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LEANDRO FERNANDES SAMPAIO SANTOS DA PATOLOGIZAÇÃO DO CRIME À RACIALIZAÇÃO DA “ANORMALIDADE”: Psiquiatria, Eugenia e Antropologia Criminal na Sociedade de Normalização (São Paulo 1920-1935). Guarulhos 2008

Da patologização do crime à racialização da anormalidade

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DA PATOLOGIZAÇÃO DO CRIME À RACIALIZAÇÃO DA "Anormalidade":Psiquiatria, Eugenia e Antropologia Criminal na Sociedade de Normalização (São Paulo 1920-1935).No inicio do século XIX uma psiquiatria travou confrontos com a justiça sobre as relações entre crime e loucura sobre a responsabilidade penal do indivíduo criminoso a partir da noção de monomania homicida como parcial loucura. A psiquiatrização da Justiça permitiu o desdobramento da medicina mental para fora do asilo Juntamente com a medicina social operacionando uma "medicalização da sociedade", e se intensificou com uma teoria da degeneração com descontinuidade em uma monomania da tese afirmando o determinismo biológico do Criminoso (bio -determinismo) pelas taras da hereditariedade se relacionando com uma eugenia, antropologia criminal eo evolucionismo na virada de século, uma patologização do crime se torna premente com o surgimento da figura do "criminoso nato" se articulando com o conceito de "Anormalidade", Cujo classificará todas as condutas que fogem a lei ea norma de "anormais". A necessidade de uma degeneração Controlar e proliferação dos "anormais" a Depuração da raça se torna urgente, levando os diferentes saberes de buscarem uma maneira conflituosa como melhores medidas para impedir uma disseminação da degeneração na sociedade gerando inúmeros confrontos sobre o que fazer com o " Criminoso ", o" louco "monstro" o "," o anormal ", o" indivíduo perigoso ", giraram Quais os entorno da sequestração, esterilização, castração, Eliminação e / ou exterminação destas personagens para Evitar uma contaminação da espécie" e prover os melhores Meios de expurgar as raças "inferiores", fazendo que surgisse outro tipo de racismo pautado na "Anormalidade", uma raciologia emergência que será fundamental para fazer Biopoder para Regulamentação da vida e defesa da sociedade numa sociedade de normalização Cujas discussões foram intensas no Brasil, sobretudo em São Paulo na primeira metade do século XX.

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Page 1: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

LEANDRO FERNANDES SAMPAIO SANTOS

DA PATOLOGIZAÇÃO DO CRIME À RACIALIZAÇÃO DA “ANORMALIDADE”:

Psiquiatria, Eugenia e Antropologia Criminal na Sociedade de Normalização (São Paulo 1920-1935).

Guarulhos

2008

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FACULDADES INTEGRADAS DE CIÊNCIAS HUMANAS, SAÚDE E EDUCAÇÃO DE GUARULHOS

LEANDRO FERNANDES SAMPAIO SANTOS

DA PATOLOGIZAÇÃO DO CRIME À RACIALIZAÇÃO DA “ANORMALIDADE”:

Psiquiatria, Eugenia e Antropologia Criminal na Sociedade de Normalização (São Paulo 1920-1935).

Monografia apresentado ao Curso de História das Faculdades de Guarulhos, para obtenção do grau de Licenciatura Plena em História

Guarulhos

2008

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SAMPAIO SANTOS, Leandro Fernandes Da patologização do crime à racialização da “anormalidade”: psiquiatria, eugenia e antropologia criminal na sociedade de normalização (São Paulo 1920-1935). 93 f.: il.

Monografia (Graduação em História) – Faculdades Integradas de Ciências Humanas, Saúde e educação de Guarulhos.

1. Crime e Loucura 2. Anormalidade. 3. Sociedade de Normalização 4. Psiquiatria e Racismo 5. Eugenia e Antropologia Criminal 6. Biopoder I. Título

CDU/ CDD:

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LEANDRO FERNANDES SAMPAIO SANTOS

DA PATOLOGIZAÇÃO DO CRIME À RACIALIZAÇÃO DA “ANORMALIDADE”:

Psiquiatria, Eugenia e Antropologia Criminal na Sociedade de Normalização (São Paulo 1920-1935).

