De repente, vi diretamente à nossa frente um crânio fossilizado,

intacto, pousado sobre a areia alaranjada, as órbitas dos olhos

fitando-nos inexpres-

09

sivamente. Era inconfundivelmente humano na forma. Embora

os anos decorridos tenham apagado de minha memória o que

falei exatamente para Meave naquele instante, sei que

Page 9: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

expressei uma mistura de alegria e descrença sobre o que

havíamos encontrado.

O crânio, que imediatamente reconheci como o de um

Australopithecus boisei, uma espécie humana há muito extinta,

emergira recentemente dos sedimentos pelos quais o rio

sazonal corria. Exposto à luz do Sol pela primeira vez desde

que os elementos o haviam enterrado há quase 1,75 milhão de

anos, o espécime era um dos poucos crânios humanos antigos

intactos que até então fora encontrado. Semanas após a sua

descoberta, as fortes chuvas encheriam o leito seco com uma

corrente caudalosa; se Meave e eu não o tivéssemos

encontrado, a frágil relíquia certamente teria sido destruída

pela enchente. As chances de nos encontrarmos ali no

momento certo de recuperar para a ciência o fóssil há muito

enterrado eram mínimas.

Por uma coincidência curiosa, minha descoberta ocorreu uma

década, quase no dia, após minha mãe, Mary Leakey, ter

encontrado um crânio similar na garganta Olduvai, na

Tanzânia. (Este crânio, entretanto, tornou-se um pavoroso

quebra-cabeça paleolítico; teve que ser reconstruído a partir de

centenas de fragmentos.) Aparentemente eu herdara a

Page 10: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

legendária “sorte dos Leakey”, desfrutada de modo notável por

Mary e meu pai, Louis. De fato, minha boa sorte continuou, na

medida em que as expedições seguintes que conduzi ao lago

Turkana descobriram muitos fósseis humanos mais, inclusive o

crânio intacto do gênero Homo mais antigo de que se tem

notícia, o ramo da família humana que finalmente deu origem

aos humanos modernos, o ramo Homo sapiens.

Embora quando jovem eu tivesse jurado não me envolver com

a caça aos fósseis — desejando evitar viver à sombra de meus

mundialmente famosos pais —, a magia pura do empreen-

dimento atraiu-me para ele. Os antigos e áridos depósitos da

África Oriental que sepultam os restos de nossos ancestrais

têm uma inegável beleza especial; ainda assim, são também

implacáveis e perigosos. A procura de fósseis e de artefatos de

pedra antigos é muitas vezes apresentada como uma

experiência romântica, e certamente possui seus aspectos

românticos, mas é uma ciência na qual os dados devem ser

recuperados a centenas ou milhares de quilômetros do conforto

do laboratório. É um empreendimento fisicamente desafiador e

exigente — uma operação logística da qual a segurança das

vidas das pessoas depende algumas vezes. Descobri que tinha

Page 11: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

talento para organizar, para fazer com que as

10

coisas fossem feitas em face de circunstâncias pessoais e

físicas difíceis. As muitas descobertas importantes na margem

leste do lago Turkana não apenas atraíram-me para uma

profissão que um dia rejeitei com veemência como também

estabeleceram minha reputação nela. Não obstante, o sonho

maior — um esqueleto completo — continuou a escapar-me.

No final do verão de 1984, com nossas respirações suspensas

e nossa esperança sempre crescente temperada pela dura rea-

lidade da experiência, meus colegas e eu vimos este sonho

começar a tomar forma. Naquele ano tínhamos decidido

explorar pela primeira vez a margem oeste do lago. Em 23 de

agosto, Kamoya Kimeu, meu amigo mais velho e colega,

localizou um pequeno fragmento de um crânio antigo que jazia

entre os seixos de uma encosta perto de uma ravina estreita

que havia sido esculpida pela corrente sazonal.

Cuidadosamente começamos uma busca por mais fragmentos

e em breve encontramos mais do que ousávamos esperar.

Durante as cinco temporadas que se seguiram a este achado,

significando mais de sete meses de trabalho de campo, nossa

Page 12: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

equipe removeu mais de 1.500 toneladas de sedimentos na

busca intensa. Encontramos o que finalmente revelou ser

virtualmente o esqueleto completo de um indivíduo que morrera

na margem deste lago antigo há mais de 1,5 milhão de anos.

Batizado por nós como o garoto de Turkana, mal completara

nove anos quando morreu; a causa de sua morte permanece

um mistério.

Foi uma experiência verdadeiramente extraordinária desen-

terrar osso após osso fossilizado: braços, pernas, vertebras,

costelas, pélvis, maxilar, dentes e mais fragmentos de crânio. O

esqueleto do menino começou a ganhar forma, reconstruído

como indivíduo uma vez mais, depois de jazer em fragmentos

por mais de 1,6 milhão de anos. Nada tão completo como este

esqueleto pôde ser encontrado nos registros de fósseis

humanos até a época do Neanderthal, há uns meros 100 mil

anos. Independentemente da excitação emocional de tal

descoberta, estávamos cientes de que ela prometia um grande

entendimento de uma fase crítica da pré-história humana.

Uma palavra, antes de prosseguir com a história, sobre o jar-

gão na antropologia. Algumas vezes a torrente de termos

arcanos pode ser tão intensa que desafia a compreensão de

Page 13: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

todos, exceto a dos profissionais mais dedicados. Evitarei este

jargão tanto quanto possível. Cada uma das várias espécies de

famílias humanas pré-históricas tem um rótulo científico — isto

é, o nome de sua espécie — e não podemos evitar a utilização

destes. A família humana de espécies tem seu próprio rótulo

também: hominídea.

11

Alguns de meus colegas preferem utilizar o termo “hominídeo”

para todas as espécies humanas ancestrais. A palavra

Page 14: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

“humano”, argumentam eles, deveria ser utilizada para nos

referirmos apenas a pessoas como nós. Em outras palavras, os

únicos hominídeos que podem ser designados como

“humanos” são aqueles que exibem nosso próprio grau de

inteligência, senso moral, e profundidade de consciência

introspectiva.

Tenho um ponto de vista diferente. Parece-me que a evolução

da locomoção ereta, que distinguiu os hominídeos antigos de

outros macacos de seu tempo, foi fundamental para a história

humana subseqüente. Uma vez que nosso ancestral distante

tornou-se um macaco bípede, muitas outras inovações

evolutivas tornaram-se possíveis, com o aparecimento

definitivo do Homo. Por esta razão, acredito ser justificado

chamar todas as espécies de hominídeos de “humanos”. Com

isto não quero dizer que todas as espécies humanas antigas

vivenciaram os mundos mentais que conhecemos hoje. Em seu

nível mais básico, a designação “humano” refere-se

simplesmente aos macacos que caminhavam de modo ereto —

macacos bipédes. Nas páginas seguintes adotarei

12

este uso, e indicarei quando o estarei utilizando para descrever

Page 15: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

aspectos que caracterizem apenas o homem moderno.

O garoto de Turkana era um membro da espécie Homo erectus

— uma espécie de suma importância na história da evolução

humana. A partir de linhas de indícios diferentes — alguns

genéticos, alguns fósseis —, sabemos que a primeira espécie

humana evoluiu há cerca de 7 milhões de anos. Na época em

que o Homo erectus surgiu em cena, há quase 2 milhões de

anos, a pré-história humana já estava em marcha. Não

sabemos ainda como muitas espécies humanas viveram e

morreram antes do aparecimento do Homo erectus; houve pelo

menos seis, e talvez o dobro deste número. Entretanto,

sabemos de fato que todas as espécies humanas que viveram

antes do Homo erectus eram, embora bipédes, marcadamente

simiescas em muitos aspectos. Elas tinham cérebros

relativamente pequenos, suas maxilas eram prognatas (isto é,

projetavam-se para a frente), e a forma de seus corpos era

mais simiesca do que humana em aspectos particulares, tais

como o peito em forma afunilada, pescoço pequeno e nenhuma

cintura. No Homo erectus, o tamanho do cérebro aumentou, a

face tornou-se mais achatada, e o corpo adquiriu uma

constituição mais atlética. A evolução do Homo erectus trouxe

Page 16: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

com ela muitas das características físicas que reconhecemos

em nós mesmos: a pré-história humana evidentemente sofreu

uma grande reviravolta há 2 milhões de anos.

O Homo erectus foi a primeira espécie humana a utilizar o fogo;

a primeira a incluir a caça como uma parte significativa de sua

subsistência; a primeira capaz de correr como os humanos

modernos o fazem; a primeira a fabricar instrumentos de pedra

de acordo com um padrão definido; a primeira a estender seus

domínios para além da África. Não sabemos de forma definitiva

se o Homo erectus possuía algum tipo de linguagem falada,

mas diversas linhas de indícios sugerem isto. E não sabemos,

e provavelmente não saberemos nunca, se estas espécies

tinham algum grau de autopercepção, uma consciência

humanóide, mas minha suposição é de que a tinham.

Desnecessário dizer, linguagem e consciência, que estão entre

os aspectos mais valorizados do Homo sapiens, não deixam

traços nos registros pré-históricos.

O objetivo do antropólogo é compreender os eventos evolutivos

que transformaram uma criatura semelhante ao macaco em

gente como nós. Estes eventos têm sido descritos,

romanticamente, como um grande drama, com a humanidade

Page 17: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

emergindo como a grande heroína da história. A verdade é

provavelmente

13

bastante prosaica, com modificações climáticas e ecológicas

em vez de aventuras épicas conduzindo as transformações. As

transformações não prendem menos nossa atenção por causa

disto. Como espécie, somos agraciados com uma curiosidade

sobre o mundo da natureza e nosso lugar nele. Queremos

saber — precisamos saber — como nos tornamos o que

somos, e qual é o nosso futuro. Os fósseis que descobrimos

ligam-nos fisicamente ao nosso passado e desafiam-nos a

interpretar as pistas que eles encerram como uma maneira de

compreender a natureza e o curso de nossa história evolutiva.

Até que muitas relíquias mais tenham sido desenterradas e

analisadas, nenhum antropólogo pode ficar de pé e declarar:

“Isto foi assim”, com todos os detalhes. Há, contudo, uma boa

dose de concordância entre os pesquisadores sobre a forma

geral da pré-história humana. Nela, quatro etapas-chave

podem ser identificadas com toda a confiança.

A primeira foi a origem da família humana propriamente dita, há

cerca de 7 milhões de anos, quando espécies semelhantes aos

Page 18: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

macacos com um modo de locomoção bípede, ou ereta, evo-

luíram. A segunda etapa foi a da proliferação das espécies

bípedes, um processo que os biólogos chamam irradiação

adaptativa. Entre 7 e 2 milhões de anos atrás, muitas espécies

diferentes de macacos bipédes evoluíram, cada uma adaptada

a circunstâncias ecológicas ligeiramente diferentes. Em meio a

esta proliferação de espécies humanas houve uma, entre 3 e 2

milhões de anos atrás, que desenvolveu um cérebro

significativamente maior. A expansão em tamanho do cérebro

marca a terceira etapa e sinaliza a origem do gênero Homo, o

ramo da árvore humana que levou ao Homo erectus e

finalmente ao Homo sapiens. A quarta etapa foi a origem dos

humanos modernos — a evolução de gente como nós,

completamente equipada com linguagem, consciência, ima-

ginação artística, e inovações tecnológicas jamais vistas antes

em qualquer parte da natureza.

Estes quatro eventos-chave fornecem a estrutura da narrativa

científica das páginas que vêm a seguir. Como ficará evidente,

no nosso estudo da pré-história humana estamos começando a

perguntar-nos não apenas o que aconteceu, e quando, mas

também por que as coisas aconteceram. Nós e nossos

Page 19: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

ancestrais estamos sendo estudados no contexto de um

cenário evolutivo em desdobramento, do mesmo modo que

estudamos a evolução dos elefantes ou dos cavalos. Isto não é

negar que o Homo sapiens seja de muitos modos especial:

muita coisa nos separa mesmo do

14

nosso parente evolutivo mais próximo, o chimpanzé, mas

começamos a entender nossa relação com a natureza no

sentido biológico.

As três décadas passadas testemunharam tremendos avanços

na nossa ciência, resultado de descobertas sem precedentes

de fósseis e de modos inovadores de interpretação e

integração das pistas que vemos neles. Como todas as

ciências, a antropologia é sujeita a diferenças de opinião

honestas, e algumas vezes vigorosas, entre os seus

praticantes. Estas algumas vezes originam-se de dados

insuficientes, na forma de fósseis e artefatos de pedra, e

algumas vezes das inadequações dos métodos de interpre-

tação. Portanto, há muitas questões importantes sobre a

história humana para as quais não há respostas definitivas, tais

como: qual a forma precisa da árvore da família humana?

Page 20: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

Quando a linguagem falada sofisticada começou a evoluir? O

que provocou o aumento dramático no tamanho do cérebro na

pré-história humana? Nos capítulos seguintes, indicarei onde, e

por que, as diferenças de opinião existem, e algumas vezes

esboçarei minhas próprias preferências.

Tive a boa sorte de colaborar com muitos colegas excelentes

por mais de duas décadas de trabalho antropológico, pelo que

sou grato. A dois deles — Kamoya Kimeu e Alan Walker —

gostaria de agradecer de modo especial. Minha esposa,

Meave, tem sido uma colega e amiga das mais extraordinárias,

particularmente nas épocas mais difíceis.

15

Page 21: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

1 - Os primeiros humanos

Os antropólogos há muito têm se mostrado fascinados com as

qualidades especiais do Homo sapiens, tais como a linguagem,

as altas habilidades tecnológicas e a capacidade de fazer

julgamentos éticos. Mas uma das mudanças mais significativas

dos anos recentes tem sido o reconhecimento de que, a

despeito destas qualidades, nossa ligação com os macacos

africanos é realmente muito íntima. Como esta importante

mudança intelectual surgiu? Neste capítulo discutirei como as

idéias de Charles Darwin a respeito da natureza especial das

espécies humanas primordiais influenciaram os antropólogos

por mais de um século — e como novas pesquisas revelaram

nossa intimidade evolutiva com os macacos africanos e exigem

nossa aceitação de uma visão muito diferente do nosso lugar

na natureza.

Em 1859, no seu livro A origem das espécies* Darwin cuida-

dosamente evitou extrapolar as implicações da evolução para

os humanos. Uma frase cautelosa foi adicionada nas edições

posteriores: “A origem do homem e sua história serão

Page 22: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

esclarecidas.” Em um livro subseqüente, A descendência do

homem, publicado em 1871, Darwin detalhou o conteúdo desta

frase curta. Voltando-se para um assunto que ainda era muito

delicado, ele efetivamente erigiu dois pilares na estrutura

teórica da antropologia, O primeiro tem a ver com o lugar onde

os humanos primeiramente evoluíram (inicialmente poucos lhe

deram crédito, mas ele estava certo), e o segundo diz respeito

à maneira ou forma dessa evolução. A versão de Darwin da

maneira pela qual a nossa evolução aconteceu dominou a

ciência da antropologia até poucos anos atrás, e revelou-se

errada

O berço da humanidade, disse Darwin, é a África. Seu racio-

cínio era simples:

Em cada grande região do mundo, os mamíferos vivos estão

intimamente relacionados com as espécies que evoluíram

16

desta mesma região. Portanto, é provável que a África tenha

sido habitada anteriormente por macacos extintos

intimamente relacionados com o gorila e o chimpanzé: e

* Publicado no Brasil em co-edição pela Editora Universidade de Brasília e Editora Melhoramentos. (N. do T.)

Page 23: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

como estas duas espécies são agora as que se relacionam

mais de perto com o homem, de algum modo é mais provável

que nossos progenitores primordiais tivessem vivido no

continente africano do que em outro lugar.

Devemos lembrar que, quando Darwin escreveu estas pa-

lavras, nenhum fóssil humano primordial tinha sido encontrado

em qualquer lugar; sua conclusão era inteiramente baseada em

teorias. Na época de Darwin, os únicos fósseis humanos

conhecidos eram do homem de Neanderthal, na Europa, e

estes representam um estágio relativamente tardio da evolução

humana

Os antropólogos não gostaram nada da sugestão de Darwin,

porque a África tropical era olhada com desdém colonialista: o

Continente Negro não era visto como um lugar apropriado para

a origem de uma criatura tão nobre como o Homo sapiens.

Quando mais fósseis humanos começaram a ser descobertos

na Europa e na Ásia na virada do século, mais zombarias

foram lançadas sobre a idéia de uma origem africana, Esta

atitude prevaleceu por décadas. Em 1931, quando meu pai

disse aos seus mentores na Universidade de Cambridge que

planejava procurar as origens humanas no leste da África,

recebeu uma pressão enorme para em vez disto concentrar

Page 24: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

sua atenção sobre a Ásia. A convicção de Louis Leakey era

parcialmente baseada no argumento de Darwin e parcialmente,

sem dúvida alguma, no fato de que ele havia nascido e sido

criado no Quênia. Ele ignorou o conselho dos estudiosos de

Cambridge e conseguiu estabelecer a África Oriental como

uma região vital na história da nossa evolução primordial. A

veemência do sentimento anti-África dos antropólogos parece

agora estranha para nós, dado o vasto número de fósseis

humanos primordiais que tem sido recuperado neste continente

nos anos recentes. O episódio é também um lembrete de que

os cientistas são muitas vezes levados tanto pela emoção

quanto pela razão.

A segunda grande conclusão de Darwin em A descendência do

homem foi que as importantes características que distinguem

os humanos — bipedismo, tecnologia e cérebro grande —

evoluíram em conjunto. Darwin escreveu:

Se é uma vantagem para o homem ter suas mãos e braços

livres e ficar firmemente ereto sobre seus pés, (...) então não

vejo razão por que não teria sido mais vantajoso para os

progenitores do homem terem se tornado mais e mais eretos

ou

Page 25: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

17

bipédes. As mãos e os braços não poderiam ter se tornado

suficientemente perfeitos para manufaturar armas, ou atirar

pedras e lanças com pontaria precisa, enquanto fossem ha-

bitualmente utilizados para suportar o peso total do corpo...

ou enquanto fossem especialmente adaptados para subir nas

árvores.

Aqui, Darwin estava argumentando que a evolução de nosso

modo fora do comum de locomoção era diretamente ligado à

manufatura de armas de pedra. Ele foi mais longe e relacionou

estas transformações evolutivas com a origem dos dentes

caninos nos humanos, que eram insolitamente pequenos se

comparados com os caninos pontiagudos dos macacos. “Os

ancestrais primevos do homem eram (...) provavelmente

providos de grandes dentes caninos”, escreveu ele em vi

descendência do homem; “mas, à medida que gradualmente

adquiriram o hábito de usar pedras, bastões ou outras armas

para combater seus inimigos ou rivais, eles poderiam utilizar

suas mandíbulas e dentes cada vez menos. Neste caso, as

mandíbulas, junto com os dentes, tomar-se-iam reduzidas em

tamanho.

Page 26: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

Estas criaturas bipédes que manejavam armas desenvolveram

uma interação social mais intensa, que exigia mais intelecto,

argumentou Darwin. E quanto mais inteligentes nossos

ancestrais se tornavam, maior era a sua sofisticação

tecnológica e social, o que por sua vez exigia um intelecto

ainda maior. E assim por diante, à medida que a evolução de

cada aspecto realimentava-se dos outros. Esta hipótese de

evolução correlacionada era um cenário muito claro para as

origens humanas, e tornou-se fundamental para o

desenvolvimento da ciência da antropologia.

De acordo com este cenário, a espécie humana era mais do

que simplesmente um macaco bípede; ela já possuía algumas

características que valorizamos no Homo sapiens. A imagem

era tão poderosa e plausível que os antropólogos foram

capazes de tecer hipóteses persuasivas em torno dela por

muito tempo. Mas o cenário projetou-se para além da ciência:

se a diferenciação evolutiva dos humanos em relação aos

macacos foi ao mesmo tempo abrupta e antiga, uma distância

considerável foi posta entre nós e o restante da natureza. Para

aqueles que têm a convicção de que o Homo sapiens é um tipo

fundamentalmente diferente de criatura, este ponto de vista

Page 27: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

oferece consolo.

Esta convicção era muito comum entre os cientistas do tempo

de Darwin, e deste século também. Por exemplo, o naturalista

inglês do século XIX Alfred Russel Wallace — que também

inven-

18

tou a teoria da seleção natural, independente de Darwin —

recusou-se a aplicar a teoria àqueles aspectos da humanidade

que mais valorizamos. Ele considerava os humanos demasiado

inteligentes, refinados, sofisticados, para terem sido o produto

de simples seleção natural. Caçadores e coletores primitivos

não teriam tido necessidade biológica destas qualidades,

raciocinava ele, e deste modo não poderiam ter surgido pela

seleção natural. A intervenção sobrenatural, achava ele, deve

ter concorrido para fazer os humanos tão especiais. A falta de

convicção de Wallace no poder da seleção natural deixou

Darwin muito abalado.

O paleontólogo escocês Robert Broom, cujo trabalho pioneiro

na África do Sul nos anos 30 e 40 ajudou a estabelecer a África

como o berço da humanidade, também expressou pontos de

vista fortes em relação à distinção humana. Ele acreditava que

Page 28: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

o Homo sapiens era o produto final da evolução e que o resto

da natureza havia sido moldada para seu conforto. Como

Wallace, Broom buscava forças sobrenaturais na origem da

nossa espécie.

Cientistas como Wallace e Broom debatiam-se entre forças

conflitantes, uma intelectual, outra emocional. Eles aceitavam o

fato de que o Homo sapiens originava-se em última instância

da natureza pelo processo de evolução, mas sua crença na

espiritualidade essencial, ou essência transcendente, da

humanidade levou-os a construir para a evolução explicações

que mantinham a distinção humana. O “pacote” evolutivo

corporificado na descrição de Darwin de 1871 das origens

humanas oferecia esta racionalização. Embora Darwin não

invocasse uma intervenção sobrenatural, já no começo seu

cenário evolutivo tornou os humanos diferentes dos simples

macacos.

O argumento de Darwin exerceu sua influência até pouco mais

de uma década atrás, e foi efetivamente responsável por uma

grande discussão sobre quando os humanos apareceram pela

primeira vez. Descreverei o incidente brevemente, porque ele

ilustra a sedução da hipótese de Darwin de evolução

Page 29: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

correlacionada. Ele também marca o fim de sua influência

sobre o pensamento antropológico.

Em 1961, Elwyn Simons, então na Universidade Yale, publicou

um trabalho que tornou-se um marco científico e no qual ele

anunciou que uma pequena criatura semelhante ao macaco,

chamada Ramapithecus, foi a primeira espécie de hominídeo.

Os únicos restos fósseis do Ramapithecus conhecidos na

época eram partes de um maxilar superior que tinham sido

descobertas por um jovem pesquisador de Yale, G. Edward

Lewis, na índia em 1932. Simons viu que os dentes laterais (os

molares e pré-mola-

19

res) eram de alguma forma humanoides. E viu que os caninos

eram mais curtos e rombudos do que os dos macacos. Simon

também afirmou que a reconstituição de um maxilar superior

incompleto mostraria que ele era humanóide na forma — isto é,

um arco, alargando-se suavemente para trás e não uma forma

em “U”, como nos macacos modernos.

Nesta época, David Pilbeam, um antropólogo britânico da

Universidade de Cambridge, uniu-se a Simon em Yale, e juntos

eles descreveram estas características anatômicas

Page 30: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

supostamente humanoides do maxilar do Ramapithecus. Eles

foram mais longe do que a anatomia, contudo, e sugeriram,

com base apenas nos fragmentos de maxilar, que o

Ramapithecus caminhava ereto sobre os dois pés, caçava e

vivia em um meio ambiente social complexo. Seu raciocínio era

semelhante ao de Darwin: a presença de uma suposta

característica humana (a forma dos dentes) implicava a

existência das restantes. Assim, o que se pensava ser a pri-

meiríssima espécie de hominídeo começou a ser vista como

um animal cultural — isto é, como uma versão primitiva dos

humanos modernos em vez de um macaco aculturado.

Os sedimentos a partir dos quais os fósseis do Ramapithecus

original foram recuperados eram antigos, como aqueles que

forneceram descobertas similares subseqüentes na Ásia e na

África. Simons e Pilbeam concluíram portanto que os primeiros

humanos apareceram há pelo menos 15 milhões de anos, e

possivelmente há 30 milhões de anos, e este ponto de vista foi

aceito pela grande maioria dos antropólogos. Mais ainda, a

crença em uma origem tão antiga colocou uma distância

confortável entre os humanos e o resto da natureza, que

muitos acharam bem-vinda.

Page 31: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

No final dos anos 60, dois bioquímicos da Universidade da

Califórnia, em Berkeley, Allan Wilson e Vincent Sarich,

chegaram a uma conclusão muito diferente sobre quando a

primeira espécie humana evoluiu. Em vez de trabalhar com

fósseis, eles compararam a estrutura de certas proteínas

sangüíneas de seres humanos vivos e dos macacos africanos.

Seu objetivo era determinar o grau de diferença estrutural entre

as proteínas humanas e as dos macacos — uma diferença que

deveria aumentar, em conseqüência das mutações, com uma

taxa calculável em relação ao tempo. Quanto mais tempo os

humanos e os macacos tivessem se apresentado como

espécies diferentes, maior o número de mutações que teriam

sido acumuladas. Wilson e Sarich calcularam a taxa de

mutações e foram portanto capazes de utilizar seus dados

sobre as proteínas do sangue como um relógio molecular.

20

De acordo com o relógio, a primeira espécie humana evoluiu há

apenas uns 5 milhões de anos, uma descoberta que estava em

discordância dramática com os 15 a 30 milhões de anos da

teoria antropológica dominante. Os dados de Wilson e Sarich

também indicaram que as proteínas do sangue em humanos,

Page 32: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

chimpanzés e gorilas são igualmente diferentes umas das

outras. Em outras palavras, algum tipo de evento evolutivo há 5

milhões de anos provocou a ramificação de um ancestral

comum em três direções simultaneamente — uma ramificação

que conduziu à evolução não somente dos humanos modernos

mas também dos chimpanzés e gorilas modernos. Isto também

era contraditório com o que a maioria dos antropólogos

acreditava. De acordo com o conhecimento convencional,

chimpanzés e gorilas são os parentes mais próximos uns dos

outros, com os humanos afastados a uma grande distância Se

a interpretação dos dados moleculares era válida, então os

antropólogos teriam que aceitar uma relação biológica muito

mais próxima entre humanos e macacos do que a maioria

acreditava.

Uma disputa feroz eclodiu, com os antropólogos e os bio-

químicos criticando as técnicas profissionais uns dos outros

com o uso dos termos mais duros. A conclusão de Wilson e

Sarich foi criticada com base, entre outras coisas, no fato de

que seu relógio molecular era errático e portanto não poderia

ser confiável para fornecer um tempo preciso para os eventos

evolutivos passados. Por sua vez, Wilson e Sarich

Page 33: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

argumentaram que os antropólogos davam importância

interpretativa em demasia a características anatômicas

pequenas e fragmentadas, e eram assim conduzidos a

conclusões inválidas. Na época fiquei ao lado da comunidade

dos antropólogos, acreditando que Wilson e Sarich estavam

errados.

O debate durou por mais de uma década, durante a qual mais

e mais indícios moleculares foram apresentados — por Wilson

e Sarich e também de modo independente por outros

pesquisadores. A grande maioria destes novos dados apoiava

a alegação original de Wilson e Sarich. O peso deste indício

começou a mudar a opinião dos antropólogos, mas a mudança

era lenta. Finalmente, no começo dos anos 80, descobertas de

espécimens muito mais completos de fósseis semelhantes ao

Ramapithecus, por Pilbeam e sua equipe no Paquistão e por

Peter Andrews, do Museu de História Natural de Londres, e

seus colegas na Turquia, resolveram a disputa (ver figura 1.1).

Os fósseis de Ramapithecus originais são na verdade

humanóides em alguns aspectos, mas a espécie não era

humana. A

21

Page 34: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

tarefa de inferir um elo evolutivo com base em indício

extremamente fragmentado é muito mais difícil do que a

maioria das pessoas percebe, e há muitas armadilhas para os

incautos. Simons e Pilbeam haviam caído em uma dessas

armadilhas: a similaridade anatômica não implica de modo

unívoco uma relação evolutiva. Os espécimens mais completos

encontrados no Paquistão e na Turquia revelaram que as

supostas características humanóides eram superficiais. A

mandíbula do Ramapithecus tinha a forma de um V e não a de

um arco; esta e outras características indicavam que ele era

uma espécie de macaco primitivo (a mandíbula do macaco

moderno tem a forma de um U). O Ramapithecus vivera nas

árvores, como seu parente posterior, o orangotango, e não era

um macaco bípede, muito menos um caçador-coletor primitivo.

Mesmo os antropólogos mais aferrados à sua visão do

Ramapithecus como hominídeo ficaram convencidos pelos

novos indícios de que estavam errados e que Wilson e Sarich

estavam certos: a primeira espécie de macaco bípede, o

membro fundador da família humana, evoluíra em épocas

relativamente recentes e não em um passado muito distante.

Embora em sua publicação original Wilson e Sarich tenham

Page 35: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

proposto uma data há 5 milhões de anos para este evento, hoje

indícios moleculares consensuais fizeram-na retroceder para

quase 7 milhões de anos. Entretanto, não tem havido recuos

com relação à intimidade biológica proposta entre os humanos

e os macacos africanos. Ao contrário, esta relação pode ser

muito mais íntima do que tem sido suposta. Embora alguns

geneticistas acreditem que os dados moleculares ainda

impliquem uma ramificação igual e tríplice entre humanos,

chimpanzés e gorilas, outros vêem isto de modo diferente. Do

seu ponto de vista, humanos e chimpanzés são os parentes

mais próximos uns dos outros, com os gorilas situados a uma

distância evolutiva maior.

O caso do Ramapithecus mudou a antropologia de duas

maneiras. Primeiro, demonstrou os perigos da inferência de

uma relação evolutiva em comum a partir de características

anatômicas em comum. Segundo, expôs a loucura de uma

aderência cega ao “pacote” darwiniano. Simons e Pilbeam

imputaram um estilo de vida completo ao Ramapithecus, com

base na forma dos dentes caninos: se havia uma característica

hominídea, supunha-se que todas estas características

estavam presentes. Como conseqüência da erosão do status

Page 36: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

de hominídeo do Ramapithecus, os antropólogos começaram a

ficar inseguros em relação ao pacote darwiniano.

21

Antes de seguir o curso desta revolução antropológica, de-

veríamos examinar brevemente algumas das hipóteses que no

decorrer dos anos têm sido propostas para explicar como a

primeira espécie de hominídeos poderia ter surgido. É

interessante notar que cada hipótese nova que ganhava

popularidade refletia muitas vezes alguma coisa do clima social

da época. Por exemplo, Darwin via a elaboração de armas de

Page 37: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

pedra como importante para abrir o pacote evolutivo da

tecnologia, bipedismo e tamanho do cérebro grande. A

hipótese certamente refletia a noção predominante de que a

vida era uma batalha e avanços eram obtidos com iniciativa e

esforço. Este espírito vitoriano permeava a ciência, e

determinou o modo pelo qual o processo de evolução, incluindo

a evolução humana, era visto.

Nas primeiras décadas deste século, os dias de glória do oti-

mismo eduardiano, afirmava-se que o cérebro e seus

processos mentais superiores haviam nos transformado no que

somos. Dentro da antropologia, esta visão social abrangente

era expressa na noção de que a evolução humana tinha sido

propelida inicialmente não pelo bipedismo mas por um cérebro

em expansão. Nos

23

anos 40, o mundo estava enfeitiçado com a magia e o poder da

tecnologia, e a hipótese do “Homem, o Fabricante de Artefatos”

tornou-se popular. Proposta por Kenneth Oakley, do Museu de

História Natural de Londres, esta hipótese sustentava que a

fabricação e a utilização de artefatos de pedra — não armas —

dava o impulso à nossa evolução. E quando o mundo estava

Page 38: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

nas sombras da Segunda Guerra Mundial, uma diferenciação

mais sombria entre os humanos e os macacos foi enfatizada —

a da violência contra seus semelhantes. A noção de “Homem, o

Macaco Assassino”, primeiramente proposta pelo anatomista

australiano Raymond Dart, ganhou amplo apoio, possivelmente

porque parecia explicar (ou mesmo desculpar) os horríveis

eventos da guerra.

Mais tarde, nos anos 60, os antropólogos voltaram-se para o

modo de vida do caçador-coletor como chave para as origens

humanas. Diversas equipes de pesquisadores vinham

estudando as populações modernas de povos

tecnologicamente primitivos, particularmente na África, a mais

notável das quais eram os !Kung San (incorretamente

chamados de bosquímanos). Disto emergiu uma imagem de

um povo em harmonia com a natureza, explorando-a de

diversas maneiras ao mesmo tempo em que a respeitava. Esta

visão da humanidade coincidia com o ambientalismo da época,

mas, de qualquer modo, os antropólogos estavam impressio-

nados pela complexidade e segurança econômica da economia

mista de caça e coleta. A caça, porém, era o que foi enfatizado.

Em 1966, uma importante conferência antropológica à qual se

Page 39: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

deu o nome de “Homem, o Caçador” foi realizada na

Universidade de Chicago. A idéia dominante no encontro era

simples: a caça fez dos humanos humanos.

Na maioria das sociedades tecnologicamente primitivas, a caça

é geralmente uma responsabilidade masculina Não é surpresa,

portanto, que a crescente percepção das questões femininas

nos anos 70 colocasse em dúvida esta explicação das origens

humanas centralizada no homem. Uma hipótese alternativa,

conhecida como “Mulher, a Coletora”, sustentava que em todas

as espécies de primatas o núcleo da sociedade era o elo entre

a fêmea e a prole. E foi a iniciativa das fêmeas humanas em

inventar tecnologias e coletar alimentos (principalmente

vegetais) que podiam ser compartilhados por todos que

conduziu à formação de uma sociedade humana complexa.

Pelo menos assim se dizia.

Embora estas hipóteses diferissem no que era considerado o

agente principal da evolução humana, todas têm em comum a

noção de que o pacote darwiniano contendo certas característi-

24

cas humanas valorizadas era aceito bem no começo: ainda

pensava-se na primeira espécie de hominídeos como tendo

Page 40: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

algum grau de bipedismo, tecnologia e tamanho do cérebro

aumentado. Os hominídeos eram portanto criaturas culturais —

e assim diferentes do restante da natureza — desde o início.

Nos anos recentes, reconhecemos que este não é o caso.

De fato, indício concreto da inadequação da hipótese

darwiniana foi encontrado nos registros arqueológicos. Se o

pacote darwiniano estivesse correto, então poderíamos esperar

ver a aparição simultânea nos registros arqueológicos e fósseis

de indícios de bipedismo, tecnologia e tamanho do cérebro

aumentado. Isto não acontece. Apenas um aspecto dos

registros pré-históricos é suficiente para mostrar que a hipótese

está errada: o registro dos artefatos de pedra

Ao contrário dos ossos, que muito raramente tornam-se fos-

silizados, os artefatos de pedra são virtualmente indestrutíveis.

Muitos dos registros pré-históricos são portanto constituídos

por eles, e são indícios sobre os quais o progresso da

tecnologia é inferido.

Os exemplos mais antigos de tais artefatos — lâminas gros-

seiras, raspadeiras e talhadeiras feitas de seixos dos quais

algumas lascas foram tiradas — aparecem nos registros de

cerca de 2,5 milhões de anos atrás. Se o indício molecular

Page 41: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

estiver correto e a primeira espécie humana apareceu há uns 7

milhões de anos, então quase 5 milhões de anos se passaram

entre a época em que nossos ancestrais se tornaram bipédes e

a época em que começaram a fazer artefatos de pedra.

Qualquer que seja a força evolutiva que produziu um macaco

bípede, esta não era relacionada com a habilidade de fazer e

utilizar ferramentas. Entretanto, muitos antropólogos acreditam

que o advento da tecnologia há 2,5 milhões de anos realmente

coincidiu com o começo da expansão do cérebro.

A compreensão de que a expansão do cérebro e a tecnologia

são separadas no tempo das origens humanas forçou os

antropólogos a repensar sua abordagem. Como conseqüência,

as últimas hipóteses têm sido formuladas em termos biológicos

em vez de culturais. Considero isto um desenvolvimento

saudável para a profissão — porque pelo menos permite que

as idéias sejam testadas comparando-as com o que sabemos

da ecologia e do comportamento de outros animais. Ao fazer

isto, não temos que negar que o Homo sapiens possui muitos

atributos especiais. Ao contrário,

25

Page 42: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

procuramos pelo surgimento destes atributos a partir de um

contexto estritamente biológico.

Com esta compreensão, a tarefa do antropólogo de explicar as

origens humanas foi redirecionada para a origem do bipedismo.

Mesmo reduzida a este único evento, a transformação evolutiva

não foi trivial, como observou Owen Lovejoy, anatomista da

Kent State University. “A passagem para o bipedismo é uma

das mudanças mais impressionantes que podemos ver na

biologia evolutiva”, escreveu ele em um artigo popular em

1988. “Há mudanças importantes nos ossos, na disposição dos

músculos que os movimentam, e no movimento dos membros.”

Uma olhada na pélvis dos humanos e dos chimpanzés é

suficiente para confirmar esta observação: nos humanos, a

pélvis é achatada e em forma de caixa, enquanto que nos

chimpanzés ela é alongada; e há também diferenças

importantes nos membros e no tronco (ver figura 1.2).

O advento do bipedismo não é somente uma importante

transformação biológica mas também uma importante transfor-

mação adaptativa. Como argumentei no prefácio, a origem da

locomoção bipède é uma adaptação tão significativa que é

justificável chamarmos todas as espécies de macacos bipédes

Page 43: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

“humanos”. Isto não significa dizer que as primeiras espécies

bipédes possuíam algum grau de tecnologia, intelecto

desenvolvido, ou qualquer dos atributos culturais da

humanidade. Isto não aconteceu. Meu ponto de vista é que a

adoção do bipedismo era tão carregada de potencial evolutivo

— permitindo aos membros superiores a liberdade de se

tornarem um dia implementos manipulativos — que sua

importância deveria ser reconhecida na nossa nomenclatura.

Estes humanos não eram como nós, mas sem a adaptação ao

bipedismo não poderiam ter-se tornado como nós.

Quais foram os fatores evolutivos que promoveram esta forma

nova de locomoção no macaco africano? A imagem popular

das origens humanas muitas vezes inclui a noção de uma

criatura simiesca abandonando as florestas e dirigindo-se para

as savanas abertas. Uma imagem dramática sem dúvida, mas

completamente errônea, como foi recentemente demonstrado

por pesquisadores das universidades de Harvard e Yale que

analisaram a química do solo em muitas partes do leste da

África. As savanas africanas, com suas grandes hordas

migratórias, são relativamente recentes no ambiente, tendo se

desenvolvido há menos de 3 milhões de anos, muito depois de

Page 44: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

a primeira espécie humana ter evoluído.

Se levarmos nossa imaginação de volta para uma África de 15

milhões de anos atrás, encontraremos um tapete de florestas

26

(A página 27 do livro apresenta a Figura 1.2, colada nas páginas finais desse e-livro)

27

estendendo-se do oeste para o leste, abrigo de uma grande

diversidade de primatas, inclusive muitas espécies de

pequenos e grandes macacos. Em contraste com a situação de

hoje, as espécies de grandes macacos superavam as espécies

dos pequenos. Entretanto, forças geológicas que alterariam

dramaticamente o terreno e seus ocupantes nos próximos

milhões de anos estavam prontas para entrar em ação.

Por baixo da parte leste do continente, a crosta da Terra estava

se separando em duas partes, em uma linha que ia do Mar

Vermelho, através da Etiópia, Quênia, Tanzânia, até

Moçambique. Como conseqüência, o terreno elevou-se em

erupções como na Etiópia e no Quênia, formando grandes

montanhas de mais de 3.000 metros de altitude. Estes grandes

Page 45: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

domos transformaram não apenas a topografia do continente

mas também o seu clima. Perturbando as correntes aéreas no

sentido oeste-leste que eram uniformes, os domos colocaram

as terras a leste sob condições de pouca chuva, impedindo a

manutenção das florestas úmidas. A cobertura contínua de

árvores começou a fragmentar-se, deixando um ambiente

dividido em um mosaico de florestas, bosques e arbustos.

Campos limpos, porém, eram ainda raros.

Há cerca de 12 milhões de anos, a ação contínua das forças

tectônicas mudou mais ainda o ambiente, com a formação de

um vale longo e sinuoso, que se estende do norte para o sul,

conhecido como o Vale da Grande Fenda. A existência do Vale

da Grande Fenda teve dois efeitos biológicos: ele coloca uma

formidável barreira na direção leste-oeste às populações

animais; e promove mais ainda o desenvolvimento de um rico

mosaico de condições ecológicas.

