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A PATOLOGIZAÇÃO DAS QUEIXAS ESCOLARES E A MEDICALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO NOS DIAGNÓSTICOS DE TRANSTORNO DE DÉFICIT DE ATENÇÃO E HIPERATIVIDADE (TDAH) Cláudia Elizabete da Costa Moraes Mondini 1 [email protected] 1 INTRODUÇÃO O número de encaminhamentos de alunos com dificuldades escolares para os serviços de saúde tem aumentado significativamente. Entre as principais queixas estão: desatenção, agitação, indisciplina, agressividade, dificuldades na aquisição da leitura e da escrita. Essa constatação tem promovido alguns debates no cenário nacional, em especial entre duas formas distintas de analisar as dificuldades nos processos de escolarização: uma que acredita que as origens de tais problemas estão no nível individual e decorrem de fatores orgânicos, e outra que os considera na sua dimensão social e histórica como resultado da produção social do fracasso escolar. A compreensão de que problemas escolares ocorrem em decorrência de doenças e transtornos pode levar à patologização do aluno e desencadear o processo de medicalização da educação, no qual soluções para as dificuldades apresentadas no contexto escolar são buscadas na área da saúde, resultando em diagnósticos de transtornos, em especial Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH). Esse olhar dominante nem sempre considera questões sociais, econômicas e políticas que interferem na aprendizagem e as dificuldades vivenciadas no processo são naturalizadas e descontextualizadas. A mudança deste cenário exige que as queixas escolares sejam ressignificadas e compreendidas na sua complexidade. Isso implica reflexões sobre os fatores que as desencadeiam e um olhar para o interior da escola como promotora do fracasso escolar. 1 Psicóloga, especialista em Educação Especial, Psicopedagogia, Neuropsicologia e Psicologia Escolar e Educacional, mestre em Educação, professora do curso de Psicologia da UFMS/CPAN

A PATOLOGIZAÇÃO DAS QUEIXAS ESCOLARES E A MEDICALIZAÇÃO DA ... · 1 Psicóloga, especialista em Educação Especial, Psicopedagogia, Neuropsicologia e Psicologia Escolar e Educacional,

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A PATOLOGIZAÇÃO DAS QUEIXAS ESCOLARES E A

MEDICALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO NOS DIAGNÓSTICOS DE

TRANSTORNO DE DÉFICIT DE ATENÇÃO E HIPERATIVIDADE (TDAH)

Cláudia Elizabete da Costa Moraes Mondini1 [email protected]

1 INTRODUÇÃO

O número de encaminhamentos de alunos com dificuldades escolares para os

serviços de saúde tem aumentado significativamente. Entre as principais queixas estão:

desatenção, agitação, indisciplina, agressividade, dificuldades na aquisição da leitura e

da escrita. Essa constatação tem promovido alguns debates no cenário nacional, em

especial entre duas formas distintas de analisar as dificuldades nos processos de

escolarização: uma que acredita que as origens de tais problemas estão no nível

individual e decorrem de fatores orgânicos, e outra que os considera na sua dimensão

social e histórica como resultado da produção social do fracasso escolar.

A compreensão de que problemas escolares ocorrem em decorrência de doenças

e transtornos pode levar à patologização do aluno e desencadear o processo de

medicalização da educação, no qual soluções para as dificuldades apresentadas no

contexto escolar são buscadas na área da saúde, resultando em diagnósticos de

transtornos, em especial Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH).

Esse olhar dominante nem sempre considera questões sociais, econômicas e

políticas que interferem na aprendizagem e as dificuldades vivenciadas no processo são

naturalizadas e descontextualizadas. A mudança deste cenário exige que as queixas

escolares sejam ressignificadas e compreendidas na sua complexidade. Isso implica

reflexões sobre os fatores que as desencadeiam e um olhar para o interior da escola

como promotora do fracasso escolar.

1 Psicóloga, especialista em Educação Especial, Psicopedagogia, Neuropsicologia e Psicologia Escolar e Educacional, mestre em Educação, professora do curso de Psicologia da UFMS/CPAN

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Para a Psicologia Histórico-Cultural as funções psicológicas superiores e

tipicamente humanas se desenvolvem no âmbito social, com base nas condições

concretas de vida dos sujeitos. Assim sendo, o substrato biológico é importante para o

desenvolvimento do sujeito, mas não é o único responsável por este processo.

Por este ponto de vista os problemas nos processos de escolarização podem ser

decorrentes de dificuldades dos sistemas de ensino para elaborar políticas educacionais

capazes de promover a aprendizagem e o desenvolvimento de seus alunos. Tal

constatação suscita novas formas de atuação dos profissionais que são inseridos, direta

ou indiretamente, nos processos de patologização da queixa escolar, entre eles destaca-

se os psicólogos. Uma atuação crítica por parte destes profissionais pode apontar para

novos desdobramentos na condução das dificuldades apresentadas e mudar o curso do

processo de rotulação e estigmatização dos alunos encaminhados.