Monografia apresentado ao Curso de História das Faculdades de Guarulhos, para obtenção do grau de Licenciatura em História

Aprovada em ___/ ___/___

BANCA EXAMINADORA

______________________________ (1º Examinador)

_______________________________ (2º Examinador)

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“As genealogias são, muito exatamente, anticiências. Não que elas reivindiquem o direito lírico á ignorância e ao não saber (...) Não é disso que se trata. Trata-se da insurreição dos saberes. Não tanto contra os conteúdos, os métodos ou os conceitos de uma ciência, mas de uma insurreição sobretudo e acima de tudo contra os efeitos centralizadores de poder que são vinculados á instituição e ao funcionamento de um discurso científico organizado no interior de uma sociedade como a nossa. E se essa institucionalização do discurso científico toma corpo numa universidade ou, de um modo geral, num aparelho pedagógico, se essa institucionalização do discurso científico toma corpo numa rede teórico-comercial como a psicanálise, ou num aparelho político, com todas suas aferências, como é o caso do marxismo, no fundo pouco importa. É exatamente contra os efeitos de poder próprios de um discurso considerado científico que a genealogia deve travar combate” (Michel Foucault)

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RESUMO No inicio do século XIX a psiquiatria travou confrontos com a justiça sobre as relações

entre crime e loucura sobre a responsabilidade penal do indivíduo criminoso a partir da

noção de monomania homicida como loucura parcial. A psiquiatrização da justiça permitiu

o desdobramento da medicina mental para fora do asilo juntamente com a medicina social

operacionando uma “medicalização da sociedade”, e se intensificou com a teoria da

degeneração em descontinuidade com a tese da monomania afirmando o determinismo

biológico do criminoso (bio-determinismo) pelas taras da hereditariedade se relacionando

com a eugenia, antropologia criminal e o evolucionismo na virada de século; a

patologização do crime se torna premente com o surgimento da figura do “criminoso nato”

se articulando com o conceito de “anormalidade”, cujo classificará todas as condutas que

fogem a lei e a norma de “anormais”. A necessidade de controlar a degeneração e

proliferação dos “anormais” a depuração da raça se torna urgente, levando os diferentes

saberes a buscarem de maneira conflituosa as melhores medidas para impedir a

disseminação da degeneração na sociedade gerando inúmeros confrontos sobre o que fazer

com o “criminoso”, o “louco”, o “monstro”, “o anormal”, o “indivíduo perigoso”, os quais

giraram entorno da sequestração, esterilização, castração, eliminação e/ ou exterminação

destas personagens para evitar a contaminação da “espécie” e prover os melhores meios de

expurgar as raças “inferiores” fazendo que surgisse outro tipo de racismo pautado na

“anormalidade”, uma raciologia que será fundamental para emergência do Biopoder para

regulamentação da vida e defesa da sociedade numa sociedade de normalização cujas

discussões foram intensas no Brasil, sobretudo em São Paulo na primeira metade do século

XX.

Palavras-Chave: Crime e Loucura. Anormalidade e Psiquiatria. Biopoder.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÂO .......................................................................................................................... 8

1. PSIQUIATRIA, CONTROLE SOCIAL E MEDICALIZAÇÃO DA SOC IEDADE

A INTERVENÇÃO MÉDICA NO “CORPO SOCIAL” ........................................................ 14

1.1 URBANIZAÇÃO, CRESCIMENTO POPULACIONAL E EXCLUSÃO SOCIAL .......................................... 25

1.2 “CLASSES PERIGOSAS”: HIGIENISMO E CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA ....................................... 32

1.3 MEDICALIZAÇÃO DA SOCIEDADE: DIVERGÊNCIAS E PROBLEMATIZAÇÕES ACERCA DE

UM CONCEITO ............................................................................................................................... 40

2. CRIME, LOUCURA E ANORMALIDADE: BIO-DETERMINISMO, EUGENIA E

BIOPODER COMO DISPOSITIVO DE SEGURANÇA E REGULAMENT AÇÃO

DA VIDA ..................................................................................................................................... 46