O antropólogo francês Yves Coppens acredita que a barreira

leste-oeste foi crucial para a evolução separada dos humanos

e dos outros grandes macacos. “Por força das circunstâncias, a

população dos ancestrais comuns dos humanos e grandes

macacos (...) encontrou-se dividida”, escreveu ele

Page 46: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

recentemente. “Os descendentes ocidentais destes ancestrais

comuns prosseguiram sua adaptação à vida em um meio

arborífero e úmido; estes são os grandes macacos. Os

descendentes orientais destes mesmos ancestrais comuns, ao

contrário, inventaram um repertório completamente novo para

adaptar-se à sua nova vida em um ambiente aberto: estes são

os humanos.” Coppens chama este cenário de “East Side

Story”.*

28

O vale tem regiões montanhosas dramáticas com platôs flo-

restais de temperatura amena, encostas íngremes de mil

metros que terminam em baixadas quentes e áridas. Os

biólogos perceberam que ambientes variados desse tipo, que

apresentam muitos tipos diferentes de habitats, conduzem à

inovação evolutiva. Populações de uma espécie que antes

eram amplamente disseminadas e contínuas podem tornar-se

isoladas e expostas a novas forças de seleção natural. Esta é a

receita da transformação evolutiva. Algumas vezes esta

transformação leva ao esquecimento, se o ambiente favorável

* Referência ao filme musical americano West Side Story, da década de 1960, ambientado no lado pobre de Nova York. (N. do T.)

Page 47: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

desaparece. Este, certamente, foi o destino da maioria dos

macacos africanos: apenas três espécies existem hoje — o

gorila, o chimpanzé comum e o chimpanzé pigmeu. Mas,

enquanto a maioria dos macacos sofreu com a mudança

ambiental, um deles foi agraciado com uma nova adaptação

que lhe permitiu sobreviver e prosperar. Este foi o primeiro

macaco bípede. Ser bípede conferiu-lhe claramente vantagens

importantes na luta pela sobrevivência em condições variáveis.

O trabalho dos antropólogos é descobrir quais eram estas

vantagens.

Os antropólogos tendem a ver a importância do bipedismo na

evolução humana de duas maneiras: uma escola enfatiza a li-

beração dos membros dianteiros que possibilita o transporte de

coisas; a outra enfatiza o fato de que o bipedismo é um modo

de locomoção mais eficiente do ponto de vista energético, e vê

a habilidade de transportar coisas simplesmente como um

derivado fortuito da postura ereta.

A primeira destas duas hipóteses foi proposta por Owen

Lovejoy e publicada em um artigo importante na Science em

1981. O bipedismo, argumentou ele, é uma maneira ineficiente

de locomoção, portanto ele deve ter evoluído para permitir o

Page 48: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

transporte de coisas. De que modo a habilidade de transportar

coisas poderia ter dado aos macacos bipédes uma vantagem

competitiva sobre os outros macacos?

Em última instância, o sucesso evolutivo depende da produção

de uma prole que sobreviva, e a resposta, sugeriu Lovejoy, es-

tá na oportunidade que esta nova habilidade confere aos

macacos machos de aumentar a taxa reprodutiva das fêmeas,

ao coletar alimentos para ela. Os macacos, observou ele,

reproduzem-se lentamente, tendo um rebento a cada quatro

anos. Se as fêmeas humanas tivessem acesso a mais energia

— isto é, comida —, elas poderiam produzir de maneira mais

bem-sucedida uma prole maior. Se um macho ajudasse a

providenciar mais energia para uma fêmea coletando alimentos

para ela e sua prole, ela seria capaz de aumentar sua

produção reprodutiva.

29

Haveria uma conseqüência biológica adicional da atividade do

macho, desta vez no domínio social. Como o macho não teria

benefícios no sentido darwiniano em alimentar a fêmea a

menos que estivesse seguro de que ela estava produzindo a

sua prole, Lovejoy sugeriu que a primeira espécie humana era

Page 49: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

monogâmica, com a família nuclear emergindo como uma

maneira de aumentar o sucesso reprodutivo, e assim vencer a

competição contra os outros macacos. Ele sustentou sua

argumentação com uma analogia biológica adicional. Na

maioria das espécies de primatas, por exemplo, os machos

competem entre si pelo controle sexual do maior número

possível de fêmeas. Durante este processo, muitas vezes eles

lutam um contra o outro, e são dotados de dentes caninos

grandes, que utilizam como arma. Os gibões são uma exceção

porque formam casais de macho e fêmea, e — presumivel-

mente porque não têm razão de lutar um contra o outro — os

machos têm dentes caninos pequenos. Os caninos pequenos

nos humanos primitivos podem ser uma indicação de que,

como os gibões, eles formavam casais de macho e fêmea,

argumentou Lovejoy. Os vínculos sociais e econômicos do

arranjo em torno da alimentação teriam por sua vez conduzido

a um aumento no tamanho do cérebro.

A hipótese de Lovejoy, que desfrutou apoio e atenção consi-

deráveis, é poderosa porque apela para pontos biológicos

fundamentais, e não culturais. Entretanto, ela tem pontos

fracos; por exemplo, a monogamia não é um arranjo social

Page 50: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

comum entre povos tecnologicamente primitivos. (Apenas 20

por cento de tais sociedades são monogâmicas.) Portanto esta

hipótese foi criticada por parecer apoiar-se sobre uma

característica da sociedade ocidental, e não sobre uma

característica das sociedades de caçadores-coletores. A

segunda crítica, talvez mais séria, é que os machos das

espécies humanas primitivas conhecidas eram cerca de duas

vezes maiores do que as fêmeas. Em todas as espécies de pri-

matas que têm sido estudadas, esta grande diferença no

tamanho do corpo, conhecida como dimorfismo, correlaciona-

se com apoliginia, ou competição entre os machos pelo acesso

às fêmeas; o dimorfismo não é observado nas espécies

monogâmicas. Para mim, este fato por si só é suficiente para

afundar uma abordagem teórica promissora, e uma explicação

para os caninos pequenos que não seja a monogamia deve ser

procurada. Uma possibilidade é que o mecanismo de

mastigação dos alimentos exigisse um movimento de trituração

e não de estraçalhamento; caninos grandes prejudicariam tal

movimento. A hipótese de Lovejoy tem agora um apoio menor

do que há uma década.

30

Page 51: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

A segunda teoria importante do bipedismo é muito mais con-

vincente, em parte por sua simplicidade. Proposta pelos

antropólogos Peter Rodman e Henry McHenry, da Universidade

da Califórnia, em Davis, a hipótese afirma que o bipedismo foi

vantajoso em condições ambientais em mutação porque

oferecia um meio mais eficiente de locomoção. À medida que

as florestas encolhiam, os recursos alimentares dos habitats

florestais, tais como árvores frutíferas, teriam se tornado muito

dispersos para serem explorados de forma eficiente pelos

macacos convencionais. De acordo com esta hipótese, os

primeiros macacos bipédes eram humanos apenas quanto ao

seu modo de locomoção. Suas mãos, mandíbulas e dentes

teriam permanecido similares aos dos macacos, porque sua

dieta não mudara, apenas sua maneira de obtê-la.

Para muitos biólogos, esta proposta inicialmente parecia im-

provável: pesquisadores da Universidade de Harvard haviam

mostrado alguns anos antes que caminhar sobre duas pernas é

menos eficiente do que caminhar sobre quatro. (Isto não

deveria ser uma surpresa para qualquer um que tenha um gato

ou um cachorro; ambos correm, embaraçosamente, muito mais

rápido do que seus donos.) Os pesquisadores de Harvard

Page 52: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

tinham, entretanto, comparado a eficiência energética do

bipedismo nos humanos com o quadrupedismo nos cavalos e

cachorros. Rodman e McHenry chamaram a atenção para o

fato de que a comparação apropriada deveria ser entre

humanos e chimpanzés. Quando estas comparações são

feitas, conclui-se que o bipedismo nos humanos é mais

eficiente do que o quadrupedismo nos chimpanzés. Um

argumento de eficiência energética como uma força da seleção

natural em favor do bipedismo, concluíram eles, é portanto

plausível.

Tem havido muitas outras sugestões sobre os fatores que

conduziram a evolução do bipedismo, tais como a necessidade

de olhar por cima da grama alta para controlar os predadores e

a necessidade de adotar uma postura mais eficiente para

refrescar-se durante a procura por alimentos durante o dia. De

todas elas, acho a de Rodman e McHenry a mais persuasiva,

porque tem bases firmes na biologia e adapta-se às mudanças

ecológicas que estavam acontecendo quando as primeiras

espécies humanas estavam evoluindo. Se a hipótese estiver

correta, isto significará que, quando encontrarmos fósseis das

primeiras espécies humanas, podemos deixar de reconhecê-los

Page 53: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

como tais, dependendo dos ossos que obtivermos. Se os ossos

forem os da pélvis ou dos membros inferiores, então o modo

bípede de locomoção será evidente, e seremos capazes de

dizer “humanos”. Mas se encontrar-

31

mos certas partes do crânio, da mandíbula, ou alguns dentes,

eles podem parecer com os dos macacos. Como saberíamos

que eles pertencem a um macaco bipède ou a um macaco

convencional? É um desafio excitante.

Se pudéssemos visitar a África de 7 milhões de anos atrás para

observar o comportamento dos primeiros humanos, veríamos

um padrão mais familiar aos primatólogos, que estudam o

comportamento dos macacos e dos pequenos macacos

arborícolas, do que aos antropólogos, que estudam o

comportamento dos humanos. Em vez de viver em agregados

de famílias nos bandos nômades, como os caçadores-coletores

modernos o fazem, os primeiros humanos provavelmente

viviam como os babuínos das savanas. Grupos de mais ou

menos trinta indivíduos buscariam alimentos através de um

grande território de modo coordenado, retornando à noite para

dormir em lugares escolhidos, como encostas de rochedos ou

Page 54: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

grupos de árvores. As fêmeas maduras e suas proles

constituiriam a maior parte do grupo, com apenas uns poucos

machos adultos presentes. Os machos estariam continuamente

à procura de oportunidades de acasalamento, com os

indivíduos dominantes obtendo sucesso maior. Machos

imaturos ou de baixo prestígio estariam na periferia do grupo,

muitas vezes procurando alimentos por si mesmos. Os

indivíduos no grupo teriam o aspecto humano do caminhar

ereto mas se comportariam como os primatas das savanas. À

frente deles estão 7 milhões de anos de evolução — um

padrão de evolução que seria complexo, como veremos, e de

nenhum modo absolutamente certo. Pois a seleção natural

opera de acordo com as circunstâncias imediatas e não tendo

em vista um objetivo de longo prazo. O Homo sapiens fi-

nalmente evoluiu como um descendente dos primeiros

humanos, mas não havia nada de inevitável a respeito disto.

32

Page 55: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

2 - Uma família numerosa

Pela minha contagem, espécimens de fósseis com vários graus

de incompletude, representando pelo menos um milhar de

indivíduos das várias espécies humanas, têm sido recuperados

na África Oriental e do Sul da parte mais antiga dos registros

arqueológicos, isto é, de cerca de 4 milhões até quase 1 milhão

de anos atrás (muitos mais neste último registro). Os fósseis

humanos mais antigos encontrados na Eurásia podem ter cerca

de 2 milhões de anos de idade. (O Novo Mundo e a Austrália

foram povoados muito mais recentemente, há uns 20 mil e 55

mil anos respectivamente.) Portanto, é justo dizer que a maior

parte da ação na pré-história humana aconteceu na África. As

questões a que os antropólogos devem responder sobre esta

ação são duas: primeiro, que espécies constituíram a árvore de

família humana entre 7 e 2 milhões de anos atrás, e como elas

viveram? Segundo, como eram as espécies relacionadas umas

com as outras sob o ponto de vista evolutivo? Em outras

palavras, qual era a forma da árvore de família?

Meus colegas antropólogos deparam com dois desafios prá-

ticos quando tratam com estes problemas. O primeiro é o que

Page 56: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

Darwin chamava “a extrema imperfeição do registro geológico”.

Na sua A origem das espécies, Darwin devotou um capítulo

inteiro as lacunas frustrantes encontradas nos registros, as

quais são conseqüência das forças caprichosas da fossilização

e mais tarde da exposição dos ossos. As condições que

favorecem o enterro rápido e a possível fossilização dos ossos

são raras. E sedimentos antigos podem tornar-se expostos pela

erosão — quando, por exemplo, uma corrente passa através

deles —, mas quais as páginas da pré-história que são

reabertas desta maneira é puramente uma questão de acaso, e

muitas páginas permanecem escondidas de nossas vistas. Por

exemplo, na África Oriental, o repositório mais promissor de

fósseis humanos primordiais, há muito poucos sedimentos com

fósseis pertencentes ao período compreendido entre 4 e 8

milhões de anos atrás. Este é um período crucial na pré-história

do homem, já que ele inclui a origem da família huma-

33

na. Mesmo para o período que vem após os 4 milhões de anos

temos muito menos fósseis do que gostaríamos.

O segundo desafio surge do fato de que a maioria dos

espécimens de fósseis descobertos são pequenos fragmentos

Page 57: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

— um pedaço de crânio, um osso da face, parte de um osso do

braço, e muitos dentes. A identificação de espécies a partir de

indícios escassos desta natureza não é tarefa fácil e algumas

vezes é impossível. A incerteza resultante permite que surjam

muitas diferenças científicas de opinião, na identificação da

espécie e no discernimento das suas inter-relações. Esta área

da antropologia, conhecida como taxonomia e sistemática, é

uma das mais controvertidas. Evitarei os detalhes dos muitos

debates e, em vez disto, concentrarei a atenção na descrição

da forma geral da árvore.

O conhecimento dos registros de fósseis humanos na África

desenvolveu-se lentamente, começando em 1924 quando

Raymond Dart anunciou a descoberta da famosa criança

Taung. Compreendendo o crânio incompleto de uma criança —

parte do crânio, face, maxilar inferior e caixa craniana —, o

espécimen foi assim chamado porque foi recuperado da

pedreira de calcário de Taung, na África do Sul. Embora

nenhuma datação precisa dos sedimentos da pedreira fosse

possível, estimativas científicas sugeriram que a criança viveu

há cerca de 2 milhões de anos.

Page 58: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

Embora a cabeça da criança Taung tivesse muitas

características semelhantes às do macaco, tais como um

cérebro pequeno e um maxiliar protuberante, Dart também

reconheceu nele características humanas: o maxilar era

protuberante mas menos do que nos macacos, os dentes

molares eram achatados e os caninos pequenos. Um indício

fundamental foi a posição do forâmen magno — a abertura na

base do crânio através da qual os nervos espinhais passam

para a coluna espinhal. Nos macacos, a abertura está

relativamente mais para trás na base do crânio, enquanto que

nos humanos ela está muito mais próxima do centro da base; a

diferença é um reflexo da postura bípede dos humanos, na

qual a cabeça equilibra-se em cima da espinha, em contraste

com a postura dos macacos, na qual a cabeça pende para a

frente. O forâmen magno da criança Taung era no centro,

indicando que a criança era um macaco bípede.

Embora Dart estivesse convencido do status de hominídeo da

criança Taung, passou-se quase um quarto de século antes

que os antropólogos profissionais aceitassem este fóssil

individual como um ancestral humano e não apenas como um

macaco antigo.

Page 59: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

34

O preconceito contra a África como sítio da evolução humana e

um repúdio generalizado à idéia de que algo tão semelhante ao

macaco pudesse ser uma parte da ancestralidade humana

combinaram-se para lançar Dart e sua descoberta no

esquecimento antropológico por um longo tempo. Na época em

que os antropólogos reconheceram o seu erro — no final dos

anos 40 —, o escocês Robert Broom juntara-se a Dart, e os

dois homens haviam descoberto vintenas de fósseis humanos

primordiais em quatro lugares onde se encontram cavernas na

África do Sul: Sterkfontein, Swartkrans, Kromdraai e

Makapansgat. Seguindo o costume antropológico da época,

Dart e Broom deram o nome de uma espécie nova para pra-

ticamente todos os fósseis que descobriram; deste modo, em

breve parecia que um verdadeiro zoológico de espécies

humanas vivera na África do Sul entre 3 milhões e 1 milhão de

anos atrás.

Nos anos 50, os antropólogos decidiram racionalizar a grande

quantidade de espécies de hominídeos propostas e reconhece-

ram apenas duas. Ambas eram de macacos bipédes, é claro, e

ambas eram semelhantes aos macacos do mesmo modo pelo

Page 60: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

qual a criança Taung o era. A principal diferença entre as duas

espécies estava nos seus maxilares e dentes: em ambas, estes

eram grandes, mas uma das criaturas era uma versão mais

corpulenta da outra. A espécie mais graciosa recebeu o nome

de Australopithecus africanus, que era o nome que Dart dera à

criança Taung em 1924; o termo significa “macaco do sul da

África”. A espécie mais robusta foi apropriadamente chamada

Australopithecus robustus (ver figura 2.1).

A partir da estrutura de seus dentes, era óbvio que ambos, o

africanus e o robustus, alimentavam-se principalmente de

vegetais. Seus molares não eram como os dos macacos — que

têm cúspides aguçadas, aptas a uma dieta de frutas de casca

relativamente macia e a outros vegetais — mas eram

achatados formando superfícies aptas para o trituramento. Se,

como suspeito, as primeiras espécies humanas viveram de

uma dieta semelhante à dos macacos, elas teriam dentes

semelhantes a estes. Claramente, há cerca de 2 ou 3 milhões

de anos a dieta humana mudou para uma dieta de alimentos

mais duros, tais como frutas de casca rígida e nozes. Quase

certamente isto indica que os australopitecíneos viveram em

um ambiente mais seco que o dos macacos. O grande

Page 61: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

tamanho dos molares da espécie robusta sugere que os

alimentos que ela comia eram especialmente duros e

necessitavam de trituração extensiva; não é por acaso que são

chamados “molares tipo marco de estrada”.

35

(A página 36 do livro apresenta a Figura 2.1, colada nas páginas finais desse e-livro)

36

O primeiro fóssil de humanos primitivos foi encontrado na África

Oriental por Mary Leakey, em agosto de 1959. Depois de

quase três décadas de procura nos sedimentos da garganta

Olduvai, ela foi recompensada com a descoberta de molares do

tipo marco de estrada, como aqueles da espécie

australopitecínea robusta da África do Sul. Louis Leakey, que,

com Mary, tomara parte da longa busca, chamou-o

Zinjanthropus boisei: o nome que refere-se ao gênero significa

“homem da África Oriental” e boisei refere-se a Charles Boise,

que apoiou meu pai e minha mãe em seu trabalho na garganta

Olduvai e alhures. Na primeira aplicação dos métodos

modernos de datação geológica, foi determinado que Zinj,

como o indivíduo tornou-se conhecido, vivera há 1,75 milhão

Page 62: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

de anos. O nome Zinj foi finalmente trocado para

Australopithecus boisei, no pressuposto de que ele era uma

versão africana oriental, ou variante geográfica, do

Australopithecus robustus.

Os nomes não são particularmente importantes por si próprios.

O que é importante é que estamos vendo diversas espécies

humanas com a mesma adaptação fundamental, o bipedismo,

um cérebro pequeno e dentes molares relativamente grandes.

Isto foi o que vi no crânio que encontrei sobre um leito de rio

seco na minha primeira expedição à margem oriental do lago

Turkana, em 1969.

Sabemos a partir do tamanho variado dos ossos do esqueleto

que os machos da espécie australopitecínea eram muito maio-

res do que as fêmeas. Eles tinham 1,5 metro de altura

enquanto suas companheiras mal atingiam 1 metro. Os machos

devem ter pesado o dobro das fêmeas, uma diferença do tipo

que vemos hoje em algumas espécies de babuínos das

savanas. É, portanto, razoável supor que a organização social

dos australopitecíneos era similar à dos babuínos, com os

machos dominantes competindo pelo acesso às fêmeas

maduras, como foi observado no capítulo anterior.

Page 63: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

A história da pré-história humana tornou-se um pouco mais

complicada um ano após a descoberta do Zinj, quando meu

irmão mais velho, Jonathan, descobriu um pedaço de crânio de

um outro tipo de hominídeo, novamente na garganta Olduvai. A

pouca espessura relativa do crânio indicava que este indivíduo

tinha uma constituição ligeiramente mais leve do que qualquer

uma das espécies conhecidas de australopitecíneos. Ele tinha

dentes molares menores e, o mais significativo de tudo, seu

cérebro era quase 50 por cento maior. Meu pai concluiu que,

embora os aus-

37

tralopitecíneos fizessem parte da ancestralidade humana, este

novo espécimen representava a linhagem que finalmente deu

origem aos humanos modernos. Em meio a um alarido de

objeções por parte de seus colegas de profissão, ele decidiu

batizá-lo Homo habilis, tornando-o o primeiro membro primitivo

do gênero a ser identificado. (O nome Homo habilis, que

significa “homem habilidoso”, lhe foi sugerido por Raymond

Dart, e refere-se à suposição de que a espécie era de

fabricantes de artefatos.)

De muitas maneiras, o alarido tinha base em considerações

Page 64: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

esotéricas; ele surgiu em parte porque, para atribuir a

designação Homo ao novo fóssil, Louis teve que modificar as

definições aceitas de gênero. Até aquela época, a definição

padrão, proposta pelo antropólogo britânico Sir Arthur Keith,

afirmava que a capacidade cerebral do gênero Homo deveria

ser igual ou exceder os 750 centímetros cúbicos, um valor

intermediário entre o dos humanos modernos e o dos macacos;

isto tomou-se conhecido como o Rubicão cerebral. A despeito

do fato de que o fóssil recentemente descoberto na garganta

Olduvai tivesse uma capacidade cerebral de apenas 650

centímetros cúbicos, Louis julgou-o ser Homo por causa de seu

crânio mais humanóide (isto é, menos robusto). Ele portanto

propôs alterar o Rubicão cerebral para 600 centímetros

cúbicos, admitindo com isto o novo hominídeo olduvaiano ao

gênero Homo. Esta tática certamente elevou o nível emocional

do vigoroso debate que se seguiu. Ao final, porém, a nova

definição foi aceita. (Mais tarde, chegou-se à conclusão de que

650 centímetros cúbicos é muito pouco como média de

tamanho do cérebro adulto no Homo habilis: 850 centímetros

cúbicos é um valor mais próximo.)

Nomes científicos à parte, o ponto importante aqui é que o

Page 65: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

padrão de evolução que começa a emergir destas descobertas

era o de dois tipos básicos de humanos primitivos. Um tipo

tinha um cérebro pequeno e dentes molares grandes (as várias

espécies de australopitecíneos); o segundo tipo tinha um

cérebro maior e dentes molares pequenos (Homo) (ver figura

2.2). Ambos os tipos eram de macacos bipédes, mas

claramente algo de extraordinário tinha acontecido na evolução

do Homo. Exploraremos este “algo” de maneira mais completa

no próximo capítulo. De qualquer modo, a compreensão dos

antropólogos da forma da árvore de família neste ponto da

história humana — isto é, por volta de 2 milhões de anos atrás

— era bastante simples. A árvore tinha dois ramos principais:

as espécies australopitecíneas, que se tornaram todas extintas

há cerca de 1 milhão de anos, e a Homo, que finalmente levou

a gente como nós.

38

Page 66: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

Os biólogos que estudaram os registros de fósseis sabem que,

quando uma nova espécie desenvolve uma adaptação nova,

muitas vezes há um florescimento de espécies descendentes

durante os milhões de anos seguintes que expressam

variações temáticas daquela adaptação inicial — o

florescimento é conhecido como irradiação adaptativa. O

antropólogo da Universidade de Cambridge, Robert Foley,

calculou que, se a história evolutiva dos macacos bípedes

acompanhou o padrão usual de irradiação adaptativa, existiram

pelo menos 16 espécies entre a origem do grupo há 7 milhões

de anos e os dias de hoje. A forma da árvore de família começa

Page 67: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

com um único tronco (a espécie fundadora), cresce à medida

que novos ramos desenvolvem-se com o tempo, e então reduz

suas ramificações quando as espécies tornam-se extintas,

deixando apenas um ramo sobrevivente — o Homo sapiens.

De que modo tudo isto se encaixa com o que sabemos dos

registros de fósseis?

Durante muitos anos após a aceitação do Homo habilis,

pensou-se que há 2 milhões de anos havia três espécies de

australopitecíneos e uma de Homo. Neste ponto da história,

esperaríamos que a árvore familiar fosse bem populosa, assim

quatro espécies coexistentes não parecem ser muito. E, de

fato, recentemente tornou-se aparente — por meio de novas

descobertas e novas reflexões — que pelo menos quatro

australopitecíneos viveram neste período, lado a lado com

duas ou mesmo três espécies de Homo. Este quadro não está

em absoluto acabado, mas, se as espécies humanas eram

como as espécies de outros grandes mamí-

39

feros (e neste ponto da nossa história não há razão para

pensar que elas não o fossem), então isto é o que os biólogos

esperariam. A questão é: o que aconteceu antes dos 2 milhões

Page 68: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

de anos atrás? Quantos ramos haviam na árvore de família e

como eram eles?

Como já observado, os registros fósseis tornam-se rapida-

mente esparsos além dos 2 milhões de anos atrás e ficam mais

raros ainda para mais de 4 milhões de anos. Os fósseis

humanos mais antigos conhecidos são todos da África Oriental.

Na margem leste do lago Turkana, encontramos um osso de

braço, um osso do pulso, fragmentos de mandíbulas e dentes

de cerca de 4 milhões de anos atrás; o antropólogo americano

Donald Johanson e seus colegas recuperaram um osso de

perna de idade similar na região conhecida como Awash, na

Etiópia. Na verdade, estes são indícios escassos para se

recriar um quadro da pré-história humana mais antiga. Há,

contudo, uma exceção neste período de raros indícios, e esta

exceção é uma rica coleção de fósseis da região Hadar, na

Etiópia, que pertencem ao período entre 3 e 3,9 milhões de

anos atrás.

Nos meados da década de 1970, uma equipe franco-

americana, liderada por Maurice Taieb e Johanson, recuperou

centenas de ossos fossilizados fascinantes, inclusive um

esqueleto parcialmente completo de um indivíduo pequeno,

Page 69: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

que tornou-se conhecido como Lucy (ver figura 2.3). Lucy, que

era uma adulta madura quando morreu, mal atingia 1 metro de

altura e era de constituição muito semelhante à de um macaco,

com braços longos e pernas curtas. Outros fósseis de

indivíduos provindos desta área indicavam que não apenas

havia muitos deles maiores do que Lucy, atingindo mais de 1,5

metro de altura, mas também que estes eram mais

semelhantes aos macacos em certos aspectos — no tamanho

e forma dos dentes, na projeção das mandíbulas — do que os

hominídeos que viveram mais tarde na África Oriental e do Sul

há mais ou menos 1 milhão de anos. Isto é o que esperaríamos

encontrar à medida que nos aproximamos cada vez mais da

época da origem da humanidade.

Quando vi pela primeira vez os fósseis de Hadar, pareceu-me

que eles representavam duas espécies, talvez mais. Considerei

provável que a diversidade de espécies que vemos surgir há 2

mi-

40 (A página 41 do livro apresenta a Figura 2.3, colada nas páginas finais desse e-livro)

41

Page 70: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

lhões de anos derivava de uma diversidade similar que surgira

1 milhão de anos antes, inclusive espécies de Australopithecus

e Homo. Na sua interpretação inicial dos fósseis, Taieb e

Johanson apoiaram este padrão de evolução. Entretanto,

Johanson e Tim White, da Universidade da Califórnia em

Berkeley, fizeram mais análises. Em um artigo publicado na

revista Science em janeiro de 1979, eles sugeriram que os

fósseis de Hadar não representavam diversas espécies de

humanos primitivos mas ao contrário eram ossos de apenas

uma única espécie, que Johanson chamou Australopithecus

afarensis. A grande variedade de tamanho corporal, que

anteriormente tinha sido considerada como indicação da

presença de diversas espécies, era agora explicada

simplesmente como dimorfismo sexual. Todas as espécies de

hominídeos que surgiram mais tarde eram descendentes desta

única espécie, disseram eles. Muitos de meus colegas ficaram

surpresos com esta afirmação audaciosa, e ela provocou um

vigoroso debate que durou muitos anos (ver figura 2.4).

Embora desde então muitos antropólogos tenham decidido que

o esquema de Johanson e White provavelmente está correto,

eu acredito que o esquema está errado, por duas razões.

Page 71: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

Primeiro, as diferenças de tamanho e a variedade anatômica

dos fósseis de Hadar são simplesmente muito grandes para

representar uma única espécie. Muito mais razoável é a noção

de que os fósseis são de duas espécies, ou talvez mais. Yvens

Coppens, que era membro da equipe que coletou os fósseis de

Hadar, também é da mesma opinião. Segundo, o esquema não

faz sentido do ponto de vista biológico. Se os humanos

originaram-se há 7 milhões de anos, ou mesmo há 5 milhões

de anos, seria muito incomum que uma única espécie tivesse

sido a ancestral de todas as espécies que vieram mais tarde.

Esta não seria a forma típica de uma irradiação adaptativa, e a

menos que haja uma boa razão para suspeitar o contrário

devemos supor que a história humana seguiu o padrão normal.

A única maneira pela qual esta questão será satisfatoriamente

resolvida para todos é por meio da descoberta e análise de

mais fósseis de mais de 3 milhões de anos de idade, o que

parecia ser possível no começo de 1994. Desde 1990, depois

de uma década e meia de impossibilidade, por razões políticas,

de retornar aos lugares ricos em fósseis na região de Hadar,

Johanson e seus colegas fizeram três expedições. Seus

esforços tiveram grande sucesso, sendo recompensados com a

Page 72: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

coleta de 53 espécimens de fósseis, inclusive o primeiro crânio

completo. O padrão deste período de tempo observado

anteriormente — o de uma grande varie-

42

dade de tamanho corporal — é confirmado e mesmo ampliado

pelas novas descobertas. Como devemos interpretar este fato?

Estará a questão de uma ou mais espécies às vésperas da

solução? Infelizmente este não é o caso. Aqueles que achavam

que a variedade de tamanho dos fósseis previamente

descobertos indicava uma diferença de estatura entre machos

e fêmeas consideraram os novos fósseis como indícios que

apoiavam esta posição. Aqueles de nós que suspeitavam que

uma variedade de tamanho tão ampla deve indicar uma

diferença entre espécies, e não uma diferença dentro de uma

mesma espécie, interpretaram os novos fósseis como

indicações que reforçavam este ponto de vista. A forma da

árvore de família anterior aos 2 milhões de

Page 73: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

43

anos atrás deve portanto ser considerada uma questão não re-

Page 74: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

solvida.

A descoberta do esqueleto parcialmente completo de Lucy em

1974 parecia dar um primeiro vislumbre do grau de adaptação

anatômica à locomoção bípede dos hominídeos mais antigos.

Por definição, a primeira espécie de hominídeo a desenvolver-

se teria sido um tipo de macaco bípede. Mas até que o

esqueleto de Lucy tivesse aparecido, os antropólogos não

tinham indícios tangíveis de bipedismo em uma espécie

humana anterior aos 2 milhões de anos atrás. Os ossos da

pélvis, pernas e pés do esqueleto de Lucy foram pistas vitais

para esta questão.

A partir da forma da pélvis e do ângulo entre o fémur e o joelho,

fica claro que Lucy e seus companheiros adaptavam-se a al-

guma forma de caminhar ereta. Estas características eram

muito mais semelhantes às dos humanos do que às dos

macacos. De fato, Owen Lovejoy, que realizou os estudos

anatômicos iniciais destes ossos, concluiu que a locomoção

bípede da espécie teria sido indistinguível da maneira pela qual

eu e você caminhamos. Entretanto, nem todos concordam. Por

exemplo, em 1983, em um importante trabalho científico, Jack

Stern e Randall Susman, dois anatomistas da State University

Page 75: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

of New York, em Stony Brook, apresentaram uma interpretação

diferente da anatomia de Lucy: “Ela possui uma combinação de

características inteiramente adequada a um animal que tivesse

viajado bastante na estrada que leva ao bipedismo de tempo

total, mas que retém aspectos estruturais que lhe permitiam

utilizar-se das árvores de maneira eficiente para alimentar-se,

dormir ou fugir”.

Um dos indícios cruciais que Stern e Susman apresentaram em

favor de suas conclusões era a estrutura dos pés de Lucy: os

ossos eram algo encurvados, como se observa nos macacos

mas não nos humanos — um arranjo que facilitaria a subida

nas árvores. Lovejoy descarta este ponto de vista e sugere que

os ossos encurvados do pé são simplesmente um vestígio

evolutivo do passado simiesco de Lucy. Estes dois campos

opostos mantiveram entusiasticamente suas diferenças de

opinião por mais de uma década. Então, no começo de 1994,

novos indícios, inclusive alguns vindos de uma fonte das mais

inesperadas, aparentemente fizeram pender a balança para um

lado.

Primeiro, Johanson e seus colegas relataram a descoberta de

ossos de um braço de 3 milhões de anos de idade, um cúbito e

Page 76: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

um úmero, que eles atribuíram ao Australopithecus afarensis. O

indivíduo obviamente tinha sido muito forte, e seus ossos do

44

braço tinham algumas características similares aquelas

observadas nos chimpanzés, enquanto outras eram diferentes.

Comentando esta descoberta, Leslie Aiello, um antropólogo do

University College, de Londres, escreveu na revista Nature: “A

morfologia variada do cúbito do A. afarensis, junto com seu

úmero robusto e bastante musculoso, estaria idealmente

adaptada a uma criatura que não só subisse em árvores mas

que também caminhasse sobre duas pernas no solo.” Esta

descrição, com a qual concordo, claramente favorece mais o

lado de Susman do que o de Lovejoy.

Um apoio ainda mais forte a este ponto de vista vem da utili-

zação inovadora da tomografia axial computadorizada (a

varredura CAT) para discernir os detalhes da anatomia do

ouvido interno destes humanos primitivos. Parte da anatomia

do ouvido interno é constituída por três tubos em forma de C,

os canais semicirculares. Dispostos de uma maneira que os

deixa mutuamente perpendiculares, com dois dos canais

orientados verticalmente, a estrutura desempenha um papel

Page 77: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

chave na manutenção do equilíbrio do corpo. Em um encontro

de antropólogos em abril de 1994, Fred Spoor, da Universidade

de Liverpool, descreveu os canais semicirculares nos humanos

e nos macacos. Os dois canais verticais são significativamente

maiores nos humanos quando os comparamos com os dos

macacos. Uma diferença que Spoor interpreta como uma

adaptação às exigências adicionais do equilíbrio ereto nas es-

pécies bipédes. E o que dizer das espécies humanas

primitivas?

As observações de Spoor são verdadeiramente espantosas.

Em todas as espécies do gênero Homo, a estrutura do ouvido

interno é indistinguível da dos humanos modernos. Da mesma

forma, em todas as espécies de Australopithecus, os canais

semicirculares parecem-se com os dos macacos. Significará

isto que os australopitecíneos movimentavam-se como os

macacos o fazem — isto é, que seu modo de locomoção era

quadrúpede? A estrutura da pélvis e dos membros inferiores

falam contra esta conclusão. Do mesmo modo o faz a notável

descoberta que minha mãe fez em 1976: um rastro de pegadas

muito humanóides conservadas em um estrato de cinzas

vulcânicas há uns 3,75 milhões de anos. Não obstante, se a

Page 78: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

estrutura do ouvido interno é indicadora da postura habitual e

do modo de locomoção, ela sugere que os australopitecíneos

não eram simplesmente como eu e você, como sugeriu e

continua a sugerir Lovejoy.

Ao promover sua interpretação, Lovejoy parece querer tornar

os hominídeos totalmente humanos desde o início, uma ten-

dência entre os antropólogos que discuti anteriormente neste

ca-

45

pítulo. Mas não vejo qualquer problema em imaginar que um

ancestral nosso exibisse um comportamento semelhante aos

dos macacos e que as árvores fossem importantes em suas

vidas. Somos macacos bipédes e não deveria ser surpresa ver

este fato refletido no modo pelo qual nossos ancestrais viviam.

Neste ponto, mudarei de ossos para pedras, o indício mais

tangível do comportamento de nossos ancestrais. Chimpanzés

são usuários eficientes de utensílios, e utilizam pauzinhos para

coletar cupins, folhas como esponjas e pedras para quebrar

castanhas. Mas, de qualquer modo, até agora, nenhum

Page 79: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

chimpanzé selvagem foi visto manufaturando um utensílio de

pedra. Os humanos começaram a produzir ferramentas de

corte há uns 2,5 milhões de anos fazendo duas pedras baterem

uma contra a outra, dando início assim a uma trilha de

atividade tecnológica que realça a pré-história humana.

Os utensílios mais antigos são pequenas lascas, obtidas ba-

tendo uma pedra — usualmente um seixo de lava — contra

uma outra. As lascas mediam cerca de 2,2 centímetros de

comprimento e eram surpreendentemente aguçadas. Embora

simples na aparência, elas eram utilizadas em uma grande

variedade de tarefas. Sabemos isto porque Lawrence Keeley,

da Universidade de Illinois, e Nicholas Toth da Universidade de

Indiana, analisaram uma dúzia destas lascas provindas de um

sítio arqueológico de 1,5 milhão de anos de idade situado ao

leste do lago Turkana, procurando por sinais de uso. Eles

descobriram diferentes tipos de desgaste nas lascas — marcas

indicando que algumas haviam sido utilizadas para cortar

carne, algumas para cortar madeira, e outras para cortar

materiais macios originários de vegetais, como a grama.

Quando encontramos lascas de pedra dispersas em um sítio

arqueológico deste tipo, temos que ser inventivos para imaginar

Page 80: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

a complexidade da vida levada ali, porque as relíquias são

raras: a carne, a madeira e a grama se foram. Podemos

imaginar um lugar de acampamento simples situado na

margem do rio, onde um grupo familiar humano cortava a carne

no abrigo de uma estrutura feita a partir de árvores novas e

coberta por juncos, mesmo que tudo o que possamos ver hoje

sejam lascas de pedra.

Os primeiros conjuntos de artefatos de pedra encontrados têm

2,5 milhões de anos de idade; eles incluem, além de lascas,

implementos maiores tais como cutelos, raspadores e várias

pedras poliédricas. Na maioria dos casos, estes itens eram

também produzidos pela remoção de diversas lascas de um

seixo de lava. Mary Leakey passou muitos anos na garganta

Olduvai estudando

46

esta tecnologia primitiva — que é conhecida como indústria

olduvaiana, por causa da garganta Olduvai — e ao fazê-lo

estabeleceu o começo da arqueologia africana.

Em conseqüência de seus experimentos com a fabricação de

artefatos de pedra, Nicholas Toth suspeita que os primeiros

fabricantes não tinham formas específicas de artefatos

Page 81: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

individuais em mente — um molde mental, se preferirmos —

quando os estavam fabricando. Muito provavelmente, as várias

formas eram determinadas pela forma original da matéria-prima

A indústria olduvaiana — que era a única forma de tecnologia

empregada até cerca de 1,4 milhão de anos atrás — era de

natureza essencialmente oportunística.

Uma questão interessante surge com relação às habilidades

cognitivas implícitas na produção destes artefatos. Estariam

estes fabricantes primitivos de artefatos empregando

habilidades mentais comparáveis às dos macacos, mas de um

modo diferente? Ou isto exigia que tivessem uma inteligência

maior? O cérebro dos fabricantes de artefatos era mais ou

menos 50 por cento maior do que o dos macacos, assim a

última conclusão parece ser intuitivamente óbvia. Não obstante,

Thomas Wynn, arqueólogo da Universidade do Colorado, e

William McGrew, primatólogo da Universidade de Stirling, na

Escócia, não concordam com isto. Eles analisaram certas

habilidades manipulativas exibidas pelos macacos, e num

trabalho publicado em 1989, intitulado “An Ape's View of the

Olduvan”, concluíram: “Todos os conceitos espaciais aplicados

aos artefatos olduvaianos podem ser encontrados nas mentes

Page 82: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

dos macacos. De fato, a competência espacial descrita acima é

provavelmente verdadeira para todos os grandes macacos e

não faz dos fabricantes de artefatos olduvaianos especiais.”

Acho esta afirmação surpreendente, isto porque tenho visto as

pessoas tentarem reproduzir artefatos da “idade da pedra”

fazendo duas pedras baterem uma contra a outra, com pouco

sucesso. Não era assim que era feito. Nicholas Toth passou

muitos anos aperfeiçoando técnicas de fabricação de artefatos

de pedra e tem um bom conhecimento da mecânica das lascas

de pedra. Para trabalhar eficientemente, o britador deve

escolher uma pedra que tenha a forma apropriada, que tenha o

canto correto para bater; e o movimento de bater exige grande

prática para obter-se a intensidade apropriada de força no lugar

certo. “Parece claro que os primeiros proto-humanos

fabricantes de artefatos tinham um bom senso intuitivo dos fun-

damentos do trabalho com pedras”, escreveu Toth em um

artigo de 1985. “Não há dúvida de que os primeiros

ferramenteiros possuíam uma capacidade mental superior à

dos macacos”, disse-me ele re-

47

centemente. “A fabricação de artefatos exige uma coordenação

Page 83: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

significativa de habilidades cognitivas e motoras.”