Os apontamentos aqui levantados suscitam um enfrentamento da medicalização

da educação que seja capaz de dar voz às crianças e adolescentes que estão sendo

vítimas de um processo perverso que pode comprometer o seu desenvolvimento.

Como afirma Meira (2012) não se trata de criticar a medicação de doenças ou

negar as bases biológicas dos comportamentos humanos, mas um movimento de

enfrentamento às tentativas de transformar problemas associados ao viver em sintomas

de doenças ou de explicar a subjetividade pela via dos aspectos orgânicos.

Percebe-se a existência de formas diferentes de conceber o fenômeno do

fracasso escolar e a importância de promovermos discussões que possam auxiliar no

avanço dos estudos e que sejam capazes de fazer um enfrentamento aos processos de

medicalização da educação.

Este trabalho tem por objetivo analisar os efeitos dos processos de medicalização

da educação na produção social do fracasso escolar e verificar possibilidades de

enfrentamento à naturalização da queixa escolar. Os objetivos específicos são:

averiguar as influências dos mecanismos de patologização das queixas escolares nos

diagnósticos de Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade e traçar um paralelo

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entre a forma dominante de conceber o fracasso escolar e as perspectivas que analisam o

fenômeno de forma crítica.

O referencial teórico-metodológico deste trabalho foi o materialismo histórico e

dialético. Segundo Gamboa (2006), as pesquisas dialéticas concebem o homem como

ser social e histórico vivendo sob influências econômicas, políticas e culturais, através

das quais cria a sua realidade e transforma esses contextos. Já a educação pode ser vista

sob dois prismas diferenciados; como “[...] uma prática nas relações sociais que resulta

das suas determinações econômicas, sociais e políticas; faz parte da superestrutura e,

junto com outras instâncias culturais, atua na reprodução da ideologia dominante” (p.

103-104) ou como um “[...] espaço de reprodução das contradições que dinamizam as

mudanças e possibilitam a gestação de novas formações sociais.” (p. 104).

A estratégia de pesquisa foi a revisão de literatura. As palavras-chave utilizadas

nos sites de busca da internet foram as seguintes: Medicalização da

Educação/Medicalização da Aprendizagem, Fracasso Escolar e Transtorno de Déficit de

Atenção/Hiperatividade. Foram analisados 120 trabalhos, 40 para cada palavra-chave. A

análise dos dados contemplou a divisão dos trabalhos em duas concepções teóricas

distintas: teorias abstratas e teorias críticas e materialistas históricas.

2. TDAH: A EVOLUÇÃO DO CONCEITO E A TENDÊNCIA HEGEMÔNICA

A respeito do TDAH, Sena e Souza (2008) esclarece que a compreensão do

conceito evoluiu de uma relação com um problema moral para um problema

neurológico. Destaca também que o conceito ainda suscita muitas discussões e que

alguns leigos e profissionais questionam a existência do TDAH, compreendido na sua

dimensão multicausal. A autora faz um exame a respeito da evolução do conceito:

An

o

Nomenclatura Sintomas/Critérios

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190

0

Defeito na Conduta Moral Déficit de atenção e hiperatividade

190

4

Distúrbio Orgânico do Comportamento

Lesão cerebral traumática

192

2

Desordem Pós-Encefalítica

Inquietação, desatenção, impaciência

194

0

Lesão Cerebral Mínima Problemas de manutenção da atenção, regulação do afeto, atividade e memória

195

7/1960

Hiperatividade Excesso de atividade motora

196

2

Disfunção cerebral mínima Comportamento hiperativo causador de dificuldades escolares

dec.

1960

Reação Hipercinética da Infância

DSM-II

dec.

1960

Síndrome Hipercinética CID-9

197

2

Déficit atencional e no controle de impulsos

Problemas de atenção e impulsividade

198

0

Distúrbio do Déficit de Atenção

DSM-III

198

7

Distúrbio do Déficit de Atenção/Hiperatividade

DSM-III-R

199

3

Transtornos Hipercinéticos CID-10

199

4

Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade

DSM-IV DSM-IV-TR

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200

2

200

4

Transtorno de Hiperatividade/Atenção

Hiperatividade

200

4

Transtorno do Reforçamento/Extinção

Déficit de reforço/extinção comportamental

200

7

Comprometimento das Funções Executivas

Déficits nas funções de planejamento, memória e controle de impulsos

Fonte: Sena e Souza (2008)

Sena e Souza (2008) também argumentam que a maioria das pesquisas sobre o

TDAH é realizada em escolas públicas, que estão mais disponíveis. As autoras

acreditam que esse aspecto pode tornar a amostra enviesada em função de fatores

associados ao ensino público de ensino no Brasil. As múltiplas variáveis encontradas na

escola pública poderiam dificultar o estabelecimento de relação entre elas (nível sócio-

econômico, transtornos não diagnosticados, envolvimento familiar, escassez de recursos

materiais e de estrutura, recursos humanos desmotivados por déficit salarial, entre

outros), posto que compreende o TDAH como um transtorno de etiologia multifatorial.