2.1 DA MONOMANIA HOMICIDA À DEGENERAÇÃO: A PSIQUIATRIZAÇÃO DA JUSTIÇA ................... 46

2.2 A ESCOLA POSITIVA: A ANTROPOLOGIA CRIMINAL E O BIO-DETERMINISMO .............................. 57

2.3 O “MONSTRO”, O “ANORMAL” E O “INDIVÍDUO PERIGOSO”: SEQÜESTRÁ-LOS, ESTERILIZÁ-

LOS, ELIMINÁ-LOS OU EXTERMINÁ-LOS? ...................................................................................... 68

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................................... 87

REFERÊNCIAS ......................................................................................................................... 90

FONTES PRIMÁRIAS .............................................................................................................. 95

Page 8: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

INTRODUÇÃO

A pesquisa aqui empreendida surgiu doravante às investigações realizadas com

grupo de estudos “Raça e Etnia, Ciência e Humanidades: Múltiplas Implicações”,

sobretudo do segundo módulo do primeiro projeto de pesquisa intitulado “Do saber-poder

médico e jurídico ao controle e racionalização do espaço urbano e população: perigosidades

e defesa social na invenção da modernidade brasileira” no tocante ao saber psiquiátrico

como campo de forças e entrecruzamento de discursos e relações de poder entre psiquiatria

e justiça, mais precisamente, o desdobramento da medicina mental balizada pela teoria da

degeneração em descontinuidade com a tese da monomania, principalmente a monomania

homicida que se articula com a eugenia, antropologia criminal e o evolucionismo (seja

darwiniano ou lamarckista) operacionando uma patologização do crime com o surgimento

do conceito de “anormal” como uma forma de psicopatologia no final do século XIX e se

estendendo até meados do século XX no Brasil (ou até nossos dias atuais com outras

roupagens), onde São Paulo será um dos principais pólos de discussão e disseminação.

Descontinuidades, rupturas e permanências, ou readequações, aconteceram no

âmbito tanto do saber quanto na prática psiquiátrica e possibilitará a psiquiatria não ficar

circunscrita somente aos domínios da “doença mental”, e abrangerá todos os tipos de

desvios de comportamento não enquadrado como “normal”: os degenerados, os epilépticos,

os insanos, os criminosos, os alcoólatras, os sifilíticos, os vagabundos, entre outros. A

psiquiatria e o conjunto de ciências que a constitui, irá se exercer da disciplinarização do

corpo à regulamentação da população objetivando e se impor como saber-poder capaz de

detectar todo tipo de perigo biológio-social e com isto se legitimar como dispositivo de

segurança e defesa da sociedade ao lado da medicina social engendrando mecanismos

disciplinares e mecanismos regulamentadores:

(...) pôr indivíduos em visibilidade, normalização dos comportamentos, espécie

de controle policial espontâneo que se exerce assim pela própria disposição

espacial da cidade: toda uma série de mecanismos disciplinares que é fácil

encontrar na cidade operária. E depois vocês têm uma série de mecanismos que

são, ao contrário, mecanismos regulamentadores, que incidem sobre a população

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(..). Sistema de seguro-saúde ou de seguro-velhice; regras higiene que garantem a

longevidade ótima da população; pressões que a própria organização da cidade

exerce sobre a sexualidade, portanto sobre a procriação; as pressões que exercem

sobre a higiene das famílias; os cuidados dispensados ás crianças; a escolaridade,

etc. (FOUCAULT, 2005, pp. 209-300)

A psiquiatrização da justiça e/ ou “medicalização do crime” (DARMON, 1991) é

um dos procedimentos estratégicos para extrapolação da psiquiatria para além dos muros do

asilo, esse desdobramento histórico foi consubstanciado pelo bio-determinismo da

criminologia e pelo hereditarianismo da Eugênia. A Antropologia Criminal de C. Lombroso,