Uma experiência em curso no Language Research Center, em

Atlanta, Georgia, está verificando esta questão. Por mais de

uma década, Sue Savage-Rumbaugh, uma psicóloga, vem

trabalhando com chimpanzés pigmeus no desenvolvimento das

habilidades de comunicação. Recentemente, Toth começou a

colaborar com ela, tentando ensinar a um chimpanzé de nome

Kanzi como produzir lascas de pedras. Kanzi indubitavelmente

mostrou um raciocínio inovador na produção de lascas

aguçadas, mas até agora não reproduziu a técnica sistemática

de produção de lascas utilizadas pelos fabricantes primitivos.

Suspeito que isto significa que Wynn e McGrew estão errados

e que os fabricantes mais primitivos utilizavam habilidades

cognitivas superiores àquelas presentes nos macacos.

Dito isto, permanece verdadeiro que os primeiros artefatos, os

da indústria olduvaiana, eram simples e oportunísticos. Há

cerca de 1,4 milhão de anos na África, apareceu um novo tipo

de coleção, que os arqueólogos chamam indústria acheulense,

em razão do sítio arqueológico de Saint Acheul, no norte da

França, onde estes artefatos, em versões posteriores, foram

descobertos pela primeira vez. Pela primeira vez na pré-história

Page 84: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

humana, há indícios de que os fabricantes de artefatos tinham

um modelo mental do que desejavam produzir — que eles

estavam impondo intencionalmente uma forma à matéria-prima

que utilizavam. O implemento que sugere isto é o assim

chamado machado manual, um utensílio em forma de gota de

lágrima que exigia uma habilidade notável e paciência para ser

feito (ver figura 2.5). Toth e outros experimentalistas

precisaram de vários meses para adquirir a habilidade de

produzir machados manuais de qualidade igual aos en-

contrados nos registros arqueológicos desta época.

O aparecimento do machado manual nos registros arqueológi-

cos acompanha a emergência do Homo erectus, o suposto

descendente do Homo habilis e ancestral do Homo sapiens.

Como veremos no capítulo seguinte, é razoável deduzir que os

fabricantes do machado manual eram indivíduos da espécie

Homo erectus, dotados de um cérebro significativamente maior

que o do Homo habilis.

Quando nossos ancestrais descobriram o truque de produzir

consistentemente lascas de pedra afiadas, isto constituiu um

grande avanço na pré-história humana. Subitamente, os

humanos tiveram acesso a alimentos que lhes eram

Page 85: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

previamente negados. A modesta lasca, como Toth muitas

vezes demonstrou, é um implemen-

48

to altamente eficiente para cortar tudo, exceto as peles mais

duras até expor a carne vermelha contida dentro. Se eram

caçadores ou carniceiros, os humanos que fizeram e utilizaram

estas simples lascas de pedra com isto tiveram acesso a uma

nova fonte de energia — a proteína animal. Assim eles teriam

sido capazes não apenas de estender o alcance de suas

incursões mas também de aumentar as chances de uma

produção bem-sucedida de uma prole. O processo reprodutivo

é um processo dispendioso, e a expansão da dieta com a

inclusão de carne o teria tornado mais seguro.

Uma pergunta antiga para os antropólogos tem sido, é claro:

quem fez os artefatos? Quando os artefatos apareceram nos

registros arqueológicos, existiam diversas espécies de

australopitecíneos, e provavelmente diversas espécies de

Homo também. Como podemos decidir quem era o fabricante

de artefatos? Isto é extremamente difícil. Se encontramos

artefatos somente em associa-

Page 86: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

49

ção com fósseis do Homo e nunca com fósseis de

australopitecíneos, isto poderia implicar que o Homo era o

único fabricante. Entretanto, o registro pré-histórico não é tão

límpido assim. Randall Susman argumentou, a partir da

anatomia do que ele acredita ser ossos da mão de um A.

robustus oriundos de um sítio na África do Sul, que esta

Page 87: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

espécie tinha habilidades manipulativas suficientes para fazer

ferramentas. Mas não há maneira de nos certificarmos se ela

realmente o fazia ou não.

Minha posição é a de que devemos procurar pela explicação

mais simples. Sabemos a partir dos registros pré-históricos que

depois de 1 milhão de anos atrás somente a espécie Homo

existia, e sabemos também que eles faziam ferramentas de

pedras. Até que haja uma boa razão para supor o contrário,

parece ser prudente concluir que apenas o Homo fabricava

ferramentas no começo da sua pré-história. As espécies

australopitecíneas e Homo tiveram claramente adaptações

específicas diferentes, e é provável que o ato de comer carne

pelo Homo era uma parte importante desta diferença. A

fabricação de instrumentos de pedra teria sido uma parte

importante das habilidades de um carnívoro; vegetarianos

poderiam safar-se sem estas ferramentas.

Em seus estudos de artefatos provindos dos sítios arqueoló-

gicos no Quênia e em seus exercícios práticos de fabricação de

artefatos, Toth fez uma importante e fascinante descoberta. Os

primeiros fabricantes eram predominantemente destros, exata-

mente como os humanos modernos o são. Embora os macacos

Page 88: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

individualmente sejam destros ou canhotos, não há uma

tendência preferencial em sua população; os humanos

modernos são únicos a este respeito. A descoberta de Toth

nos dá um insight evolutivo importante: há uns 2 milhões de

anos, o cérebro do Homo já estava se tomando

verdadeiramente humano, de um modo que nós mesmos

sabemos o que significa.

50

Page 89: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

3 - Um tipo diferente de humano

Pesquisas excitantes e imaginativas só recentemente

realizadas permitiram-nos utilizar os fósseis para obter

discernimento sobre aspectos da biologia de nossos ancestrais

extintos de um modo que ninguém poderia ter previsto há

poucos anos. Por exemplo, agora é possível fazer estimativas

razoáveis de quando indivíduos de uma espécie humana

particular eram desmamados, quando tornavam-se

sexualmente maduros, qual era sua expectativa de vida, e

assim por diante. Armados com meios de descobrir infor-

mações deste tipo, chegamos à conclusão de que o Homo era

um tipo diferente de humano desde o momento em que

apareceu pela primeira vez. A descoberta de uma

descontinuidade biológica entre o Australopithecus e o Homo

alterou fundamentalmente nossa compreensão da pré-história

humana.

Até o surgimento do Homo, todos os macacos bipédes tinham

cérebros pequenos, dentes molares grandes, maxilares pro-

tubérantes e aderiam a uma estratégia de subsistência

semelhante à dos macacos. Eles comiam principalmente

Page 90: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

alimentos fornecidos por vegetais, e seu meio social

provavelmente assemelhava-se ao dos babuínos das savanas.

Estas espécies — as australopitecíneas — eram semelhantes

aos humanos apenas no modo de caminhar e nada mais. Em

alguma época anterior aos 2,5 milhões de anos atrás — não

podemos dizer exatamente quando — as primeiras espécies

humanas dotadas de cérebros grandes evoluíram. Os dentes

também mudaram — provavelmente uma mudança produzida

pela passagem de uma dieta constituída exclusivamente de

alimentos fornecidos pelos vegetais para uma dieta que incluía

carne.

Estes dois aspectos do Homo primordial — as alterações no

tamanho do cérebro e na estrutura dos dentes — têm se

mostrado aparentes desde que os primeiros fósseis do Homo

habilis foram descobertos, há três décadas. Talvez porque nós,

humanos modernos, sejamos obcecados pela importância do

poder da mente, os antropólogos focalizaram intensamente sua

atenção no salto em tamanho do cérebro — de uns 450

centímetros cúbicos

51

para mais de 600 centímetros cúbicos — que ocorreu com a

Page 91: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

evolução do Homo habilis. Sem dúvida isto foi uma parte

importante da adaptação evolutiva que deu à pré-história

humana um outro rumo. Mas é apenas uma parte. As novas

pesquisas sobre a biologia de nossos ancestrais revela que

muitas outras coisas mudaram também, tornando-os mais

semelhantes aos humanos do que aos macacos.

Um dos aspectos mais significativos do desenvolvimento

humano é que os bebês nascem virtualmente desprotegidos e

passam por uma infância prolongada. Mais ainda, como todos

os pais sabem, as crianças sofrem um surto de crescimento na

adolescência, durante o qual elas adquirem centímetros a uma

taxa alarmante. Os humanos são singulares a esse respeito: a

maioria das espécies de mamíferos, inclusive os macacos,

progride quase que diretamente da infância para a idade

adulta. Um adolescente humano prestes a entrar no seu surto

de crescimento é propenso a aumentar de tamanho em cerca

de 25 por cento; em contraste, a taxa de crescimento constante

nos chimpanzés significa que o adolescente adiciona 14 por

cento a mais na sua estatura na época em que atinge a

maturidade.

Barry Bogin, biólogo da Universidade de Michigan, tem uma

Page 92: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

interpretação inovadora da diferença das taxas de crescimento.

A taxa de crescimento corporal nas crianças humanas é baixa

quando comparada com a dos macacos, mesmo que a taxa de

crescimento do cérebro seja similar. Em conseqüência, as

crianças humanas são menores do que seriam se elas

tivessem acompanhado a taxa simiesca de crescimento. O

benefício, sugere Bogin, tem a ver com o alto grau de

conhecimento que os jovens humanos devem adquirir para que

possam absorver as regras da cultura. Crianças em

crescimento aprendem melhor com os adultos se houver uma

diferença significativa de tamanho corporal, porque uma

relação professor-aluno pode ser estabelecida. Se as crianças

tivessem o tamanho que deveriam ter caso acompanhassem a

trajetória de crescimento dos macacos, a rivalidade física e não

uma relação professor-aluno poderia desenvolver-se. Quando

o período de aprendizado termina, o corpo “põe-se em dia” por

meio do surto de crescimento adolescente.

Os humanos tornam-se humanos por meio de um aprendizado

intenso não apenas das habilidades de sobrevivência mas tam-

bém dos hábitos e costumes sociais, parentescos e leis sociais

— isto é, cultura. O meio social no qual as crianças

Page 93: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

desprotegidas são cuidadas e as crianças mais velhas

educadas é muito mais ca-

52

racterístico dos humanos do que dos macacos. Pode-se dizer

que a cultura é a adaptação humana, e se torna possível pelo

padrão insólito de infância e maturação.

A fragilidade dos bebês humanos recém-nascidos é, porém,

menos uma adaptação cultural do que uma necessidade

biológica. Os bebês humanos vêm ao mundo muito cedo, uma

conseqüência do nosso cérebro grande e dos

constrangimentos do projeto da pélvis humana. Os biólogos

conseguiram entender, recentemente, que o tamanho do

cérebro influencia mais do que simplesmente a inteligência. Ele

se correlaciona a um grande número de fatores conhecidos

como fatores bionômicos, tais como a idade do desmame, a

idade em que a maturidade sexual é atingida, o período de

gestação e a longevidade. Em espécies com grandes cérebros,

estes fatores tendem a estar presentes por mais tempo: os

bebês são desmamados mais tarde do que os bebês das

espécies com cérebros pequenos, a maturidade sexual é

atingida mais tarde, o período de gestação é maior e os

Page 94: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

indivíduos vivem mais. Um cálculo simples com base em

comparações com outros primatas revela que o período de

gestação no Homo sapiens, cuja capacidade cerebral média é

de 1.350 centímetros cúbicos, deveria ser de 21 meses e não

de nove meses como na verdade o é. Os bebês humanos

portanto têm um ano de crescimento para recuperar quando

nascem, daí a sua fragilidade.

Por que isto aconteceu? Por que a natureza expôs os humanos

recém-nascidos aos perigos de vir ao mundo tão cedo? A res-

posta é o cérebro. O cérebro de um macaco recém-nascido,

que tem em média cerca de 200 centímetros cúbicos, tem mais

ou menos a metade do tamanho do cérebro de um adulto. A

duplicação em tamanho exigida ocorre rapidamente e bem

cedo na vida do macaco. Em contraste, os cérebros dos

humanos recém-nascidos são um terço do tamanho do cérebro

de um adulto e triplicam de tamanho em um crescimento rápido

e precoce. Os humanos assemelham-se aos macacos no que

diz respeito ao crescimento precoce de seus cérebros até o

tamanho adulto: assim, se, como os macacos, os humanos

duplicassem o tamanho de seus cérebros, os cérebros dos

humanos recém-nascidos deveriam medir 675 centímetros

Page 95: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

cúbicos. Como toda mulher sabe, dar à luz bebês que têm

tamanho normal de cérebro já é suficientemente difícil e,

algumas vezes, um risco de vida. De fato, a abertura pélvica

aumentou de tamanho no decorrer da evolução humana para

adaptar-se ao tamanho crescente do cérebro. Mas havia limites

sobre até onde esta expansão poderia ir — limites impostos

pela enge-

53

nharia da locomoção bípede eficiente. Este limite foi atingido

quando o tamanho do cérebro do recém-nascido atingiu seu

valor presente — 385 centímetros cúbicos.

De um ponto de vista evolutivo, podemos dizer que, em prin-

cípio, os humanos afastaram-se de um padrão de crescimento

semelhante ao dos macacos quando o tamanho do cérebro

adulto excedeu os 770 centímetros cúbicos. Além deste valor, o

tamanho do cérebro deveria mais do que duplicar-se a partir do

nascimento, dando início assim ao padrão de fragilidade para

os bebês que vêm ao mundo “muito cedo”. O Homo habilis,

com um tamanho de cérebro adulto de cerca de 800

centímetros cúbicos, parece estar no limiar entre o padrão de

crescimento do macaco e o do ser humano, enquanto o

Page 96: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

cérebro do Homo erectus primitivo, de uns 900 centímetros

cúbicos, empurra a espécie de modo significativo na direção de

um padrão humano (ver figura 3.1). Este, lembre-se, é um

argumento do tipo “em princípio”; ele pressupõe que a via de

nascimento do Homo erectus tinha a mesma largura que a dos

humanos modernos. De fato, fomos capazes de obter uma

idéia mais clara de quão humano o Homo erectus tinha se tor-

nado a este respeito a partir de medidas da pélvis do garoto de

Turkana, o esqueleto do Homo erectus primitivo que meus

colegas e eu desenterramos em meados da década de 1980

não muito longe da margem oeste do lago Turkana.

Nos humanos, a abertura pélvica é similar em tamanho nos

machos e fêmeas. Assim, ao medir o tamanho da abertura

pélvica do garoto de Turkana, obtivemos uma boa estimativa

da via de nascimento da mãe. Meu amigo e colega Alan

Walker, um anatomista da Universidade Johns Hopkins,

reconstruiu a pélvis do menino a partir de ossos que estavam

separados quando os desenterramos (ver figura 3.2). Alan

mediu a abertura pélvica, descobriu que ela era menor do que

a do Homo sapiens, e calculou que os recém-nascidos do

Homo erectus tinham cérebros de cerca de 275 centímetros

Page 97: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

cúbicos, que é consideravelmente menor do que o tamanho do

cérebro dos recém-nascidos humanos modernos.

As implicações são claras. Como os humanos modernos, os

bebês do Homo erectus nasciam com cérebros que tinham um

terço do tamanho de seus cérebros adultos e, como os

humanos modernos o fazem, devem ter vindo ao mundo em

estado de fragilidade. Podemos inferir que os intensos

cuidados por parte dos pais, que é parte do meio social dos

humanos modernos, já tivesse começado a desenvolver-se no

Homo erectus primitivo há 1,7 milhão de anos.

54

Page 98: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

Não podemos fazer cálculos semelhantes para o Homo habilis,

o ancestral imediato do erectus, porque temos que descobrir

ainda uma pélvis de habilis. Mas se os bebês habilis nasciam

Page 99: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

com o tamanho do cérebro dos neonatos erectus, então eles

também precisariam nascer “muito cedo”, mas não tanto; eles

também deveriam ser frágeis ao nascer, mas não por tanto

tempo quanto os erectus; e eles também teriam exigido um

meio social semelhante ao dos humanos, mas em grau menor.

Portanto, parece que o Homo moveu-se em direção aos

humanos desde o início. Da mesma forma, as espécies

australopitecíneas tinham cérebros do ta-

55

manho do cérebro dos macacos, e deste modo teriam seguido

um padrão de desenvolvimento inicial semelhante ao destes.

Um período extenso de fragilidade na infância — um período

durante o qual eram exigidos intensos cuidados por parte dos

pais — já era uma característica do Homo primitivo: isto

conseguimos estabelecer. Mas o que dizer do restante da

infância? Quando esta tornou-se prolongada, permitindo que

habilidades culturais e práticas pudessem ser absorvidas,

seguida por um surto de crescimento adolescente?

O prolongamento da infância nos humanos modernos é obtido

por meio de uma taxa de crescimento físico mais baixa se

comparada com a dos macacos. Como conseqüência, os

Page 100: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

humanos passam pelas várias instâncias de crescimento, tais

como a erupção dos dentes, depois que os macacos o fazem.

Por exemplo, os primeiros molares permanentes aparecem nas

crianças humanas mais ou menos aos seis anos de idade,

comparado com os três anos dos macacos; a segunda dentição

molar surge entre as idades de 11 e 12 anos nos humanos e

na idade de sete anos nos macacos; a terceira erupção de

molares aparece entre os 18 e os vinte anos nos humanos e

aos nove nos macacos. Para responder à questão sobre

quando a infância tornou-se prolongada na pré-história

humana, precisamos de uma maneira de olhar os fósseis de

maxilares e determinar quando os molares irromperam.

Por exemplo, o garoto de Turkana morreu quando sua segunda

dentição molar estava começando a irromper. Se o Homo

erectus seguiu o padrão mais lento de desenvolvimento infantil

humano, isto significaria que o garoto morreu quando estava

com mais ou menos 11 anos. Se, porém, a espécie tivesse

uma trajetória de crescimento semelhante à dos macacos, ele

teria sete anos. No início da década de 1970, Alan Mann, da

Universidade da Pensilvânia, realizou uma extensa análise de

fósseis de dentes humanos e concluiu que todas as espécies

Page 101: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

de Australopithecus e Homo seguiram o padrão humano de

crescimento lento na infância Seu trabalho tornou-se

extremamente influente, e deu um grande impulso ao conheci-

mento convencional de que todas as espécies de hominídeos,

inclusive as australopitecíneas, seguiram o padrão humano

moderno. De fato, quando encontramos o maxilar do garoto de

Turkana e vi a segunda erupção de dentes molares, presumi

que ele teria 11 anos quando morreu, porque esta teria sido

sua idade caso fosse como o Homo sapiens. Da mesma forma,

presumia-se que a criança Taung, um membro da espécie do

Australopithecus africanus, teria morrido aos 11 anos, pois sua

primeira dentição molar estava surgindo.

56 (A página 57 do livro apresenta a Figura 3.2, colada nas páginas finais desse e-livro)

57

No final da década de 1980, estas suposições foram destruídas

pelo trabalho de vários pesquisadores. Holly Smith,

antropóloga da Universidade de Michigan, desenvolveu um

modo de deduzir os padrões de história de vida nos fósseis

humanos ao correlacionar o tamanho do cérebro com a idade

Page 102: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

da erupção dos primeiros dentes molares. Como ponto de

partida, Smith reuniu dados sobre humanos e macacos; depois

ela observou uma grande quantidade de fósseis humanos para

determinar como estes se comparavam com os dados. Três

padrões bionômicos emergiram: um padrão humano moderno,

no qual a primeira erupção de dentes molares ocorre aos seis

anos de idade e a expectativa de vida é de 66 anos; um padrão

simiesco, com a primeira erupção molar surgindo um pouco

depois dos três anos e uma expectativa de vida de cerca de

quarenta anos; e um padrão intermediário. Os Homo erectus

posteriores — isto é, indivíduos que viveram depois de mais ou

menos 800 mil anos atrás — encaixavam-se no padrão

humano, como o fizeram os homens de Neanderthal. Todas as

espécies australopitecíneas, porém, encaixavam-se no padrão

dos macacos. O Homo erectus primordial, como o garoto de

Turkana, encaixava-se no padrão intermediário; a primeira

dentição molar teria irrompido quando ele estava com pouco

mais de quatro anos e meio de idade; não tivesse ele

encontrado uma morte prematura, poderia esperar viver cerca

de 52 anos.

O trabalho de Smith mostrou que o padrão de crescimento dos

Page 103: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

australopitecíneos não era como o dos humanos modernos; ao

contrário, era semelhante ao dos macacos. Mais adiante ela

mostrou que o Homo erectus primitivo era intermediário em seu

crescimento entre os humanos modernos e os macacos; agora

chegamos à conclusão de que o garoto de Turkana tinha cerca

de nove anos de idade quando morreu e não 11, como eu

inicialmente havia suposto.

Em razão destas conclusões serem opostas às pressuposições

de uma geração de antropólogos, elas eram muito discutidas.

Havia uma possibilidade, é claro, de que Smith tivesse come-

tido algum tipo de erro. Nestas circunstâncias, trabalho

corroborativo é sempre bem-vindo, e neste caso ele veio

rapidamente. Os anatomistas Christopher Dean e Tim

Bromage, ambos então no University College, em Londres,

descobriram um modo de determinar diretamente a idade dos

dentes. Assim como os anéis do tronco das árvores são

utilizados para calcular quão velha ela é, linhas microscópicas

em um dente indicam a sua idade. Este método de cálculo não

é tão fácil quanto parece — principalmente

58

por causa da incerteza sobre o modo pelo qual as linhas se for-

Page 104: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

mam. Não obstante, Dean e Bromage inicialmente aplicaram

sua técnica a um maxilar de australopitecíneo idêntico ao da

criança Taung em termos de desenvolvimento dental. Eles

descobriram que o indivíduo havia morrido um pouco depois de

haver completado três anos de idade, exatamente quando sua

primeira dentição molar estava irrompendo — de acordo com

uma trajetória de crescimento semelhante à dos macacos.

Quando Dean e Bromage examinaram um conjunto de dentes

humanos fossilizados, eles, do mesmo modo que Smith,

descobriram três padrões: humano moderno, macaco e alguma

coisa intermediária. Mais uma vez, os australopitecíneos

encaixavam-se no padrão dos macacos, o Homo erectus mais

recente e os neanderthais seguiam o padrão humano moderno,

e o Homo erectus primitivo, o padrão intermediário. E mais uma

vez os resultados animaram os debates, particularmente sobre

se os australopitecíneos teriam crescido como humanos ou

macacos.

Este debate terminou efetivamente quando o antropólogo

Glenn Conroy e o clínico Michael Vannier, da Universidade

Washington em Saint Louis, trouxeram a alta tecnologia do

mundo médico para dentro do laboratório de antropologia.

Page 105: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

Utilizando a tomografia axial computadorizada — a varredura

tridimensional CAT —, eles espiaram o interior do maxilar

petrificado da criança Taung e, essencialmente, confirmaram

as conclusões de Dean e Bromage. A criança Taung havia

morrido quando estava perto dos três anos de idade, um jovem

seguindo uma trajetória de crescimento semelhante à dos

macacos.

A habilidade de inferir a biologia a partir dos fósseis por meio

de pesquisas sobre os fatores bionômicos e sobre o desen-

volvimento dental é extremamente importante para a antropolo-

gia, pois permite que reconstituamos, metaforicamente, carne e

músculos junto com os ossos. Por exemplo, podemos dizer que

o garoto de Türkana teria sido desmamado um pouco antes de

seu quarto aniversário e, tivesse ele sobrevivido, ter-se-ia

tornado sexualmente maduro mais ou menos aos 14 anos. Sua

mãe provavelmente teve seu primeiro bebê quando tinha 13

anos, após uma gestação de nove meses; e daí em diante teria

engravidado a cada três ou quatro anos. Estes padrões nos

dizem que, na época do Homo erectus primitivo, os ancestrais

humanos já se haviam movimentado em direção à biologia

humana moderna e se afastado da biologia dos macacos,

Page 106: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

enquanto os australopitecíneos permaneceram no seu padrão

simiesco.

59

A mudança evolutiva do Homo erectus primitivo em direção aos

padrões humanos modernos de crescimento e

desenvolvimento ocorreu em um contexto social. Todos os

primatas são sociais, mas os humanos modernos

desenvolveram a sociabilidade até o seu grau mais alto. A

mudança biológica que inferimos a partir dos indícios dentários

encontrados no Homo primitivo nos dizem que a interação

social já havia começado a intensificar-se, criando um ambiente

que incentivava a cultura. Parece que a organização social

inteira também foi significativamente modificada. Como

podemos sabê-lo? Isto é evidente a partir de uma comparação

do tamanho do corpo dos machos e fêmeas, e do que sabemos

destas diferenças nas espécies primatas modernas, tais como

os babuínos e os chimpanzés.

Entre os babuínos das savanas, como observado anterior-

mente, os machos são duas vezes maiores em tamanho do

que as fêmeas. Os primatologistas sabem agora que esta

diferença ocorre quando há uma forte competição entre os

Page 107: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

machos maduros por oportunidades de acasalamento. Como

na maioria das espécies de primatas, os babuínos machos,

quando atingem a maturidade, abandonam o grupo em que

nasceram. Eles juntam-se a um outro grupo, muitas vezes um

nas proximidades, e daí em diante estão em competição com

os outros machos já estabelecidos no grupo. Em razão deste

padrão de migração, os machos da maioria dos grupos

usualmente não se relacionam entre si. Portanto, eles não têm

um motivo darwiniano (isto é, genético) para cooperar uns com

os outros.

Entretanto, nos chimpanzés, por razões que ainda não são

completamente compreendidas, os machos permanecem em

seu grupo natal e as fêmeas transferem-se de grupo. Como

conseqüência, os machos em um grupo de chimpanzés têm

uma razão darwiniana para cooperar uns com os outros na

aquisição de fêmeas, pois como irmãos eles têm a metade de

seus genes em comum. Eles cooperam na defesa contra outros

grupos de chimpanzés, e em incursões ocasionais à caça,

quando usualmente tentam encurralar um infeliz macaco em

uma árvore. Esta relativa falta de competição e cooperação

reforçada reflete-se no tamanho dos machos quando os

Page 108: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

comparamos com as fêmeas: eles são uns meros 15 a 20 por

cento maiores.

Com relação ao tamanho, os machos australopitecíneos se-

guem o padrão dos babuínos. É razoável supor, portanto, que

a vida social das espécies australopitecíneas era similar à que

vemos nos babuínos modernos. Quando somos capazes de

fazer

60

uma comparação entre o tamanho do corpo de um macho e o

de uma fêmea no Homo primitivo, fica imediatamente óbvio que

uma mudança significativa ocorreu: os machos não são mais

do que 20 por cento maiores do que as fêmeas, exatamente

como vemos nos chimpanzés. Como argumentaram os

antropólogos Robert Foley e Phyllis Lee, da Universidade de

Cambridge, esta mudança na diferença de tamanho corporal

na época das origens do gênero Homo certamente representa

também uma mudança na organização social. Muito

provavelmente, os machos Homo primitivos permaneciam nos

seus grupos natais com seus irmãos e meio-irmãos, enquanto

as fêmeas transferiam-se para outros grupos. O parentesco,

como já observamos, reforça a cooperação entre os machos.

Page 109: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

Não podemos ter certeza sobre o que ocasionou esta mudança

na organização social: a cooperação reforçada entre os ma-

chos deve ter sido poderosamente benéfica por alguma razão.

Alguns antropólogos argumentam que a defesa contra grupos

vizinhos de Homo tornou-se extremamente importante. Tão

provável, ou talvez até mais, é uma mudança centrada em

necessidades ecológicas. Diversos tipos de indícios apontam

para uma mudança na dieta do Homo — uma mudança na qual

a carne tornou-se uma fonte importante de energia e proteínas.

A mudança na estrutura dos dentes do Homo primitivo indica

que este comia carne, assim como são indícios também a

elaboração de uma tecnologia com base em implementos de

pedra. Mais ainda, o aumento do tamanho do cérebro, parte do

pacote evolutivo do Homo, pode ter mesmo exigido que a

espécie complementasse a sua dieta com uma fonte rica em

energia

Como todo biólogo sabe, os cérebros são, do ponto de vista

metabólico, órgãos dispendiosos. Nos humanos modernos, por

exemplo, o cérebro constitui uns meros 2 por cento do peso

total do corpo, ainda assim consome 20 por cento do gasto de

energia. De todos os mamíferos, os primatas são o grupo que

Page 110: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

tem os cérebros maiores, e os humanos estenderam

enormemente esta propriedade: o cérebro humano é três vezes

maior em tamanho do que o cérebro de um macaco que tem

um tamanho corporal equivalente. O antropólogo Robert Martin,

do Instituto de Antropologia de Zurique, chamou a atenção para

o fato de que este aumento no tamanho do cérebro poderia ter

ocorrido apenas com um suprimento de energia reforçado: a

dieta do Homo primitivo, observa ele, deve ter sido não apenas

segura mas também rica do ponto de vista nutricional. A carne

representa uma fonte concen-

61

trada de calorias, proteínas e gordura. Somente pela adição de

uma proporção significativa de carne à sua dieta poderia o

Homo primitivo ter “custeado” a construção de um cérebro

maior em tamanho do que o dos australopitecíneos.

Por todas estas razões, penso que a adaptação mais impor-

tante no pacote evolutivo do Homo primitivo tenha sido uma in-

gestão significativa de carne. Se o Homo primitivo caçava

presas vivas ou simplesmente aproveitava-se das carcaças, ou

ambos, é uma questão muito controversa na antropologia,

como veremos no próximo capítulo. Mas não tenho dúvida de

Page 111: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

que a carne desempenhava um papel importante na vida diária

de nossos ancestrais. Mais ainda, a nova estratégia de

subsistência de obtenção, não apenas de alimentos de origem

vegetal mas também de carne vermelha, provavelmente exigiu

uma organização social e cooperação significativas.

Todo biólogo sabe que, quando ocorre uma mudança funda-

mental no padrão de subsistência de uma espécie, outras

mudanças usualmente se seguem. Muitas vezes tais mudanças

secundárias dizem respeito à anatomia da espécie, na medida

em que esta se adapta à nova dieta. Vimos que a estrutura dos

dentes e do maxilar do Homo primitivo é diferente da estrutura

dos australopitecíneos, presumivelmente como uma adaptação

a uma dieta que incluía carne.

Muito recentemente, os antropólogos passaram a acreditar

que, além das diferenças dentárias, o Homo primitivo diferia

dos australopitecíneos por ser uma criatura fisicamente muito

mais ativa. Duas Unhas de pesquisas independentes

convergiram para a mesma conclusão: a de que o Homo

primitivo era um corredor eficiente, a primeira espécie humana

a ser assim.

Poucos anos atrás, o antropólogo Peter Schmid, um dos co-

Page 112: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

legas de Robert Martin em Zurique, teve a oportunidade de

estudar o famoso esqueleto de Lucy. Utilizando moldes de fibra

de vidro dos ossos fossilizados, Schmid começou a montar o

corpo de Lucy, com a expectativa total de que este seria

essencialmente humano na forma. Schmid ficou surpreendido

com o que viu: a caixa torácica de Lucy revelou-se cônica na

forma, como a de um macaco, e não em forma de um barril,

como seria de se esperar nos humanos. Os ombros, o tronco e

a cintura de Lucy também revelaram ter fortes aspectos

semelhantes aos dos macacos.

Em uma importante conferência internacional em Paris, em

1969, Schmid descreveu as implicações do que havia

encontrado e elas são altamente significativas. O

Australopithecus afarensis,

62

disse ele, “não teria sido capaz de elevar o seu tórax do modo

necessário ao tipo de inalação profunda que fazemos ao correr.

O abdome era pronunciado, e ele não tinha cintura, de maneira

que isto teria restringido a flexibilidade que é essencial ao

modo de correr humano”. O Homo era um corredor, o

Australopithecus não.

Page 113: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

A segunda Unha de indício que se relaciona com esta questão

da agilidade originou-se do trabalho de Leslie Aiello sobre o

peso corporal e a estatura. Ela obteve medidas destas

características nos humanos e macacos modernos e as

comparou com dados similares obtidos de fósseis humanos. Os

macacos de hoje são fortemente constituídos para a sua

estatura, sendo duas vezes mais corpulentos do que um

humano da mesma altura. Os dados oriundos dos fósseis

também encaixaram-se em um padrão nítido — um que agora

estava se tornando familiar. Os australopitecíneos eram

semelhantes aos macacos em sua constituição corporal,

enquanto todas as espécies de Homo eram semelhantes aos

humanos. Ambos, as descobertas de Aiello e o trabalho de

Schmid, são coerentes com a descoberta de Fred Spoor da

diferença na estrutura anatômica do ouvido interno nos

australopitecíneos e no Homo: um compromisso maior com o

bipedismo acompanha a nova estrutura corporal.

Sugeri no capítulo anterior que outras mudanças importantes

além da relativa ao tamanho do cérebro ocorreram com a evo-

lução do gênero Homo. Podemos ver agora qual foi uma delas:

os australopitecíneos eram bipédes, mas eram limitados em

Page 114: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

sua agilidade; as espécies de Homo eram de atletas.

Argumentei anteriormente que o bipedismo evoluiu inicialmente

como uma maneira mais eficiente de locomoção em um meio

físico alterado, permitindo ao macaco bípede sobreviver em um

habitat impróprio para os macacos convencionais. Os macacos

bipédes eram capazes de cobrir um território maior quando

faziam incursões em busca de fontes de alimentos amplamente

espalhadas pela savana aberta. Com a evolução do Homo,

surgiu uma nova forma de locomoção, ainda baseada no

bipedismo mas com maior agilidade e atividade. A estatura

flexível dos humanos modernos permite manter uma

locomoção de passadas largas e promove uma perda efetiva

de calor, que é importante para um animal que está em

atividade em ambientes quentes e abertos, como era o caso do

Homo primitivo. A passada bípede eficiente representou uma

mudança fundamental na adaptação hominídea. Como

veremos no próximo capítulo, esta mudança certamente

envolveu um certo grau de atividade de caça.

63

A capacidade que um animal ativo tem de dissipar calor é es-

pecialmente importante para a fisiologia do cérebro, um ponto

Page 115: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

enfatizado pela antropóloga Dean Falk, da State University of

New York, em Albany. Em sua pesquisa anatômica na década

de 1980, ela demonstrou que a estrutura dos vasos que fazem

a drenagem de sangue no cérebro do Homo é conducente com

um resfriamento eficiente, enquanto que nos australopitecíneos

esta estrutura é muito menos assim. A chamada hipótese do

radiador de Falk é um argumento a mais em apoio à magnitude

da adaptação do Homo.

Que a adaptação do Homo foi bem-sucedida mal precisa ser

dito: estamos aqui hoje como indício. Mas por que não temos

outros macacos bipédes como companhia?

Há 2 milhões de anos, o Homo coexistia com diversas espécies

de Australopithecus na África Oriental e do Sul. Mas 1 milhão

de anos mais tarde, o Homo estava em isolamento esplêndido,

tendo as várias espécies australopitecíneas se tornado

extintas. (Somos inclinados a pensar na extinção como a marca

do fracasso — como algo que acontece a uma espécie que de

algum modo não correspondeu aos desafios que a natureza lhe

apresentou. Na verdade, a extinção parece ser o destino final

de todas as espécies: mais de 99,9 por cento de todas as

Page 116: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

espécies que já existiram estão agora extintas —

provavelmente tanto em conseqüência de má sorte quanto de

genes ruins.) O que sabemos do destino dos

australopitecíneos?

Muitas vezes me perguntam se acho que o Homo, tendo se

tornado carnívoro, não poderia ter incluído seus primos

australopitecíneos na sua dieta, empurrando-os deste modo

para a extinção. Não tenho dúvidas de que de tempos em

tempos o Homo primitivo matava australopitecíneos

vulneráveis, do mesmo modo como matava um antílope e

outras presas animais quando podia Mas a causa da extinção

dos australopitecíneos é provável que tenha sido mais

prosaica.

Sabemos que o Homo erectus foi uma espécie extremamente

bem-sucedida, já que foram os primeiros humanos a expandir

seus domínios para além da África. Portanto, é provável que o

Homo primitivo tenha crescido rapidamente em número,

tornando-se assim um competidor importante por um recurso

essencial à sobrevivência dos australopitecíneos: a comida.

Mais ainda, entre 1 milhão e 2 milhões de anos atrás macacos

que viviam no solo — os babuínos — estavam se tornando

Page 117: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

também bastante

64

bem-sucedidos e crescendo em número, e também teriam

competido com os australopitecíneos pela comida. Os

australopitecíneos podem muito bem ter sucumbido em razão

de uma dupla pressão competitiva — do Homo de um lado e

dos babuínos do outro.

65

Page 118: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

4 - Homem, o nobre caçador?

Pelo menos algumas linhas de indícios apoiam a noção de que

a compleição física do Homo primitivo refletia uma procura

ativa de carne — isto é, como um caçador em busca de sua

presa. É salutar refletir sobre o fato de que, como meio de

subsistência, a caça e a coleta persistiram até recentemente na

pré-história humana; somente com a adoção da agricultura há

uns meros 10 mil anos nossos ancestrais realmente

começaram a abandonar uma existência simples à procura de

alimentos. Uma questão importante para os antropólogos tem

sido esta: quando este modo muito humano de subsistência

apareceu? Estava ele presente desde os começos do gênero

Homo, como sugeri? Ou foi uma adaptação recente, tendo

emergido apenas com a evolução dos humanos modernos, há

talvez 100 mil anos? Para responder a estas questões,

devemos nos debruçar sobre as pistas que os registros

arqueológicos e fósseis fornecem, procurando sinais do modo

de subsistência com base na caça e na coleta. Veremos neste

capítulo que nos anos recentes as teorias mudaram, refletindo

o modo pelo qual vemos a nós e a nossos ancestrais. Antes de

vermos como os indícios da pré-história têm sido esmiuçados,

Page 119: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

seria útil ter em mente uma visão do modo de vida

caracterizado pela busca de alimentos, o qual podemos

aprender com os caçadores-coletores modernos.

A combinação entre a caça às fontes de carne e a coleta de

alimentos oriundos de vegetais como estratégia sistemática de

subsistência é singularmente humana. É também espetacular-

mente bem-sucedida, tendo permitido à humanidade florescer

em praticamente todos os cantos do mundo, com exceção da

Antártica. Ambientes muitíssimo diferentes foram ocupados,

desde as florestas tropicais vaporosas até os desertos, desde

faixas litorâneas fecundas até platôs virtualmente estéreis. As

dietas variam bastante de ambiente para ambiente. Por

exemplo, os nativos americanos do noroeste pescam salmões

em quantidades prodigiosas, enquanto os !Kung San do

Kalahari dependem das castanhas mongongo como fonte da

maior parte de sua proteína.

66

Ainda assim, a despeito de diferenças na dieta e do meio eco-

lógico, há muitas coisas em comum no modo de vida dos

caçadores-coletores. As pessoas vivem em bandos pequenos e

móveis de cerca de 25 indivíduos — um cerne formado pelos

Page 120: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

machos e fêmeas adultos e sua prole. Estes bandos interagem

uns com os outros formando uma rede social e política

interligada pelos costumes e pela língua. Atingindo tipicamente

cerca de quinhentos indivíduos, esta rede formada pelos

bandos é conhecida como uma tribo dialetal. Os bandos

ocupam acampamentos temporários a partir de onde saem em

busca da sua alimentação diária.

Na maioria das sociedades de caçadores-coletores que os

antropólogos estudaram, há uma clara divisão de trabalho, com

os machos responsáveis pela caça e as fêmeas pela coleta de

alimentos de origem vegetal. O acampamento é um lugar de

intensa interação social, e o lugar onde a comida é partilhada;

quando há carne vermelha disponível, esta partilha muitas

vezes envolve um ritual elaborado, governado por regras

sociais estritas.

Para os ocidentais, manter uma existência a partir dos recursos

naturais do meio ambiente utilizando a mais simples das tec-

nologias parece ser um desafio amedrontador. Na realidade, é

um modo extremamente eficiente de subsistência, na medida

em que os que saem à procura de alimentos podem muitas

vezes coletar comida suficiente para o dia em três ou quatro

Page 121: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

horas. Um importante projeto de pesquisas das décadas de

1960 e 1970 mostrou que isto é verdadeiro no caso dos !Kung

San, cuja terra natal no deserto de Kalahari, em Botswana, é

isolada ao extremo. Os caçadores-coletores estão sintonizados

com o seu meio ambiente físico de uma maneira difícil para a

mente ocidental urbana entender. Em conseqüência, eles

sabem como explorar o que para os olhos modernos parecem

ser recursos escassos. A força de seu modo de vida está nesta

exploração das fontes animal e vegetal de recursos dentro de

um sistema que promove a interdependência e a cooperação.

A noção de que a caça foi importante na evolução humana tem

uma longa história no pensamento antropológico, remontando

a Darwin. Em seu livro de 1871, A descendência do homem,

ele sugeriu que as armas de pedra eram utilizadas não apenas

como defesa contra os predadores mas também para abater a

presa. A adoção da caça com armas artificiais foi parte do que

fez dos humanos humanos, argumentou ele. A imagem de

Darwin de nossos ancestrais foi nitidamente influenciada pela

sua experiência no decorrer de sua viagem de cinco anos no

Beagle. Aqui está

67

Page 122: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

como ele descreveu seu encontro com o povo da Terra do

Fogo, no extremo sul da América do Sul:

Dificilmente pode haver qualquer dúvida de que descende-

mos de bárbaros. O espanto que senti ao avistar um grupo de

fueguinos na costa selvagem e irregular nunca será

esquecido por mim, pois esta reflexão imediatamente brotou

em minha mente — assim eram os nossos ancestrais. Estes

homens estavam absolutamente nus e besuntados de tinta,

seus longos cabelos eram emaranhados, suas bocas

espumavam de excitação, e suas expressões eram

selvagens, assustadas e desconfiadas. Eles mal possuíam

quaisquer artes, e como os animais selvagens viviam do que

podiam pegar.