Importante considerarmos as propriedades psicométricas dos instrumentos

utilizados nas pesquisas sobre o TDAH e os critérios que possam lhes conferir

cientificidade. A maioria dos estudos baseiam-se nos critérios do DSM-IV-TR, o que

indica a necessidade de elaboração de instrumentos específicos aos fenômenos

psicológicos presentes no quadro (SENA; SOUZA, 2008).

No DSM-5 (APA, 2014) o TDAH está no grupo dos Transtornos do

Neurodesenvolvimento com a denominação de Transtorno de Déficit de

Atenção/Hiperatividade. Seus critérios diagnósticos são um padrão persistente de

desatenção e/ou hiperatividade-impulsividade que interfere no funcionamento e no

desenvolvimento, caracterizando-se por desatenção ou hiperatividade e impulsividade.

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Para o diagnóstico seis ou mais sintomas devem ter sido demonstrados por pelo menos

seis meses em um grau discrepante com o nível de desenvolvimento e causar impactos

negativos nas atividades sociais e acadêmicas ou profissionais. Há uma nota explicando

que os sintomas não podem ser manifestações de comportamento opositor, desafio,

hostilidade, dificuldade para compreender tarefas ou instruções; o dianóstico em

adolescentes e adultos exige a presença de pelo menos cinco sintomas.

Também são critérios para o diagnóstico do TDAH segundo o DSM-5 (APA,

2014): vários sintomas de desatenção ou hiperatividade-impulsividade presentes antes

dos 12 anos de idade e em dois ou mais ambientes, há evidências claras de que os

sintomas interferem no funcionamento social, acadêmico ou profissional, os sintomas

não ocorrem exclusivamente durante a ocorrência de esquizofrenia ou outro transtorno

psicótico e não são mais bem explicados por outro transtorno mental.

Quanto aos subtipos, divide-se em: apresentação combinada (desatenção e

hipatividade-impulsividade, apresentação predominantemente desatenta (desatenção) e -

apresentação predominantemente hiperativa/impulsiva (hiperatividade-impulsividade)

(APA, 2014).

Segundo a CID-10 (OMS, 1993), há consenso sobre o fato de que anormalidades

constitucionais são determiantes para a gênese dos transtornos hipercinéticos, “[...] mas

o conhecimento de uma etiologia específica não existe no momento.” (p. 256).

Esclarece o manual que

“Nos últimos anos, o termo diangóstico ‘transtorno de déficit de atenção’ foi usado para essas síndromes. Não foi usado aqui porque implica num conhecimento de processos psicológicos que ainda não está disponível e sugere a inclusão de crianças ansiosas, preocupadas ou ‘sonhadoras’ apáticas, cujos problemas são provavelmente diferentes. Entretanto, é claro que, do ponto de vista do comportamento, problemas de desatenção constituem o aspecto central dessas síndromes hipercinéticas.” (p. 256, grifos dos autores).

Os transtornos hipercinéticos sempre começam cedo no desenvolvimento,

normalmente por volta dos cinco anos. Suas principais características do trantorno são:

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falta de persistência em atividades que requerem envolvimento cognitivo e tendência de

mudar de uma atividade para outra, sem completá-las; atividade excessiva,

desorganizada e malcontrolada. Esses sintomas persistem nos anos de escolarização e

podem chegar à vida adulta, “[...] mas muitos indivíduos mostram uma melhora gradual

na atividade e na atenção.” (OMS, 1993, p. 256).

Também podem estar presentes as seguintes características: imprudência em

situações que envolvem perigo ou zombarias impulsivas, impulsividade, propensão a

acidentes, problemas de indisciplina por infrações não premeditadas a regras,

relacionamentos desinibidos com adultos, impopularidade com outras crianças,

isolamento, comprometimento cognitivo, atrasos específicos do desenvolvimento motor

e da linguagem, desinibição em relacionamentos sociais, respostas imaturas a questões

antes que tenham sido completadas, dificuldades para esperar a sua vez (OMS, 1993).

O manual indica cuidado no diagnóstico, pois a hiperatividade e a desatenção de

tipos diferentes dos presentes no transtorno hipercinético podem surgir como sintomas

de transtornos ansiosos ou depressivos. “O início agudo de comportamento hiperativo

em uma criança em idade escolar é com maior probabilidade decorrente de algum tipo

de transtorno reativo (psicogênico ou orgânico), estado maníaco, esquizofrenia ou

doença neurológica (p. Ex., febre reumática).” (OMS, 1993, p. 259).

Os transtornos hipercinéticos dividem-se em: perturbação da atividade e da

atenção (inclui transtorno ou síndrome de déficit de atenção com hiperatividade e

transtorno de déficit de atenção e hiperatividade), transtorno de conduta hipercinética

(estão presentes os critérios para o transtorno hipercinético e para transtorno de

conduta), outros transtornos hipercinéticos, transtorno hipercinético não especificado.