E. Ferri e R. Garofalo buscou romper com o Direito Penal Clássico de J. Rousseau, C.

Beccária e J. Bentham (para citar os principais nomes das duas vertentes), todavia, os

objetivos não ocorreram de modo súbito e harmônico, pelo contrário, gerou inúmeras

controversas e confrontos discursivos e axiológicos provocando relações de força e poder

entre o saber médico e o saber jurídico-judiciário: o primeiro está ligado aos avanços do

bio-determinismo e do deslocamento da atenção do crime para o criminoso nato como

objeto de intervenção e normatização; o segundo é amparado pelo contratualismo e

humanismo sob a noção de “responsabilidade social” cujo criminoso deve ser punido e

corrigido. Nas primeiras décadas do século XX, será marcada pela invenção da

“anormalidade”, ocorridas já em meados do século passado, pela biologização do saber

jurídico-penal. Porém, não ocorrerá uma anulação absoluta de um pelo outro, mas em certa

medida, ocorrerá uma confluência, como veremos mais adiante.

A eugenia aparece em seguida como interface a psiquiatria, antropologia criminal e

direito penal procedendo por relações de saber-poder na constituição de campos discursivos

ou campos científicos (BORDIEU, 2004) acerca da “anormalidade”, especialmente do

louco e do criminoso, ou “louco criminoso”, na sua definição etiológica e propondo de

medidas profiláticas, permitindo em devidas proporções naquele contexto, uma submissão

do direito ao bio-determinismo. A associação com a eugenia possibilitou a psiquiatria se

exercer como proteção social incorporando em sua prática discursiva os problemas de

criminalidade, delinqüência juvenil, alcoolismo, prostituição e as várias doenças

“degenerativas”, em geral, as “patologias dos pobres” e, no caso de São Paulo, da

população negra, mestiça e de imigrantes indesejáveis.

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A pesquisa realizada está distribuída em dois capítulos. No Capítulo 1 abordo o

contexto geral da época e as transformações históricas ocorridas de 1890 a 1935, mas se

detendo mais na última década da Primeira República e nos primeiros anos do Governo

Vargas, tratando das mudanças de ordem intelectual, recepções das teorias científicas

européias, principalmente as teorias raciais do século XIX e o ideal de “progresso”

abrangendo os planejamentos urbanos, higienismo e as “classes perigosas”, os processos de

exclusão social dos “inconvenientes” sociais, criminalização da pobreza, os mecanismos de

controle social conjuntamente com o problema da imigração e as conseqüências da abolição

nos projetos de “modernização” do Brasil e construção da nação com seus efeitos nefastos.

Ainda no capítulo I, discuto o conceito de “medicalização da sociedade”, a atuação e

penetração da medicina social nas instancias sociais e a constituição da psiquiatria no Brasil.

No Capítulo II analiso inicialmente a emergência da psiquiatria no início do século

XIX na França nos assuntos jurídicos, sobretudo do crime, das relações entre crime e

loucura e os problemas quanto à aplicação da punição ao louco criminoso. Com a noção de

monomania homicida a psiquiatria sairá do asilo invadindo os tribunais, medicina mental e

a justiça neste momento começam a travar uma longa disputa entorno desta questão. A

teoria da degeneração irá operar uma descontinuidade da psiquiatria, conceberá o louco

criminoso não como alguém com “loucura parcial”, mas como indivíduo “naturalmente”

patológico, a invenção do “anormal”, a teoria da degeneração, alicerçada na dicotomia

normal-anormal, foi imprescindível para desdobramento da psiquiatria até as primeiras

décadas do século XX e sua intervenção médica para além dos muros do hospício; as

doenças mentais, a prostituição, os vícios, a pobreza, a inaptidão para o trabalho foram

associados ao “patrimônio genético”, em outras palavras, às taras hereditárias. Em seguida,

analiso antropologia criminal e/ou criminologia como consolidação de uma etiologia do

criminoso, e como a partir da teoria da degeneração juntamente com antropometria,

frenologia e o evolucionismo negaram a existência do livro-arbítrio defendido pela Escola