A convicção de que a caça foi fundamental para a nossa evo-

lução, e a combinação do modo de vida de nossos ancestrais

com o dos povos tecnologicamente primitivos sobreviventes

deixaram uma impressão duradoura no pensamento

antropológico. Em um ensaio reflexivo sobre esta questão, o

biólogo Timothy Perper e o antropólogo Carmel Schrire, ambos

da Universidade Rutgers, colocaram-na sucintamente: “O

modelo da caça (...) assume que a caça e o hábito de comer

carne vermelha deram o sinal de partida para a evolução

Page 123: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

humana e levaram o homem à criatura que hoje ele é.” De

acordo com este modelo, esta atividade moldou nossos

ancestrais de três modos, explicam Perper e Schrire, “afetando

o comportamento psicológico, social e territorial do homem

primitivo”. Em um trabalho clássico sobre o assunto publicado

em 1963, o antropólogo sul-africano John Robinson expressou

a medida da importância que a ciência atribuiu à caça na pré-

história humana:

A incorporação do hábito de comer carne à dieta parece-me

ter sido uma mudança evolutiva de enorme importância que

abriu um novo e vasto campo evolutivo. A mudança, em

minha opinião, equipara-se em importância evolutiva à origem

dos mamíferos — talvez mais apropriadamente à origem dos

tetrápodos.* Junto com a expansão relativamente grande da

inteligência e da cultura, ela introduziu uma nova dimensão e

um novo mecanismo evolutivo no cenário da evolução, que

quando muito são apenas vislumbrados em outros animais.

Nossa suposta herança de caçadores assumiu também as-

68

* Os vertebrados dividem-se em dois grandes grupos: os peixes e os tetrápodos. Estes últimos incluem os anfíbios, répteis, aves e mamíferos. Os primeiros tetrápo-dos eram anfíbios derivados diretamente de certos peixes. (N. do T.)

Page 124: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

pectos místicos, tornando-se equivalente ao pecado original de

Adão e Eva, que tiveram que abandonar o Paraíso depois de

ter comido o fruto proibido. “No modelo da caça, o homem

comeu carne para sobreviver na savana hostil e, em virtude

desta estratégia, tornou-se o animal cuja história subseqüente

está gravada em um meio de violência, conquista e

derramamento de sangue”, observaram Perper e Schrire. Este

foi o tema considerado por Raymond Dart em alguns de seus

escritos da década de 1950 e, mais popularmente, por Robert

Ardrey. “Nem na inocência e nem na Ásia, nasceu a raça

humana”, é a frase inicial do livro de Ardrey, African Genesis,

publicado em 1971. A imagem provou ser poderosa nas

mentes do público e dos profissionais. E, como veremos,

imagens têm se mostrado importantes para o modo pelo qual o

registro arqueológico tem sido interpretado a esse respeito.

Uma conferência na Universidade de Chicago, em 1966, sobre

o tema “Homem, o Caçador” tornou-se um marco no desen-

volvimento do pensamento antropológico sobre o papel da

caça na nossa evolução. A conferência foi importante por

diversas razões, em particular por seu reconhecimento de que

a coleta de alimentos de origem vegetal fornecia o suprimento

Page 125: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

principal de calorias para a maioria das sociedades de

caçadores-coletores. E, exatamente como Darwin fizera há

quase um século, a conferência equiparou o que sabemos do

modo de vida dos caçadores-coletores modernos aos padrões

de comportamento de nossos ancestrais primitivos.

Conseqüentemente, indícios aparentes do hábito de comer

carne encontrados no registro pré-histórico — na forma de

acúmulos de artefatos de pedra e ossos de animais —

passaram a ter uma implicação clara, como meu amigo e

colega Glynn Isaac, arqueólogo da Universidade Harvard,

observou: “Tendo, por assim dizer, seguido uma trilha

aparentemente ininterrupta de detritos de pedras e ossos que

remonta ao Pleistoceno, parece natural (...) tratar estes

acúmulos de restos de artefatos e fauna como 'acampamentos-

base fossilizados'.” Em outras palavras, nossos ancestrais

passaram a ser considerados como tendo vivido como os

caçadores-coletores o fazem, embora de uma forma mais

primitiva.

Isaac promoveu um avanço significativo no pensamento an-

tropológico com sua hipótese do partilhamento de alimentos,

que ele publicou em um importante artigo na Scientific

Page 126: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

American em 1978. Nele, Isaac mudou a ênfase na caça per se

como a força que moldou o comportamento humano para o

impacto da aquisição e partilha colaborativa de alimentos. “A

adoção da partilha de ali-

69

mentos teria favorecido o desenvolvimento da linguagem, a

reciprocidade social e o intelecto”, disse ele em um encontro

em 1982, que marcou o centenário da morte de Darwin.

Cinco padrões de comportamento separam os humanos de

seus parentes macacos, escreveu ele em seu trabalho de

1978: (1) um modo de locomoção bípede, (2) uma linguagem

falada, (3) partilha regular e sistemática de alimentos em um

contexto social, (4) o viver em acampamentos-base, (5) a caça

às grandes presas. Isto descreve o comportamento humano, é

claro. Mas, sugeriu Isaac, há cerca de 2 milhões de anos

“várias mudanças fundamentais haviam começado a acontecer

nos arranjos social e ecológico hominídeos”. Eles já eram

caçadores-coletores embrionários, vivendo em pequenos

bandos móveis e ocupando acampamentos temporários a partir

dos quais os machos saíam para predar e as fêmeas para

coletar aumentos vegetais. O acampamento fornecia o foco

Page 127: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

social no qual o alimento era dividido. “Embora a carne fosse

um componente importante da dieta, ela poderia ter sido obtida

pela caça ou das carcaças de animais já mortos”, Isaac disse-

me em 1984, um ano antes de sua morte tragicamente

prematura. “Você seria duramente pressionado a dizer qual,

dado o tipo de indício que obtemos da maioria dos sítios

arqueológicos.”

O ponto de vista de Isaac influenciou fortemente o modo pelo

qual o registro arqueológico foi interpretado. Sempre que

artefatos de pedra eram descobertos em associação com

ossos fossilizados de animais, isto era tomado como uma

indicação de um antigo “acampamento-base”, os escassos

detritos de talvez diversos dias de atividade de um bando de

caçadores-coletores. O argumento de Isaac era plausível e, em

meu livro de 1981 The Making of Mankind, escrevi que “a

hipótese da partilha de alimentos é uma forte candidata para

explicar o que colocou os humanos primitivos no caminho que

leva ao homem moderno”. A hipótese parecia consistente com

o modo pelo qual eu via os registros arqueológico e fóssil, e

obedecia a sólidos princípios biológicos. Richard Potts, da

Smithsonian Institution, concordou. Em seu livro de 1988

Page 128: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

intitulado Early Hominid Activities at Olduvai, Potts observou

que a hipótese de Isaac “parecia ser uma interpretação muito

atraente”, escrevendo:

A hipótese do acampamento-base e partilha de comida

integra muitos aspectos do comportamento humano e da sua

vida social que são importantes para o antropólogo —

sistemas

70

de reciprocidade, trocas, parentesco, subsistência, divisão de

trabalho e linguagem.

Vendo nos registros, nos ossos e nas pedras o que parecem

ser elementos do modo de vida dos caçadores-coletores, os

arqueólogos inferiram que o resto era conseqüência. Era um

quadro muito completo.

No final da década de 1970 e começos da década de 1980,

porém, este pensamento começou a mudar, graças a Isaac e

ao arqueólogo Lewis Binford, então na Universidade do Novo

México. Ambos deram-se conta de que muito da interpretação

dominante dos registros pré-históricos tinha base em

suposições implícitas. De modo independente, eles começaram

a separar o que poderia ser realmente conhecido a partir dos

Page 129: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

registros daquilo que simplesmente era suposto. O processo

começou no nível mais fundamental, questionando o

significado de se encontrar pedras e ossos de animais no

mesmo lugar. Implicaria esta coincidência espacial o

esquartejamento pré-histórico de animais, como havia sido

suposto? E se o esquartejamento pudesse ser provado, isto im-

plicaria que as pessoas que o faziam viviam como os

caçadores-coletores modernos vivem hoje?

Isaac e eu falamos muitas vezes sobre as várias hipóteses de

subsistência, e ele costumava criar cenários em que os ossos e

pedras acabavam no mesmo lugar mas sem ter nada a ver com

o modo de vida dos caçadores-coletores. Por exemplo, um

grupo de humanos primitivos poderia ter passado algum tempo

debaixo de uma árvore simplesmente para aproveitar a sua

sombra, reunindo pedras para outros propósitos que não o

esquartejamento de carcaças — por exemplo, eles poderiam

ter tentado obter lascas para desbastar paus que poderiam ser

utilizados para desenterrar tubérculos. Algum tempo mais

tarde, depois que o grupo tivesse partido, um leopardo poderia

ter subido na árvore, carregando consigo sua presa, como

muitas vezes os leopardos o fazem. Gradualmente, a carcaça

Page 130: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

teria apodrecido e os ossos teriam caído ao chão, ficando entre

as pedras deixadas ali pelos fabricantes de artefatos. De que

maneira um arqueólogo escavando este sítio 1,5 milhão de

anos depois poderia distinguir entre este cenário e a

interpretação previamente favorecida do esquartejamento por

um grupo de caçadores e coletores nômades? Meu instinto me

diz que os humanos primitivos de fato dedicaram-se a algum

tipo de caça e coleta, mas eu podia ver a preocupação de

Isaac com uma leitura segura dos indícios.

O ataque de Lewis Binford ao conhecimento convencional

71

foi bem mais áspero do que o de Isaac. Em seu livro de 1981

Bones: Ancient Man and Modem Myth, ele sugeriu que os

arqueólogos que viam os arranjos de instrumentos de pedra e

ossos como restos de acampamentos antigos estavam “criando

'histórias certinhas' sobre o nosso passado hominídeo”. Binford,

que realizou pouco de seu trabalho em sítios arqueológicos

primitivos, deduziu seus pontos de vista inicialmente do estudo

dos ossos de neanderthals, que viveram na Eurásia entre 135

mil e 34 mil anos atrás.

“Fiquei convencido de que a organização do modo de vida dos

Page 131: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

caçadores e coletores entre estes ancestrais relativamente

recentes era bem diferente daquela dos Homo sapiens

totalmente modernos”, escreveu ele em um importante artigo

de revisão em 1985. “Se isto é verdade, então os modos de

vida quase 'humanos' apresentados na visão 'consensual' dos

hominídeos muito primitivos apresentam-se como uma

condição extremamente improvável.” Binford sugeriu que a

caça sistemática de qualquer tipo começou a aparecer somente

depois que os humanos modernos evoluíram, época que ele

calcula entre 45 mil e 35 mil anos atrás.

Nenhum dos sítios arqueológicos primitivos poderia ser

considerado sobras da sala de jantar de antigos

acampamentos, argumentou Binford. Ele chegou a esta

conclusão pela análise de dados de outras pessoas sobre

ossos encontrados em outros sítios arqueológicos famosos na

garganta Olduvai. Havia os lugares de abate de predadores

não-humanos, disse ele. Uma vez que os predadores, tais

como o leão e a hiena, tivessem ido embora, os hominídeos

chegavam no lugar para pegar quaisquer restos de carniça que

pudessem obter. “As partes principais, ou em muitos casos as

únicas partes utilizáveis ou comestíveis, consistiam no tutano

Page 132: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

dos ossos”, escreveu ele. “Não há indício de apoio à idéia de

que os hominídeos estavam retirando alimentos de pontos de

abastecimento e os transportando para acampamentos-base

para consumo (...) Da mesma forma, o argumento de que o

alimento era dividido é totalmente destituído de fundamento.”

Esta idéia apresenta um quadro muito diferente de nossos

ancestrais de 2 milhões de anos atrás. “Eles não eram

ancestrais românticos”, escreveu Binford, “mas comilões

ecléticos comumente escarafunchando as carcaças de

ungulados mortos em busca de pequenos bocados de

alimento.”

Nesta visão da pré-história humana primitiva, nossos ancestrais

tornam-se muito menos semelhantes aos humanos, não ape-

72

nas no seu modo de subsistência mas também em outros

elementos do comportamento; por exemplo, a linguagem, a

moralidade e a consciência estariam ausentes. Binford conclui:

“Nossa espécie surgiu — não como resultado de processos

graduais e progressivos, mas de modo explosivo e num

período de tempo relativamente curto.” Este era o âmago

filosófico do debate. Se o Homo primitivo exibia aspectos de

Page 133: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

um modo de vida semelhante ao dos humanos, então temos de

aceitar a emergência da essência de humanidade como um

processo gradual — um processo que nos leva a um passado

muito distante. Se, entretanto, o comportamento realmente

semelhante ao humano emergiu rápida e recentemente, então

nos encontramos em isolamento esplêndido, desligados do

passado distante e do resto da natureza.

Embora Isaac compartilhasse as preocupações de Binford

sobre os excessos da interpretação passada dos registros pré-

históricos, ele considerou uma abordagem diferente para

retificá-las. Enquanto Binford trabalhou principalmente com

dados de outras pessoas, Isaac decidiu que escavaria um sítio

arqueológico, olhando para os indícios com novos olhos.

Embora a distinção entre caçar e aproveitar-se de restos de

carcaças não fosse crucial para a hipótese de Isaac de partilha

de alimento, ela tornou-se importante no reexame dos registros

arqueológicos. Caçador ou carniceiro? Este era o ponto

principal do debate.

Em princípio, a caça deveria ficar impressa nos registros

arqueológicos de um modo diferente do de aproveitamento de

carcaças. O registro da diferença deveria ser evidente nas

Page 134: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

partes do corpo deixadas pelo caçador e pelo carniceiro. Por

exemplo, quando um caçador abate uma presa, ele tem a

opção de levar a carcaça inteira ou partes dela de volta para o

acampamento. Um carniceiro, em contraste, tem ao seu dispor

apenas aquilo que pode encontrar num lugar de abate

abandonado: a escolha das partes do corpo que pode levar

para o acampamento será mais limitada. A variedade de ossos

encontrada em um acampamento de um caçador hominídeo

deveria ser portanto maior do que a encontrada no de um

carniceiro — incluindo, algumas vezes, um esqueleto inteiro.

Entretanto, há muitos fatores que podem estragar este belo

quadro. Como observou Potts: “Se um carniceiro encontra a

carcaça de um animal que acabou de morrer em razão de

causas naturais, então todas as partes do corpo lhe são

disponíveis, e o padrão de ossos que resulta disto parecerá

exatamente com o da caça. E se o carnicei'^ consegue afastar

o predador de sua presa lo-

73

go após este tê-la abatido, novamente o padrão parecerá com

o da caça. O que você deve fazer?” O antropólogo de Chicago,

Richard Klein, que analisou muitos conjuntos de ossos no sul

Page 135: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

da África e na Europa, acredita que a tarefa de distinguir entre

os dois modos de subsistência pode ser impossível: “Há tantas

maneiras pelas quais os ossos podem chegar a um lugar, e

tantas coisas podem acontecer com eles, que para os

hominídeos a questão do caçador versus carniceiro pode não

ser jamais resolvida.”

A escavação na qual Isaac embarcou para testar a nova hipó-

tese era conhecida como sítio 50, que é localizado perto da

escarpa Karari, cerca de 25 quilômetros ao leste do lago

Turkana, no norte do Quênia. Durante um período de três anos

que começou em 1977, ele e uma equipe de arqueólogos e

geólogos expuseram a céu aberto uma área de terreno antigo,

a margem arenosa de uma pequena corrente de água.

Cuidadosamente, eles desenterraram 1.405 peças de artefatos

de pedra e 2.100 fragmentos de ossos, alguns grandes, a

maioria pequenos, que tinham sido enterrados cerca de 1,5

milhão de anos atrás, quando uma corrente sazonal provocou

uma enchente no começo de uma estação chuvosa. Hoje, a

região é árida, com arbustos e vegetação rasteira dispersos

entre sulcos e crateras esculpidos por eras de erosão. O obje-

tivo que Isaac e sua equipe delimitaram para si mesmos era

Page 136: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

descobrir o que havia ocorrido há 1,5 milhão de anos, quando

artefatos de pedra e muitos ossos de animais vieram repousar

no mesmo lugar.

Em suas críticas anteriores, Binford sugerira que as muitas co-

ocorrências de ossos e pedras eram o resultado da ação da

água. Isto é, uma corrente de águas velozes pode levar

consigo pedaços de ossos e pedras e então acumulá-los em

um ponto de baixa energia, tais como aqueles em que a

corrente alarga-se ou na margem de dentro de uma curva.

Neste caso, o acúmulo de ossos e pedras no mesmo lugar

seria o resultado do acaso e não da atividade hominídea. O

“sítio arqueológico” não seria mais do que uma confusão

hidráulica. Tal explicação parecia improvável no caso do sítio

50, pois a área de terreno antigo localizava-se na margem da

corrente e não dentro dela, e porque as pistas geológicas

indicavam que o sítio havia sido enterrado lentamente. Não

obstante, uma associação direta entre ossos e pedras tinha

que ser demonstrada, não suposta. Esta demonstração

apareceu de um modo absolutamente inesperado e constituiu-

se em uma das descobertas marcantes da arqueologia nos

últimos tempos.

Page 137: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

Quando um animal é desmembrado ou um osso é limpo com

74

uma faca, de metal ou pedra, o esquartejador inevitavelmente

corta o osso de vez em quando, deixando longos sulcos ou

marcas de corte. Durante o desmembramento, as marcas de

corte concentram-se em torno das juntas, enquanto que ao

limpar o osso elas são inflingidas também em outras partes.

Quando o arqueólogo da Universidade de Wisconsin, Henry

Bunn, estava examinando alguns fragmentos de ossos

oriundos do sítio 50, ele observou estes sulcos. No

microscópio, eles podiam ser vistos com uma secção

transversal em forma de V. Seria isto uma marca de corte, feita

há 1,5 milhão de anos por um hominídeo? Experiências com

ossos modernos e lascas de pedra confirmaram isso, provando

conclusivamente uma relação causai entre os ossos e as

pedras no sítio: os hominídeos os haviam levado para lá e os

haviam processado para obter comida. Esta descoberta foi a

primeira demonstração direta de uma ligação comportamental

entre ossos e pedras em um sítio arqueológico primitivo. Foi o

ponto final no mistério dos sítios antigos.

Na ciência, muitas vezes acontece que descobertas impor-

Page 138: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

tantes são feitas de modo independente, mais ou menos na

mesma época. Assim aconteceu com as marcas de corte.

Trabalhando com ossos oriundos dos sítios arqueológicos em

torno do lago Turkana e da garganta Olduvai, Richard Potts e o

arqueólogo da Universidade Johns Hopkins, Pat Shipman,

também encontraram marcas de corte. Seus métodos de

estudos eram ligeiramente diferentes dos de Bunn, mas a

resposta foi a mesma: há cerca de 2 milhões de anos os

hominídeos estavam utilizando lascas de pedra para

desmembrar carcaças e limpar ossos (ver figura 4.1). Em

retrospecto, é surpreendente que as marcas de corte não

tenham sido descobertas mais cedo, pois os ossos examinados

por Potts e Shipman tinham sido estudados muitas vezes por

muitas pessoas. Um momento de reflexão teria convencido a

mente alerta de que, se a teoria arqueológica predominante

fosse correta, sinais de esquartejamento deveriam estar

presentes em alguns ossos fossilizados. Mas ninguém havia

olhado assiduamente, porque a resposta era suposta.

Entretanto, uma vez questionadas as suposições implícitas da

teoria predominante, a época era certa para procurar e

encontrá-las.

Page 139: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

O sítio 50 forneceu mais indícios de hominídeos utilizando

pedra em ossos como parte de suas vidas diárias. Alguns dos

ossos compridos encontrados no sítio estavam despedaçados

em pequenos fragmentos, resultado, como revelou-se, da ação

feita por alguém de colocar o osso sobre uma pedra, como em

75

uma bigorna, e então ter ministrado uma série de golpes ao

longo do mesmo para ter acesso ao tutano no seu interior. Este

cenário foi reconstruído a partir de um quebra-cabeça

paleolítico, em que os fragmentos foram reunidos de modo a

formar o osso completo e feita uma análise do padrão de

fragmentação, que incluía sinais característicos de percussão.

“Descobrir as peças de osso quebradas com um martelo que

se encaixam convida-nos a visualizar os proto-humanos

primitivos no próprio ato de extrair e comer o tutano”,

escreveram Isaac e seus colegas em um trabalho que

descrevia suas descobertas. Das marcas de corte eles

disseram: “Descobrir a extremidade de articulação de um osso

com marcas aparentemente formadas quando uma pedra

afiada foi utilizada para desmembrar uma perna de antílope só

pode conjurar imagens muito específicas de esquartejamento

Page 140: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

em andamento.”

Somando-se a estas imagens de atividade hominídea de 1,5

milhão de anos atrás temos uma mensagem das próprias

pedras. Quando um britador obtém uma lasca de um seixo, os

pedaços tendem a cair em uma pequena área em torno dele ou

dela. Isto é exatamente o que a arqueóloga da Universidade de

Wisconsin, Ellen Kroll, encontrou no sítio 50: a britagem de

pedras estava concentrada em uma extremidade do sítio. Da

mesma forma, pedaços de ossos — havia partes de girafa, de

hipopótamo, de um antílope do tamanho de um eland* e de um

animal semelhante a uma zebra, assim como espinhas de

peixes da família dos silúridas — estavam concentrados no

mesmo lugar. “Podemos apenas especular sobre o que fez da

extremidade norte do sítio um lugar favorito para fazer coisas,

mas o padrão observado poderia, por exemplo, implicar a

existência ali de uma árvore capaz de fornecer sombra”,

escreveram Isaac e seus colegas. Um aspecto ainda mais

notável das lascas de pedra era que, como o osso comprido

fragmentado, algumas delas podiam também ser reconstruídas

para formar o original completo, um seixo de lava.

* Um dos tipos de grandes antílopes do gênero Taurotragus. (N. do T.)

Page 141: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

Mencionei no capítulo 2 que Nicholas Toth e Lawrence Keeley

realizaram análises microscópicas de diversas lascas de pedra

e encontraram indicações de esquartejamento, aparamento de

madeira e corte de tecidos vegetais macios. Aquelas lascas

eram do sítio 50, e os resultados da análise enriqueceram a

imagem de uma cena de atividades diversas há 1,5 milhão de

anos. Longe da imagem de confusão hidráulica, a atividade no

sítio 50

76

Page 142: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

deve ter envolvido hominídeos que traziam partes de carcaça

até ali, as quais então eram processadas com ferramentas de

pedras feitas no local. Após o turbilhão teórico do final da

década de 1970, a demonstração do transporte deliberado de

ossos e pedras para um lugar central de atividade de

processamento de alimentos foi um passo importante no

realinhamento da teoria arqueológica. Mas este indício implica

que os hominídeos do sítio 50, Homo erectus, eram caçadores

ou carniceiros?

Isaac e seus colegas colocam isto desta forma: “As caracte-

rísticas do arranjo dos ossos convida a considerar seriamente a

busca por carniça e não a caça ativa como o modo

predominante de aquisição de carne vermelha.” Tivéssemos

encontrado no sítio carcaças inteiras, a conclusão sobre a caça

poderia ser obtida. Mas, como indiquei anteriormente, a

interpretação dos conjuntos de ossos é cheia de erros em

potencial. Entretanto, outras Unhas de indício têm sido

aduzidas para implicar a busca de carniça como o modo de

Page 143: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

aquisição de carne vermelha pelo Homo primiti-

77

vo. Por exemplo, Shipman examinou a distribuição de marcas

de corte em ossos antigos e fez duas observações. Primeiro,

cerca da metade deles somente eram indicativos de

desmembramento; segundo, muitos foram feitos em ossos que

tinham pouca carne. Mais ainda, uma proporção grande de

marcas de corte sobrepunha-se às marcas deixadas por dentes

de carnívoros, implicando que os carnívoros chegaram aos

ossos antes que os hominideos o fizessem. Isto, concluiu

Shipman, é “indício irresistível de busca por carniça”, uma

imagem de nosso ancestral, observa ela, que é “não familiar e

pouco lisonjeira”. Certamente ela está longe da imagem do

Homem, o Nobre Caçador, da teoria tradicional.

Eu suporia que a busca de carne vermelha pelo Homo primitivo

tivesse envolvido a busca por carniça. Como observou

Shipman, “os carnívoros procuram carniça quando podem e ca-

çam quando devem”. Mas suspeito que a recente revolução

intelectual na arqueologia tenha ido muito longe, como muitas

vezes acontece na ciência. A rejeição da caça no Homo

primitivo tem sido muito freqüente. Acho significativo que a

Page 144: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

análise de Shipman da distribuição das marcas de corte mostre

tantas destas em ossos com pouca carne. O que pode ser

obtido aqui? Pele e tendões. Com estes materiais é muito fácil

fazer armadilhas para apanhar presas bastante grandes. Eu

ficaria muito surpreso se o Homo erectus primitivo não se

engajasse nesta forma de caça. A compleição semelhante à

humana que emergiu com a evolução do gênero Homo é

consistente com a adaptação à caça.

Para Isaac o trabalho no sítio 50 foi salutar. Embora este

confirmasse que os hominideos estavam transportando ossos e

pedras para um lugar central, não demonstrava

necessariamente que os hominideos usavam-no como

acampamento-base. “Reconheço agora que a hipótese sobre o

comportamento dos hominideos primitivos que apresentei em

trabalhos anteriores os faz parecer demasiadamente

humanos”, escreveu ele em 1983. Isaac sugeriu portanto

modificar sua hipótese da “partilha de alimentos”,

transformando-a na hipótese do “lugar central da busca por

alimentos”. Suspeito de que ele estava sendo muito cauteloso.

Não posso dizer que os resultados do projeto do sítio 50 con-

firmem a hipótese de que o Homo erectus vivia como os

Page 145: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

caçadores-coletores, deslocando-se em intervalos de poucos

dias de um acampamento-base temporário para outro — bases

para as quais eles levavam a comida e onde a dividiam.

Quanto do meio social e econômico da hipótese original de

Isaac pode ter estado presente no sítio 50 permanece obscuro.

Mas em minha opinião há indí-

78

cio suficiente a partir deste trabalho para dispensar a noção de

que o Homo primitivo estava um pouco mais além do grau de

competência social, cognitiva e tecnológica dos chimpanzés.

Não estou sugerindo que estas criaturas eram caçadores-

coletores em miniatura, mas estou certo de que nesta época a

qualidade de humanóide do caçador-coletor primitivo estava

começando a ser estabelecida.

Embora nunca possamos ter certeza de como era a vida diária

nos primeiros tempos do Homo erectus, podemos utilizar o rico

indício arqueológico do sítio 50, e nossa imaginação, para re-

criar tal cenário, há 1,5 milhão de anos:

Uma corrente sazonal segue seu leito gentilmente através da

Page 146: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

planície aluvial no lado leste do gigantesco lago. Acácias altas

alinham-se ao longo das margens da corrente sinuosa,

projetando sombras bem-vindas que protegem do sol tropical.

Na maior parte do ano o leito da corrente permanece seco,

mas chuvas recentes nas colinas ao norte estão abrindo seu

caminho em direção ao lago, fazendo a corrente aumentar de

volume lentamente. Por umas poucas semanas, a planície

aluvial tem estado flame)ante por causa das cores, com ervas

florescentes formando manchas amarelas e roxas contra a

terra alaranjada e baixos arbustos de acácia parecendo

nuvens revoltas. A estação chuvosa é iminente.

Aqui, em uma curva da corrente, vemos um pequeno agrupa-

mento humano, cinco fêmeas adultas e um aglomerado de

crianças e jovens. Eles são de estatura atlética e fortes. Estão

conversando alto, alguns deles trocam observações sociais

óbvias, alguns discutem os planos para o dia. Mais cedo,

antes do nascer do Sol, quatro machos adultos do grupo

haviam partido em busca de carne. O papel das fêmeas é

coletar alimentos vegetais, que todos percebem ser o

principal produto econômico em suas vidas. Os machos

caçam, as fêmeas coletam; é um sistema que funciona

espetacularmente bem para o nosso grupo e por tanto tempo

quanto qualquer um é capaz de lembrar-se.

Page 147: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

Três das fêmeas agora estão prontas para partir, nuas exceto

por uma pele de animal jogada sobre os ombros que tem o

papel dual de servir para transportar o bebê, e mais tarde

para transportar o alimento. Elas levam consigo bastões

curtos e pontiagudos, que uma das fêmeas preparara antes

usando lascas de pedra afiadas para aparar galhos fortes.

Estes bastões servem para cavar, o que permite às fêmeas

desenterrar tubérculos suculentos, profundamente

enterrados, alimentos negados à maioria dos outros grandes

primatas. As fêmeas finalmente partem, caminhando em fila

única como

79

usualmente o fazem, em direção às colinas distantes da bacia

do lago, seguindo um caminho que elas sabem que conduz a

uma fonte rica em castanhas e tubérculos. Para colher frutas

maduras elas terão que esperar até mais para o fim do ano,

quando as chuvas tiverem feito o trabalho da natureza.

Para trás junto à corrente, as duas fêmeas restantes

repousam tranqüilamente sobre a areia macia sob uma

acácia alta, observando os trejeitos de três jovens. Muito

velhos para serem carregados na pele de animal, muito

jovens para caçar ou coletar, estes fazem o que todos os

jovens fazem: eles fazem brincadeiras que prenunciam sua

Page 148: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

vida adulta. Esta manhã, um deles é um antílope e usa ramos

à guisa de galhada, os outros dois são os caçadores

tocaiando sua presa. Mais tarde, o mais velho dos três, uma

garota, convence uma das fêmeas a mostrar-lhe, novamente,

como fazer artefatos de pedra. Pacientemente, a mulher faz

dois seixos de lava baterem um contra o outro, com um golpe

rápido e preciso. Uma lasca perfeita desprende-se. Com uma

determinação estudada, a garota tenta fazer o mesmo, mas

sem sucesso. A mulher segura as mãos da garota e,

conduzindo-as, repete a ação necessária em câmara lenta.

Obter lascas afiadas é mais difícil do que parece, e a habilida-

de é ensinada principalmente por meio do exemplo, e não

pela instrução verbal. A garota tenta novamente, desta vez

sua ação é sutilmente diferente. Uma lasca afiada destaca-se

do seixo, e a garota deixa escapar um grito de triunfo. Ela

apodera-se da lasca, mostra-apara a mulher sorridente e

então corre para exibi-la aos seus colegas de folguedos. Eles

prosseguem juntos com a brincadeira, armados agora de um

implemento da maturidade. Eles encontram um pau, que a

aprendiz de britadeira desbasta até obter uma ponta aguçada,

e então eles formam um grupo de caça, em busca de um

peixe para matá-lo com a lança.

Ao entardecer, o acampamento na margem da corrente

Page 149: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

fervilha novamente, as três mulheres retornaram com suas

peles de animal carregadas de bebês e comida, inclusive

alguns ovos de pássaros, três pequenos lagartos e —um

deleite inesperado —mel. Felizes com seus próprios ganhos,

as mulheres especulam sobre o que os homens trarão.

Muitas vezes, os caçadores retornam de mãos vazias. Isto faz

parte da natureza da busca à carne. Mas quando o acaso

favorece seus esforços, a recompensa pode ser grande, e

certamente é louvada.

Em breve, o som distante de vozes que se aproximam avisa

às mulheres que os homens estão retornando. E, a julgar pelo

tom de excitação na conversação destes, eles estão

retornando após terem sido bem-sucedidos. Na maior parte

do dia os homens estiveram silenciosamente tocaiando um

pequeno rebanho de antílopes, observando que um dos

animais parecia coxear ligeiramente. Repetidamente, este

indivíduo era deixado para trás pelo rebanho e tinha que

80

fazer tremendos esforços para juntar-se a ele. Os homens

perceberam a chance de abater um animal grande.

Caçadores providos de armas naturais ou artificiais, como os

do nosso grupo estão, necessitam apenas de confiar na

astúcia. A habilidade de mover-se silenciosamente, misturar-

Page 150: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

se com o meio ambiente e o conhecimento de quando atacar

são as armas mais poderosas destes caçadores.

Finalmente, uma oportunidade apresentou-se e, sem dizer

uma palavra, de comum acordo, os três homens moveram-se

para posições estratégicas. Um deles atirou uma pedra com

força e precisão, obtendo um impacto estonteante; os outros

dois correram para imobilizar a presa. Uma estocada rápida

com um pau curto e pontiagudo fez correr uma torrente de

sangue da jugular do animal. O animal lutou mas em pouco

tempo estava morto.

Cansados e cobertos com o suor e o sangue de seus

esforços, os três homens estavam exultantes. Um depósito

secreto de seixos de lava nas proximidades fornecia a

matéria-prima para a fabricação de ferramentas que seriam

necessárias para o esquartejamento do bicho. Uns poucos

golpes precisos de um seixo contra o outro produzia lascas

suficientes com que cortar através do couro duro do animal e

expor as juntas, carne vermelha contra o osso branco. Rapi-

damente, músculos e tendões renderam-se ao

esquartejamento hábil, e os homens partiram para o

acampamento, carregando doispernis de carne, rindo e

brincando um com outro a respeito dos eventos do dia e de

seus diferentes papéis desempenhados neles. Eles sabem

Page 151: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

que uma recepção alegre os aguarda.

Mais tarde, naquela noite, há quase um sentido de ritual no

consumo da carne. O homem que conduziu o grupo de caça

corta os pedaços e os entrega para as mulheres que sentam

em torno dele e para os outros homens. As mulheres dão

pedaços para as suas crianças, que os trocam alegremente

entre si. Os homens oferecem pedaços para seus colegas,

que oferecem outros pedaços em troca. O ato de comer carne

é mais do que o sustento; é uma atividade de comunhão

social.

A excitação do triunfo na caça agora evanesce, os homens e

mulheres trocam relatos de seus dias separados. Há uma

compreensão de que eles em breve terão que deixar este

acampamento agradável, pois as chuvas crescentes nas

montanhas distantes em breve farão com que a corrente

inunde suas margens. Por agora, eles estão contentes.

Três dias mais tarde o grupo deixa o acampamento pela

última vez em busca da segurança de terrenos mais

elevados. Os indícios de sua presença evanescente estão

espalhados por todas as partes. Montículos de lascas feitas

com seixos de lava, paus aguçados e couro trabalhado falam

de suas proezas tecnológicas. Ossos de animais quebrados,

uma cabeça de peixe, cascas de ovos e restos de tur-

Page 152: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

81

bérculos falam da variedade de sua dieta. Entretanto, a

socialização intensa que é o foco do acampamento se foi,

assim como o ritual de comer carne e as histórias dos

eventos diários. Breve, o acampamento vazio e silencioso é

inundado suavemente, à medida que a corrente transborda

sobre suas margens. Uma camada fina de depósitos cobre os

detritos de cinco dias na vida de nosso pequeno grupo, en-

cerrando uma história curta. Finalmente tudo, exceto os ossos

e as pedras, decompõe-se, deixando magros indícios a partir

dos quais reconstruímos esta história.

Muitos acreditarão que minha reconstrução torna o Homo

erectus demasiado humano. Eu não penso assim. Crio um

quadro do modo de vida dos caçadores-coletores, e atribuo

uma linguagem a estas pessoas. Ambos, acredito, são

justificados, embora cada um seja necessariamente uma

versão primitiva do que sabemos dos humanos modernos. De

qualquer modo, a partir dos indícios arqueológicos fica muito

claro que estas criaturas estavam vivenciando vidas além do

alcance dos outros primatas, principalmente ao usar tecnologia

para ganhar acesso a alimentos tais como a carne vermelha e

tubérculos enterrados. Neste estágio de nossa pré-história,

Page 153: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

nossos ancestrais estavam se humanizando de uma maneira

que reconheceríamos instantaneamente.

82

Page 154: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

5 - A origem dos humanos modernos

Dos quatro principais eventos ocorridos no decurso da

evolução humana que esbocei no prefácio — a origem da

família humana propriamente dita, há cerca de 7 milhões de

anos; a “irradiação adaptativa” subseqüente de espécies de

macacos bipédes; a origem de um cérebro maior (efetivamente,

o começo do gênero Homo), há talvez 2,5 milhões de anos; e a

origem dos humanos modernos — é o quarto, a origem de

gente como nós, que é atualmente a questão mais quente na

antropologia. Muitas hipóteses diferentes são vigorosamente

debatidas, e dificilmente passa-se um mês sem que uma

conferência seja realizada ou uma chuva de livros e artigos

científicos seja publicada, cada um apresentando visões muitas

vezes diametralmente opostas. Por “gente como nós” quero

dizer o Homo sapiens moderno — isto é, humanos com uma

queda para a tecnologia e para a inovação, uma capacidade de

expressão artística, uma consciência introspectiva e um senso

de moralidade.

Quando olhamos uns poucos milhares de anos para trás na

história, vemos a emergência inicial da civilização: numa

Page 155: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

organização social de complexidade cada vez maior, aldeias

dão lugar a chiefdoms, estes dão lugar a cidades-Estados,

cidades-Estados dão lugar a nações-Estados. Este crescimento

aparentemente inexorável no nível de complexidade é

conduzido pela evolução cultural e não pela mudança

biológica. Assim como as pessoas há um século eram

biologicamente iguais a nós mas viviam em um mundo sem

tecnologia eletrônica, da mesma forma os aldeões de 7.000

anos atrás eram exatamente como nós mas eram carentes da

infra-estrutura da civilização.

Se olharmos para trás na história além da origem da escrita há

uns 6.000 anos, ainda podemos ver indícios da mente humana

moderna em funcionamento. Começando há cerca de 10.000

anos, bandos nômades de caçadores-coletores em todo o

mundo inventaram de forma independente várias técnicas de

agricultura. Isto também foi conseqüência da evolução cultural

ou tecnológica, e não de evolução biológica. Volte para além

daquele tempo de

83

transformações sociais e econômicas e você encontrará

pinturas, gravações em pedra e esculturas da Europa da Idade

Page 156: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

do Gelo e da África, que evocam mundos mentais de gente

como nós. Entretanto, volte para mais além — para além dos

35 mil anos atrás — e estes sinais da mente humana moderna

desaparecem. Não mais podemos ver no registro arqueológico

indícios convincentes de trabalho de gente com capacidades

mentais iguais às nossas.

Durante muito tempo, os antropólogos acreditaram que a

aparição súbita no registro arqueológico da expressão artística

e da tecnologia finamente trabalhada era um sinal claro da

evolução dos humanos modernos. O antropólogo britânico

Kenneth Oakley estava entre os primeiros a sugerir, em 1951,

que esta florescência de comportamento humano moderno

estava associada com o surgimento, pela primeira vez, de uma

linguagem totalmente moderna. De fato, parece inconcebível

que uma espécie humana pudesse possuir uma linguagem

totalmente moderna e não ser totalmente moderna em todos os

outros aspectos também. Por esta razão, a evolução da

linguagem é considerada de forma ampla o evento culminante

na emergência da humanidade como a conhecemos hoje.

Quando ocorreu a origem dos humanos modernos? E de que

maneira isto aconteceu: gradualmente e começando há muito

Page 157: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

tempo, ou rápida e recentemente? Estas questões estão no

centro da corrente de debates.

De todos os períodos da evolução humana, ironicamente,

aquele que corresponde às centenas de milhares de anos

passados é de longe o mais ricamente dotado de indícios

fósseis. Além de coleção extensa de crânios intactos e ossos

cranianos posteriores, uns vinte esqueletos relativamente

completos foram recuperados. Para alguém como eu, cuja

preocupação é com um período mais antigo da pré-história

humana, no qual os indícios fósseis são raros, estas riquezas

paleontológicas são o máximo. Ainda assim, um consenso

sobre a seqüência dos eventos evolutivos continua a escapar

aos meus colegas de antropologia

Mais ainda, os primeiros fósseis de humanos primitivos inva-

riavelmente descobertos eram de neanderthais (a caricatura

favorita de todos do homem das cavernas), que desempenham

um papel importante no debate. Desde 1856, quando os

primeiros ossos de neanderthais foram descobertos, o destino

dessa gente tem sido interminavelmente discutido: seriam eles

nossos ancestrais imediatos ou um beco evolutivo sem saída

que chegou à

Page 158: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

84

extinção há uns trinta milênios? Esta questão foi colocada há

quase um século e meio, e continua sem resposta, pelo menos

com uma resposta que satisfaça a todos.