Aqui percebe-se que o DSM-5 assume uma visão biologicista e reducionista

afirmando que o TDAH tem origem biológica, enquanto a CID-10 não utiliza esse

conceito por acreditar que sejam necessários mais estudos sobre os aspectos

psicológicos dos transtornos hipercinéticos. A CID-10 afirma que a etiologia desses

transtornos ainda é desconhecida e alerta para o perigo de mascaramento de outros

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transtornos por meio do diagnóstico equivocado baseado apenas nos sintomas de

desatenção e hiperatividade.

A visão naturalizante (e hegemônica) do TDAH procura comprovar a sua origem

biológica, caracterizando-o como um transtorno neurobiológico e elencando

características que podem identifica-la (REPPOLD; LUZ, 2007, RIESGO, 2012,

CARNEIRO; TEIXEIRA 2012, C AMPANHÃ et. al, 2005, CARVALHO et. al, 2011,

POSNER, 2008, PASTURA, 2012). Tais estudos utilizam-se de exames de imagem

para comprovar suas hipóteses.

3 UMA ANÁLISE CRÍTICA DO FENÔMENO DO FRACASSO ESCOLAR:

RESSIGNIFICANDO A QUEIXA

De acordo com Guarrido e Moysés (2011), a luta de classes também está

presente no âmbito das dificuldades de aprendizagem, o que se percebe é um discurso

científico que tenta explicá-las por meio de um padrão único e rígido de normalidade.

As desigualdades passam a ser naturalizadas, ou seja, suas causas seriam biológicas,

desconsiderando-se a história dos sujeitos e as disputas sociais.

Há um deslocamento da responsabilidade pelo fracasso escolar à criança que

não aprende, o que é justificado pelas suas condições econômicas e culturais e mais

recentemente por suas características biológicas. O discurso científico que embasa tais

concepções, confere status de verdade à ideia de que os alunos que não aprendem tem

em si um problema de ordem médica. Intervenção de profissionais da saúde, exames,

diagnósticos, rótulos, remédios, são elementos utilizados para legitimá-lo,

transformando tais crianças em crianças-problema ou anormais (GUARRIDO;

MOYSÉS, 2011).

Mas essa visão, embora hegemônia, não é a única no campo da análise das

dificuldades de aprendizagem, há um número significativo de autores que consideram

que o fracasso escolar é da escola e não do aluno. Desta forma, é possível perceber um

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debate entre duas abordagens: a medicalizadora e a emancipadora, que tem

embasamento teórico-metodológico de matriz crítica (GUARRIDO; MOYSÉS, 2011).

Sobre estes aspectos, Souza (2011) acentua a importância de contemplarmos um

novo eixo de análise, o do processo de escolarização, que contempla as condições

objetivas e concretas que permitem ou não que a escola cumpra sua função social. Ao

focarmos nossa análise nos processos de escolarização estaremos descolocando “[...] o

eixo de análise do indivíduo para a escola e o conjunto de relações institucionais,

históricas, psicológicas, pedagógicas e políticas que se fazem presentes e constituem o

dia a dia escolar.” (p. 60).

Ao analisar a distribuição e a frequência dos encaminhamentos de alunos da

Rede Pública de Campinas para consulta de especialidades no ano de 1995 Moyses

(2001) percebeu um crescimento significativo e uma tendência real de

encaminhamentos para a neurologia. A autora pondera que “Este dado contrapõe-se

vigorosamente a todo conhecimento científico sobre prevalência de afecções

neurológicas na idade pediátrica.” (p. 83).

A normatização da vida tem na transformação de problemas da vida em doenças,

em distúrbios (de aprendizagem, de comportamento, etc.), a sua maior expressão.

Assim, o que destoa da norma é compreendido como problema biológico e individual e

“A medicalização é fruto do processo de transformação de questões sociais, humanas,

em biológicas” (p. 175). Por esta perspectiva, a aprendizagem, assim como a

inteligência e o comportamento, é compreendida como biológica, inata e abstrata e isso

abre espaço para a criação das doenças da aprendizagem, ou doenças do não-aprender e

sua inserção no campo da medicina e incorporação ao ato médico (MOYSES, 2001).

O conceito de medicalização ganhou destaque especialmente a partir dos anos

de 1970, à redução de aspectos sócio-políticos a questões individuais, com a tendência

de patologizá-las. Pode ser compreendida como uma “[...] a expressão da difusão do

saber médico na no tecido social, como difusão de um conjunto de conhecimentos

científicos no discurso comum, como uma operação de práticas médicas num contexto

não terapêutico, mas político-social” (GUARIDO, 2011, p. 30).