Clássica de Direito e fundamentou-se no bio-determinismo na criação do “criminoso nato”,

a Escola Positiva surge como contraposição à Escola Clássica de Direito Penal, a passagem

do crime, antes considerado como questão da “responsabilidade moral” e escolha racional,

para questões médicas, psicopatológicas e sociológicas. Por fim investigo a psiquiatrização

da justiça e o desdobramento da teoria da degeneração incorporado pela criminologia e a

Page 11: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

interface com a eugenia para solucionar os problemas das taras hereditárias, ou seja, o

problema da “anormalidade”, a eugenia seria uma possibilidade científica de intervenção na

depuração racial de uma população. Exploro na parte final desse capítulo os projetos de

segregação, esterilização, eliminação e exterminação do “anormal”, do “monstro”, do

“indivíduo perigoso”, as formas de combate contra a “degeneração” e sua profilaxia,

abordando os dispositivos de segurança, os mecanismos de poder e o racismo que surge

neste processo como projeto biopolítico e exercício do biopoder no plano biológico entre a

vida que deve viver e a morte do outro, ou seja, a vida indigna de viver.

Para realizar a pesquisa foram utilizadas bibliografias específicas sobre o assunto e

fontes primárias e secundárias, os documentos estão reunidos em: periódicos científicos,

manuais de psiquiatria, atas de reuniões e congressos, laudos médicos e livros

especializados recolhidos em sebos constituindo parte de um acervo próprio, cujo não

foram explorados com a profundidade que mereciam, assim como as leituras bibliográficas

foram em certa medida incipiente, devido o pouco tempo para elaboração dessa pesquisa

que aborda uma temática complexa e exigiria um estudo mais aprofundado, um período

maior de elaboração e pesquisa mais ampla em arquivos e acervos históricos, condições

estas que uma monografia em um curso de graduação não possibilita, mesmo assim, nos

lançamos no tortuoso e obscuro caminho sem saber onde os descaminhos poderiam nos

levar.

De acordo com Jurandir Malerba (2006), um aspecto que podemos salientar é que a

maior diferenciação da história no campo da então chamada “ciências humanas” seja seu

procedimento de auto-reflexão do próprio conhecimento histórico, embora muitos

historiadores sequer fazem um mínimo de esforço. Quando a auto-reflexão é exercida

coloca em cheque crenças estáticas e abala os alicerces de nossas convicções

consequentemente se transformando em problematizações possibilitando novas abordagens,

em nosso caso, hermenêuticas, arqueológicas e genealógicas, acabando muitas vezes

barradas pelo preconceito corporativista, dogmas acadêmicos e negação da

multidisciplinaridade; não se trata aqui de “consolidar” um novo tipo de “verdade

definitiva” meramente “subjetivistas” – a clássica divisão dicotômica da pesquisa histórica

– assim como é pensado ingenuamente pelo historicismo “objetivista” (ainda presente e

bem vivo no meio acadêmico). Porém, ao contrário do que se pensa costumeiramente, não

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pretendemos fixar uma exigência “transcendental” de coerência exorbitante a qual o ideal

de “verdade” seja o papel principal no fazer histórico, e não partimos de um vazio, de um

“ponto-zero”, de um nihil-transhistórico considerado pseudo-historiográfico intitulado de

“pós-moderno” ou “pós-modernismo”. Todavia, não aceitamos benevolente de braços

abertos os ditames de uma certa tradição historiográfica insular que castra esta auto-

reflexão necessária ao historiador e, um aspecto básico do conhecimento histórico, ou seja,

a sua própria historicidade, querendo ou não, temos que dialogar com outros saberes e com

as contribuições daqueles que nos precederam, mas não de maneira acrítica, por ênfase a

crítica historiográfica é contribuir para o próprio conhecimento histórico e manter sua

historicidade em curso.