Antes de considerar alguns dos pontos mais sutis da discussão

sobre a origem dos humanos modernos, deveríamos esboçar

as questões maiores. A história começa com a evolução do

genêro Homo, anterior aos 2 milhões de anos atrás, e termina

com o surgimento do Homo sapiens. Duas linhas de indícios

existem há muito tempo: uma que diz respeito as mudanças

anatômicas e outra que diz respeito às mudanças na tecnologia

e outras manifestações do cérebro e mãos humanos.

Apresentadas corretamente, estas duas linhas de indícios

deveriam ilustrar o mesmo relato da história evolutiva humana.

Deveriam indicar o mesmo padrão de mudança através do

tempo. Estas linhas tradicionais de indícios, o estofo da

erudição antropológica durante décadas, foram recentemente

acrescidas de uma terceira, a da genética molecular. Em

princípio, as seqüências de genes têm codificado em seu

interior um relato da nossa história evolutiva. Novamente, a his-

tória relatada deveria concordar com o que sabemos a partir da

Page 159: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

anatomia e dos artefatos de pedra.

Infelizmente, não há um estado de harmonia entre estas três

linhas de indícios. Há pontos em comum mas não há consenso.

A dificuldade com que os antropólogos defrontam mesmo com

tal abundância de indícios é um lembrete salutar de como

muitas vezes é extremamente difícil reconstruir a história

evolutiva.

A descoberta do esqueleto do garoto de Turkana nos dá uma

excelente idéia da anatomia do homem primitivo de cerca de

1,6 milhão de anos atrás. Podemos ver que os Homo erectus

primitivos individualmente eram altos (o garoto de Turkana

atingia quase 1,98 metro de altura), atléticos, e dotados de

músculos fortes. Mesmo o lutador profissional mais forte não

seria páreo para o Homo erectus médio. Embora o cérebro do

Homo erectus primitivo fosse maior que o de seus ancestrais

australopitecíneos, ainda era menor do que o dos humanos

modernos — uns 900 centímetros cúbicos comparado com a

média de 1.350 centímetros cúbicos do Homo de hoje. O crânio

do Homo erectus era comprido e baixo, com uma testa

pequena e a caixa craniana de paredes grossas; os maxilares

eram um pouco protubérantes, e acima dos olhos ele tinha as

Page 160: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

arcadas supraciliares salientes. Este padrão anatômico básico

persistiu até cerca de meio milhão de anos atrás, embora

durante esse período houvesse uma expansão do cérebro para

mais de 1.100 centímetros cúbicos. Por volta desta época, as

85

populações de Homo erectus se haviam espalhado a partir da

África e estavam ocupando grandes regiões da Ásia e da

Europa. (Embora não tenham sido encontrados na Europa

fósseis inequivocamente identificados como de Homo erectus,

indícios da tecnologia associada com a espécie revelam sua

presença lá.)

A menos do que cerca de 34 mil anos atrás, os restos humanos

fossilizados que encontramos são todos de Homo sapiens

totalmente modernos. 0 corpo é menos ryo e musculoso, a face

é mais achatada, o crânio mais alto e as paredes da caixa

craniana mais finas. As arcadas supraciliares não são salientes

e o cérebro (na maior parte das vezes) é maior. Podemos ver,

portanto, que a atividade evolutiva que dá origem aos humanos

modernos aconteceu entre meio milhão e 34 mil anos atrás. A

partir do que encontramos na África e na Eurásia nos registros

fóssil e arqueológico deste período, podemos concluir que a

Page 161: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

evolução foi deveras ativa mas de modo confuso.

Os neanderthais viveram desde cerca de 135 mil até 34 mil

anos atrás e ocuparam uma região que se estende da Europa

Ocidental, alcança o Oriente Próximo e vai até a Ásia. Eles

constituem de longe o componente mais abundante do registro

fóssil do período pelo qual estamos interessados aqui. Não há

dúvidas de que ondas de evolução estavam em progresso em

muitas populações diferentes por todo o Velho Mundo durante

este período que vai de 500 mil até 34 mil anos atrás. À parte

os neanderthais, há fósseis individuais — usualmente crânios

ou partes de crânio, mas algumas vezes outras partes do

esqueleto — com nomes que soam romanticamente: Homem

de Petralona, da Grécia; Homem de Arago, do sudoeste da

França; Homem de Steinheim, da Alemanha; Homem de

Broken Hill, da Zâmbia; e assim por diante. A despeito das

muitas diferenças entre estes espécimens individuais, todos

têm duas coisas em comum: são mais avançados do que o

Homo erectus — possuindo, por exemplo, cérebros maiores —

e mais primitivos do que o Homo sapiens, sendo robustamente

constituídos e tendo as paredes da caixa craniana grossas (ver

figura 5.1). Em razão da anatomia variada dos espécimens

Page 162: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

deste período, os antropólogos passaram a chamar estes

fósseis coletivamente de “sapiens arcaicos”.

O desafio com que deparamos, dado este potpourri de formas

anatômicas, é construir um padrão evolutivo que descreva a

emergência da anatomia humana e do comportamento humano

modernos. Nos últimos anos, dois modelos muito diferentes

vêm sendo propostos.

86 (A página 87 do livro apresenta a Figura 5.1, colada nas páginas finais desse e-livro)

87

O primeiro deles, conhecido como a hipótese da evolução

multirregional, vê a origem dos humanos modernos como um

fenômeno que abrange todo o Velho Mundo, com o Homo

sapiens emergindo sempre que populações de Homo erectus

estabeleceram-se. Nesta visão, os neanderthais são parte da

tendência que abarca os três continentes, intermediários na

anatomia entre o Homo erectus e o Homo sapiens na Europa,

Oriente Médio e Ásia Ocidental, e as populações de hoje em

dia destas partes do Velho Mundo que têm os neanderthais

como ancestrais diretos. Milford Wolpoff, antropólogo da

Page 163: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

Universidade de Michigan, argumenta que a tendência

evolutiva ubíqua em direção ao status biológico de Homo

sapiens foi conduzida pelo novo meio cultural de nossos

ancestrais.

A cultura representa uma novidade no mundo da natureza, e

poderia ter adicionado um impulso efetivo e unificador às forças

da seleção natural. Mais ainda, Christopher Willis, biólogo da

Universidade da Califórnia, em Santa Cruz, identifica aqui a

possibilidade de um ritmo acelerado de evolução. Em seu livro

de 1993, The Runaway Brain, ele observa: “A força que parece

ter acelerado o crescimento de nosso cérebro é um novo tipo

de estimulante: linguagem, sinais, memória coletiva — todos

elementos de cultura. À medida que nossas culturas evoluíram

em complexidade, assim o fizeram os nossos cérebros, o que

por sua vez conduziu nossas culturas a complexidades ainda

maiores. Cérebros maiores e mais inteligentes levaram a

culturas mais complexas, o que por sua vez levou a cérebros

ainda maiores e mais inteligentes.” Se tal processo

autocatalisador, ou de retroalimentação positiva, realmente

ocorreu, ele poderia ter promovido a mudança genética no seio

de grandes populações de maneira mais rápida.

Page 164: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

Tenho alguma simpatia pela visão de evolução multirregional, e

uma vez apresentei a seguinte analogia: se você pegar um

punhado de seixos e os arremessar sobre uma poça de água,

cada seixo gerará uma série de ondículas que se propagarão a

partir do ponto de impacto, e que mais cedo ou mais tarde

encontrarão outras ondículas postas em movimento pelos

outros seixos. A poça representa o Velho Mundo, com sua

população de sapiens básica. Aqueles pontos na superfície da

poça onde os seixos atingem são os pontos de transição do

Homo sapiens e as ondículas são as migrações do Homo

sapiens. Esta ilustração tem sido utilizada por diversos

participantes do atual debate; entretanto, penso agora que ela

pode não ser correta. Uma das razões de minha cau-

88

tela é a existência de alguns espécimens de fósseis

importantes oriundos de uma série de cavernas em Israel.

As escavações nestes sítios têm se dado esporadicamente por

mais de seis décadas, com fósseis de neanderthals sendo

descobertos em algumas das cavernas e fósseis de humanos

modernos em outras. Até recentemente, o quadro parecia claro

e apoiava a hipótese da evolução multirregional. Todos os

Page 165: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

espécimens de neanderthais — que vieram das cavernas de

Kebarra, Tabun e Amud — eram relativamente velhos, com

talvez uns 60 mil anos de idade. Todos os humanos modernos

— que vieram de Skhul e Qafzeh — eram mais jovens, com

talvez 40 mil a 50 mil anos de idade. Dadas estas datas, uma

transformação evolutiva de populações de neanderthais para

populações de humanos modernos nesta região parecia

plausível. De fato, esta seqüência de fósseis era um dos pilares

de apoio mais fortes da hipótese da evolução multirregional.

Ao final da década de 1980, entretanto, esta seqüência orde-

nada foi destruída. Pesquisadores da Grã-Bretanha e da

França empregaram novos métodos de datação, conhecidos

como ressonância do spin eletrônico e termoluminescência, em

alguns destes fósseis; ambas as técnicas dependem do

decaimento de certos radioisótopos comuns em muitas rochas

— um processo que atua como um relógio atômico para os

minerais encontrados nas rochas. Os pesquisadores

descobriram que os fósseis humanos modernos provenientes

de Skhul e Qafzeh eram mais velhos do que a maioria dos

fósseis de neanderthais em mais de 40 mil anos. Se estes

resultados estiverem corretos, os neanderthais não podem ser

Page 166: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

os ancestrais dos humanos modernos, como o modelo de

evolução multirregional exige. Qual é, então, a alternativa?

Em vez de serem o produto de uma tendência evolutiva por

todo o Velho Mundo, no modelo alternativo os humanos moder-

nos surgiram a partir de um único ponto geográfico (ver figura

5.2). Bandos de Homo sapiens modernos teriam migrado a

partir deste ponto e se espalhado para o resto do Velho Mundo,

substituindo populações pré-modemas já existentes. Este

modelo tem recebido diversos nomes, tais como hipótese da

“Arca de Noé” e hipótese do “Jardim do Éden”. Mais

recentemente, tem sido chamado de hipótese “A partir da

África”, porque a África abaixo do Saara tem sido identificada

como o lugar mais provável para a evolução dos primeiros

humanos modernos. Diversos antropólogos contribuíram para a

formação deste ponto de vista, e Christopher Stringer, do

Museu de História Natural, de Londres, é o seu proponente

mais vigoroso.

89

Page 167: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

Os dois modelos não poderiam ser mais diferentes: o modelo

da evolução multirregional descreve uma tendência evolutiva

por todo o Velho Mundo em direção ao Homo sapiens, com

uma pequena migração mas sem substituição de populações,

enquanto que a hipótese “A partir da África” exige a evolução

Page 168: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

do Homo sapiens em apenas um lugar, acompanhada de uma

migração extensiva de população através do Velho Mundo,

resultando na substituição das populações pré-modernas

existentes. Mais ainda, no primeiro modelo, a distribuição das

populações geográficas modernas (o que é conhecido como

“raças”) teria profundas raízes genéticas, tendo elas sido

essencialmente separadas há mais de 2 milhões de anos; no

segundo modelo, estas populações teriam raízes genéticas

menos profundas, tendo todas derivado de uma única

população que evoluiu recentemente na África

Os dois modelos são também bastante diferentes em suas

predições sobre o que deveríamos ver no registro arqueológico.

90

De acordo com o modelo de evolução multirregional, as

características anatômicas que vemos na distribuição

geográfica das populações modernas deveriam ser visíveis em

fósseis da mesma região, remontando até quase 2 milhões de

anos atrás, quando o Homo erectus começou a expandir seus

domínios para além da África. No modelo “A partir da África”,

uma continuidade regional no tempo deste tipo não é esperada;

de fato, as populações modernas deveriam compartilhar

Page 169: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

características africanas.

Milford Wolpoff, o proponente mais vigoroso da hipótese

multirregional, relatou para uma audiência reunida no encontro

de 1990 da American Association for the Advancement of

Science (Sociedade Americana para o Progresso da Ciência)

que “o caso da continuidade anatômica está claramente

esclarecido”. No norte da Ásia, por exemplo, certas

características, tais como o formato da face, a configuração dos

ossos faciais e a forma de pá dos dentes incisivos, podem ser

vistas em fósseis de 750 mil anos de idade; nos fósseis do

Homem de Pequim, que têm 250 mil anos de idade, e nas

populações chinesas modernas. Stringer reconhece isto, mas

observa que estas características não se limitam ao norte da

Ásia e portanto não podem ser tomadas como indício de

continuidade regional.

Wolpoff e seus colegas têm um argumento similar para o su-

deste da Ásia e Austrália. Mas, como observa Stringer, a

suposta seqüência de continuidade é construída sobre fósseis

datados em apenas três instantes de tempo: 1,8 milhão, 100

mil e 30 mil anos atrás. Esta penúria de pontos de referência,

diz Stringer, enfraquece muitíssimo a defesa do modelo

Page 170: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

multirregional.

Estes exemplos ilustram os problemas com que os antropó-

logos deparam. Existem não apenas diferenças de opinião

sobre o significado de características anatômicas importantes,

mas, deixando de lado os neanderthais, o registro fóssil é muito

mais exíguo do que a maioria dos antropólogos gostaria que

fosse (e do que a maioria dos não antropólogos acredita ser).

Até que estes impedimentos sejam superados, um consenso

sobre a questão maior pode permanecer fora do alcance.

Entretanto, podemos avaliar a anatomia de um fóssil de uma

perspectiva diferente. Os neanderthais parecem ter sido

indivíduos atarracados com membros curtos. Esta compleição

é uma adaptação física apropriada às frias condições climáticas

que prevaleciam em boa parte das regiões em que viveram.

Entretanto, a anatomia dos primeiros humanos modernos desta

mesma parte do

91

mundo é muito diferente. Estas pessoas são altas, de

constituição leve, e com membros longos. Uma compleição

corporal flexível é muito mais adequada a um clima tropical ou

temperado, e não às estepes geladas da Europa da Idade do

Page 171: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

Gelo. Este quebra-cabeça seria explicável se os primeiros

europeus modernos, em vez de terem evoluído na Europa,

fossem descendentes de migrantes oriundos da África, e o

modelo “A partir da África”, portanto, teria algum apoio a partir

desta observação.

O modelo “A partir da África” recebe apoio adicional de uma

outra observação direta do registro fóssil. Se a hipótese da

evolução multirregional está correta, então esperaríamos

encontrar exemplos primordiais de humanos modernos

aparecendo mais ou menos simultaneamente por todo o Velho

Mundo. Isto não é o que vemos. Os fósseis de humanos

modernos mais antigos de que temos conhecimento vêm

provavelmente do sul da África. Digo “provavelmente” porque

estes fósseis são não apenas partes fragmentadas de

maxilares mas há também um certo grau de incerteza sobre

suas idades verdadeiras. Por exemplo, supõe-se que os fósseis

da caverna Border e da caverna Klasies River Mouth, ambas

na África do Sul, tenham um pouco mais de 100 nül anos de

idade, e são citados como indícios favoráveis pelos pro-

ponentes da hipótese “A partir da África”. Entretanto, os fósseis

de humanos modernos oriundos das cavernas de Qafzeh e

Page 172: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

Skhul têm também mais ou menos 100 mil anos de idade. É

possível, portanto, que os primeiros humanos modernos

tenham surgido no norte da África ou no Oriente Médio, e então

migrado a partir de lá. Porém, com base no peso total dos

indícios (ver figura 5.3), a maioria dos antropólogos é a favor de

um origem subsaariana.

Nenhum fóssil de humano moderno desta época foi encontrado

em qualquer outra parte do resto da Ásia ou da Europa. Se isto

reflete uma realidade evolutiva e não é simplesmente o pro-

blema perene de um registro fóssil lamentavelmente

incompleto, então a hipótese “A partir da África” realmente

parece razoável.

A maioria dos geneticistas de populações apoia esta hipótese

como a mais plausível do ponto de vista biológico. Estes cien-

tistas estudam o perfil genético dentro de uma espécie e como

este pode mudar com o decorrer do tempo. Se as populações

de uma espécie permanecem em contato geográfico umas com

as outras, mudanças genéticas que surgem por meio de

mutações podem difundir-se por toda a região, por meio do

hibridismo. Em conseqüência, o perfil genético da espécie será

alterado, mas no todo a espécie permanecerá geneticamente

Page 173: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

unificada, Haverá um

92

resultado diferente se as populações de uma espécie ficaram

geograficamente isoladas umas das outras, talvez por causa de

uma mudança no curso de um rio ou o aparecimento de um

deserto. Neste caso, uma mudança genética que possa surgir

em uma população não será transferida para as outras

Page 174: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

populações. As populações isoladas podem portanto tornar-se

geneticamente diferentes umas das outras de modo constante,

talvez, finalmente, transformando-se em subespécies

diferentes, ou mesmo espécies completamente diferentes. Os

geneticistas de populações fazem uso de modelos matemáticos

para calcular a taxa pela qual a mudança genética pode ocorrer

em populações de vários tamanhos, e podem portanto oferecer

sugestões sobre o que pode ter acontecido em tempos

remotos. A maioria dos geneticistas de populações, inclusive

Luigi Luca Cavalli-Sforza, de Stanford, e Shahin Rouhani, do

University College, em Londres, que teceram extensivamente

comentários no decorrer do debate, mostram-se céti-

93

cos em relação ao modelo da evolução multirregional. Eles

observam que o modelo multirregional exige um fluxo extenso

de genes através de grandes populações, unindo-as

geneticamente, permitindo ao mesmo tempo que a mudança

evolutiva as transforme em humanos modernos. E, se as novas

datações dos fósseis do Homem de Java, anunciadas no início

de 1994, estiverem corretas, o Homo erectus expandiu seus

domínios para além da África há quase 2 milhões de anos.

Page 175: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

Portanto, de acordo com o modelo de evolução multirregional,

não apenas o fluxo de genes teria que ser mantido através de

uma grande área geográfica como teria também de ser mantido

por um período muito grande. Isto, conclui a maioria dos

geneticistas de populações, é simplesmente irreal. Com a

difusão de populações pré-modernas através da Europa, Ásia e

África, há uma probabilidade maior de produzir-se variantes

geográficas (tais como de fato vemos entre sapiens muito

antigos) do que termos um todo coeso.

Deixaremos os fósseis de lado por enquanto, e nos voltaremos

para o comportamento, com o que quero dizer seus produtos

tangíveis, instrumentos e objetos de arte. Temos que lembrar

que a grande preponderância de comportamento humano em

grupos humanos tecnologicamente primitivos é do ponto de

vista arqueológico invisível. Por exemplo, um ritual de iniciação

conduzido por um xamã envolveria o relato de mitos, cânticos e

adorno do corpo — e nenhuma destas atividades entraria no

registro arqueológico. Portanto, precisamos lembrar

constantemente que, quando encontramos artefatos de pedra e

objetos pintados ou gravados, estes apenas nos abrem a mais

Page 176: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

estreita das janelas para o mundo primitivo.

O que gostaríamos de identificar no registro arqueológico é

algum tipo de sinal da mente humana moderna em

funcionamento. E gostaríamos que este sinal esclarecesse

hipóteses que competem entre si. Por exemplo, se o sinal

apareceu em todas as regiões do Velho Mundo mais ou menos

simultaneamente, poderíamos dizer que o modelo de evolução

multirregional descreve a maneira mais provável pela qual os

humanos modernos evoluíram. Se, em vez disto, o sinal

apareceu primeiro em um lugar isolado e então gradualmente

espalhou-se pelo resto do mundo, isto daria um peso maior ao

modelo alternativo. Esperaríamos, é claro, que o sinal

arqueológico coincidisse com o padrão originado pelo registro

fóssil.

Vimos no capítulo 2 que o surgimento do gênero Homo coin-

94

cide grosseiramente com o início do registro arqueológico, há

uns 2,5 milhões de anos. Vimos, também, que a maior

complexidade de conjuntos de instrumentos de pedra de 1,4

milhão de anos atrás, passando da indústria olduvaiana para a

acheulense, seguiu-se imediatamente à evolução do Homo

Page 177: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

erectus. O elo de ligação entre a biologia e o comportamento é

portanto muito estreito: artefatos simples foram feitos pelo

Homo mais primitivo; um salto de complexidade ocorreu com a

evolução do Homo erectus. Este elo de ligação é novamente

observado com o surgimento do sapiens mais antigo, pouco

tempo após meio milhão de anos atrás.

Depois de mais de 1 milhão de anos de estagnação relativa, a

indústria simples de machados manuais do Homo erectus deu

lugar a uma tecnologia mais complexa com base em lascas

grandes. E, onde a indústria acheulense tinha talvez uma dúzia

de implementos identificáveis, as novas tecnologias

compreendiam mais ou menos sessenta. A novidade biológica

que vemos na anatomia dos primeiros sapiens, inclusive os

neanderthals, é claramente acompanhada por um novo nível

de competência tecnológica. Entretanto, uma vez estabelecida

a nova tecnologia, esta mudou pouco. A estagnação, e não a

inovação, caracterizou a nova era.

Entretanto, quando a mudança realmente chegou, foi des-

lumbrante — tão deslumbrante que deveríamos nos precaver

para não ficar cegos para a realidade por trás dela. Há cerca

de 35 mil anos na Europa, as pessoas começaram a fabricar

Page 178: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

instrumentos da maior qualidade, obtidos de lâminas de pedra

delicadamente trabalhadas. Pela primeira vez ossos e chifres

foram utilizados como matéria-prima para a fabricação de

artefatos. Os kits de ferramentas agora abrangiam mais de uma

centena de itens, e incluíam implementos para modelar

vestimentas grosseiras, para gravar e esculpir. Pela primeira

vez, os artefatos tornaram-se obras de arte: por exemplo,

lanças feitas com chifres eram enfeitadas com gravações

representando animais vivos. Contas e pingentes aparecem no

registro fóssil, anunciando novas práticas de adorno do corpo.

E — o mais evocativo de tudo — pinturas nas paredes de

cavernas profundas revelam um mundo mental que

prontamente reconheceríamos como nosso. Ao contrário das

eras anteriores quando a estagnação dominava, a inovação é

agora a essência da cultura, com a mudança sendo medida em

milênios e não mais em centenas de milênios. Conhecida como

a Revolução do Paleolítico Superior, este sinal arqueológico

coletivo é um indício inconfundível da mente humana moderna

em funcionamento.

95

Agora mesmo afirmei que o sinal arqueológico da Revolução

Page 179: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

do Paleolítico Superior poderia estar nos tornando cegos para

a realidade. Com isto quero dizer que por razões históricas o

registro arqueológico na Europa Ocidental é bem mais rico do

que na África. Para cada sítio arqueológico desta era

encontrado na África, há cerca de duas centenas de sítios

similares na Europa Ocidental. A disparidade reflete a diferença

na intensidade da exploração científica nos dois continentes,

não a realidade da pré-história humana. Durante muito tempo,

a Revolução do Paleolítico Superior foi considerada uma

indicação de que a emergência final dos humanos modernos

ocorreu na Europa Ocidental. Afinal de contas, o sinal

arqueológico e o registro fóssil lá coincidiam precisamente;

ambos indicam um evento dramático há cerca de 35 mil anos:

os humanos modernos apareceram na Europa Ocidental há 35

mil anos e seu comportamento moderno torna-se

imediatamente parte do registro arqueológico. Ou assim se

presumia.

Recentemente, esta visão mudou. A Europa Ocidental é agora

reconhecida como um lugar atrasado, e podemos discernir uma

transformação varrendo a Europa, do leste para o oeste. Co-

meçando há cerca de 50 mil anos, na Europa Oriental, as

Page 180: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

populações de neanderthals desapareceram e foram

substituídas por humanos modernos, tendo a substituição

acontecido no oeste longínquo há cerca de 33 mil anos. O

surgimento coincidente de humanos modernos e

comportamento moderno na Europa Ocidental reflete o influxo

de um novo tipo de população, o Homo sapiens moderno. A

Revolução do Paleolítico Superior foi um sinal demográfico e

não um sinal evolutivo.

Se há 50 mil anos os humanos modernos estavam começando

a migrar para a Europa Ocidental, de onde vieram eles? Com

base no indício provido pelos fósseis, nós diríamos da África,

com toda a probabilidade — ou talvez do Oriente Médio. A

despeito da exigüidade do registro arqueológico, este apoia a

origem africana do comportamento humano moderno.

Tecnologias baseadas em lâminas estreitas começaram a

aparecer naquele continente por volta de 100 mil anos atrás.

Isto, lembre-se, coincidiria com a primeira aparição conhecida

da anatomia humana moderna, e poderia ser considerado um

terceiro exemplo do elo de ligação entre a biologia e o

comportamento.

O elo aqui pode ser, porém, uma ilusão, o resultado do acaso.

Page 181: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

Digo isto pois no Oriente Médio, onde ambos os registros, o

fóssil e o arqueológico, são bons, vemos algo que é claro mas

mesmo

96

assim paradoxal. A aplicação de novas técnicas de datação

mostra que neanderthals e humanos modernos essencialmente

coexistiram na região por um período de cerca de 60 mil anos.

(Em 1989, foi demonstrado que o neanderthal de Tabun tinha

pelo menos 100 mil anos de idade, o que o toma

contemporâneo dos humanos modernos de Qafzeh e Skhul.)

Durante todo aquele tempo, a única forma de tecnologia de

artefatos que vemos é aquela associada com os neanderthals.

O nome dado a sua tecnologia é mousteriana, em razão da

caverna de Le Moustier, na França, onde foi descoberta pela

primeira vez. O fato de que as populações de humanos

anatomicamente modernos pareçam ter produzido tecnologia

semelhante à mousteriana em vez de conjuntos de artefatos

ricos em inovações tão característicos do Paleolítico Superior

significa que eles eram modernos na forma apenas, e não em

seu comportamento. O elo de ligação entre anatomia e

comportamento parece portanto romper-se. O sinal

Page 182: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

arqueológico de comportamento humano moderno mais antigo

é fraco e esporádico, e pode ser a vítima de um registro muito

pouco conhecido. Embora a tecnologia com base em lâminas

tenha sido vista pela primeira vez na África, não é possível

apontar com toda a confiança para o continente africano e

dizer. “Este é o lugar onde o comportamento humano moderno

começou”, e então traçar sua expansão até a Eurásia.

A terceira linha de indício que se relaciona com a origem dos

humanos modernos, a da genética molecular, é a menos

ambígua. É também a mais controvertida. Durante os anos 80,

surgiu um novo modelo para as origens dos humanos

modernos. Conhecida como a hipótese da Eva mitocondrial, ela

essencialmente deu apoio ao modelo “A partir da África”, de

modo convincente. A maioria dos proponentes da hipótese “A

partir da África” estão preparados para considerar a

possibilidade de que, à medida que os humanos modernos

expandiram-se da África para o resto do Velho Mundo, eles

misturaram-se até um certo grau com as populações pré-

modernas já estabelecidas. Isto permitiria que alguns traços de

continuidade genética de populações antigas pudessem ser

Page 183: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

transmitidos para as populações modernas. Entretanto, o

modelo da Eva mitocondrial refuta isto. De acordo com este

modelo, à medida que as populações modernas migraram da

África e cresceram em número, elas substituíram

completamente as populações já existentes. O intercruzamento

entre os migrantes e as populações já existentes, se de fato

ocorreu, foi em grau ínfimo.

O modelo da Eva mitocondrial fluiu do trabalho de dois labo-

97

ratórios — o de Douglas Wallace e seus colegas na

Universidade Emory, e o de Alan Wilson e seus colegas na

Universidade da Califórnia, em Berkeley. Eles examinaram

cuidadosamente o material genético, ou ADN, que aparece em

organelas diminutas que existem dentro da célula chamada

mitocôndria. Quando o óvulo de uma mãe e um

espermatozóide do pai unem-se, as únicas mitocôndrias que

tornam-se parte das células do embrião recém-formado são as

do óvulo. Portanto, o ADN mitocondrial é herdado somente

pelo lado materno.

Por diversas razões técnicas, o ADN mitocondrial é particu-

larmente apto em permitir uma olhada para trás através das

Page 184: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

gerações para visualizar o curso da evolução. E como o ADN é

herdado pelo lado materno, ele finalmente conduz a uma única

ancestral fêmea. De acordo com as análises, os humanos

modernos podem traçar sua ancestralidade genética até uma

fêmea que viveu na África há talvez 150 mil anos. (Devemos

nos lembrar, entretanto, que esta única fêmea era parte de

uma única população de mais ou menos 10 mil indivíduos; ela

não era uma Eva solitária com seu Adão.)

As análises não apenas indicaram uma origem africana para os

humanos modernos, como também revelaram a ausência de

indício de intercruzamento com a população pré-modema.

Todas as amostras de ADN mitocondrial originárias de

populações humanas existentes analisadas até agora são

notavelmente similares umas às outras, indicando uma origem

recente e comum. Se a mistura genética entre sapiens

modernos e antigos tivesse ocorrido, algumas pessoas teriam

ADN mitocondrial muito diferente da média, indicando sua

origem antiga. Até agora, com mais de 4.000 pessoas de todo

o mundo testadas, nenhum ADN mitocondrial antigo foi

encontrado. Todos os tipos de ADN mitocondrial oriundos de

populações modernas que têm sido examinados parecem ter

Page 185: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

uma origem recente. Isto implica que os recém-chegados

modernos substituíram completamente as populações antigas

— tendo o processo começado na África há 150 mil anos e

então se disseminado através da Eurásia nos 100 mil anos

seguintes.

Quando Allan Wilson e sua equipe publicaram pela primeira

vez seus resultados, em um número da revista Nature de

janeiro de 1987, as conclusões foram apresentadas

audaciosamente, provocando consternação entre os

antropólogos e um grande interesse entre o público. Wilson e

seus colegas escreveram que seus dados indicavam que “a

transformação de formas arcaicas de Homo sapiens em formas

modernas ocorreu primeiramente na

98

África, há cerca de 100 mil ou 140 mil anos, e (...) todos os

humanos de hoje são descendentes daquelas populações.”

(Análises posteriores revelaram datas ligeiramente anteriores.)

Douglas Wallace e seus colegas apoiaram de modo geral as

conclusões do grupo de Berkeley.

Milford Wolpoff aferrou-se ao seu modelo de evolução

multirregional e denunciou os dados e as análises como

Page 186: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

impróprios, mas Wilson e seus colegas continuaram a produzir

mais dados e finalmente afirmaram que as conclusões eram

estatisticamente inatacáveis. Recentemente, porém, alguns

problemas estatísticos nas análises foram descobertos e

reconheceu-se que as conclusões eram menos concretas do

que se afirmara. Não obstante, muitos biólogos moleculares

ainda acreditam que o ADN mitocondrial dá apoio suficiente à

hipótese “A partir da África”. E deve ser observado que indícios

genéticos mais convencionais, com base no ADN do núcleo,

estão começando a revelar o mesmo tipo de padrão mostrado

pelo ADN mitocondrial.

Aqueles que promovem a noção de uma substituição completa

ou mesmo parcial de populações pré-modernas por modernas

têm que enfrentar uma questão desconfortável: como esta

substituição ocorreu? De acordo com Milford Wolpoff, este

cenário exige que aceitemos um violento genocídio. Estamos

familiarizados com matanças desta natureza, por exemplo, na

extinção de nativos americanos e populações aborigines da

Austrália no século XIX. E isto pode ter sido verdadeiro em

tempos remotos também, embora até o momento não haja

Page 187: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

qualquer vestígio de que tenha ocorrido.

Dada a ausência de indícios, somos forçados a examinar pos-

síveis alternativas àquela da substituição pela violência. Se não

existe nenhuma, então aquela hipótese, embora não

demonstrada, torna-se mais forte. Ezra Zubrow, antropólogo da

State University of New York, em Buffalo, examinou tal modelo

alternativo. Ele desenvolveu modelos no computador de

populações que interagem entre si, nos quais uma tem uma

leve vantagem competitiva sobre a outra. Fazendo rodar no

computador estas simulações, ele é capaz de determinar que

tipo de vantagem pode ser exigida pela população superior

para substituir a segunda rapidamente. A resposta não é

intuitiva: uma vantagem de 2 por cento pode levar à eliminação

da segunda população em um milênio.

Podemos entender imediatamente como uma população pode

destruir outra por meio da superioridade militar. Mas é muito

menos fácil para nós compreender como uma pequena

vantagem,

99

por exemplo na exploração de recursos tais como os alimentos,

pode destacar-se em um período relativamente curto de tempo

Page 188: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

e conduzir a conseqüências cataclísmicas. Se os humanos

modernos tinham uma pequena vantagem sobre os

neanderthais, como podemos explicar a coexistência aparente

entre estas duas populações durante um período de mais ou

menos 60 mil anos no Oriente Médio? Uma explicação é que,

embora os humanos modernos tivessem evoluído em termos

anatômicos, o comportamento humano moderno veio mais

tarde. Uma segunda explicação, apoiada por muitos, é que a

coexistência é mais aparente do que real. É possível que as

diferentes populações tivessem ocupado a região em turnos,

acompanhando mudanças climáticas. Em épocas mais frias, os

humanos modernos dirigiam-se para o sul e os neanderthais

ocupavam o Oriente Médio; em épocas mais quentes acontecia

o contrário. Em razão do fato de a resolução temporal dos

depósitos encontrados nas cavernas ser pobre, este tipo de

“compartilhamento” de um local pode parecer coexistência.

Vale a pena notar, porém, que onde nós realmente sabemos

que os neanderthais e os humanos modernos coexistiram — na

Europa Ocidental, há 35 mil anos — eles assim o fizeram por

um milênio ou dois no máximo, de acordo com o modelo de

Zubrow. O trabalho de Zubrow não demonstra de modo

Page 189: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

inequívoco que a competição demográfica foi o meio pelo qual

os humanos modernos substituíram as populações pré-

modernas quando eles as encontraram. Mas demonstra que a

violência não é a única candidata a mecanismo de substituição.

Onde isto tudo nos deixa? A importante questão da origem dos

humanos modernos, a despeito da riqueza de informações que

é possível obter-se, permanece sem solução. Entretanto, sinto

que é pouco provável que a hipótese da evolução

multirregional esteja correta. Suspeito que o Homo sapiens

moderno surgiu como um evento evolutivo discreto, em algum

lugar da África; mas suspeito também que, quando os

descendentes destes primeiros humanos modernos

expandiram-se para a Eurásia, eles misturaram-se às

populações de lá. Por que o indício genético, como é

atualmente interpretado, não reflete isto, eu não sei. Talvez a

leitura atual dos indícios esteja incorreta. Ou talvez, afinal de

contas, a hipótese da Eva mitocondrial revele-se correta. É

muito mais provável que esta incerteza seja resolvida quando o

clamor do debate diminuir e novos indícios forem encontrados

em apoio a nma nu nutra Has hinnteses competidoras.

100

Page 190: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

6 - A linguagem da arte

Não há dúvida de que algumas das relíquias mais

impressionantes da pré-história humana são as representações

de animais — gravadas, pintadas e esculpidas — produzidas

há 30 mil anos. Nesta época, os humanos modernos tinham

evoluído e ocupado muito do Velho Mundo, mas não ainda,

provavelmente, o Novo Mundo. Onde quer que pessoas

vivessem — na África, na Ásia, na Europa e na Austrália —,

elas produziam imagens de seu mundo. A vontade de produzir

representações era aparentemente irresistível, e as imagens

elas próprias são irresistivelmente evocativas. São também

misteriosas.

Uma das minhas experiências mais memoráveis como an-

tropólogo foi visitar em 1980 algumas das cavernas decoradas

no sudoeste da França Eu estava realizando uma série de

fumes para a rede de televisão BBC e deste modo tive a

oportunidade de ver o que poucos viram, inclusive a famosa

caverna de Lascaux, perto da cidade de Les Eyzies, na

Dordonha. A mais extensivamente decorada de todas as

cavernas da Europa da Idade do Gelo, Lascaux tem estado

Page 191: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

fechada ao público desde 1963, para proteger a integridade

das pinturas; atualmente há uma restrição rígida que permite

apenas cinco visitantes por dia Felizmente, uma duplicata

brilhantemente reproduzida das paredes decoradas da caverna

foi recentemente completada, de modo que as imagens ainda

podem ser vistas. Minha visita à caverna de Lascaux

verdadeira em 1980 me fez recordar uma época, há três

décadas e meia, quando a visitei com meus pais e Henri Breuil,

o mais famoso pré-historiador da França. As imagens de

touros, cavalos e veados eram agora tão impressionantes

quanto o eram quando eu era jovem, e elas pareciam mover-se

ante nossos olhos.

Tão espetacular quanto Lascaux, a caverna de Tue

d'Audoubert, na região Ariège da França, é única e de tirar o

fôlego. A caverna é uma das três cavernas decoradas situadas

em terras cujo proprietário é o conde Robert Bégouèn. Uma

passagem estreita e sinuosa conduz da luz brilhante do Sol por

vários quilômetros até a escuridão mais profunda. A luz da

lanterna do conde ilumina as

101

paredes e projeta sombras em movimento, e o chão de argila

Page 192: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

brilha com uma cor alaranjada. Finalmente, chegamos a uma

pequena rotunda no final da passagem; o conde ilumina com

sua lanterna e com dramatismo apropriado um ponto no centro

da câmara, mais adiante o teto da caverna une-se ao chão. Lá,

vemos as figuras de dois bisões, soberbamente esculpidas em

argila, repousando contra as rochas.

Eu tinha visto reproduções destas figuras famosas, é claro,

mas nada havia me preparado para a realidade. Medindo cerca

de um sexto do tamanho real, elas são perfeitas na forma,

cheias de movimento em sua imobilidade; elas encapsulam a

vida. A habilidade dos artistas que esculpiram estas figuras há

cerca de 15 mil anos é de tirar o fôlego, especialmente quando

nos lembramos das condições sob as quais eles devem ter

trabalhado. Usando tochas simples feitas de gordura animal,

eles transportaram a argila de uma câmara vizinha e criaram as

formas dos animais com seus dedos e algum tipo de

implemento achatado; os olhos, as narinas, a boca e a juba

foram criados com um bastão pontiagudo ou osso. Depois que

terminaram, eles cuidadosamente varreram o entulho de seu

trabalho, deixando apenas pedaços de argila em forma de

salsicha. Antes interpretados como falos ou chifres, estes

Page 193: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

pedaços são agora considerados amostras com as quais os

escultores testavam a plasticidade da argila.

As razões para criar os bisões e as condições sob as quais

estes foram esculpidos perderam-se no tempo. Uma terceira

figura foi grosseiramente gravada no chão da caverna perto

das outras duas, e há uma outra, uma estatueta, pequena e

feita de argila. O mais intrigante, porém, são as marcas de

calcanhares, provavelmente de crianças, em torno das figuras.

Estariam as crianças brincando enquanto os artistas

trabalhavam? Sendo assim, por que não vemos pegadas dos

artistas? Teriam as marcas de calcanhares sido feitas durante

um ritual que continha alguma parte da mitologia do Paleolítico

Superior em que as figuras dos bisões seriam aparte central?

Nós não o sabemos, e talvez não possamos sabê-lo. Como o

arqueólogo sul-africano David Lewis-Williams diz da arte pré-

histórica: “O significado é sempre culturalmente vinculado.”

Lewis-Williams, que trabalha na Universidade do Witwaters-

rand, tem estudado a arte do povo !Kung San do Kalahari, com

um olho voltado para o esclarecimento do significado da arte

pré-histórica, inclusive a arte da Europa da Idade do Gelo. Ele

reconhe que a expressão artística pode formar uma trama

Page 194: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

enigmática

102

na tessitura intrincada do tecido cultural de uma sociedade. A

mitologia, a música e a dança são também parte desse tecido:

cada trama contribui para o significado do todo, mas elas por si

mesmas são necessariamente incompletas.

Mesmo que tivéssemos testemunhado esta parte da vida do

Paleolítico Superior na qual as pinturas das cavernas desempe-

nharam seu papel, poderíamos compreender o significado do

todo? Duvido. Precisamos apenas pensar nas histórias

narradas nas religiões modernas para apreciar a importância

de símbolos crípticos que podem ser destituídos de significado

fora da cultura a que pertencem. Pense no significado para um

cristão de uma imagem de um homem segurando um cajado

com um cordeiro aos seus pés. E pense na ausência de

qualquer significado para alguém que nunca ouviu a história

cristã.

Minha mensagem não é de desesperança mas sim de cautela.

As imagens antigas que temos hoje são fragmentos de uma ve-

lha história, e, embora a vontade de saber o que elas

significam seja grande, é mais prudente aceitar os limites

Page 195: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

prováveis de nossa compreensão. Mais ainda, tem havido um

forte, e provavelmente inevitável, preconceito ocidental na

percepção da arte pré-histórica. Uma conseqüência tem sido

uma falta de atenção à arte pré-histórica de antigüidade igual e

algumas vezes maior da África Oriental e Meridional. Uma

outra conseqüência tem sido a visualização da arte da maneira

ocidental, como se esta consistisse de quadros pendurados

nas paredes de um museu, como objetos para serem

simplesmente vistos. De fato, o grande pré-historiador francês

André Leroi-Gourhan uma vez descreveu as imagens da Idade

do Gelo como “as origens da arte ocidental”. Isto, claramente,

não é o caso, pois ao final da Idade do Gelo, há 10 mil anos, a

pintura representativa e a gravação desapareceram totalmente,

sendo substituídas pelas imagens esquemáticas e padrões

geométricos. Muitas das técnicas empregadas em Lascaux,

tais como a perspectiva e a que transmite uma sensação de

movimento, tiveram que ser reinventadas na arte ocidental com

o Renascimento.