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Souza (2011) afirma que o movimento crítico que surgiu no interior da

Psicologia nos anos de 1980 forteleceu a Psicologia e permitiu a aproximação com uma

prática crítica no campo educacional. Contudo, esse discurso foi incorporado por

lideranças políticas, entidades representativas e acadêmicas do Magistério que

relacionaram o profissional da Psicologia apenas ao setor da saúde, restringindo ainda

mais a sua presença no setor da educação e promovendo a transferência de muitos

profissionais para o setor da saúde a partir dos anos de 1990 e

E o que é mais grave, o espaço deixado pela Psicologia no momento de sua autocrítica foi sendo paulatinamente ocupado por outras explicações, também de cunho adaptacionista, mas que respondiam diretamente às demandas de professores e dos gestores escolares, principalmente a Psicopedagogia e a Psicomotricidade (SOUZA, 2011, p. 63).

Deste modo, percebe-se o retorno da medicalização do aprender em que os

problemas pedagógicos se explicam por aspectos biológicos, isso acentua-se pelos

avanços significativos nos campos da genética, da neurologia e da neuropsicologia.

Esses recursos são de suma importancia para os avanços de determinados processos

humanos, mas quando aplicados ao campo educacional tendem a focar o fenômeno

educativo no aluno, desconsiderando fatores históricos, sociais e políticos que

transcendem o campo da biologia e da neurologia (SOUZA, 2011).

Moysés e Collares (2011) salientam que é inegável que algumas pessoas têm

doenças reais que podem causar deficiências e comprometimento do desenvolvimento,

mas com a medicalização da educação estamos, muitas vezes, diante de pessoas

saudáveis e que apresentam problemas nos seus processos de escolarização, que

possuem diferentes modos de aprender e se comportar e diferentes dos padrões

uniformes e homogeneizados considerados normais. As pessoas aprendem e se

comportam em um continuum que vai de um extremo a outro.

O processo de transformar questões sociais por meio do discurso em problemas

de origem e solução no saber médico foi chamado de medicalização por Ivan Illich, ao

descatar que o aumento do poder médico reduziam as possibilidades de os sujeitos

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lidarem com seus sofrimentos e angústias, transformando-os em doenças (MOYSÉS;

COLLARES, 2001)

Ao longo do tempo as explicações para possíveis problemas neurológicos que

afetam a aprendizagem e o comportamento passaram por diferentes conceitualizações.

Essas mudanças não significaram avanços significativos nos estudos e maior

cientificidade, por mais que eram justificadas pela busca de objetividade. Os critérios

diagnósticos para o TDAH são vagos, preconceituosos e carregados de ideologia. “Em

síntese, podemos afirmar que sob o cientificista algoritmo de criança que não aprende

e/ou criança com problema de comportamento + exame físico normal + exames

laboratoriais normais esconde-se, de fato, a criança que incomoda (MOYSÉS;

COLLARES, 2011, p. 80, grifos das autoras).”.

Uma vez feito o diagnóstico o tratamento recomendado para o TDAH é

essencialmente medicamentoso e consiste no uso de psicotrópicos estimulantes do

sistema nervoso central, com destaque para o metilfenidato (MPH) e dextro-anfetamina

(D-anfetamina). O mecanismo de ação do MPH é o mesmo da cocaína, aumentando a

atenção e a produtividade e também os níveis de dopamina, um neurotransmissor

responsável pela sensação de prazer. O resultado disso pode ser uma busca contínua por

prazer artificial que pode culminar com a drogadição. Entre outras consequências

associadas ao uso de tais psicoestimulantes na literatura destaca-se déficits no

crescimento e mortes súbitas (MOYSÉS; COLLARES, 2011) e alucinações,

descontroles violentos, temperamento volátil, psicose e comportamento suicida

(ROELANDS; COLS, 2008 apud MOYSÉS; COLLARES, 2011).

Moyses e Collares (2011) chamam a atenção para o fato de que nas suas

experiências profissionais tiveram contato com muitas crianças e adolescentes que

suspenderam o uso da droga às escondidas por causa dos efeitos colaterais: “[...]

taquicardia, a sensação de estarem eletrificados, de estarem amarrados, contidos em si

mesmos, sem poderem expressar seus desejos, emoções, angústias, medos. Sentem-se

zumbis, ou zombie-like.” (p. 102). Os efeitos terapêuticos tão divulgados, sempre

apresentados como benéficos, constituem na verdade sinais de toxidade das

drogas.” (p. 102, grifos das autoras).

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Moysés e Collares (2011) destacam que as vendas de MPH no Brasil, com os

nomes de Ritalina e Concerta, aumentaram 1.616% dos anos 2000 para 2008,

totalizando 1.147.000 caixas em 2008 e se a isso somarmos as vendas da dextro-

anfetamina, as vendas naquele ano ultrapassam 2 milhões de caixas. Dainte desta

realidade argumentam as autoras que “A cada um de nós, cabe decidir se nos

deixaremos cooptar pela engrenagem dos vendedores de doença ou se ficaremos ao lado

das crianças, da vida. Esta resistência é em defesa da vida.” (p. 106, grifos das autoras).