O cerne dos questionamentos aqui colocados é “por a nu” as possibilidades e mantê-

las sobre suspeita. Contudo, o que nos interessa são as articulações dos discursos1 com as

práticas não discursivas e a fabricação dos sujeitos “anormais” e o aniquilamento ocultado

e/ ou explicitado pelas relações de sujeição e não simplesmente “dominação”, o lugar do

outro é no interior destas relações, assim como as produções de subjetividades singulares e

coletivas; as singularidades de acontecimentos (“ecceidades” no dizer de Deleuze-Guattari)

e não simplesmente “essências” individuais. Entendemos que o indivíduo é objeto e

resultado do poder. São estas formas de poder que se exerce sobre a vida – saber-poder

sobre os corpos – classifica e hierarquiza os indivíduos em categorias, fixa a

individualidade aprisionando-os em identidades congeladas, impõe-lhes um regime de

verdade por meio da sujeição, portanto, é esta forma de poder que transforma indivíduos

em sujeitos “anti-sociais”, “anormais”, “monstruosos”, “criminosos”, “loucos”,

“degenerados”, “marginais”, etc.; a biopolítica como estratégia de govermentalidade da

vida: disciplinar o corpo e regulamentar a população e controlar a vida. O biopoder se

1 De acordo com Vera Portocarrero, “Tal articulação não se dá numa linha de causalidade, ou seja, não tenta compreender de que maneira as práticas políticas e econômicas determinam a consciência dos homens e vêm assim influenciar seus discursos. Essa articulação é possível devido ao pressuposto foucaultiano da relação de imanência entre os discursos e certos princípios de organização dos saberes que podem ser situados como elementos de um dispositivo essencialmente político; basta que haja uma prática discursiva para haver saber” (PORTACARRERO, 2002, p.16) Vale salientar que os jogos discursivos (sejam eles os discursos pronunciados e/ ou escritos por intermédio da linguagem, ou o discurso que o próprio exercício da ação pronuncia), dispositivos de coerções e/ ou sujeições imperceptíveis que estão na ordem das leis e nas normas sociais, penetram nas regiões não transparentes do exercício do poder, selecionar, organizar e controlar as aleatoriedades e as disparidades que oferecem “risco” ou “perigo”, primeiramente a estabilidade do poder e segundamente a sociedade.

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exerce quando é preciso “fazer viver e deixar morrer”, fazer viver o “normal”, o indivíduo

“útil”, o homem “são”, o sujeito “probo”, a “prole sadia” a “raça boa” e deixar morrer, ou

até mesmo fazer morrer, o “anormal”, “monstro”, o “degenerado”, o “louco”, o

“criminoso”, enfim tudo aquilo que representa a “raça degenerada”, “raça inferior”,

“selvageria’, “primitividade”, “incivilização” e “atraso” devem ser segregados, expostos a

morte, eliminados e exterminados.

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1. PSIQUIATRIA, CONTROLE SOCIAL E MEDICALIZAÇÃO DA SOCIEDADE:

A INTERVENÇÃO MÉDICA NO “CORPO SOCIAL”.

“Valorizamos os indivíduos e as instituições que estimamos (nossas crianças,

nossa igreja) e desvalorizamos as pessoas e os acontecimentos que demonizamos

ou tememos (traficantes de droga e doenças que tornam as pessoas deficientes).

Quando valorizamos os outros, nossa resposta a eles não gera um problema

social. Apenas quando os desvalorizamos – quando julgamos seu comportamento

perigoso ou inoportuno e os vemos como indesejados – o resultado é um

problema social” (Thomas Szasz, 1994, p. 26).

“O louco faz seu aparecimento como um perigoso em potencial e como atentado

á moral pública, à caridade e à segurança. A loucura é perigo a ser evitado das

ruas da cidade. Liberdade e loucura são antônimos” (Roberto Machado, 1978,

p.377)

Na virada do século XIX para o século XX, não somente a Europa e os EUA, mas

também o Brasil e outros países latinos americanos, sofreram grandes transformações

impulsionadas pela difusão da economia política e industrial e o expansionismo global do

mercado capitalista, assim como os avanços do neocolonianismo alimentado pelo

alargamento das demandas industriais aquecidas pelo capitalismo mercadológico, fizeram

com que as novas tecnologias produzidas cientificamente modificassem em ritmo acelerado

o cotidiano das pessoas e a dinâmica social possibilitando novas descobertas científicas nos

ramos industriais, energéticos, bioquímicos e microbiológicos “com efeitos dramáticos (...)