Antes de examinarmos algumas das tentativas de se obter um

vislumbre da vida no Paleolítico Superior por meio de imagens

Page 196: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

antigas, devemos esboçar uma vista geral da arte da Idade do

Gelo. O período em questão começa há 35 mil anos e termina

há 10 mil com o fim da própria Idade do Gelo. Este período,

lembre-se, testemunhou a primeira aparição de tecnologia

sofisticada na Euro-

103

pa Ocidental, a qual evoluiu rapidamente, como se estivesse

seguindo a moda. A seqüência de mudanças é marcada pelos

nomes dados a cada nova variação da tecnologia do Paleolitico

Superior; podemos olhar para as mudanças na arte da Idade

do Gelo utilizando o mesmo referencial.

O Paleolitico Superior começa essencialmente com o período

aurignaciano, que vai de 34 mil a 30 mil anos atrás. Embora

não existam cavernas pintadas conhecidas deste período, as

pessoas devotaram esforços consideráveis para fazer

pequenas contas de marfim, destinadas presumivelmente a

enfeitar vestimentas. Elas também produziram figuras humanas

e de animais primorosas, usualmente esculpidas em marfim.

Por exemplo, no sítio arqueológico de Vogelherd, na

Alemanha, foram recuperadas meia dúzia de diminutas figuras

de mamutes e de cavalos esculpidas em marfim. Uma das

Page 197: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

figuras representando um cavalo é uma das peças mais

habilmente produzidas encontradas de todo o Paleolitico

Superior. Como já disse antes, a música certamente desempe-

nhou um papel importante na vida destas pessoas, e uma

pequena flauta feita de osso encontrada em Abri Blanchard, no

sudoeste da França, é uma testemunha disso.

As pessoas do período gravettiano, que vai de 30 mil a 22 mil

anos atrás, foram as primeiras a manufaturar figuras em argila,

algumas das quais eram animais, outras humanas. As pinturas

de cavernas deste período do Paleolitico Superior são raras,

mas marcas que representam o contorno das mãos podem ser

encontradas em algumas cavernas, feitas talvez apoiando a

mão sobre a parede da caverna, espalhando tinta e ao mesmo

tempo acompanhando o seu contorno. (Um exemplo um pouco

macabro desta prática foi descoberto no sítio arqueológico de

Gargas, na parte francesa dos Pireneus, onde foram contadas

mais de duas centenas de impressões, quase todas sem uma

ou mais partes dos dedos.) A mais famosa das inovações

gravettianas, porém, são as figuras femininas, muitas vezes

sem características faciais ou os membros inferiores. Feitas

com argila, marfim ou calcita, elas têm sido tipicamente

Page 198: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

chamadas de Venus, e se supõe que representem um culto de

fertilidade disseminado por todo o continente. Entretanto,

exames apurados mais críticos e recentes mostram uma

grande diversidade na forma destas figuras, e poucos

estudiosos defenderiam atualmente a idéia de um culto de

fertilidade.

A pintura de cavernas, que geralmente chama mais a atenção,

começou no período solutriano do Paleolitico Superior, que se

estende de 22 mil a 18 mil anos atrás. Entretanto, outras

formas

104

de expressão artística eram mais proeminentes. Por exemplo, a

gravação de baixos-relevos grandes e impressionantes, muitas

vezes em sítios de moradia, foi evidentemente importante para

os solutrianos. Um exemplo maravilhoso é o sítio em Roc de

Sers, na região da Charente, na França, onde grandes figuras

de cavalos, bisões, renas, bodes das montanhas e uma figura

humana foram gravadas na rocha, nos fundos de um abrigo;

algumas das figuras em relevo têm mais ou menos 15

centímetros.

O período final do Paleolítico Superior — o magdaleniano, que

Page 199: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

se estende de 18 mil ali mil anos atrás — foi a era das pinturas

nas profundezas das cavernas: 80 por cento de todas as caver-

nas em que se encontram as pinturas datam deste período.

Lascaux foi pintada nesta época, assim como Altamira, uma ca-

verna tão espetacular quanto Lascaux na região da Cantábria,

no norte da Espanha. Os magdalenianos eram também

escultores e gravadores talentosos de objetos em pedra, osso

e marfim — alguns utilitários, tais como as lanças, outros não

tão obviamente utilitários como, por exemplo, os “bastões”.

Embora seja muitas vezes dito que a forma humana é uma

raridade na arte da Idade do Gelo, este não foi o caso do

período magdaleniano. As pessoas do magdaleniano da

caverna de La Marche, no sudoeste da França, gravaram mais

de uma centena de perfis da cabeça humana, cada uma delas

tão individualizada que dá a impressão de um retrato.

A espetacular pintura no teto da caverna de Altamira poderia

ter permanecido para sempre sem ser descoberta não fosse

por Maria, a jovem filha de Don Marcellion de Sautola, que era

o proprietário da fazenda onde a caverna está situada. Um dia,

em 1879, pai e filha exploraram a caverna que havia sido

Page 200: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

descoberta uma década antes. Maria entrou em uma câmara

baixa que De Sautola havia explorado previamente. Ela estava

“correndo pela caverna, brincando aqui e ali”, lembrou mais

tarde Maria. “De repente percebi as formas e as figuras no

teto... 'Olhe, papai, bois'“, gritou ela. Na luz bruxuleante de uma

lâmpada a óleo, Maria viu o que ninguém havia visto em 17 mil

anos: imagens de duas dúzias de bisões agrupados em um

círculo, com dois cavalos, um lobo, três javalis e três fêmeas de

cervo em torno da periferia. Eles tinham as cores vermelha,

amarela e preta, e pareciam tão frescos como se tivessem sido

recém-pintados.

O pai de Maria, um arqueólogo amador apaixonado, ficou es-

pantado ao ver o que perdera e sua filha havia encontrado, e

reco-

105

nheceu o fato como uma grande descoberta. Infelizmente, os

pré-historiadores profissionais daquela época não fizeram o

mesmo: as pinturas eram tão brilhantes e vitais que foram

consideradas obra de um artista recente. Elas pareciam boas

demais, realistas demais, artísticas demais para ser fruto de

mentes primitivas. Ao contrário, elas deveriam ser

Page 201: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

consideradas fruto do trabalho de um artista itinérante recente.

Nesta época, diversas peças de arte “portátil” — isto é, ossos e

chifres gravados e esculpidos — haviam sido descobertas. A

arte pré-histórica portanto havia sido reconhecida como real.

Mas pintura alguma havia sido aceita como antiga.

Ironicamente, um pouco antes de as imagens de Altamira

serem descobertas, Leopold Chiron, um mestre-escola,

descobrira gravações nas paredes da caverna de Chabot, no

sudoeste da França. Entretanto, as gravações eram difíceis de

ser decifradas. Os pré-historiadores relutavam em aceitá-las

como indício da arte mural do Paleolítico Superior. Como o

arqueólogo britânico Paul Bahn observou: “Enquanto as

pinturas de Chabot eram muito modestas para causar impacto,

as de Altamira eram demasiado esplêndidas para ser

verdadeiras.”

Em 1888, quando De Sautola morreu, Altamira era ainda posta

de lado como uma tentativa cristalina de fraude. A aceitação

final de Altamira como genuinamente pré-histórica foi conse-

guida pela acumulação constante, embora de menor impacto,

de descobertas similares — principalmente na França. Da

maior importância entre estas descobertas foi a da caverna de

Page 202: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

La Mouthe, na região da Dordonha. Escavações que

começaram em 1895 e continuaram pela virada do século

revelaram uma arte mural, tais como um bisão gravado e

diversas imagens pintadas. Depósitos da era paleolítica

superior cobriam algumas destas imagens, provando sua

antigüidade. Mais ainda, o primeiro exemplo de uma lâmpada

paleolítica, esculpida em arenito, que permitia que os artistas

das cavernas pudessem trabalhar, foi descoberta nesta

caverna. A opinião profissional começou a mudar e muito em

breve a pintura do Paleolítico Superior foi aceita como uma

realidade. 0 marco mais famoso desta aceitação foi um

trabalho de Émile Carthaüac, um adversário de destaque da

autenticidade das pinturas, intitulado “Mea Culpa d'un

Sceptique” publicado em 1902. “Nós não temos mais qualquer

motivo para duvidar de Altamira”, escreveu ele. Embora o

trabalho de Carthailac tenha se tornado um exemplo clássico

de um cientista que admite o seu erro, seu tom é bastante

rancoroso, e ele defende o seu ceticismo anterior.

106

Inicialmente, como coloca Bahn, as pinturas da Idade do Gelo

eram vistas como “simplesmente garatujas, grafites, atividade

Page 203: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

de recreação: adornos descuidados/irracionais de caçadores

com tempo a seu dispor”. Esta interpretação, diz ele, origina-se

da concepção de arte da França contemporânea: “A arte ainda

é vista em termos dos séculos recentes, com seus retratos,

paisagens e quadros narrativos. Ela era simplesmente 'arte' e

sua única função era agradar e decorar.” Mais ainda, alguns

pré-historiadores franceses influentes eram marcadamente

anticlericais e não lhes agradava imputar expressão religiosa

às pessoas do Paleolítico Superior. Esta interpretação inicial

pode ser vista como razoável, especialmente porque os

primeiros exemplos de arte — objetos “portáteis” — de fato

pareciam simples. Com a descoberta posterior da arte nas

paredes, porém, esta visão mudou. Pelos números relativos de

animais pintados nos tetos e nas paredes, as pinturas não

refletiam a vida real; e havia também figuras enigmáticas,

sinais geométricos sem interpretação óbvia.

John Halverson, da Universidade da Califórnia, em Santa Cruz,

propôs recentemente que os pré-historiadores retornassem à

interpretação do tipo “arte pelo amor à arte”. Não deveríamos

esperar que a consciência humana emergisse completamente

amadurecida no decorrer de nossa evolução, raciocina ele, de

Page 204: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

modo que os primeiros exemplos de arte na pré-história têm

tendência a ser simples porque as mentes das pessoas eram

do ponto de vista cognitivo simples. As pinturas de Altamira

realmente parecem simples: representações de cavalos, bisões

e outros animais aparecem isoladamente ou algumas vezes em

grupos, mas apenas raramente num contexto que se

assemelhe a um cenário natural. As imagens são precisas mas

destituídas de contexto. Isto, diz Halverson, indica que os

artistas da Idade do Gelo estavam simplesmente pintando ou

gravando fragmentos de seu meio ambiente, com ausência

total de qualquer significado mitológico.

Acho que este argumento não convence. Uns poucos exem-

plos das imagens da Idade do Gelo são suficientes para indicar

que há mais nesta arte do que as primeiras elucubrações

hesitantes da mente humana moderna. Por exemplo, em uma

das outras cavernas de propriedade do conde Bégouën, a

caverna de Trois Frères, encontramos uma imagem de uma

quimera humano/animal conhecida como O Feiticeiro. A

criatura está ereta apoiada sobre suas patas traseiras, sua face

voltada para quem a contempla. Exibindo um par de chifres

enorme, ela parece ser constituída de partes corporais

Page 205: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

pertencentes-a muitos animais diferentes, inclu-

107

sive humanos. Isto não é uma simples imagem, “sem mediação

de cognição refletiva”, como Halverson teria nos feito crer. E

também não o é a primeira criatura do Salão dos Touros em

Lascaux. Conhecida como O Unicórnio, a criatura pode

representar um humano disfarçado de animal ou pode ser uma

quimera. Muitos destes desenhos são suficientes para

convencer-nos de que estamos vendo imagens bastante

mediadas pela cognição refletiva.

Entretanto, o mais significativo de tudo é que as imagens são

mais complexas do que sugerem as afirmações de Halverson.

Como já indiquei, as pinturas e gravações não são cenas

naturalistas do mundo da Idade do Gelo. Não há nada que se

assemelhe a uma pintura paisagística verdadeira. E, a julgar

pelos restos de animais encontrados nos lugares habitados por

estas pessoas, as imagens não são também um simples

reflexo da alimentação diária. Os pintores do Paleolítico

Superior tinham cavalos e bisões em suas mentes, mas renas

e ptármigas em seus estômagos. O fato de que alguns animais

são bem mais proeminentes como imagens nas pinturas das

Page 206: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

cavernas do que eram na paisagem natural é certamente

significativo: eles parecem ter tido uma importância especial

para as pessoas do Paleolítico que os pintaram.

A primeira hipótese importante para explicar por que as

pessoas do Paleolítico Superior pintaram estas imagens

mencionava a magia relacionada com a caça. Na virada do

século, os antropólogos estavam tomando conhecimento de

que as pinturas dos aborigines australianos eram parte de

rituais mágicos e totêmicos destinados a melhorar os

resultados de uma caçada a ser realizada. Em 1903, o

historiador de religiões Salomon Reinach argumentou que o

mesmo poderia ser verdade para a arte do Paleolítico Superior:

em ambas as sociedades, a pintura representava muito mais

umas poucas espécies em relação ao meio ambiente natural.

Os povos do Paleolítico Superior podem ter feito pinturas para

assegurar o aumento dos animais totêmicos e de presas,

exatamente como se sabia que os australianos faziam.

Henry Breuil gostou das idéias de Reinach e as desenvolveu e

promoveu vigorosamente durante a sua longa carreira. Por

quase sessenta anos, ele registrou, mapeou, copiou e contou

Page 207: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

imagens nas cavernas por toda a Europa. Ele também

desenvolveu uma cronologia para a evolução da arte durante o

Paleolítico Superior. No decorrer deste tempo, Breuil continuou

a interpretar a arte como magia relacionada com a caça, como

o fez a maior parte do establishment arqueológico.

108

Um problema óbvio com a hipótese que relacionava a caça

com a magia era que muitas vezes as imagens representadas,

como já observado, não refletiam a dieta dos pintores do

Paleolítico Superior. O antropólogo francês Claude Lévi-

Strauss uma vez comentou que, na arte do povo San do

Kalahari e dos aborigines australianos, certos animais eram

representados mais freqüentemente não porque eram “bons

para comer”, mas sim porque eram bons “para se pensar”.

Quando Breuil morreu em 1961, era época do aparecimento de

uma perspectiva nova, que veio com André Leroi-Gourhan, que

se tomaria tão proeminente na pré-história francesa quanto

Breuil tinha sido.

Leroi-Gourhan procurava uma estrutura na arte, buscando

sentido em padrões de muitas imagens, não em imagens

individuais como Breuil havia feito. Ele realizou longos

Page 208: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

levantamentos das cavernas pintadas e percebeu padrões

repetidos, com certos animais “ocupando” certas partes das

cavernas. O cervo, por exemplo, muitas vezes aparecia nos

caminhos de entrada mas eram incomuns nas câmaras

principais. O cavalo, o bisão e o boi eram as criaturas

predominantes nas câmaras principais. Os carnívoros apare-

ciam na maioria das vezes bem no fundo do sistema de

cavernas. Mais ainda, alguns animais representavam a

masculinidade, outros a feminilidade, disse ele. A imagem do

cavalo representava a masculinidade, e a do bisão a

feminilidade; o cervo macho e o cabrito montes também

representavam a masculinidade; o mamute e o boi, a

feminilidade. Para Leroi-Gourhan, a ordem nas pinturas refletia

uma ordem na sociedade do Paleolítico Superior: a saber, a

divisão entre masculinidade e feminilidade. Uma outra

arqueóloga francesa, Annette Laming-Emperaire, desenvolveu

um conceito similar de dualidade masculino/feminino.

Entretanto, os dois estudiosos muitas vezes divergiram sobre

quais imagens representavam a masculinidade e quais

representavam a feminilidade. A diferença de opinião contribuiu

para a derrocada final do esquema,

Page 209: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

A noção de que as próprias cavernas poderiam impor uma

estrutura à expressão artística foi recentemente revivida, mas

de modo incomum. Os arqueólogos franceses Iégor Reznikoff e

Michel Dauvois realizaram levantamentos detalhados de três

cavernas decoradas na região Ariège no sudoeste da França.

De modo não convencional, eles não estavam procurando

artefatos de pedra, objetos gravados ou novas pinturas. Eles

estavam cantando. Mais especificamente, moviam-se

lentamente através das cavernas, parando seguidamente para

testar a ressonância de cada seção. Utilizando-se de notas

musicais que variavam de três oita-

109

vas, eles levantaram um mapa de ressonância de cada caverna

e descobriram que aquelas áreas com maior ressonância eram

também as mais prováveis de abrigar uma pintura ou gravação.

Em seu relatório, que publicaram no fim de 1988, Reznikoff e

Dauvois comentaram sobre o impacto atordoante dentro das

cavernas da ressonância, uma experiência que certamente

teria sido realçada sob a luz bruxuleante das lâmpadas simples

da Idade do Gelo.

Exige pouca imaginação visualizar os povos do Paleolítico

Page 210: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

Superior entoando encantamentos em frente às pinturas das

cavernas. A natureza incomum das imagens e o fato de elas

muitas vezes encontrarem-se nas partes mais inacessíveis das

cavernas sugerem um ritual. Hoje, quando se fica parado em

frente a uma criação da Idade do Gelo, como fiz com o bisão

de Le Tue d'Audoubert, vozes antigas abrem caminho à força

em nossa mente, com um acompanhamento, talvez, de

tambores, flautas e apitos. A descoberta de Reznikoff e

Dauvois é tão fascinante que, como o arqueólogo da

Universidade de Cambridge Chris Scarre comentou na época,

atrai “uma nova atenção para a importância provável da música

e do canto nos rituais de nossos antigos ancestrais”.

Quando Leroi-Gourhan morreu em 1986, os pré-historiadores

estavam novamente prontos para uma reavaliação importante

de suas interpretações, exatamente como havia acontecido

quando Breuil morreu. Hoje em dia, os pesquisadores estão

preparados para considerar uma variedade de explicações,

mas em todos os casos o contexto cultural é enfatizado e há

uma maior percepção do perigo de se impor idéias originárias

de uma sociedade moderna à sociedade do Paleolítico

Superior.

Page 211: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

Quase certamente, pelo menos alguns dos elementos da arte

da Idade do Gelo relacionavam-se com o modo pelo qual os

povos do Paleolítico Superior organizavam suas idéias sobre o

seu mundo — uma expressão de seu cosmos espiritual.

Voltaremos a este assunto um pouco mais tarde. Mas pode ter

havido aspectos mais práticos no modo pelo qual eles

organizavam seu mundo social e econômico. Margaret Conkey,

antropóloga da Universidade da Califórnia, em Berkeley,

sugeriu, por exemplo, que Altamira pode ter sido no outono um

lugar de reunião para as muitas centenas de povos da região.

O cervo vermelho e o lapa deveriam ser abundantes então. E

isto daria uma ampla justificação econômica para tal

congregação de bandos. Mas, como aprendemos com os

caçadores-coletores modernos, tais congregações, qualquer

que seja a razão econômica ostensiva, servem mais para

estabelecer alianças políticas e sociais do que para os

assuntos mundanos.

110

O antropólogo britânico Robert Laden acredita que pode

perceber alguma coisa da estrutura de tais alianças nos sítios

arqueológicos em que se encontram as cavernas no norte da

Page 212: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

Espanha. Os sítios principais, tais como Altamira, são muitas

vezes cercados por sítios menores dentro de um raio de

aproximadamente 16 quilômetros, como se eles fossem centros

de uma aliança política ou social. Os 32 quilômetros de

diâmetro desta esfera podem representar a distância otimizada

para a qual tais alianças podiam ser prontamente mantidas.

Nenhum padrão deste tipo foi discernido ainda entre os sítios

arqueológicos em que se encontram as cavernas da França.

Talvez o arranjo do bisão e de outras imagens de animais pin-

tadas no teto da caverna de Altamira representem de algum

modo o centro desta esfera de influência. A estrutura principal

dos tetos pintados consiste de quase duas dúzias de imagens

policrômicas de bisões, dispostas principalmente em torno da

periferia. Estas imagens, sugere Margaret Conkey, podem

representar grupos diferentes que se reuniam neste sítio. De

modo significativo, a gama de objetos gravados que os

arqueólogos encontraram em Altamira parece ser uma amostra

das muitas formas decorativas locais. Por todo o norte da

Espanha nesta época, os povos decoravam os objetos

utilitários com vários desenhos, inclusive asnas, estruturas em

forma de lúnulas, curvas similares que se encaixam uma dentro

Page 213: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

da outra, e assim por diante. Cerca de 15 destes desenhos

foram identificados, cada um dos quais tende a ser geografica-

mente restrito, sugerindo estilos locais ou identidade de

bandos. Em Altamira, muitos destes estilos locais são

encontrados juntos, daí o argumento de que Altamira poderia

ser um sítio de reunião de alguma importância política e social.

Até agora, este tipo de indício ainda não foi descoberto em

Lascaux. Entretanto, é razoável pensar sobre este sítio como

de importância considerável para os povos dentro de uma

grande área, em vez de um produto local de pintores

entusiásticos. Talvez Lascaux derivasse seu poder do fato de

ser lugar de um importante evento espiritual, tal como o

aparecimento de uma divindade no cosmos do Paleolítico

Superior. Tal é o caso, por exemplo, com muitas das partes do

meio ambiente do aborigine australiano, partes que de outras

maneiras são estéreis.

Já disse que as imagens da arte da Idade do Gelo são de

animais fora de seu contexto ecológico, e em proporções que

não representam sua freqüência no mundo real. Isto por si

mesmo nos diz

Page 214: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

111

algo da natureza enigmática da arte. Entretanto, além das ima-

gens representativas, há outras marcas que são mesmo mais

enigmáticas: uma disseminação de padrões geométricos — ou

sinais, como têm sido chamados. Estes incluem pontos,

grades, asnas, curvas, ziguezagues, curvas similares que se

encaixam uma dentro da outra e retângulos, e estão entre os

elementos mais intrigantes da arte do Paleolítico Superior. Em

sua maior parte, tiveram uma explicação como componentes

de qualquer hipótese que prevalecesse, na hipótese da magia

associada à caça por exemplo, ou na hipótese da dicotomia

masculino/feminino. David Lewis-Williams apresentou

recentemente uma interpretação nova e interessante: elas são

sinais reveladores de uma arte relacionada com o xamanismo,

diz ele — imagens de uma mente em estado de alucinação.

Lewis-Williams estudou a arte do povo San do sul da África

durante quatro décadas. Muito de sua arte data talvez de 10 mil

anos atrás, mas um pouco dela foi criada dentro de uma

memória histórica recente. Gradualmente, ele percebeu que as

imagens da arte San não eram representações simplórias da

vida do povo San, como os antropólogos ocidentais tinham

Page 215: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

assumido por um longo tempo. Ao contrário, elas eram o

produto de xamãs em estado de transe: as imagens eram uma

conexão com o espírito de um mundo xamanístico e eram

representações do que o xamã via durante sua alucinação. Em

determinado ponto de seus estudos, Lewis-Williams e seu

colega Thomas Dowson entrevistaram uma velha mulher que

vivia no distrito de Tsolo em Transkei. Filha de um xamã, ela

descreveu alguns dos agora desaparecidos rituais

xamanísticos.

Os xamãs podiam induzir a si próprios o transe por meio de

várias técnicas, inclusive drogas e hiperventilação, disse ela.

Não importa o modo pelo qual era atingido, o estado de transe

era quase sempre acompanhado de canções rítmicas, danças

e bater de palmas de grupos de mulheres. À medida que o

transe tornava-se mais profundo, os xamãs começavam a

tremer, com seus braços e corpos vibrando vigorosamente.

Durante sua visita ao mundo dos espíritos, o xamã muitas

vezes “morre”, curvando-se como se sentisse dores. O eland é

uma força poderosa na mitologia San, e o xamã pode utilizar o

sangue de cortes no pescoço e na garganta do animal para

infundir potência em alguém, esfregando-o nos cortes no

Page 216: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

pescoço e na garganta da pessoa. Posteriormente, o xamã

muitas vezes vale-se de um pouco do mesmo sangue enquan-

to pinta um registro de seu contato alucinatório com o mundo

dos

112

espíritos. As imagens têm poder por si mesmas, derivado do

contexto nas quais foram pintadas, e a velha mulher contou

para Lewis-Williams que um pouco deste poder poderia ser

adquirido colocando-se as mãos sobre elas.

O eland é o animal representado com mais freqüência nas

pinturas San, e seu poder vem de muitas formas. Lewis-

Williams perguntou-se se o cavalo e o bisão eram fontes

similares de poder para os povos do Paleolítico Superior —

imagens que eram invocadas e tocadas quando se necessitava

de energia espiritual. Como maneira de abordar esta questão,

ele precisava de indícios de que também a arte do Paleolítico

Superior era xamanística. Uma pista que foi fornecida pelos

sinais geométricos.

De acordo com a literatura psicológica que Lewis-Williams

pesquisou, há três estágios de alucinação, cada um mais

profundo e complexo. No primeiro estágio, o indivíduo vê

Page 217: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

formas geométricas tais como grades, ziguezagues, pontos,

espirais e curvas. Estas imagens, seis formas ao todo, são

brilhantes, incandescentes e inconstantes — e poderosas. Elas

são chamadas imagens entópticas (“dentro da visão”), pois são

produzidas pela arquitetura neural básica do cérebro. “Porque

elas derivam do sistema nervoso humano, todas as pessoas

que entram em certos estados alterados da consciência, não

importa quais suas origens culturais, podem vir a percebê-las”,

observou Lewis-Williams em um artigo de 1986 publicado na

revista Current Anthropology. No segundo estágio do transe, as

pessoas começam a ver estas imagens como objetos reais.

Curvas podem ser interpretadas como colinas em uma

paisagem, asnas como armas, e assim por diante. A natureza

do que a pessoa vê depende da experiência cultural individual

e de suas preocupações. Os xamãs do povo San

freqüentemente manipulam conjuntos de curvas

transformando-os em colmeias, já que as abelhas são um

símbolo do poder sobrenatural que estas pessoas controlam

quando entram em transe.

A passagem do segundo para o terceiro estágio de alucinação

é muitas vezes acompanhada da sensação de atravessar um

Page 218: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

vórtice ou um túnel rotatório, imagens completas — algumas

banais, outras extraordinárias — podem ser vistas. Um tipo

importante de imagem neste estágio é a quimera humano-

animal, ou teriântropos, como são chamadas (ver figura 6.1).

Estas criaturas são comuns na arte xamanística do povo San.

Elas também são uma componente intrigante da arte do

Paleolítico Superior.

As imagens entópticas das alucinações do primeiro estágio

estão presentes na arte San, o que pode ser considerado um

indí-

113

cio objetivo de que esta arte é xamanística. E estas mesmas

imagens são vistas na arte do Paleolítico Superior, algumas

vezes sobrepostas a imagens de animais, algumas vezes de

forma isolada Em combinação com a presença de teriântropos

enigmáticos, elas constituem um forte indício de que pelo

menos algo da arte do Paleolítico Superior é deveras

xamanístico. Estes teriântropos foram uma vez descartados

como produto de “uma mentalidade primitiva [que] falhou em

estabelecer fronteiras definitivas entre humanos e animais”,

como John Halverson coloca. Se, em vez disto, elas são

Page 219: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

imagens percebidas em um transe, elas eram tão reais para o

pintor do Paleolítico Superior como os cavalos e os bisões.

Quando pensamos na arte, temos a tendência a pensar em

uma pintura sendo feita sobre uma superfície, seja ela uma tela

ou

114

Page 220: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

uma parede. A arte xamanística não é assim. Os xamãs muitas

vezes percebem suas alucinações surgindo de superfícies

rochosas: “Eles vêm as imagens como tendo sido colocadas ali

pelos espíritos, e, ao pintá-las, os xamãs dizem que eles

simplesmente estão tocando e marcando o que já existe”,

explica Lewis-Williams. “As primeiras representações não eram

portanto imagens representativas do modo como eu e você

pensamos sobre elas, mas sim imagens mentais fixas de outro

mundo.” A superfície rochosa em si mesma, observa ele, é uma

interface entre o mundo real e o espiritual — uma passagem

entre os dois. É mais do que um meio para as imagens; é uma

parte essencial destas e do ritual que as acompanhava. A

hipótese de Lewis-Williams atraiu uma grande dose de atenção

e, inevitavelmente, algum ceticismo. Seu valor está em permitir

que vejamos a arte com olhos diferentes. A arte xamanística é

tão diferente da arte ocidental em sua motivação e execução

que por meio dela podemos olhar a arte do Paleolítico Superior

de novas maneiras.

O arqueólogo francês Michel Lorblanchet está também nos

fazendo olhar para a arte do Paleolítico Superior de novas

maneiras. Há vários anos ele vem realizando arqueologia

Page 221: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

experimental, fazendo réplicas das imagens das cavernas em

uma tentativa de obter uma percepção das tarefas e

experiência dos artistas da Idade do Gelo. Seu projeto mais

ambicioso foi recriar os cavalos de Pêche Merle, uma caverna

da região Lot, na França. Os dois cavalos olham para direções

opostas, com as ancas ligeiramente sobrepostas, e têm mais

ou menos 1,2 metro de altura. Eles têm manchas pretas e

vermelhas e reproduções de mãos por meio de um estêncil ao

seu redor. Em razão de a superfície da rocha sobre a qual as

imagens foram pintadas ser áspera, os artistas aparentemente

fizeram a tinta passar por um tubo em vez de utilizar um pincel.

Lorblanchet descobriu uma superfície rochosa similar em uma

caverna próxima e resolveu pintar os cavalos novamente,

usando a técnica do tubo. “Gastei sete horas por dia durante

uma semana, puff...puff...puff, contou ele para um redator da

revista Discover. “Foi cansativo, particularmente porque havia

monóxido de carbono na caverna. Mas você sente algo

especial pintando desse jeito. Você sente como se estivesse

soprando a imagem sobre a rocha — projetando seu espírito

das partes mais profundas de seu corpo sobre a superfície da

rocha.” Isto não parece uma abordagem muito científica, mas

Page 222: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

talvez um objetivo intelectual tão esquivo exija métodos

heterodoxos. No passado, Lorblan-

115

chet mostrou ser inovador em aventuras na feitura de réplicas.

Esta certamente merece também consideração. Se as pinturas

da Idade do Gelo eram partes da mitologia do Paleolítico

Superior, então os pintores realmente colocaram seu espírito

sobre a parede, não importa qual o método que eles utilizaram

para aplicar a tinta.

Poderemos nunca saber o que tinham em mente os escultores

de Tue d'Audoubert quando fizeram o bisão, nem os pintores

de Lascaux quando pintaram o unicórnio, ou qualquer dos artis-

tas da Idade do Gelo no que fizeram. Mas podemos ter certeza

de que o que fizeram era importante em um sentido muito

profundo para os artistas e para as pessoas das gerações

posteriores que viram as imagens. A linguagem da arte é

poderosa para as pessoas que a compreendem, e intrigante

para quem não a comprende. O que sabemos é que aqui

estava a mente moderna em funcionamento, gerando

simbolismos e abstrações de um modo que somente o Homo

sapiens é capaz de fazê-lo. Embora não possamos ter certeza

Page 223: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

sobre o processo pelo qual os seres humanos evoluíram, com

certeza sabemos que ele envolveu a emergência do tipo de

mundo mental que experimentamos hoje.

116

Page 224: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

7 - A arte da linguagem

Não há dúvida de que a evolução da linguagem falada como a

conhecemos foi um ponto de definição na pré-história humana.

Foi talvez o momento de definição. Equipados com uma lingua-

gem, os humanos foram capazes de criar novos tipos de

mundo na natureza: o mundo da consciência introspectiva e o

mundo que construímos e dividimos com os outros, o qual

chamamos “cultura”. A linguagem tornou-se nosso meio e a

cultura nosso nicho. Em seu livro publicado em 1990 Language

and Species, o lingüista da Universidade do Havaí Derrick

Bickerton exprime isto de modo convincente: “Somente a

linguagem poderia ter rompido os grilhões da experiência

imediata a que toda criatura está presa, libertando-nos para as

liberdades infinitas do espaço e do tempo.”

Os antropólogos podem ter certeza somente sobre dois pontos

que se relacionam com a linguagem, um direto, o outro indireto.

Primeiro, a linguagem falada diferencia nitidamente o Homo

sapiens de todas as outras criaturas. Nenhuma exceto o

homem tem uma linguagem falada complexa, um meio de

comunicação e um meio de reflexão introspectiva. Segundo, o

Page 225: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

cérebro do Homo sapiens tem três vezes o tamanho do cérebro

de nossos parentes evolutivos mais próximos, os grandes

macacos africanos. Há certamente uma relação entre estas

duas observações, mas sua natureza é ferozmente debatida

Ironicamente, embora os filósofos tenham refletido durante

muito tempo sobre o mundo da linguagem, a maior parte do

que é conhecido sobre esta emergiu nas três décadas

passadas. Grosseiramente falando, surgiram dois pontos de

vista que dizem respeito à fonte evolutiva da linguagem. O

primeiro a vê como uma característica singular dos humanos,

uma habilidade que surgiu como uma conseqüência colateral

do aumento do nosso cérebro. Neste caso, a linguagem teria

surgido rápida e recentemente, na medida em que um limiar

cognitivo foi ultrapassado. A segunda posição argumenta que a

linguagem falada evoluiu por meio da seleção natural atuando

sobre várias faculdades cognitivas — inclusive, mas não

limitada por ela, a comunicação — dos ances-

117

trais inumanos. Neste assim chamado modelo de continuidade,

a linguagem evoluiu gradualmente na pré-história humana,

começando com a evolução do gênero Homo.

Page 226: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

O lingüista do MIT Noam Chomsky tem estado associado

principalmente com o primeiro modelo, e sua influência tem

sido imensa. Para os chomskianos, que representam a maioria

dos lingüistas, há pouca utilidade em se procurar por indícios

de capacidade lingüística nos primórdios dos registros

humanos, e ainda menos em procurá-los nos nossos primos

simiescos. Em conseqüência, um antagonismo tremendo tem

sido demonstrado em relação àqueles que tentam ensinar aos

macacos alguma forma de comunicação simbólica, usualmente

por meio de um computador e lexigramas arbitrários. Um dos

temas deste livro é a separação filosófica entre aqueles que

vêem os humanos como especiais e separados do resto da

natureza e aqueles que aceitam uma ligação íntima. Em

nenhum lugar isto aparece mais apaixonadamente do que no

debate sobre a natureza e a origem da linguagem. O vitríolo

lançado pelos lingüistas sobre aqueles que pesquisam a

linguagem nos macacos reflete indubitavelmente esta

separação.

Ao tecer comentários sobre aqueles que defendem a singu-

laridade da linguagem humana, a psicóloga da Universidade do

Texas Kathleen Gibson escreveu recentemente: “Embora

Page 227: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

científica em seus postulados e discussão [esta perspectiva]

encaixa-se firmemente na longa tradição filosófica ocidental,

que remonta pelo menos aos autores do Gênesis e aos escritos

de Platão e Aristóteles, que sustentam que a mentalidade e o

comportamento humanos [são] qualitativamente diferentes

daqueles dos animais.” Como resultado deste raciocínio, a

literatura antropológica há muito tem sido entulhada com

comportamentos que eram considerados exclusivamente

humanos. Estes incluem a fabricação de artefatos, a habilidade

de utilizar símbolos, reconhecimento em frente a um espelho,

e, é claro, a linguagem. Desde 1960, esta parede de

exclusividade vem desmoronando de modo constante, com a

descoberta de que os macacos podem fazer e utilizar

ferramentas, usar símbolos e reconhecer-se como indivíduos

na frente de um espelho. Somente a linguagem falada

permanece intacta, de modo que os lingüistas são efetivamente

os últimos defensores da exclusividade humana. Eles parecem

levar sua tarefa a sério.

A linguagem surgiu na pré-história humana — de algum modo

e ao longo de alguma trajetória temporal — e ao fazê-lo

transformou-nos como indivíduos e como espécie. “De todas as

Page 228: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

118

nossas faculdades mentais, a linguagem é a que está mais

profundamente abaixo do limiar de nossa percepção, a menos

acessível à mente racionalizadora”, observou Bickerton. “Nós

mal podemos lembrar-nos de uma época em que não

dispúnhamos dela, muito menos como a adquirimos. No

momento em que pudemos enquadrar pela primeira vez um

pensamento, lá estava ela.” Como indivíduos, dependemos da

linguagem para estar no mundo e simplesmente não podemos

imaginar um mundo sem ela. Como espécie, a linguagem, por

meio da elaboração da cultura, transforma o modo pelo qual

interagimos uns com os outros. Tanto a linguagem como a

cultura nos unem e nos separam. As 5.000 línguas existentes

no mundo são produto de nossa habilidade comum, mas as

5.000 culturas que elas criam são separadas umas das outras.

Somos de tal modo produto da cultura que nos molda que

muitas vezes falhamos em reconhecê-la como um artefato de

nossa própria fabricação, até que deparamos com uma cultura

muito diferente.

A linguagem realmente cria um abismo entre o Homo sapiens e

o resto do mundo natural. A habilidade humana de gerar sons

Page 229: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

discretos, ou fonemas, é apenas modestamente realçada

quando a comparamos com a mesma habilidade nos macacos:

nós temos cinqüenta fonemas; o macaco cerca de 12. Não

obstante, nossa utilização desses sons é virtualmente ilimitada.

Eles podem ser arranjados e rearranjados para dotar o ser

humano médio de um vocabulário de uma centena de milhar de

palavras, e estas palavras podem ser combinadas em uma

infinidade de sentenças. Como conseqüência, a capacidade de

comunicação rápida, detalhada, e a riqueza de pensamento do

Homo sapiens não têm rival no mundo da natureza

Nossa tarefa, em primeiro lugar, é explicar como a linguagem

surgiu. Do ponto de vista chomskiano, não temos necessidade

de olhar para a seleção natural como sua fonte pois ela é um

acidente da história, uma faculdade que emergiu uma vez ultra-

passado algum limiar cognitivo. Chomsky argumenta como se

segue: “Atualmente, não temos nenhuma idéia de como as leis

físicas devem ser aplicadas quando 1010 neurônios são

colocados em um objeto do tamanho de uma bola de basquete,

sob as condições especiais que surgiram durante a evolução

humana.” Assim como Steven Pinker, um lingüista do MIT,

rejeito este ponto de vista. Sucintamente, ele afirma que

Page 230: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

Chomsky “pegou a idéia ao contrário”. Provavelmente o

cérebro aumentou de tamanho como resultado da evolução da

linguagem e não do modo oposto. Ele argu-

119

menta que “é a fiação precisa dos microcircuitos do cérebro

que faz a linguagem acontecer, e não o tamanho, a forma ou o

modo de empacotamento dos neurônios”. Em um livro de 1994,

The Language Instinct, Pinker reúne indícios em favor de um

fundamento genético para a linguagem falada, os quais apoiam

sua evolução por meio da seleção natural. Muito volumosos

para ser discutidos agora, os indícios são impressionantes.

A questão é: quais eram as pressões da seleção natural que

favoreceram a evolução da linguagem falada?

Presumivelmente, esta habilidade não surgiu de um momento

para o outro já plenamente desenvolvida, assim temos que nos

perguntar que vantagens uma linguagem menos desenvolvida

conferia aos nossos ancestrais. A resposta mais óbvia é que

ela oferecia um modo eficiente de comunicação. Esta

habilidade, certamente, teria sido benéfica para os nossos

ancestrais quando estes adotaram pela primeira vez a caça

rudimentar e a coleta de aumentos, que é um modo de

Page 231: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

subsistência mais desafiador que o dos macacos. À medida

que seu modo de vida tornava-se mais complexo, a necessi-

dade de coordenação social e econômica também crescia.

Nessas circunstâncias, a comunicação efetiva tornava-se cada

vez mais valiosa. A seleção natural portanto teria reforçado

firmemente a capacidade de linguagem. Em conseqüência, o

repertório básico de sons dos símios primitivos —

presumivelmente similares às arfadas, apupos e grunhidos dos

macacos modernos — teria se expandido e sua expressão se

tornado mais estruturada. A linguagem, como a conhecemos

hoje, emergiu como um produto das exigências da caça e da

coleta. Ou pelo menos assim parece. Há outras hipóteses para

a evolução da linguagem.

À medida que o modo de vida com base na caça e na coleta

desenvolveu-se, os humanos tornaram-se tecnologicamente

mais competentes, fabricando artefatos de modo mais refinado

e de formas mais complicadas. Esta transformação evolutiva,

que começou com a primeira espécie do gênero Homo, há

mais de 2 milhões de anos, e culminou com o aparecimento

dos humanos modernos, em alguma época nos últimos 200 mil

anos, foi acompanhada por um triplicamento do tamanho do

Page 232: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

cérebro. O cérebro aumentou de 400 centímetros cúbicos nos

australopitecíneos primordiais para uma média que hoje é de

1.350 centímetros cúbicos. Durante muito tempo os

antropólogos estabeleceram uma relação causai entre a

crescente sofisticação tecnológica e o aumento do tamanho do

cérebro: este último implicava o primeiro. Isto, lembre-se, era

parte do pacote evolutivo darwiniano que des-

120

crevi no capítulo 1. Mais recentemente, esta visão da pré-

história humana foi encapsulada em um ensaio clássico de

Kenneth Oakley publicado em 1949 intitulado “Homem, o

fabricante de artefatos”. Como foi observado em um capítulo

anterior, Oakley estava entre os primeiros a propor que a

emergência dos humanos modernos foi iniciada com o

“aperfeiçoamento” da linguagem até o nível que conhecemos

hoje: em outras palavras, a linguagem moderna fez o homem

moderno.