Benedetti (2009), ao analisar os desdobramentos do caso de um aluno diagnosticado

com TDAH destaca que “Questões familiares, conteúdos simbólicos e falhas

educacionais são ignoradas. A opção pela medicalização assume o lugar de atitudes

educacionais, pedagógicas, afetivas e terapêuticas.” (p. 43).

O conceito de TDAH encerra em si concepções de homem, de ciência e de

antropologia. Contudo, seriam os interesses de mercado, mais precisamente os da

indústria farmacêutica, que estariam na centralidade dos diagnósticos e na definição de

métodos e tratamentos padronizados que deixam a subjetividade dos sujeitos em

segundo plano. Deste modo, o TDAH pode ser concebido como o resultado de uma

construção por um modelo de ciência positivista que tende a medicalizar

comportamentos que destoam do que ela compreende como norma. Isso pode mascarar

outras patologias e características singulares que expressam a subjetividade dos alunos

assim diagnosticados, especialmente as voltadas para a criatividade, compreensão ética

do ser humano e da sua subjetividade. “Ao redor do TDAH encontra-se uma grande teia

de investimentos, equipes profissionais evolvidas em pesquisa e prestação de serviços,

além da indústria e da rede farmacêutica (BENEDETTI, p. 120, 2009).

Para Meira (2012), entre as disfunções neurológicas mais comumente associadas

ao desempenho escolar de crianças e adolescentes, destaca-se o TDAH e o Transtorno

Opositor Desafiante (TOD), sendo que ambos tem no sujeito indisciplinado a sua

origem. A análise do fenômeno da patologização deve procurar compreender como

diferentes contextos e práticas produzem a indisciplina e o não aprender.

Teixeira (2002) salienta que há uma demanda crescente por parte dos adultos,

sejam eles pais ou professores, para que os profissionais que trabalham com saúde

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mental enquadrem os comportamentos de crianças e adolescentes em alguma patologia.

Isso parece comprovar uma certa impaciência social com a infância e a adolescência, o

que psicologiza o que pode ser considerado próprio da idade, incluindo os serviços de

saúde mental em uma lógica de contenção de liberdades e de normatização da vida.

Cabe à psicologia atuar criticamente refletindo sobre os interesses de quem seu

fazer atende, não mais compactuando com a patologização da adolescência. A

multiplicidade, a diferença e a procura por caminhos diferentes não devem ser

sumariamente percebidos como comportamentos desviantes. Isso é mais necessário

neste momento histórico quando se percebe um afrouxamento dos limites e uma

sensação de impotência de algumas famílias e escolas, que podem preferir o

encaminhamento a um profissional supostamente habilitado na busca por uma solução

para o quadro e que, na verdade, pode torná-lo ainda mais sombrio (TEIXEIRA, 2002).

No mesmo sentido, Meira (2012) acentua que a ação da Psicologia deve ser

guiada por uma atitude sistemática de avaliação crítica da realidade e da reflexão sobre

o encontro entre os alunos e a educação, se comprometendo com o rompimento da

patologização e contribuindo para que a escola cumpra seu papel social.

Para a autora, o social é capaz de criar novos sistemas funcionais e isso leva ao

desenvolvimento de novas formas superiores de atividade consciente. Ela acredita que a

escola deve assumir sua responsabilidade no desenvolvimento dessas funções superiores

e questiona que “É um verdadeiro contrassenso que a escola exija da criança funções

psicológicas superiores em relação às quais deveria assumir um papel diretivo e

efetivo.” (p. 138-139).

Eidt e Tuleski (2010) acentuam que para a Psicologia Sócio-Histórica o processo

de maturação depende da ativação do cérebro, das condições histórico-sociais em que as

atividades são desenvolvidas e neste aspecto estão incluídas as mediações estabelecidas

no seu processo de vida e de educação. Assim sendo, o substrato orgânico é a base do

desenvovimento mental mas não o determina.

De acordo com Leite e Tuleski (2011, p. 114)

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[...] se cada vez mais são encontrados indivíduos desatentos e hiperativos, pode¬-se pensar que a sociedade atual, a partir das especificida¬des das relações sociais de produção hoje vigentes e dos processos educativos delas derivados, vem produzindo sujeitos com tais características. A pergunta que emerge é: que relações de produção são estas, que vêm produzindo indivíduos sem “foco atencional” ou “sem autocontrole”? Qual o critério que se estabelece nesta forma de produção de comportamentos para se distinguir entre o saudável e o patológico?

Com base na Psicologia Sócio-Histórica, as referidas autoras esclarecem que

não pretendem negar a existência de crianças agitadas e desatentas, especialmente no

contexto escolar, nem desmerecer o esforço dos profissionais que as atendem. Antes,

objetivam problematizar a atribuição de causas biológicas ao TDAH e questionar os

tratamentos à base de medicamentos, procurando propor outra via de análise do

fenômeno que contemple o desenvolvimento humano não apenas pelo aspecto

maturacional.