na farmacologia, medicina, higiene e profilaxia, com um impacto decisivo sobre o controle

das moléstias, a natalidade e o prolongamento da vida”. (SEVCENKO, 1998, p.9).2

Neste ínterim, ocorreram mudanças no Brasil também de ordem intelectual a partir

das recepções de teorias científicas no decorrer do século XIX, mas principalmente a partir

das décadas de 1870 (a “geração de 70” como ficou conhecida e também neste mesmo ano

surge o Partido Republicano) a qual propiciou uma diversificação das elites intelectuais

2 Nicolau Sevcenko intitula este advento de “Revolução Científico-Tecnológica”.

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nacionais inflamando as disputas e rixas regionais. As teorias científicas de maior

receptividade, muitas vezes conflitantes entre si, para citarmos alguns exemplos, estão: o

evolucionismo, o liberalismo, o naturalismo, o darwinismo social, o determinismo

geográfico (ou antropogeografia), o positivismo, a antropologia física e criminal, a

craniologia, a sociologia durkheimiana, a psiquiatria, o higienismo, o sanitarismo, a

eugenia3. A configuração de novas elites intelectuais em sua maioria permeada pelos

princípios liberais de mercado e organização social e valores culturais europeus, sobretudo

ingleses e franceses, encontrou nestas teorias modelos de análises para compreensão das

diferenças sociais e raciais visando uma solução para sanar os males que impediam o Brasil

de ingressar na modernidade, preocupando-se em ingressar o país abruptamente nos trilhos

do “progresso” buscando fundamentar uma cultura e identidade nacional. Um país

“atrasado” que buscava veementemente reduzir as distâncias para galgar ao topo da

“civilização”.

O ideal de “modernização” e “progresso” está intrinsecamente ligado ao

evolucionismo histórico e ao etnocentrismo com a adoção de padrões morais,

comportamentais, intelectuais, institucionais das sociedades tidas como mais “avançadas” e

“civilizadas”, a “ocidentalização” de uma parte da sociedade que se encontra em estágio

“primitivo” pelos setores sociais “ocidentalizados”. Raymundo Faoro em sua análise

diferencia “modernidade” de “modernização”. De acordo com o autor, a “modernidade”

seria um processo que envolve toda a sociedade transformando suas camadas e modificaria

ou extinguiria os papeis sociais. A “modernização” não se dá involuntariamente no

processo histórico, pelo contrário, seria forjado por um determinado grupo social

privilegiando-se ou privilegiando as camadas mais abastadas, “(...) procura moldar, sobre o

país, pela ideologia ou pela coação, uma certa política de mudança. Traduz um esquema

político para uma ação, fundamentalmente política” (FAORO, 1992, p-8). Portanto, a

“modernização” quando se consolida, ou pretende se consolidar voluntariamente, quem

dirige são setores específicos, um grupo dirigente refletindo muito mais seus interesses e

ideais ao invés da própria sociedade em que atua, formando assim não uma nova sociedade

e sim um “novo estamento” que apenas ocuparia o lugar do anterior. A “modernidade” e

3 Intelectuais que aderiram a algumas destas teorias podemos mencionar os nomes de Silvio Romero, Texeira Brandão, Nina Rodrigues, João Batista de Lacerda, Oliveira Viana, Oswaldo Cruz, entre inúmeros outros nomes.

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“modernização” são processos simultâneos num constante dinamismo conflitante

combinando, divergindo, negociando, resignificando tradições já existentes ou criando

novas (ou aparentemente novas) tradições, instituições e valores produzindo subjetividades

identitárias individuais e coletivas.4

Entretanto, o imaginário social corrobora a crença que a modernidade brasileira é

incompleta, uma “cópia mal feita” das nações mais “civilizadas” devido o seu suposto

fracasso em sua implantação e por não ter alcançado os estágios econômico, político e

social dos países considerados modelos de modernidade. Os partidários desta crença

reducionista da histórica não conseguem enxergar as peculiaridades dos projetos

modernizadores adotados e impostos aos países periféricos, acreditam que o processo de

modernização segue as mesas normas e critérios o qual todas as nações sectárias

convergiriam para a mesma finalidade a partir das mesmas etapas universalmente válidas.