Entretanto, nos dias de hoje, uma explicação evolutiva dife-

rente tornou-se popular como explicação para o surgimento da

mente moderna — uma explicação mais orientada para o

homem como animal social do que para o homem como

Page 233: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

fabricante de artefatos. Se a linguagem evoluiu como

instrumento de interação social, então seu realce da

comunicação no contexto da caça e coleta pode ser visto como

um benefício secundário e não como uma causa evolutiva

primária.

O neurologista da Universidade de Columbia Ralph Holloway

foi um pioneiro importante deste novo ponto de vista, intro-

duzido na década de 1960. “É minha opinião que a linguagem

cresceu a partir de uma matriz social-comportamental-cognitiva

que era fundamentalmente cooperativa e não agressiva, e

repousava sobre uma divisão social estrutural complementar do

comportamento em relação ao trabalho entre os sexos”,

escreveu ele há uma década. “Isto era uma estratégia evolutiva

e adaptativa necessária para permitir um período de

dependência infantil prolongado, períodos prolongados até

atingir a maturidade sexual, uma maturação retardada que

permite um maior crescimento do cérebro e aprendizado

comportamental.” Observe como isto está de acordo com as

descobertas nos padrões de história de vida dos hominídeos

que descrevi no capítulo 3.

As idéias pioneiras de Holloway adotaram diversos disfarces e

Page 234: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

tornaram-se conhecidas como a hipótese da inteligência social.

Mais recentemente, Robin Dunbar, primatologistado University

College, em Londres, desenvolveu-a como se segue: “A teoria

mais convencional é que os primatas necessitam cérebros

grandes para ajudá-los a encontrar seu rumo no mundo e

resolver seu problema diário de procurar comida. A teoria do

tipo alternativo é que o complexo mundo social no qual os

primatas se encontram fornece o ímpeto necessário à evolução

de cérebros grandes.” Uma parte vital na modulação das

interações sociais entre os primatas é o ato de alisar o pêlo,

que permite um contato íntimo e monitoração entre indivíduos.

Ele é eficiente em grupos de até

121

um certo tamanho, afirma Dunbar, mas, quando este tamanho

é ultrapassado, outros modos de lubrificação social são

exigidos.

Durante a pré-história humana, o tamanho do grupo aumentou,

argumenta Dunbar, produzindo pressões seletivas por um

“alisamento de pêlos” social mais eficiente. “A linguagem tem

duas propriedades interessantes quando comparada ao ato de

alisar o pêlo”, explica ele. “Você pode falar com diversas

Page 235: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

pessoas ao mesmo tempo e você pode falar enquanto

caminha, come ou trabalha nos campos.” Em conseqüência,

sugere ele, “a linguagem evolui para integrar um número maior

de indivíduos nos seus respectivos grupos sociais”. Neste

cenário, então, a linguagem é o “alisamento de pêlos vocal”, e

Dunbar a vê emergindo somente “com o aparecimento do

Homo sapiens”. Tenho muita simpatia para com as hipóteses

de inteligência social, mas, como mostrarei, não acredito que a

linguagem tenha evoluído tardiamente na pré-história humana.

A época em que a linguagem evoluiu é um dos pontos

fundamentais neste debate. Teria ela surgido cedo,

acompanhada de um reforço gradual? Ou teria surgido súbita e

recentemente? Lembre-se, a questão tem implicações

filosóficas que dizem respeito ao quão especiais consideramos

nós mesmos.

Nos dias de hoje, muitos antropólogos favorecem a idéia de

uma origem rápida e recente da linguagem — principalmente

em razão da mudança abrupta de comportamento observada

na revolução do Paleolítico Superior. Randall White,

arqueólogo da New York University, argumenta em um trabalho

Page 236: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

científico provocativo de quase uma década atrás que os

indícios de várias formas de atividades humanas anteriores a

100 mil anos atrás implicam “uma ausência total de qualquer

coisa que os humanos modernos possam reconhecer como

linguagem”. Nesta época, anatomicamente, os humanos

modernos haviam evoluído, admite ele, mas não haviam ainda

“inventado” a linguagem em um contexto cultural. Isto

aconteceria muito mais tarde: “Há cerca de 30 mil anos, estas

populações (...) haviam dominado a linguagem e a cultura

como presentemente as conhecemos.”

White lista sete áreas de indícios arqueológicos que, sob seu

ponto de vista, apontam para um realce dramático das

habilidades lingüísticas que coincidem com o Paleolítico

Superior. Primeiro, o sepultamento deliberado dos mortos, que

quase certamente começou na época dos neanderthals mas

tornou-se refinado, com a inclusão de bens e objetos nas

sepulturas, somente no Paleo-

122

lítico Superior. Segundo, a expressão artística, que incluiu a

feitura de imagens e de adornos para o corpo, começa

somente com o Paleolitico Superior. Terceiro, no Paleolitico

Page 237: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

Superior há uma aceleração súbita no ritmo da inovação

tecnológica e na mudança cultural. Quarto, pela primeira vez

surgem diferenças regionais na cultura — expressão e produto

de fronteiras sociais. Quinto, o indício de contatos de longa

distância, na forma de comércio de objetos exóticos, torna-se

forte nesta época. Sexto, os lugares de moradia aumentam

significativamente de tamanho, e a linguagem teria sido

necessária com tal grau de planejamento e coordenação.

Sétimo, a tecnologia move-se do uso predominante de pedras

para a inclusão de outras matérias-primas tais como ossos,

chifres e argila, indicando uma complexidade de manipulação

do meio ambiente físico impensável na ausência de uma

linguagem.

White e outros antropólogos, inclusive Lewis Binford e Richard

Klein, estão convencidos de que este acúmulo de “pela

primeira vez” na atividade humana é sublinhado pelo

surgimento de uma linguagem falada complexa e totalmente

moderna. Binford, como observei em um capítulo anterior, não

vê indícios de planejamento e poucas facilidades de predizer e

organizar eventos futuros e atividades entre os humanos pré-

modernos. O grande passo à frente foi a linguagem — “a

Page 238: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

linguagem e, especificamente, a criação de símbolos, que torna

a abstração possível”, argumenta ele. “Não vejo qualquer meio

pelo qual tal mudança rápida poderia ocorrer além de um

sistema de comunicação fundamentalmente bom e com base

na biologia.” Klein, concordando essencialmente com esta

proposição, vê indícios, nos sítios arqueológicos do sul da

África, de um aumento relativamente recente e abrupto das

habilidades de caça. Isto é uma conseqüência, diz ele, da

origem da mente humana moderna, inclusive da capacidade de

possuir uma linguagem.

Embora o ponto de vista de que a linguagem teve um desen-

volvimento relativamente rápido coincidente com a emergência

dos humanos modernos tenha amplo apoio, ele não domina

completamente o pensamento antropológico. Dean Falk, a

cujos estudos da evolução do cérebro humano me referi no

capítulo 3, defende a proposição de que a linguagem

desenvolveu-se mais cedo. “Se os hominídeos não estivessem

usando e refinando a linguagem, eu gostaria de saber o que

eles estavam fazendo com seus cérebros autocatalicamente

em expansão”, escreveu ela recentemente. Terrence Deacon,

neurologista do Belmont Hospital, em Belmont, Massachusetts,

Page 239: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

adota um ponto de vista similar, mas

123

com base em estudos de cérebros modernos e não fósseis: “A

competência lingüística evoluiu durante um longo período (de

pelo menos 2 milhões de anos) de seleção contínua

determinada pela interação cérebro-linguagem”, observa ele

em um artigo publicado em 1969 na revista Human Evolution.

Deacon comparou as diferenças nas conectividades neurais

entre o cérebro do macaco e o cérebro humano. Ele observa

que as estruturas do cérebro e os circuitos que mais foram

alterados no decorrer da evolução do cérebro humano refletem

as exigências computacionais incomuns da linguagem falada.

As palavras não se fossilizam, assim, como poderão os an-

tropólogos resolver esta discussão? Os indícios indiretos — os

artefatos que nossos ancestrais fabricaram e as mudanças em

sua anatomia — parecem fornecer relatos diferentes de nossa

história evolutiva. Começaremos pelo exame dos indícios

anatômicos, inclusive a arquitetura do cérebro e a estrutura do

aparelho vocal. Depois examinaremos a sofisticação

tecnológica e a expressão artística — aspectos do

comportamento que constituem o registro arqueológico.

Page 240: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

Vimos anteriormente que a expansão do cérebro humano

começou há mais de 2 milhões de anos com a origem do

gênero Homo e continuou de modo firme. Há cerca de meio

milhão de anos, o tamanho médio do cérebro do Homo erectus

era 1.100 centímetros cúbicos, o que é muito próximo da média

moderna. Depois do salto inicial de 50 por cento do

australopitecíneo para o Homo, não há grandes aumentos

súbitos adicionais no tamanho do cérebro do homem pré-

histórico. Embora o significado do tamanho absoluto do cérebro

seja assunto de controvérsia entre os psicólogos, o

triplicamento que ocorreu na pré-história humana certamente

reflete capacidades cognitivas reforçadas. Se o tamanho do

cérebro está também relacionado com capacidades lingüísti-

cas, então a história da expansão do tamanho do cérebro

durante os mais ou menos 2 milhões de anos passados sugere

um desenvolvimento gradual das habilidades lingüísticas de

nossos ancestrais. A comparação de Terrence Deacon da

anatomia do cérebro do macaco com a anatomia do cérebro

humano sugere que esta é uma proposição razoável.

O eminente neurobiólogo Harry Jerison, da Universidade da

Page 241: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

Califórnia, em Los Angeles, considera a linguagem o motor do

crescimento do cérebro humano, descartando a noção de que

hahilidades maniDulativas teriam fornecido a pressão evolutiva

124

em favor de cérebros maiores, corporificadas na hipótese “Ho-

mem, o Fabricante de Artefatos”. “Parece-me uma explicação

inadequada, principalmente porque a fabricação de artefatos

pode ser realizada com pouco tecido cerebral”, afirmou ele em

uma importante conferência no Museu Americano de História

Natural em 1991. “A produção de uma fala simples e útil, por

outro lado, exige uma quantidade substancial de tecido

cerebral.”

A arquitetura cerebral subjacente à linguagem é muito mais

complexa do que se pensava Parece haver muitas áreas

relacionadas com a linguagem, espalhadas por diversas

regiões do cérebro humano. Se estes centros pudessem ser

identificados em nossos ancestrais, estaríamos em uma boa

posição para decidir a questão da linguagem. Entretanto, os

indícios anatômicos dos cérebros dos humanos extintos são

restritos aos contornos da superfície; os cérebros fossilizados

não dão pistas de sua estrutura interna Felizmente, um aspecto

Page 242: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

do cérebro relacionado de algum modo com a linguagem e com

a utilização de artefatos é visível sobre a superfície do cérebro.

Este aspecto é a área de Broca, uma saliência localizada perto

da têmpora esquerda (na maioria das pessoas). Se

pudéssemos encontrar indícios da existência da área de Broca

nos cérebros humanos fossilizados, isto seria o sinal, embora

incerto, de uma habilidade lingüística emergente.

Um segundo sinal possível é a diferença em tamanho entre o

lado esquerdo e o lado direito do cérebro nos humanos moder-

nos. Na maioria das pessoas, o hemisfério esquerdo é maior do

que o hemisfério direito — uma conseqüência, em parte, da

concentração, lá, da maquinaria associada com a linguagem.

Também associado com esta assimetria é o fenômeno da

destreza nos humanos. Noventa por cento da população

humana é destra; a destreza e a capacidade de linguagem

podem portanto estar relacionadas com um cérebro esquerdo

maior.

Ralph Holloway examinou a forma do cérebro do crânio do

1.470, um belo exemplo de Homo habilis encontrado a leste do

lago Turkana em 1972 e cuja idade foi determinada em quase

2 milhões de anos (ver figura 2.2). Holloway detectou não

Page 243: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

apenas a presença da área de Broca, impressa sobre a

superfície interna do crânio, mas também uma leve assimetria

na configuração esquerda-direita do cérebro, uma indicação de

que o Homo habilis comunicava-se utilizando mais do que o

repertório arfada-apupo-grunhido dos chimpanzés modernos.

Em um trabalho publicado na revista Human Neurobiology, ele

observou que, embora fosse impossível provar quando ou

como a linguagem começou, era

125

provável que suas origens remontassem “ao passado

paleontológico remoto”. Embora Holloway tivesse sugerido que

esta trajetória evolutiva poderia ter começado com os

australopitecíneos, eu discordo. Até agora, toda a discussão da

evolução dos hominídeos neste livro aponta para uma

importante mudança na adaptação hominídea quando o gênero

Homo apareceu. Portanto, suspeito que apenas com a

evolução do Homo habilis alguma forma de linguagem falada

começou. Como Bickerton, suspeito que isto era um tipo de

protolinguagem, simples em conteúdo e estrutura, mas um

meio de comunicação mais avançado do que o meio de

comunicação dos macacos e australopitecíneos.

Page 244: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

A fabricação experimental cuidadosa e inovativa de artefatos

de Nicholas Toth, discutida no capítulo 2, reforça o ponto de

vista de que a assimetria cerebral estava presente nos

humanos primitivos. Sua reprodução de lascas de pedra

demonstrou que os praticantes da indústria olduvaiana eram

predominantemente destros, e portanto teriam uma metade

esquerda do cérebro ligeiramente maior. “A lateralização do

cérebro ocorreu com os fabricantes de artefatos mais

primitivos, como é evidenciado pelo seu comportamento como

fabricantes”, observou Toth. “Isto é provavelmente uma boa

indicação de que uma capacidade lingüística já estava também

emergindo.”

Estou convencido pelos indícios oriundos dos cérebros fos-

silizados de que a linguagem começou a evoluir com o primeiro

aparecimento do gênero Homo. Pelo menos não há nada que

possa ser utilizado como argumento contra um aparecimento

bem no início da linguagem. Mas o que dizer do aparelho

vocal: a laringe, a faringe, a língua e os lábios? Isto representa

a segunda maior fonte de informação anatômica (ver figura

7.1).

Os humanos são capazes de emitir uma ampla variedade de

Page 245: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

sons porque a laringe fica situada na parte inferior da garganta,

criando assim uma grande câmara de som, a faringe, acima

das cordas vocais. De acordo com o trabalho inovador de

Jeffrey Laitman, do Mount Sinai Hospital Medical School de

Nova York, Philip Lieberman, da Universidade Brown, e

Edmund Crelin, de Yale, uma faringe maior é a chave para

produzir uma fala completamente articulada. Estes

pesquisadores realizaram uma quantidade de pesquisas

considerável sobre a anatomia do trato vocal em criaturas vivas

e em fósseis humanos. O trato vocal é muito diferente. Em

todos os mamíferos, exceto nos humanos, a laringe fica na

parte mais ao alto na garganta, o que permite ao animal

respirar e beber ao mesmo tempo. Como corolário, a pequena

cavidade que

126

forma a faringe limita a gama de sons que podem ser

produzidos. A maioria dos mamíferos portanto depende da

forma da cavidade oral e dos lábios para modificar os sons

produzidos na laringe. Embora a posição mais abaixo na

laringe permita aos humanos produzir uma gama maior de

sons, isto também significa que nós não podemos beber e

Page 246: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

respirar simultaneamente. Nós humanos exibimos uma vaga

tendência a engasgar.

Os bebês humanos nascem com a laringe na parte mais ao alto

na garganta, como típicos mamíferos, e podem respirar e beber

simultaneamente, como devem fazê-lo durante a amamenta-

ção. Depois de cerca de 18 meses, a laringe começa a migrar

para a parte mais abaixo na garganta, atingindo a posição que

corresponde à de um adulto quando a criança tem cerca de 14

anos. Os pesquisadores se deram conta de que, se pudessem

determinar a posição da laringe nas gargantas de espécies

humanas ancestrais, poderiam deduzir alguma coisa sobre a

capacidade de vocalização e linguagem da espécie. Isto

representava um desafio, pois o aparelho vocal é constituído

por tecidos macios — cartilagem, músculos e carne — que não

fossilizam. Não obstante, os crânios antigos contêm uma pista

vital. Ela está na forma da base do crânio, ou basicrânio. No

padrão mamífero básico, a base do crânio é essencialmente

chata. Nos humanos, porém, ela é distintamente arqueada. A

forma do basicrânio em um fóssil da espécie humana deveria

portanto indicar quão bem este era capaz de articular os sons.

Em uma pesquisa com fósseis humanos, Laitman descobriu

Page 247: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

que os basicrânios dos australopitecíneos eram

essencialmente chatos. Nisto, como em tantas outras

características biológicas, eles eram semelhantes aos

macacos, e como os macacos sua comunicação vocal deve ter

sido limitada. Os australopitecíneos devem ter sido incapazes

de produzir alguns dos sons vocais universais que caracterizam

os padrões de fala humanos. “A época mais remota do registro

fóssil em que você encontra um basicrânio completamente

articulado localiza-se entre cerca de 300 mil e 400 mil anos

atrás, no que as pessoas chamam Homo sapiens arcaico”,

conclui Laitman. Significa isto que espécies sapiens arcaicas,

que apareceram antes da evolução dos humanos

anatomicamente modernos, tinham uma linguagem moderna

completamente desenvolvida? Isto parece improvável.

A mudança na forma do basicrânio é observada no primeiro

espécime de Homo erectus conhecido, o crânio 3.733,

encontrado no norte do Quênia, e que data de quase 2 milhões

de anos atrás.

127

Page 248: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

De acordo com esta análise, este indivíduo Homo erectus teria

tido a habilidade de produzir certas vogais, como u, a, e, i.

Laitman calcula que a posição da laringe no Homo erectus

primitivo teria sido equivalente à de um humano moderno de

seis anos de idade. Infelizmente, nada pode ser dito a respeito

do Homo habilis, pois nenhum dos crânios de habilis

descobertos até agora tem um basicrânio intacto. Minha

estimativa é que, quando realmente descobrirmos um crânio

intacto do Homo mais primitivo, veremos os começos da flexão

Page 249: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

basicranial. Uma capacidade rudimentar de linguagem falada

certamente começou com a origem do Homo.

Dentro desta seqüência evolutiva vemos um paradoxo apa-

rente. A julgar pelos seus basicrânios, os neanderthals tinham

habilidades verbais mais rudimentares do que outros sapiens

primitivos que viveram várias centenas de milhares de anos

antes. A flexão basicranial nos neanderthals era menos

avançada mesmo do que no Homo erectus. Teriam os

neanderthais regredido, tornando-se menos articulados do que

seus ancestrais? (De fato, alguns antropólogos sugeriram que

a extinção dos neanderthais pode ter estado relacionada com

habilidades lingüísticas inferiores.)

128

Uma regressão evolutiva deste tipo parece improvável; não há,

virtualmente, exemplos disto na natureza. Mais provavelmente,

a resposta está na anatomia da face e do crânio do

neanderthal. Como uma aparente adaptação aos climas frios, a

parte do meio da face do neanderthal projeta-se para fora em

um grau extraordinário, resultando em grandes orifícios nasais,

nos quais o ar frio pode ser aquecido e a umidade exalada na

respiração pode condensar. Esta configuração pode ter afetado

Page 250: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

a forma do basicrânio sem diminuir a capacidade lingüística da

espécie de modo significativo. Os antropólogos continuam a

debater este ponto.

Em resumo, então, os indícios anatômicos indicam uma evo-

lução primitiva da linguagem, seguida de uma melhora gradual

das habilidades lingüísticas. Entretanto, os indícios arqueológi-

cos relacionados com a tecnologia de artefatos e com a expres-

são artística em sua maior parte contam uma história diferente.

Embora, como já disse, a linguagem não fossilize, os produtos

das mãos humanas podem, em princípio, dar alguma percep-

ção sobre a linguagem. Quando falamos sobre expressão

artística, como o fizemos no capítulo anterior, estamos

conscientes de mentes humanas modernas em funcionamento,

e isto implica um nível de linguagem moderna. Poderão os

artefatos de pedra fornecer uma compreensão das

capacidades lingüísticas dos seus fabricantes?

Esta era a tarefa com que Glynn Isaac deparou quando lhe foi

pedido que apresentasse um trabalho sobre a origem e a

natureza da linguagem na Academia de Ciências de Nova York

em 1976. Glynn examinou a complexidade das indústrias de

artefatos de pedra desde seus primórdios, há mais de 2

Page 251: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

milhões de anos, até a Revolução do Paleolítico Superior, há

35 mil anos. Ele estava mais interessado na ordem que os

fabricantes de artefatos impunham aos seus implementos do

que nas tarefas que as pessoas realizavam com estes

artefatos. A imposição da ordem é uma obsessão humana; é

uma forma de comportamento que exige uma linguagem falada

sofisticada para a sua mais completa elaboração. Sem

linguagem, a arbitrariedade de uma ordem humana imposta

seria impossível.

O registro arqueológico mostra que a imposição da ordem

emerge lentamente na pré-história humana. Vimos no capítulo

2 que os artefatos olduvaianos, que datam de 2,5 milhões até

cerca de 1,4 milhão de anos atrás, são de natureza

oportunística. Aparentemente os fabricantes de artefatos

estavam preocupados principalmente em produzir lascas

afiadas sem levar em conta a

129

forma. As assim chamadas ferramentas básicas, tais como

raspadores, cortadores e discóides, eram subprodutos deste

processo. Mesmo os implementos nos conjuntos acheulenses

de artefatos, que se seguiram aos olduvaianos e duraram até

Page 252: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

cerca de 250 mil anos atrás, mostram minimamente a

imposição de forma. O machado manual em forma de lágrima

foi produzido provavelmente de acordo com algum tipo de

plano mental, mas a maioria dos outros itens eram de muitas

maneiras semelhantes aos olduvaianos; mais ainda, apenas

cerca de uma dúzia de formas de artefatos foram encontrados

no kit acheulense. A partir de mais ou menos 250 mil anos

atrás, indivíduos sapiens arcaicos, inclusive os neanderthais,

fabricaram artefatos a partir de lascas preparadas, e estes

conjuntos, inclusive o mousteriano, compreendiam talvez

sessenta tipos de artefatos identificáveis. Mas estes tipos

permaneceram imutáveis por mais de 200 mil anos — uma

paralisia tecnológica que parece negar o funcionamento de

uma mente completamente humana.

Apenas quando as culturas do Paleolítico Superior surgiram em

cena, há 35 mil anos, a inovação e a ordem arbitrária tornaram-

se difundidas. Não apenas foram produzidos novos e mais re-

finados tipos de artefatos, mas os tipos que caracterizaram os

conjuntos de artefatos do Paleolítico Superior mudaram em

uma escala de tempo de milênios e não de centenas de

milênios. Isaac interpretou este padrão de diversidade

Page 253: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

tecnológica e mudança como implicando a emergência gradual

de alguma forma de linguagem falada. A revolução do

Paleolítico Superior assinalou uma pontuação maior naquela

trajetória evolutiva, sugeriu ele. A maioria dos arqueólogos

concorda de modo geral com esta interpretação, embora haja

diferenças de opinião sobre que grau de linguagem falada os

fabricantes de artefatos tinham — se é que a tinham.

Ao contrário de Nicholas Toth, Thomas Wynn, da Universidade

do Colorado, acredita que a cultura olduvaiana em suas ca-

racterísticas gerais era semelhante à dos macacos, e não

humana. “Neste quadro, em nenhum lugar precisamos

adicionar elementos tais como a linguagem”, observa ele em

um artigo escrito em conjunto na revista Man e publicado em

1989. A fabricação destes artefatos simples exige pouca

capacidade cognitiva, argumenta ele, e portanto não era

humana em nenhum aspecto. Entretanto, Wynn admite que há

“alguma coisa de humanóide” na fabricação dos machados

manuais acheulenses: “Artefatos como estes indicam que a

forma do produto final era uma preocupação do brita-

130

dor e que podemos usar esta intenção como uma pequena

Page 254: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

janela aberta para a mente do Homo erectus.” Wynn descreve

a capacidade cognitiva do Homo erectus, com base nas

exigências intelectuais da produção dos artefatos acheulenses,

como equivalente àquela de uma criança humana moderna de

sete anos. Crianças de sete anos têm habilidades lingüísticas

consideráveis, inclusive referência e gramática, e estão perto

do ponto em que podem conversar sem recorrer à

gesticulação. Com relação a isto é interessante lembrar que

Jeffrey Laitman julgava, com base na forma do basicrânio, que

a capacidade lingüística do Homo erectus era equivalente à de

uma criança humana moderna de seis anos.

Aonde este conjunto de indícios, representado na figura 7.2,

nos conduz? Se fôssemos conduzidos apenas pela

componente tecnológica do registro arqueológico, veríamos a

linguagem como tendo começado cedo, progredido lentamente

durante a maior parte da pré-história humana e tido um reforço

explosivo em tempos relativamente recentes. Isto é um

compromisso baseado nas hipóteses derivadas a partir dos

indícios anatômicos. Entretanto, o registro arqueológico que

corresponde à expressão artística não permite tal

compromisso. A pintura e a gravação em abrigos rochosos e

Page 255: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

cavernas entram no registro abruptamente, há mais ou menos

35 mil anos.

Se a expressão artística é considerada a única indicação

confiável de uma linguagem falada — como o arqueólogo

australiano Iain Davidson, por exemplo, insiste —, então a

linguagem não apenas tomou-se completamente moderna em

tempos recentes como também começou recentemente. “A

feitura de imagens que lembram coisas pode somente ter

emergido em comunidades pré-históricas com um sistema de

significados compartilhados”, afirma Davidson em um trabalho

recente em co-autoria com Willian Noble, seu colega na

Universidade da Nova Inglaterra. “Sistemas compartilhados de

significados” são mediados, é claro, por meio de uma

linguagem. Davidson e Noble argumentam que a expressão

artística foi um meio pelo qual uma linguagem referencial

desenvolveu-se, e não que a arte tornou-se possível pela

linguagem. A arte teve que fazer uso da linguagem, ou pelo

menos emergir em paralelo com ela. O aparecimento dos

primeiros trabalhos de arte do registro arqueológico sinaliza

portanto a primeira aparição de uma linguagem referencial

falada.

Page 256: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

Claramente, as hipóteses sobre a natureza e a época da

evolução da linguagem humana são tão divergentes quanto

poderiam ser —

131 (A página 132 do livro apresenta a Figura 7.2, colada nas páginas finais desse e-livro)

o que significa que os indícios, ou uma parte deles, estão

sendo interpretados incorretamente. Quaisquer que sejam as

complexidades desta interpretação incorreta, há surgimento de

uma nova apreciação da complexidade das origens da

linguagem. Uma conferência importante realizada em março de

1990, organizada pela

132

Wenner-Gren Foundation for Antrophological Research (Fun-

dação Wenner-Gren para a Pesquisa Antropológica),

determinou o rumo da discussão nos anos vindouros. Intitulada

“Artefatos, linguagem e cognição na evolução humana”, a

conferência estabeleceu elos de ligação entre estas

importantes questões da pré-história humana Kathleen Gibson,

uma das organizadoras, descreveu a posição da conferência

como se segue: “Já que a inteligência social humana, o uso de

Page 257: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

artefatos e da linguagem dependem todos de um aumento

quantitativo do tamanho do cérebro e de sua capacidade de

processamento de informação, nada poderia ter emergido

subitamente já pronto, como Minerva da cabeça de Zeus. Em

vez disto, assim como o tamanho do cérebro, cada uma destas

faculdades intelectuais deve ter evoluído gradualmente. E

mais, como estas faculdades são interdependentes, nenhuma

poderia ter alcançado seu nível moderno de complexidade

isoladamente.” Será um desafio considerável desemaranhar

estas complexidades.

Como já disse, aqui há muito mais em jogo do que a recons-

trução da pré-história. A visão de nós mesmos e do nosso lugar

na natureza está também em jogo. Aqueles que desejam

manter os humanos como especiais darão boas-vindas a

indícios que apontam para uma origem recente e abrupta da

linguagem. Aqueles que se sentem confortáveis com a

conexão humana com o resto da natureza não ficarão

desestimulados com um desenvolvimento precoce e lento

desta faculdade humana. Imagino que se, por algum capricho

da natureza, ainda existissem populações de Homo habilis e

Homo erectus, nós as veríamos com gradações de linguagem

Page 258: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

referencial. A distância entre nós e o resto da natureza seria

portanto coberta por nossos próprios ancestrais.

133

Page 259: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

8 - A origem da mente

Três grandes revoluções marcam a história da vida na Terra. A

primeira foi a origem da vida propriamente dita, em alguma

época situada antes dos 3,5 bilhões de anos atrás. A vida, na

forma de microorganismos, tornou-se uma força poderosa em

um mundo onde anteriormente apenas a química e a física

haviam operado. A segunda revolução foi a origem dos

organismos multicelulares, há cerca de meio milhão de anos. A

vida tornou-se complexa, as plantas e os animais em miríades

de formas e tamanhos evoluíram e interagiram em

ecossistemas férteis. A origem da consciência humana, em

alguma época nos últimos 2,5 milhões de anos, foi o terceiro

evento. A vida tornou-se ciente de si própria, e começou a

transformar o mundo da natureza com seus objetivos próprios.

O que é consciência? Mais especificamente, para que serve?

Qual é a sua função? Tais questões podem parecer estranhas,

já que cada um de nós sente a vida por meio da consciência ou

da autopercepção. Ela é uma força tão poderosa em nossas

vidas que é impossível imaginar a existência na ausência da

sensação subjetiva que chamamos consciência reflexiva. Tão

Page 260: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

poderosa subjetivamente, e ainda assim objetivamente

indefinível. A consciência apresenta-se aos cientistas como um

dilema, que alguns acreditam insolúvel. O sentido da

autopercepção que cada um de nós vivência é tão brilhante

que ilumina tudo o que fazemos e pensamos; e, ainda assim,

não há maneira pela qual, objetivamente, eu possa saber que

você experimenta a mesma sensação que eu experimento, e

vice-versa.

Cientistas e filósofos lutaram durante séculos para controlar

este fenômeno inconstante. Definições operacionais que foca-

lizem a habilidade de monitorar nossos próprios estados

mentais podem ser objetivamente precisas em certo sentido,

mas elas não se relacionam com o modo pelo qual sabemos

que estamos cientes de nós mesmos e do nosso ser. A mente

é a fonte do sentido do eu — um sentido algumas vezes

privado, algumas vezes compartilhado com outros. A mente,

por meio da imaginação, é também o canal para atingir mundos

que estão além dos objetos

134

materiais da vida diária; e ela oferece-nos um meio de trazer

em Technicolor mundos abstratos para a realidade.

Page 261: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

Há três séculos, Descartes tentou enfrentar o mistério per-

turbador da fonte do sentido do eu que surge em nosso interior.

Os filósofos referiram-se a esta dicotomia como o problema do

corpo e da mente. “Sinto como se tivesse caído de forma

inesperada num redemoinho profundo que me carrega

continuamente aos trombolhões, de modo que não posso ficar

de pé no seu fundo nem nadar até sua superfície”, escreveu

Descartes. Sua solução para o problema do corpo e da mente

foi descrevê-los como entidades inteiramente separadas, um

dualismo que perfazia um todo. “Era uma visão do eu como

uma espécie de fantasma imaterial que é o dono e controla o

corpo do mesmo modo como você é o dono e controla seu

automóvel”, observa o filósofo da Universidade Tufts, Daniel

Dennett, em seu recente livro Consciouness Explained.

Descartes também considerou a mente reservada aos huma-

nos, enquanto todos os outros animais eram meros autômatos.

Uma visão similar dominou a biologia e a psicologia nos últimos

cinqüenta anos. Conhecida como behaviorismo, essa visão de

mundo sustenta que os animais não humanos simplesmente

respondem com reflexos aos eventos de seus mundos e são

incapazes de processos de pensamento analíticos. Não há

Page 262: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

uma coisa chamada mente animal, disseram os behavioristas;

ou, se há, não temos maneiras de ter acesso a ela de um modo

científico, e deveríamos portanto ignorá-la. Nos últimos tempos

esta visão vem sofrendo modificações, graças em grande parte

a Donald Griffin, biólogo do comportamento da Universidade

Harvard, que vem fazendo uma campanha há duas décadas

para derrubar esta visão negativa do mundo animal. Ele

publicou três livros sobre o assunto, o último, Animal Minds, em

1992. Os psicólogos e etologistas parecem ter ficado “quase

petrificados pela noção de consciência animal”, sugere ele. Isto

é uma conseqüência, diz ele, da influência contínua do

behaviorismo, pairando como um fantasma sobre a ciência.

“Em outros domínios do empreendimento científico temos que

aceitar uma prova que é menos do que cem por cento

rigorosa”, diz Griffin. “As ciências históricas são assim — pense

na cosmologia, pense na geologia. E Darwin não pode provar o

fato da evolução biológica de modo rigoroso.”

Os antropólogos, ao tentarem explicar a evolução da forma

humana, devem em última análise levar em conta também a

evolução da mente — e, especificamente, da consciência

humana,

Page 263: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

135

um assunto que os biólogos estão mais preparados para

examinar. Temos também que perguntar como tal fenômeno

surgiu no cérebro humano: isto é, terá ele surgido subitamente

e inteiramente formado no cérebro do Homo sapiens, sem

nenhum tipo de precursor no resto do mundo da natureza,

como o ponto de vista behaviorista implica? Podemos

perguntar quando na pré-história humana a consciência atingiu

o estágio que agora experimentamos: terá ela surgido cedo, e

crescido sempre cada vez mais brilhante através da pré-

história? E podemos perguntar: que vantagens evolutivas teria

tal propriedade da mente conferido aos nossos ancestrais?

Observe que essas questões são paralelas àquelas que dizem

respeito à evolução da linguagem. Isto não é mera

coincidência, pois a linguagem e a autopercepção reflexiva são

indubitavelmente fenômenos intimamente relacionados.

Ao procurar respostas a estas questões, não podemos evitar a

questão sobre para que “serve” a consciência Como pergunta

Dennett: “Haverá qualquer coisa que uma entidade consciente

pode fazer por si mesma que uma simulação inconsciente (mas

habilmente programada) desta entidade não possa fazê-lo?” O

Page 264: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

zoólogo da Universidade Oxford Richard Dawkins admite estar

também estupefato. Ele fala da necessidade de os organismos

serem capazes de predizer o futuro, uma habilidade obtida por

meio do equivalente aos cérebros na simulação por

computadores. Este processo, afirma ele, não precisa ser

consciente. Ainda assim, ele observa que “a evolução da

capacidade de simular parece ter culminado com uma

consciência subjetiva”. Por que isto deveria ter acontecido é,

afirma ele, o mistério mais profundo com que depara a biologia

moderna. “Talvez a consciência surja quando a simulação

cerebral do mundo torna-se tão completa que ela deve incluir

um modelo de si mesma”

Há sempre a possibilidade, é claro, de que ela não “sirva” para

nada e seja simplesmente um subproduto de cérebros grandes

em ação. Prefiro adotar o ponto de vista evolutivo, que sustenta

que um fenômeno mental tão poderoso provavelmente conferiu

benefícios para a sobrevivência e foi portanto produto da

seleção natural. Se nenhum de tais benefícios pode ser

discernido, então talvez a alternativa — isto é, nenhuma função

adaptativa — pode ser considerada.

Page 265: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

O neurobiólogo Harry Jenson realizou um longo estudo da

trajetória da evolução cerebral desde o advento da vida em

solo seco. O padrão de mudança através dos tempos é bem

suroreendente:

136

a origem de novos grupos importantes de fauna (ou grupos

dentro de grupos) é usualmente acompanhada por um salto no

tamanho relativo do cérebro, conhecido como encefalização.

Por exemplo, quando os primeiros mamíferos antigos

evoluíram, há uns 230 milhões de anos, eles eram equipados

com cérebros que eram quatro ou cinco vezes maiores do que

o cérebro reptiliano médio. Um impulso similar na maquinaria

mental aconteceu com a origem dos mamíferos modernos, há

50 milhões de anos. Comparados aos mamíferos como um

todo, os primatas são os que têm cérebros maiores, sendo

duas vezes mais encefalizados do que o mamífero médio.

Entre os primatas, os macacos são os que têm cérebros

maiores; eles têm mais ou menos duas vezes o tamanho

médio. E os humanos são três vezes mais encefalizados do

que o macaco médio.

Deixando por um instante os humanos de lado, considere-se

Page 266: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

que o aumento a passos largos do tamanho cerebral através

da história evolutiva pode implicar uma progressão em direção

a uma superioridade biológica cada vez maior, cérebros

maiores significam criaturas mais espertas. Em algum sentido

absoluto isto deve ser verdade, mas é útil adotar um ponto de

vista evolutivo sobre o que está acontecendo. Podemos pensar

nos mamíferos como de algum modo mais espertos e

superiores aos répteis, de algum modo mais capazes de

explorar os recursos de que necessitam. Mas os biólogos

deram-se conta de que isto não é verdade. Se os mamíferos

fossem realmente superiores em seu aproveitamento dos

nichos ecológicos existentes no mundo, então uma maior

diversidade nos modos de fazê-lo, refletida na diversidade de

gêneros, deveria ser esperada Entretanto, o número de

gêneros de mamíferos que existiram em qualquer momento de

sua história recente é quase igual ao número de gêneros de

dinossauros, estes répteis altamente bem-sucedidos de uma

era anterior. Mais ainda, o número de nichos ecológicos que os

mamíferos são capazes de explorar é comparável ao número

de nichos disponíveis aos dinossauros. Onde, então, está o

benefício de possuir um cérebro maior?

Page 267: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

Uma das forças que conduzem a evolução é uma competição

constante entre as espécies, no decurso da qual uma das

espécies ganha uma vantagem temporária por meio da

inovação evolutiva, apenas para ser superada por outra

inovação, e assim por diante. O resultado é o desenvolvimento

aparente de maneiras melhores de fazer as coisas, tais como

correr mais rápido, ver mais acuradamente, suportar ataques

de modo mais efetivo, ser mais esperto — embora nenhuma

vantagem permanente seja assegurada.

137

No jargão militar, este processo é conhecido como uma corrida

armamentista: as armas tornam-se mais numerosas ou efetivas

em ambos os lados, mas nenhum deles, em última análise, se

beneficia Os estudiosos importaram o termo “corrida armamen-

tista” para a biologia com o intuito de descrever o mesmo fenô-

meno na evolução. A “construção” de cérebros maiores pode

ser vista como conseqüência de corridas armamentistas.

Entretanto, algo diferente deve acontecer com os cérebros

grandes quando comparados a cérebros menores. Como

poderemos visualizar este algo? Jerison argumenta que

deveríamos pensar nos cérebros como criadores da versão da

Page 268: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

realidade da espécie. O mundo que percebemos como

indivíduos é essencialmente de nossa própria feitura,

governado por nossa própria experiência. Da mesma forma, o

mundo que percebemos como espécie é governado pela

natureza dos canais sensoriais que possuímos. Qualquer um

que possua um cachorro sabe que há um mundo de

experiências olfativas com o qual os cães são íntimos mas os

humanos não. As borboletas são capazes de ver a luz

ultravioleta; nós não. O mundo dentro de nossas cabeças —

sejamos nós Homo sapiens, cachorros ou borboletas — é,

portanto, formado pela natureza qualitativa do fluxo de

informações proveniente do mundo externo para o mundo

interno, e pela habilidade do mundo interno em processar a

informação. Há uma diferença entre o mundo real, o “lá fora”, e

o que percebemos na mente, o “aqui dentro”.

À medida que os cérebros aumentaram de tamanho através do

tempo de evolução, mais canais de informação sensorial

podiam ser manipulados de modo completo, e seus dados de

entrada integrados mais efetivamente. Os modelos mentais

atingiram portanto o ponto de igualar as realidades do “lá fora”

e do “aqui dentro” mais intimamente, embora com algumas

Page 269: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

lacunas informacionais inevitáveis, como acabei de mencionar.

Podemos estar orgulhosos de nossas consciências

introspectivas, mas podemos estar cônscios apenas do que o

cérebro está equipado para monitorar no mundo. Embora a

linguagem seja vista por muitos como um instrumento de

comunicação, ela também é, argumenta Jerison, um meio

adicional pelo qual nossa realidade mental é aprimorada. Assim

como os canais sensoriais da visão, olfato e audição são de

importância especial para certos grupos de animais, na

construção de seus mundos mentais particulares, a linguagem

é um componente-chave para os humanos.