4. RESULTADOS E DISCUSSÃO

No grupo das teorias abstratas concentram-se os trabalhos que entendem o

fracasso escolar como resultado de causas biológicas e que focam as dificuldades nos

alunos, que tornam-se o lócus da problemática, desconsiderando questões mais amplas

como as políticas educacionais e as questões sociais e econômicas. O aluno e sua

família são, na maioria das vezes, culpabilizados pelo fracasso escolar, que é visto de

forma naturalizada (inerente ao indivíduo). Os estudos realizados na área médica, em

especial na Psiquiatria, encontram-se prioritariamente nesta tendência.

Na pesquisa nas bases de dados foram encontrados 45 trabalhos que se encaixam

nesta tendência, configurando 54%, distribuídos da seguinte forma: fracasso escolar 08

trabalhos, TDAH 36 trabalhos e Medicalização da Educação com 01 trabalho.

Percebe-se que a maioria dos trabalhos concentram-se especificamente nas

temáticas do TDAH.

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O fracasso escolar para estes autores é compreendido como um sintoma de

ordem interna, relacionado a causas biológicas. Dos 08 trabalhos, dois estabelecem

relação direta do fracasso escolar com o TDAH.

Já o TDAH é compreendido como um distúrbio de aprendizagem (inato), de

ordem neurológica. Dos 36 trabalhos relacionados a este conceito, apenas 04 referem-se

à possibilidade de multicausalidade, considerando-o como resultado de aspectos

biológicos (neurológicos) e psicossociais, tais como as práticas parentais de educação e

um trabalho refere-se à banalização dos diangósticos.

Estabelece-se comorbidades entre TDAH e Dislexia e TDAH, TOD, Transtorno

da Conduta, uso de drogas, ato infracional e Transtorno Afetivo Bipolar. Os estudos são

em sua maioria descritivos, especialmente com relação aos sinais e sintomas. Não há

menção sobre possíveis consequências de práticas pedagógicas inadequadas e poucos

são os trabalhos que procuram mostrar possibilidades de enfrentamento ao quadro

apresentado. A maior ocorrência do TDAH é relacionada aos meninos, embora sem

muitas explicações que possam embasar tal afirmação. Há trabalhos, embora ainda

incipientes, que tratam do TDAH na vida adulta.

O trabalho referente à Medicalização da Educação destaca seus pontos positivos

e negativos, considerando-a como sinônimo de medicação de transtornos mentais,

relacionando-a especialmente ao TDAH.

Para esta tendência o aluno, sujeito biológico, é analisado de forma

pseudoconcreta, pois não está inserido na sua realidade concreta. Trata-se de um sujeito

abstrado e a-histórico.

Já nas teorias críticas e materialistas históricas e dialéticas estão inseridos

os estudos que concebem o fracasso escolar de forma crítica, relacionando-o a questões

sociais, econômicas e culturais. Dos trabalhos analisados, 75 (90%) estão aqui inseridos.

Nesta tendência encontram-se muitos estudos da área da Psicologia, Educação e alguns

na área da Medicina Social (com base foucaultiana).

Deste total, 32 trabalhos referem-se ao fracasso escolar, 04 ao TDAH e 39 à

Medicalização da Educação.

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Os trabalhos referentes ao fracasso escolar destacam a sua produção no

âmbito dos sistemas de ensino, demonstram preocupação com a educação oferecida aos

alunos das classes populares e faz questionamentos sobre encaminhamentos para

especialistas por parte da escola e de práticas no campo da Psicologia

(encaminhamentos e atendimentos).

Percebe-se uma preocupação com a contextualização do fracasso escolar e a

problematização dos seus determinantes, especialmente os que se encontram no interior

das políticas educacionais e das escolas.

O número expressivo de trabalhos sobre o fracasso escolar inseridos nas

concepções críticas e materialistas reflete um movimento já consolidado de

enfrentamento à sua naturalização que teve início nos anos de 1970 com uma crítica no

interior da Psicologia e estendeu-se para os anos de 1980, contando com a participação

decisiva de Maria Helena de Souza Patto.

Foram encontrados e analisados 03 trabalhos sobre o TDAH nesta tendência.

Os estudos acentuam a necessidade de se avaliá-lo como um objeto empírico e social.

Dois deles tem embasamento nas ideias de Michel Foucault e um na Psicologia Sócio-

Histórica.

Já com relação ao tema da Medicalização da Educação, o percentual de

trabalhos nesta tendência se eleva significativamente, cofigurando 39 estudos, 24,37%

da amostra, sendo a maioira advinda das áreas da Psicologia e Educação, porém,

percebe-se um movimento dentro da área médica, com alguns trabalhos ancorados na

medicina social, produzidos especialmente nos programas de pós-graduação da

Universidade de Campinas.

As buscas a este conceito não mostraram tantos resultados como os demais,

com o que se percebe que a produção acadêmica ainda está em processo de

desenvolvimento. Por este motivo foi necessário inserir também as palavras-chave

medicalização da aprendizagem, que não alteram o seu significado.