Há uma vasta literatura, em filosofia e psicologia, que se

relaciona com a questão de o pensamento depender da

linguagem

138

ou a linguagem do pensamento. Não há dúvida de que muito,

talvez a maior parte, dos processos cognitivos humanos se dão

na ausência da linguagem ou mesmo da consciência. Qualquer

atividade física, tal como jogar tênis, acontece em grande parte

automaticamente — isto é, sem um comentário literal do que

fazer a seguir. A solução de um problema que surge na mente

Page 270: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

enquanto estamos pensando sobre alguma outra coisa é outro

exemplo claro. Para alguns psicólogos, a linguagem falada é

meramente um pensamento a posteriori, por assim dizer, de

uma cognição mais fundamental. Mas a linguagem certamente

molda os elementos do pensamento de um jeito que uma

mente muda não pode fazer, desta maneira Jerison está

justificado em sua afirmação.

A mudança mais óbvia no cérebro do hominídeo em sua

trajetória evolutiva foi, como observado, um triplicamento em

tamanho. Entretanto, o tamanho não foi a única mudança; a

organização geral também mudou. Os cérebros dos macacos e

dos humanos são construídos de acordo com o mesmo padrão

básico: ambos são divididos em hemisférios esquerdo e direito,

cada um dos quais tem quatro lobos distintos: frontal, parietal,

temporal e occipital. Nos macacos, os lobos occipitais (na parte

de trás do cérebro) são maiores do que os lobos frontais; nos

humanos, o padrão é revertido, com grandes lobos frontais e

pequenos lobos occipitais. Esta diferença em organização é

presumivelmente subjacente de algum modo à criação da

mente humana como oposta à mente do macaco. Se

Page 271: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

soubéssemos quando a mudança na configuração ocorreu na

pré-história humana, teríamos uma pista sobre a emergência

da mente humana.

Felizmente, a superfície externa do cérebro deixa um mapa de

seu contorno sobre a superfície interna do crânio. Fazendo um

molde de látex da superfície interna de um crânio fossilizado, é

possível obter-se uma imagem de um cérebro antigo. A história

que emerge de uma investigação deste tipo é dramática, como

Dean Falk descobriu em seus estudos de uma série de crânios

fossilizados oriundos da África Oriental e do Sul. “O cérebro do

australopitecíneo é essencialmente semelhante ao do macaco

em sua organização”, afirma ela, referindo-se aos tamanhos

relativos dos lobos frontal e occipital. “A organização

humanóide está presente nas espécies primitivas de Homo.”

Vimos que muitos aspectos da biologia hominídea, tais como a

estatura do corpo e padrões de desenvolvimento durante o

crescimento, modificaram-se quando a primeira espécie de

Homo

139

evoluiu — modificações estas que vejo como sinalizadoras de

uma mudança para um novo nicho adaptativo de caça e coleta.

Page 272: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

A mudança na organização assim como no tamanho do

cérebro é portanto neste ponto consistente e faz sentido

biológico. O quanto da mente humana está neste momento no

lugar, porém, é menos fácil de se determinar. Precisamos

saber a respeito das mentes de nossos parentes mais

próximos, os macacos, antes que possamos enfrentar esta

questão.

Os primatas são a quintessência das criaturas sociais. Apenas

umas poucas horas com um grupo de macacos é suficiente

para obter-se um sentido da importância que a interação tem

para seus membros. Alianças estabelecidas são

constantemente testadas e mantidas; novas alianças são

exploradas; amigos são socorridos, rivais desafiados; e uma

vigilância constante é mantida em busca de oportunidades de

acasalamento.

Os primatologistas Dorothy Cheney e Robert Seyfarth, da

Universidade da Pensilvânia, devotaram anos de observação e

registro da vida de vários grupos de macacos vervet* no Parque

* Tipo de macaco africano, Cercopithecus aethiops pygerythrus, identificado por uma mancha de cor ferruginosa na base da cauda. (N. do T.)

Page 273: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

Nacional Amboseli, no Quênia. Para o observador casual dos

macacos, surtos de atividades, as quais são muitas vezes

agressivas, podem parecer um caos social. Entretanto,

conhecendo os indivíduos, conhecendo quem está relacionado

com quem, e conhecendo a estrutura das alianças e rivalidade,

Cheney e Seyfarth são capazes de dar sentido ao caos

aparente. Eles descrevem um encontro típico: “Uma fêmea,

Newton, pode investir sobre outra, Tycho, enquanto disputa

uma fruta. Quando Tycho se afasta, a irmã de Newton, Charing

Cross, corre para ajudar a espantá-la. Enquanto isso,

Wormwood Scrubs, outra irmã de Newton, corre para a irmã de

TVcho, Holborn, que está se alimentando afastada uns 180

metros, e a golpeia na cabeça.”

O que começa como um conflito entre dois indivíduos expande-

se rapidamente e passa a incluir amigos e parentes, e pode ser

influenciado por surtos recentes e similares de agressão. “Não

apenas as macacas devem predizer o comportamento mútuo,

mas também avaliar as relações que elas têm umas com as

outras”, explicam Cheney e Seyfarth. “Uma macaca

confrontada com todo este tumulto não pode contentar-se

simplesmente em aprender quem lhe é dominante ou quem lhe

Page 274: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

é subordinado; ela deve também

140

saber quem está aliado com quem, e quem tem tendência a

ajudar uma oponente.” As exigências mentais de monitorar

alianças sociais são a chave para um paradoxo na

primatologia, argumenta Nicholas Humphrey, psicólogo na

Universidade de Cambridge.

É este o paradoxo: “Tem sido repetidamente demonstrado em

situações artificiais no laboratório que macacos antropóides

possuem poderes impressionantes de raciocínio criativo”, expli-

ca Humphrey, “e, ainda assim, estes feitos de inteligência

simplesmente não têm quaisquer paralelos no comportamento

destes mesmos animais em seu meio ambiente natural. Ainda

não ouvi falar de nenhum exemplo de campo de um chimpanzé

(...) que faz uso de sua capacidade total de raciocínio inferente

na solução de um problema prático biologicamente relevante.”

O mesmo pode ser dito a respeito dos humanos, comenta

Humphrey. Suponha, por exemplo, que Einstein fosse

observado como os primatologistas observam os chimpanzés,

por meio de um par de binóculos de campo. Apenas raramente

veriam eles cintilações do gênio de um grande homem. “No

Page 275: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

mundo comum dos assuntos práticos, ele não usou o seu

gênio, pois não precisou usá-lo.”

Ou a seleção natural foi generosa ao fazer os primatas —

inclusive os humanos — mais espertos do que realmente preci-

sam ser, ou sua vida cotidiana é mais exigente do ponto de

vista intelectual do que parece ser para um observador externo.

Humphrey chegou à conclusão de que a segunda destas

alternativas é a correta: especificamente, que os elos sociais da

vida do primata apresentam um duro desafio intelectual. O

principal papel de intelecto criativo, sugere ele, é “manter a

sociedade unida”.

Os primatologistas agora sabem que a rede de alianças dentro

dos grupos de primatas é extremamente complexa. Aprender

as complicações de tal rede, como os indivíduos devem fazer

se quiserem ter sucesso, é suficientemente difícil. Mas a tarefa

torna-se muito mais difícil em razão da constante mudança de

alianças, na medida em que os indivíduos procuram de modo

incessante aumentar o seu poder político. Sempre cuidando de

seus interesses, e dos interesses de seus parentes próximos,

os indivíduos podem algumas vezes achar vantajoso romper as

alianças existentes e formar novas, mesmo, talvez, com antigos

Page 276: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

rivais. Os membros do grupo encontram-se portanto em meio a

padrões de alianças variáveis, e exige-se um intelecto aguçado

para jogar o jogo sempre em mutação que Humphrey chama

xadrez social.

Os jogadores do xadrez social devem ser mais hábeis do que

os jogadores deste jogo de mesa antigo, pois não apenas as

peças

141

mudam de identidade de modo imprevisível — cavalos viram

bispos, peões viram torres, e assim por diante — mas também

ocasionalmente aliados trocam de lado e tornam-se inimigos.

Os jogadores do xadrez social devem estar constantemente

alertas, à espreita de uma vantagem potencial, e precavidos

contra uma desvantagem inesperada. Como eles o fazem?

Para os indivíduos nas sociedades de primatas o desafio é ser

capaz de prever o comportamento dos outros. Uma maneira

seria os indivíduos terem um grande banco mental em seus

cérebros, que armazenasse todas as ações possíveis de seus

companheiros de grupo e suas respostas apropriadas. Este é o

modo pelo qual o poderoso programa de computador Deep

Thought (Pensamento Profundo) obtém o status de Grande

Page 277: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

Mestre no xadrez. Entretanto, computadores são muito mais

rápidos do que cérebros de seres vivos o são na busca através

de todas as combinações possíveis apropriadas para um

determinado conjunto de circunstâncias. É necessário algum

outro modo. Se, por exemplo, os indivíduos fossem capazes de

monitorar o seu próprio comportamento, em vez de operar

simplesmente como autômatos computadorizados, então eles

desenvolveriam um senso heurístico do que fazer sob certas

circunstâncias. Por extrapolação, eles poderiam ser então

capazes de prever o comportamento dos outros sob as

mesmas circunstâncias. Esta habilidade de monitoramento, que

Humphrey chama o Olho Interior, é uma definição de cons-

ciência, e conferiria considerável vantagem evolutiva aos indiví-

duos que a possuíssem.

Uma vez estabelecida a consciência, não houve mais volta,

pois os indivíduos menos dotados estariam em desvantagem.

Da mesma forma, aqueles com uma pequena vantagem seriam

ainda mais favorecidos. Uma corrida armamentista se seguiria,

conduzindo o processo sempre para a frente, estimulando a

inteligência e aperfeiçoando a autopercepção. À medida que o

Olho Interior tornou-se cada vez mais observador,

Page 278: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

inexoravelmente emergiria um sentido real do eu, uma

consciência refletiva, um Eu Interior.

A hipótese, que é parte do desenvolvimento da hipótese da

inteligência social, atraiu muito interesse e apoio. Em um artigo

de revisão de estudos de primatas publicado em 1986 na

revista Science, Cheney, Seyfarth e Barbara Smuts chamaram

a atenção para a importância da inteligência em contextos

sociais, quando comparada com sua importância em satisfazer

as exigências da tecnologia. E Robin Dunbar examinou as

diferentes quantidades de córtex cerebral — a parte “pensante”

do cérebro — em várias

142

espécies de primatas. Ele descobriu que as espécies que

viviam em grandes grupos, e portanto deparavam com os jogos

mais complexos do xadrez social, tinham o córtex cerebral

maior. “Isto é consistente com a hipótese da inteligência social”,

conclui ele.

Duas linhas de indícios têm sido importantes na revolução da

compreensão do comportamento animal — a revolução que

erodiu o dogma behaviorista que afirma que os animais não

têm mentes. Uma foi um conjunto pioneiro de experiências

Page 279: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

projetadas para detectar a autopercepção — isto é, sinais de

auto-reconhecimento — em animais que não os humanos. A

segunda envolvia a busca de sinais de engodo tático nos

primatas em seu habitat natural.

Uma experiência tão privada quanto a consciência está

frustrantemente além dos métodos usuais do psicólogo

experimental. Esta pode ser uma das razões por que muitos

pesquisadores afastaram-se assustados da noção de mente e

consciência nos animais não humanos. Entretanto, no final da

década de 1960, Gordon Gallup, psicólogo da State University

of New York, em Albany, projetou um teste para o sentido do

eu: o teste do espelho. Se um animal fosse capaz de

reconhecer sua imagem refletida em um espelho como seu

“eu”, então poderíamos dizer que ele possui uma percepção do

eu, ou consciência. Os donos de animais de estimação sabem

que cães e gatos reagem à sua imagem em um espelho, mas

muitas vezes estes a tratam como um outro indivíduo cujo

comportamento em pouco tempo torna-se intrigante e depois

aborrecido. (Não obstante, estes mesmos donos de animais de

estimação jurarão que seu gato ou cachorro tem

autopercepção.)

Page 280: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

O experimento — que ocorreu a Gallup numa manhã enquanto

se barbeava—demandava a familiarização do animal com o

espelho e a seguir a marcação da sua testa com uma pequena

mancha vermelha. Se o animal percebesse que a imagem

refletida fosse apenas um outro indivíduo, poderia ficar

intrigado com a curiosa mancha vermelha e poderia mesmo

tocar o espelho. Mas se o animal percebesse que a imagem

era de si mesmo, ele provavelmente tocaria a mancha em seu

próprio corpo. Da primeira vez que Gallup tentou fazer a

experiência com um chimpanzé, o animal agiu como se

soubesse que era a sua própria imagem; ele tocou a mancha

vermelha em sua testa. O relato de Gallup sobre a experiência,

publicado em um artigo de 1970 na revista Science, constitui

um marco na nossa compreensão das mentes dos animais, e

os psicólogos perguntaram-se o quão amplamente

disseminado o auto-reconhecimento se mostraria ser.

143

Não muito, é a resposta. Os orangotangos passaram no teste,

mas, surpreendentemente, os gorilas não. Em situações menos

formais, alguns observadores alegam ter visto gorilas usar

espelhos como se reconhecessem a própria imagem, o que

Page 281: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

eles consideram indicação de sentido do eu nestes animais.

Um Rubicão mental, com a autopercepção em uma margem e

sua ausência na outra, faria sentido se a margem em que se

encontra a autopercepção incluísse os humanos e os grandes

macacos, ficando o resto dos primatas e outros animais na

outra. Entretanto, alguns primatologistas consideraram esta

divisão demasiado exclusiva, dadas as suas observações da

complexa vida social de muitas espécies de símios. Um teste

para esta exclusividade surgiu recentemente, o teste do

“engodo tático”.

Andrews Whiten e Richard Byrne, da Universidade de Saint

Andrews, na Escócia, cunharam este termo, que eles definem

como “a capacidade de um indivíduo utilizar uma 'ação

honesta' de seu repertório normal em um contexto diferente, de

maneira tal que mesmo indivíduos familiares são enganados”.

Em outras palavras, um animal mente intencionalmente para

outro. Para ser capaz de enganar intencionalmente, um animal

deve ter um sentido de como suas ações parecem para um

outro indivíduo. Esta habilidade exige autopercepção. Se o

engodo realmente acontece, ele é provavelmente raro: como o

garoto que gritou “Lobo!”, você não pode aplicá-lo

Page 282: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

seguidamente se quiser preservar sua credibilidade.

Byrne e Whiten ficaram interessados no engodo depois de ver

diversos exemplos do que poderia ser interpretado como tal em

um grupo de babuínos que eles estavam observando nas mon-

tanhas Drakensberg, no sul da África. Por exemplo, um dia

Paul, um macho adolescente, aproximou-se de Mel, uma fêmea

adulta, que estava empenhada em desenterrar um tubérculo

suculento. Paul olhou à sua volta e viu que nenhum outro

babuíno estava por perto, embora tivesse certeza de que não

estavam muito longe. Paul deixou escapar um grito penetrante,

como se estivesse em perigo. A mãe de Paul, que era

dominante em relação a Mel, reagiu como qualquer mãe

protetora o faria: ela correu para a cena e enxotou Mel, a

atacante aparente. Paul então comeu, de maneira casual, o

tubérculo abandonado. Teria Paul pensado: “Hmmm, se eu

gritar, minha mãe pensará que Mel está me atacando. Ela cor-

rerá para defender-me, e eu serei deixado com o suculento

tubérculo e poderei comê-lo?” Se verdadeiro, isto seria um

exemplo de engodo tático.

144

Byrne e Whiten acharam que poderia ser verdadeiro, e, infor-

Page 283: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

malmente, reuniram seus colegas primatologistas em torno de

suas observações de campo. Muitas histórias similares à de

Paul foram contadas, embora poucas tivessem constituído

páginas da literatura científica, já que eram anedóticas e

portanto não-científicas. Byrne e Whiten efetuaram

levantamentos com mais de uma centena de seus colegas, em

1985 e novamente em 1989, solicitando-lhes relatos de

supostos engodos táticos. Eles receberam mais de trezentos.

Os exemplos não se limitavam a observações com macacos

mas incluíam também observações com macaquinhos

arborícolas. Interessantemente, ninguém alegou ter visto

engodo tático em outros primatas, tais como os lemuróides e

bush babies, a não ser nos macacos e macaquinhos

arborícolas.

O problema com que os primatologistas deparam ao procurar

indícios de engodo tático é este: será a ação verdadeiramente

um exemplo de raciocínio individual, com base num sentido do

eu? Ou será ela meramente o resultado do aprendizado, que

não exige um sentido do eu? Paul, por exemplo, pode ter

simplesmente aprendido que, sob as circunstâncias que

encontrou, seu grito lhe daria acesso ao tubérculo de Mel;

Page 284: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

neste caso sua ação seria uma resposta aprendida e não um

ato de engodo tático.

Quando Byrne e Whiten aplicaram critérios estritos aos su-

postos exemplos de engodo tático, descartando, o mais

cuidadosamente possível, possibilidades de aprendizado,

descobriram que, dos 253 casos reunidos na pesquisa de

1989, apenas 16 poderiam ser considerados, verdadeiramente,

de engodo tático. Todos estes casos eram com macacos, e a

maioria chimpanzés. Darei um exemplo, que foi observado pelo

primatologista holandês Frans Plooy na reserva Gombe

Stream, na Tanzânia.

Um chimpanzé macho adulto estava sozinho na área de ali-

mentação quando uma caixa foi aberta eletronicamente,

revelando a presença de bananas. Neste momento, chegou um

segundo chimpanzé. Então o primeiro rapidamente fechou a

caixa e afastou-se indiferente, olhando como se nada de mais

estivesse acontecendo. Ele esperou até o intruso partir, e então

rapidamente abriu a caixa e apoderou-se das bananas. Porém,

ele havia sido enganado. O intruso não havia ido embora mas

sim se escondido, e esperava para ver o que estava

acontecendo. O pretenso trapaceiro havia sido trapaceado.

Page 285: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

Este é um exemplo convincente de engodo tático.

Observações como esta abrem uma janela para a mente dos

chimpanzés. Estes animais evidentemente possuem um grau

sig-

145

nificativo de consciência reflexiva, uma conclusão que os

pesquisadores que trabalham com chimpanzés diariamente

endossam com entusiasmo. Os chimpanzés exibem um forte

sentido de percepção na maneira pela qual interagem uns com

os outros e com os humanos. Eles são capazes de ler a mente

como os humanos o são, mas de modo mais limitado.

Nos humanos, a leitura da mente vai além de simplesmente

predizer o que os outros farão sob certas circunstâncias: ela

inclui como os outros podem estar se sentindo. Todos nós

temos a experiência da simpatia, ou empatia, pelos outros

quando estes enfrentam situações que sabemos ser dolorosas

ou aflitivas. De modo vicário, experimentamos a angústia dos

outros, algumas vezes tão intensamente que chegamos a

sofrer dores físicas. A mais pungente das experiências vicárias

na sociedade humana é o medo da morte, ou simplesmente a

percepção da morte, que tem desempenhado um papel muito

Page 286: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

importante na construção de mitologias e religiões. A despeito

de sua autopercepção, os chimpanzés no máximo parecem

intrigados com a morte. Há muitos relatos anedóticos de

indivíduos, ou mesmo famílias, aflitas ou desorientadas quando

um parente morre. Por exemplo, quando um bebê morre, sua

mãe algumas vezes carrega o diminuto corpo a esmo durante

alguns dias antes de descartar-se dele. A mãe parece estar

experimentando uma sensação de aturdimento e não o que

chamamos pesar. Mas, como sabê-lo? Mais significativo,

talvez, é a falta do que reconheceríamos como simpatia pela

mãe despojada por parte dos outros indivíduos. O que quer

que a mãe esteja sofrendo, ela sofre sozinha. A limitação dos

chimpanzés em ter empatia com os outros estende-se a si

próprios como indivíduos: ninguém viu indícios de que os

chimpanzés estão cientes de sua própria mortalidade, de uma

morte iminente. Mas, novamente, como sabê-lo?

O que podemos dizer sobre a autopercepção de nossos an-

cestrais? Uns 7 milhões de anos já se passaram desde que os

humanos e os chimpanzés compartilharam um ancestral

comum. Nós, portanto, devemos ser cautelosos em assumir

que os chimpanzés permaneceram inalterados, e que olhando

Page 287: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

para eles estamos efetivamente olhando para aquele ancestral

comum. Os chimpanzés devem ter evoluído de várias maneiras

desde que divergiram da linhagem humana. Mas é plausível

sugerir que o ancestral comum, um macaco de cérebro grande

que vivia uma vida socialmente complexa, tivesse desenvolvido

um nível de consciência igual ao do chimpanzé.

146

Vamos assumir que o ancestral comum dos humanos e dos

macacos africanos possuísse um nível de autopercepção

equivalente àquele dos chimpanzés modernos. A partir do que

sabemos sobre a biologia e a organização social das espécies

australopitecíneas, eles eram essencialmente macacos

bipédes: a estrutura social entre estas espécies não deveria ter

sido mais intensa do que vemos entre os babuínos modernos.

Portanto, não há razão irrefutável pela qual seu nível de

autopercepção devesse ter sido reforçado durante os primeiros

5 milhões de anos de existência da família humana.

As mudanças significativas que ocorreram com a evolução do

gênero Homo, no tamanho do cérebro, arquitetura da organi-

zação social e modo de subsistência, provavelmente também

marcaram o começo de uma mudança no nível de consciência.

Page 288: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

Os começos do modo de vida de caça e coleta certamente

aumentaram a complexidade do xadrez social que nossos

ancestrais tinham que dominar. Hábeis jogadores — aqueles

equipados com um modelo mental mais sensível, uma

consciência mais desenvolvida — teriam desfrutado um maior

sucesso social e reprodutivo. Isto é proveitoso para a seleção

natural, que teria elevado a consciência para níveis cada vez

mais altos. Este desdobramento gradual da consciência

transformou-nos em um novo tipo de animal. Transformou-nos

em um animal que cria padrões arbitrários de comportamento

com base no que é considerado certo ou errado.

Muito disto, é claro, é especulação. Como podemos saber o

que aconteceu com o nível de consciência de nossos

ancestrais durante os 2,5 milhões de anos passados? Como

podemos detectar quando esta se tomou o que

experimentamos hoje? A dura realidade com que os

antropólogos deparam é que estas questões podem ser

irrespondíveis. Se tenho dificuldade em provar que um outro

ser humano tem o mesmo nível de consciência que eu, e se a

maioria dos biólogos recua ao tentar determinar o grau de

consciência nos animais não humanos, como podemos

Page 289: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

discernir sinais de consciência reflexiva em criaturas mortas há

muito tempo? A consciência é ainda menos visível no registro

arqueológico do que a linguagem. Alguns comportamentos

humanos, tal como a expressão artística, quase certamente

refletem ambas, a linguagem e a percepção consciente.

Outros, como a fabricação de artefatos de pedra, podem, como

vimos, dar pistas sobre a linguagem mas não sobre a

consciência. Entretanto, há uma atividade humana que é plena

de consciência e que algumas vezes deixa sua marca no

registro arqueológico: o sepultamento deliberado dos mortos.

147

A remoção ritual dos mortos fala claramente de uma percepção

da morte, e portanto de uma percepção do eu. Todas as socie-

dades têm maneiras pelas quais a morte é aceita como parte

de sua mitologia e religião. Há miríades de maneiras pelas

quais isto é feito nos tempos modernos, variando do cuidado

extensivo do cadáver durante um longo período, talvez

envolvendo a sua movimentação de uma locação especial para

outra depois de um período de um ano ou mesmo mais, até

uma atenção mínima ao corpo. Algumas vezes, mas não

freqüentemente, o ritual envolve o sepultamento. O

Page 290: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

sepultamento ritual nas sociedades antigas ofereceria a

oportunidade para que a cerimônia se tornasse “congelada” no

tempo, disponível mais tarde a um arqueólogo disposto a

quebrar a cabeça com ela.

O primeiro indício de sepultamento deliberado na história

humana é o sepultamento neanderthal há não muito mais que

100 mil anos. Um dos sepultamentos mais pungentes

aconteceu um pouco mais tarde, há uns 60 mil anos, nas

montanhas Zagros ao norte do Iraque. Um macho adulto foi

enterrado na entrada de uma caverna; seu corpo

aparentemente havia sido colocado sobre uma câmara de

flores de potencial curativo, a julgar pelo pólen encontrado em

torno do esqueleto fossiüzado. Talvez, especularam alguns

antropólogos, ele tivesse sido um xamã. Antes de 100 mil anos

atrás, não há indício de qualquer tipo de ritual que pudesse

indicar uma consciência reflexiva. Nem, como observado no

capítulo 6, há qualquer forma de arte. É verdade que a

ausência de tais indícios não prova definitivamente a ausência

de consciência. Mas também não pode ser acrescentada como

apoio à existência da consciência. Acharia surpreendente,

porém, se os ancestrais imediatos dos povos sapiens antigos, o

Page 291: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

desaparecido Homo erectus, não tivessem um nível de

consciência significativamente maior do que o dos chimpanzés.

Sua complexidade social, grande tamanho cerebral, e uma

provável habilidade lingüística, todos estes fatores apontam

para isto.

Os neanderthais, como já sugeri, e provavelmente outros

sapiens antigos, tinham realmente uma percepção da morte e

portanto, indubitavelmente, uma consciência reflexiva

altamente desenvolvida. Mas, teria ela a mesma luminosidade

que experimentamos hoje? Provavelmente não. A emergência

de uma linguagem completamente moderna e de uma

consciência também completamente moderna estavam sem

dúvida interligadas, cada uma alimentando-se da outra. Os

humanos modernos tornaram-se humanos quando passaram a

falar como nós e tiveram a expe-

146

riência do eu como nós a temos. Nós certamente vemos

indícios disto na arte da Europa e da África a partir de 35 mil

anos atrás e no elaborado ritual que acompanhava o

sepultamento no Paleolítico Superior.

Page 292: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

Toda sociedade humana tem um mito de origem, a história

mais fundamental de todas. Estes mitos de origem têm como

fonte a consciência reflexiva, a voz interior que procura

explicações para tudo. Desde que a consciência reflexiva

passou a arder brilhantemente na mente do homem, a

mitologia e a religião têm sido parte da história humana.

Mesmo nesta era científica, elas provavelmente continuarão a

fazê-lo. Um tema comum da mitologia é a atribuição de

motivações e emoções semelhantes às dos humanos a animais

não humanos — e mesmo a forças e objetos físicos tais como

montanhas e tempestades. Esta tendência de antropomorfizar

flui naturalmente a partir do contexto no qual a consciência está

envolvida. A consciência é uma ferramenta social utilizada na

compreensão do comportamento dos outros ao modelar este

comportamento de acordo com nossos próprios sentimentos. É

uma extrapolação simples e natural imputar estas mesmas

motivações a aspectos do mundo que são inumanos mas não

obstante importantes.

Animais e plantas são fundamentais para a sobrevivência de

coletores-caçadores, assim como os elementos naturais, que

nutrem o meio ambiente. A vida, como um intercâmbio

Page 293: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

complexo de todos estes elementos, é vista como um

intercâmbio de ações intencionais, exatamente como o nexo

social. Portanto, não é surpreendente que os animais e as

forças físicas desempenhem um papel importante na mitologia

dos povos que vivem à procura de alimentos em todo o mundo.

A mesma coisa deve ter sido válida no passado.

Na minha visita a muitas das cavernas decoradas da França há

uma década, este pensamento ocorria-me constantemente. As

imagens que vi diante de mim, algumas simplesmente esboços,

algumas trabalhadas com detalhes, eram sempre muito fortes

no que diz respeito ao seu impacto sobre minha mente, mas

elusivas em seu significado. As figuras meio humanas e meio

animais, em particular, desafiaram minha imaginação e a

derrotaram. Eu estava certo de estar na presença de elementos

do mito de origem de um povo antigo, mas não tinha modo de

vê-lo. Sabemos da história recente que o eland tem uma

miríade de poderes espirituais para o povo San do sul da

África. Mas podemos apenas especular

149

sobre o papel que o cavalo e o bisão desempenhavam na vida

espiritual dos europeus da Idade do Gelo. Sabemos que eles

Page 294: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

eram poderosos mas não temos idéia de que modo.

Parado em frente às figuras de bisões em Le Tuc d’Audoubert,

senti a conexão entre mentes humanas através dos milênios: a

mente dos escultores daquelas figuras e a minha própria — a

mente do observador. E senti a frustração de estar distante do

mundo dos artistas, não porque estivéssemos separados no

tempo, mas porque estávamos separados por nossas culturas

diferentes. Este é um dos paradoxos do Homo sapiens: temos

a experiência da unidade e da diversidade de uma mente

moldada por eras de vida como coletor-caçador. E temos a

experiência de sua diversidade em diferentes culturas —

expressas na linguagem, costumes e religiões — que nós

criamos e que nos criam. Deveríamos alegrar-nos com um

produto tão maravilhoso da evolução.

150

Page 295: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

Bibliografia e leituras adicionais PREFÁCIO Leakey, Richard E., e Roger Lewin, Origins (Nova York: E. P. Dutton, 1977).

-----------, Origins Reconsidered (Nova York: Doubleday, 1992).

Tattersall, Ian, The Human Odyssey (Nova York: Prentice Hall, 1993).

1. OS PRIMEIROS HUMANOS

Broom, Robert, The Coming of Man: Was It Accident or Design? (Nova York: Witherby, 1933).

Coppens, Yves, “East Side Story: The Origin of Humankind,'' Scientific American, maio de 1944, pgs. 88-95.

Darwin, Charles, The Descent of Man (Londres: John Murray, 1871). Lewin, Roger, Bowes of Contention (Nova York: Touchstone, 1988).

Lovejoy, Owen, “The Origin of Man”, Science 211 (1981): 341-350. [Veja as respostas no número 217 (1982) da mesma revista: 295-306.]

-----------, The Evolution of Human Walking”, Scientific American, novembro de 1988, pgs. 118-125.

Pilbeam, David, “Hominoid Evolution and Hominoid Origins”,

Page 296: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

American Anthropologist, 88 (1986): 29&312.

Rodman, Peter, e Henry M. McHenry, “Bioenergetics of Hominid Bipedalism”, American Journal of Physical Anthropology 52 (1980): 103-106.

Sarich, Vincent M., “A Personal Perspective on Hominoid Macromolecular Systematics”, em New Interpretations of Ape and Human Ancestry, editado por Rüssel L. Ciochon e Robert S. Corruccini (Nova York: Plenum Press, 1983), pgs. 135-150.

Wallace, Alfred Rüssel, Darwinism (Londres: Macmillan, 1889).

2. UMA FAMÍLIA NUMEROSA

Foley, Robert A., Another Unique Species (Harlow, Essex: Longman Scientific and Technical, 1987).

-----------, “How Many Species of Hominid Should There Be?” Journal of Human Evolution 20 (1991): 413429.

Johanson, Donald C. e Maitland A. Edey, Lucy: The Beginnings of Humankind (Nova York: Simon & Schuster, 1981).

Johanson, Donald C. e Tim D. White, “A Systematic Assessment of Early African Hominds”, Science 202 (1979): 321-330.

Leakey, Richard E. The Making of Mankind (Nova York: E. P. Dutton, 1981).

Schick, Kathy D. e Nicholas Toth, Making Stones Speak (Nova York: Simon & Schuster, 1993).

Page 297: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

Susman, Randall L. e Jack Stern, “The Locomotor Behavior of Australopithecus afaren-sis”, American Journal of Physical Anthropology 60 (1983): 279-317.

Susman, Randall L., et al. “Arboreality and Bipedality in the Hadar Hominids”, Folia Primatologica 43 (1984): 113-156.

151

Toth, Nicholas, “Archaeologies; Evidence for Preferential Right-Handedness in “The Lower Pleistocene, and Its Possible Implications”, Journal of Human Evolution 14 (1985): 607-614.

------------, “The First Technology”, Scientific American, abril 1987,112-121.

Wynn, Thomas, e William C. McGrew, “An Ape's View of the Oldowan”, Man 24 (1989): 383-398.

3. UM TIPO DIFERENTE DE HUMANO

Aiello, Leslie, “Patterns of Stature and Weight in Human Evolution”, American Journal of Physical Anthropology 81 (1990): 186-187.

Bogin, Barry, The Evolution of Human Childhood”, Bioscience 40 (1990): 16-25.

Foley, Robert A., e Phyllis E. Lee, “Finite Social Space, Evolutionary Pathways, and Reconstructing Hominid Behavior”, Science 143 (1989): 901-906.

Martin, RobertD., “Human Brain Evolution in an Ecological Context”, The Fifty-second James Arthur Lecture on the Human

Page 298: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

Brain (Nova York: American Museum of Natural History, 1983).

Spoor, Fred, et al., “Implications of Early Hominid Labyrinthine Morphology for Evolution of Human Bipedal Locomotion”, Nature 369 (1994): 645-648.

Stanley, Steven M., “An Ecological Theory for the Origin of Homo”, Paleobiology 18 (1992): 237-157.

Walker, Alan, e Richard E. Leakey, The Nariokotome Homo erectus Skeleton (Cambridge: Harvard University Press, 1993).

Wood, Bernard, “Origin and Evolution of the Genus Homo”, Nature 355 (1992): 783-790.

4. HOMEM, O NOBRE CAÇADOR?

Ardrey, Robert, The Hunting Hypothesis (Nova York: Atheneum, 1976).

Binford, Lewis, Bones: Ancient Men and Modern Myth (San Diego: Academic Press, 1981).

------------, “Human Ancestors: Changing Views of their Behavior”, Journal of Antropológical Archaeology 4 (1985): 292-327.

Bunn, Henry, e Ellen Kroll, “Systematic Butchery by Plio/Pleistocene Hominids at Olduvai Gorge,Tanzania”, Current Antropology 27 (1986): 4321-452.

Bunn, Henry, et al., “FxJj50: An Early Pleistocene Site in Northern Kenya”, World Archaeology 12 (1980): 109-136.

Page 299: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

Isaac, Glynn, “The Sharing Hypothesis”, Scientific American, abril 1978,90-106.

------------, “Aspects of Human Evolution”, em Evolution from Molecules to Man, D. S. Bendall, ed. (Cambridge: Cambridge University Press, 1983).

Lee, Richard B., e Irven De Vore, eds., Man the Hunter (Chicago: Aldine, 1968). Potts, Richard, Early Hominid Activities at Olduvai (Nova York: Aldine, 1988).

Robinson, John T., “Adaptive Radiation in the Australopithecines and the Origin of Man”, in F. C. Howell e Bourliere F., eds., African Ecology and Human Evolution (Chicago: Aldine, 1963), 385-416.

Sept, Jeanne M., “A New Perspective on Hominid Archeologica; Sites from the Mapping of Chimpanzee Nests”, Current Antropology 33 (1992): 187-208.

Shipman, Pat, “Scavenging or Hunting in Early Hominids?” American Anthropologist 88 (1986): 27-43.

Zihlman, Adrienne, “Women the Shapers of the Human Adaptation”, em Woman the Gatherer, Frances Dahlberg, ed. (New Haven: Yale University Press, 1981)

5. A ORIGEM DOS HUMANOS MODERNOS

Klein, Richard G., “The Archeology of Modern Humans”, Evolutionary Antropology 1 (1992): 5-14.

152

Page 300: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

Lewin, Roger, The Origin of Modern Humans (Nova York: W. H. Freeman, 1993).

Mellars, Paul, “Major Issues in the Emergence of Modern Humans”, Current Antropology 30 (1989): 349-385.

Mellars, Paul, e Christopher Stringer, eds., The Human Revolution: Behavioural and Biological Perspectives on the Origins of Modem Humans (Edimburgo: Edinburgh University Press, 1989).

Rouhani, Shahin, “Molecular Genetics and the Pattern of Human Evolution”, em The Human Revolution, Mellars e Stringer, eds.

Stringer, Christopher, “The Emergence of Modern Humans”, Scientific American, dezembro 1990, pp. 98-104.

Stringer, Christopher, e Clive Gamble, In Search of Neanderthals (Londres: Thames & Hudson, 1993).

Thome, Alan G., e Milford H. Wolpoff, “The Multiregional Evolution of Humans”, Scientific American, abril 1992, pp. 76-83.

Trinkaus,Erik, e Pat Shipman, The Neanderthal (Nova York: Alfred A. Knopf, 1993).

White, Randa, “Rethinking the Middle/Upper Paleolithic Transition”, Current Antropology 23 (1982): 169-189.

Wilson, Allan C, e Rebecca L. Cann, “The Recent African Genesis of Humans”, Scientific American, abril 1992, pp. 68-73.

Page 301: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

6. A LINGUAGEM DA ARTE

Bahn, Paul, e Jean Vertut, Images of the Ice Age (Nova York: Facts on File, 1988).

Conkey, Margaret W., “New Approaches in the Search for” Davidson, Iain, e William Noble, “The Archeology of Depiction and Language”, Current Antropology 30 (1989): 125-156.

Halverson, John, “Art for Art's Sake in the Paleolithic”, Current Antropology 28 (1987): 63-89.

Lewin, Roger, “Paleolithic Paint Job”, Discover, julho 1993,64-70.

Lewis-Williams, J. David, e Thomas A. Dowson, “The Signs of All Times”, Current Antropology 29 (1988): 202-245.

Lindly, John M. e Geoffrey A. Clark, “Symbolism and Modern Human Origins”, Current Antropology 321 (1991): 233-262.

Lorblanchet, Michel, “Spitting Images”, Archeology, novembro/dezembro 1991,27-31. Scarre, Chris, “Painting by Resonance”, Nature 338 (1989): 382.

White, Randall, “Visual Thinking in the Ice Age”, Scientific American, julho 1989, pp. 92-99.

7. A ARTE DA LINGUAGEM

Bickerton, Derek, Language and Species (Chicago: University of Chicago Press, 1990).

Chomsky, Noam, Language and Problems of Knowledge

Page 302: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

(Cambridge: MIT Press, 1988).

Davidson, Iain, e William Noble, “The Archeology of Depiction and Language”, Current Antropology 30 (1989): 125-156.

Deacon, Terrence, “The Neural Circuitry Underlying Primate Calls and Human Languagew”, Human Evolution 4 (1989): 367-401.

Gibson, Kathleen, e Tim Ingold, eds., Tools, Language, and Intelligence (Cambridge: Cambridge University Press, 1992).

Holloway, Ralph, “Human Paleontological Evidence Relevant to Language Behavior”, Human Neurobiology 2 (1983): 105-114.

Issac, Glynn, “Stages of Cultural Elaboration in the Pleistocene”, em Origins and Evolution of Language and Speech (Nova York: New York Academy of Sciences, 1976). Steven R. Hamad, Horst D. Stelis, e Jane Lancaster, eds.

Jerison, Harry, “Brain Size and the Evolution of Mind”. The FiftY-ninth James Arthur Lecture on the Human Brain (Nova York American Museum of Natural History, 1991).

153

Laitman, Jeffrey T., TheAnatomy of Human Speech”, Natural History, agosto 1984,20-27.

Pinker, Steven, The Language Instinct (Nova York: William Morrow, 1994).

Pinker, Steven, e Paul Bloom, “Natural Language and Natural Selection”, Behavioral and Brain Sciences 13 (1990): 707-784.

Page 303: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

White, Randall, “Thoughts on Social Relationships and Language in Hominid Evolution”, Journal of Social and Personal Relationships 2 (1985): 95-115.

Wills, Christopher, The Runaway Brain (Nova York: Basic Books, 1993).

Wynn, Thomas, e William C. McGrew, “An Ape's View of the Oldowan”, Man 24 (1989): 383-398.

8. A ORIGEM DA MENTE

Bryne, Richard e Andrew Whiten, Machiavellian Intelligence: Social Expertise and the Evolution of Intellect in Monkeys, Apes, and Humans (Oxford: Clarendon Press, 1988).

Cheney, Dorothy L., e Robert M. Seyfarth, How Monkeys See the World (Chicago: University of Chicago Press, 1990).

Dennett, Daniel, Consciousness Explained (Boston: Brown, 1991).

Gallup, Gordon, “Self-awareness and the Emergence of Mind in Primates”, American Journal Primatology 2 (1982): 237-248.

Gibson, Kathleen, e Tim Ingold, eds., Tools, Language, and Inteligence (Cambridge: Cambridge University Press, 1992).

Griffin, Donald, Animal Minds (Chicago: University of Chicago Press, 1992).

Humphrey, Nicholas K., The Inner Eye (Londres: Faber & Faber, 1986).

Page 304: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997

-----------, A History of the Mind (Nova York: HarperCollins, 1993).

Jerison, Harry, “Brain Size and the Evolution of Mind”, The Fifty-ninth James Arthur Lecture on the Human Brain (New York: American Museum of Natural History, 1991).

McGinn, Colin, “Can We Solve the Mind-Body Problem?”, Mind 98 (1989): 349-366.

Savage-Rumbaugh, Sue, e Roger Lewin, Kami: At the Brink of Human Mind (Nova York: John Wiley, 1994). 154

Page 305: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997
Page 306: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997
Page 307: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997
Page 308: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997
Page 309: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997
Page 310: A Origem da Espécie Humana - leandro marshall · PDF fileA ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA Richard Leakey Tradução de ALEXANDRE TORT Rio de Janeiro — 1997