Os estudos enfatizam a transformação de problemas sociais, que ocorrem nos

contextos escolares, em problemas médicos com encaminhamentos que na maioria das

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vezes resultam em diagnósticos e tratamentos medicamentosos. A prescrição do

Metilfenidato é amplamente criticada e seus malefícios são explicitados.

Um ponto importante e que merece destaque é que os conceitos de TDAH e

Dislexia aparecem na maioria destes estudos, mas agora com uma concepção crítica e

desnaturalizante. Neste cenário, os autores alertam para a volta da concepção biológica,

ancorada no saber médico, para dar explicações aos problemas nos processos de

escolarização, com os discursos de patologização, psicologização e mais recentemente,

de psiquiatrização da educação.

Os autores desta tendência enfatizam a necessidade de enfrentamento aos

processos de medicalização da educação e propõem discussães sobre o que representa o

TDAH e a Dislexia na sociedade contemporânea, na qual a diferença quase sempre é

vista como doença.

Se pesquisado separadamente, o conceito de TDAH predomina na tendência

acrítica, mas quando relacionado à medicalização da educação ele surge com muita

força, o que denota que a visão hegemônica e medicalizante está sendo enfrentada e

questionada com um crescente número de trabalhos científicos.

Quando somados os estudos referentes ao fracasso escolar e à medicalização da

educação na tendência crítica e materialista, temos um total de 71 trabalhos, o que

compreende 44,37% do total, o que comprova que a visão dominante encontra-se

especificamente nos conceitos de TDAH e Dislexia, isoladamente.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A problemática da produção do fracasso escolar e dos processos de

medicalização da educação, em especial os que se referem ao TDAH, é muito

complexa, tentou-se aqui fazer um recorte que possibilitasse a compreensão de duas

abordagens teóricas antagônicas na forma de compreender os fenômenos, as abstratas e

as críticas e materialistas históricas e dialéticas, buscando-se meios de enfrentar a

naturalização do fenômeno.

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Os processos de medicalização da educação exemplificam a perda da

autonomia da escola para resolver os problemas que surgem no seu interior. Atribuir a

problemas de causa social e cultural uma gênese biológica é culpabilizar o aluno e sua

família pelo quadro, isentando-se de responsabilidade e encaminhando o caso para

busca de soluções fora dos muros da escola. É imprescindível que os profissionais da

educação reflitam sobre a retomada da função social da escola, que busque desenvolver

alunos conscientes dos seus direitos e deveres, tendo na educação uma vida de

libertação humana e não de rotulação e estigmatização.

O excessivo número de dignósticos, muitos deles apressados e baseados nos

critérios do DSM podem levar ao mascaremento de outros possíveis transtornos, tais

como ansiedade e depressão. A CID-10 mostrou-se um instrumento mais crítico e

cauteloso quanto aos diangósticos, mas não foi encontrado como referencial em nenhum

dos estudos analisados.

A comorbidade com transtorno opositor desafiante (TOD) pode indicar que

esses sujeitos são críticos e não aceitam regras que consideram arbitrárias, o que pode

levá-los à sanções e à patologização da sua subjetividade. A análise histórica permite a

compreensão de que o TDAH passou por diferentes concepções e denominações, até

transformar-se em uma categoria diagnóstica.

O uso da medicação durante os dias letivos com folgas nos finais de semana e

férias indicam que os problemas referentes ao TDAH estão diretamente relacionados à

escola. Trata-se de um freio à criatividade, ao pensamento e um cerceamento à

liberdade. O atendimento desses casos pelos profissionais da saúde, em especial pelos

psicólogos, exige uma postura crítica que procure contextualizar o aluno e as

dificuldades apresentadas.

Fica implícito nos conflitos sobre as concepções do TDAH um interesse por

parte de alguns profissionais que pautam suas ações no fracasso escolar e procuram, por

conta disso, criar reservas de mercado para a sua atuação.

As teorias abstratas consideram o sujeito como um ser biológico respondendo a

estímulos do ambiente. O desenvolvimento da criança seria regido apenas pela

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maturação do seu sistema nervoso central. A questão que nos remete a uma reflexão é a

relação com aspectos primitivos e não os que caracterizam o homem como tal: as

funções psicológicas superiores.

Percebe-se que os estudos sobre o conceito de fracasso escolar já avançaram

muito e hoje a maioria esmagadora encontra-se nas tendências críticas e materialistas

históricas o que se deve, em parte, pela crítica que a Psicologia realizou às suas práticas

excludentes e naturalizantes. Já o conceito de TDAH, quando estudado isoladamente,

concentra-se nas tendências abstratas. No entanto, um sinal de avanço significativo na

sua compreensão, é que, nos estudos sobre medicalização da educação ele é maioria

esmagadora. Assim sendo, embora ainda tenhamos que caminhar muito no sentido de

uma contra-hegemonia, um grande debate já está aberto e começa a balançar as

estruturas do que está posto como verdade absoluta, abrindo caminhos para outras

compreensões do fracasso escolar e do TDAH.

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