Portanto, ao invés concebermos a modernidade brasileira como simplesmente inacabada,

podemos pensá-la diferentemente do etapismo evolucionista eurocêntrico (e anglocêntrico

– os Estados Unidos como paradigma) de forma que se perceba as singularidades do projeto

modernizador nos trópicos, seja em seus problemas ou em sua contemporaneidade com as

metamorfoses históricos ocorridas alhures.

A “modernização” do Brasil “a qualquer custo” foi umas das bandeiras erguidas

pela República Velha, mas precisamente por estas novas elites emergentes com o processo

de republicanização do país, e São Paulo viria a ser um pouco mais tarde o símbolo de

“modernidade” e “progresso” brasileiro, a “locomotiva” que carregaria os demais Estados

da federação. Após 1890, o crescimento populacional aumentou quantitativamente, o

grande contingente de ex-escravos libertos juntamente com a grande chegada de imigrantes

ocasionada pelo aumento da produção de café e em seguida da indústria urbana, passam a

modificar a composição social paulista ao consolidar o trabalho assalariado (permanecendo

ainda o ethos escravista do patriarcalismo) e um aquecimento do mercado interno.

A imigração não era somente uma estratégia econômica de substituição da mão-de-

obra escrava por uma mão-de-obra assalariada como uma forma de implantar o liberalismo

4 Para uma discussão mais ampla sobre as problemáticas que envolvem as noções de “modernidade”, “modernização” e “desenvolvimento” consultem: DOMINGUES, José Maurício. Desenvolvimento, modernidade e subjetividade. Rev. bras. Ci. Soc. [online]. 1999, v. 14, n. 40, pp. 83-91. ISSN 0102-6909 Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v14n40/1710.pdf Acesso: 5 de setembro de 2008..

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nos trópicos, mas também obedecia desde o começo da República o “dogma do

branqueamento”, branquear e “civilizar” o Brasil através da imigração européia para

eliminar gradativamente a presença negra e indígena da sociedade brasileira. O critério

biológico da raça5 era o fator principal para produção do conhecimento cientificista que

pretendia explicar ou resolver os problemas para o futuro da nação. O darwinismo social

acreditava no determinismo das leis biológicas na consolidação da “civilização” e o

“progresso” humano era resultante da seleção natural e social da competição entre as raças

restando somente os mais aptos, os brancos eram racialmente mais competitivos e fortes

perante as demais raças. Os estudos da antropologia física inspirados em Paul Broca em

meados da década de 1870 buscavam classificar os diferentes tipos brasileiros conforme as

rígidas metodologias da antropometria para comprovar a inferioridade de todas as raças não

brancas e os prejuízos da miscigenação. O fenômeno da miscigenação trouxe ao Brasil

figuras como o conde Gobineau, Lapouge e Louis Agassiz todos os três condenaram o

futuro do país pelo os “excessos de mestiçagem” e a “degeneração” da raça. Para Lilia

Schwarcz (1995) o determinismo de Gobineau, assim como de outros autores da época6,

rompia com o humanismo, o arbítrio e o ideal de igualdade entre os homens da filosofia da

luzes. Entretanto, cientistas brasileiros, como Nina Rodrigues e Araripe Junior para citar

dois exemplos, se defrontaram com o aspecto negativo da mestiçagem e viram no mito

ariano e na teoria do branqueamento as justificativas para fomentar a imigração e a

miscigenação para que o sonho de uma nação branca e “civilizada” seja uma realidade num

5 É mister salientar que o conceito ou terminologia de “raça” não é um dado “natural” e, conseqüentemente não está traçado numa predestinação da “natureza humana”, ao contrário, é construto do homem. Ao abordamos “raça” como palavra e/ ou conceito, queremos dizer que tal palavra ou conceito é resultado do conhecimento ou de um saber, portanto, em um determinado contexto, em um determinado ponto do tempo e de uma localidade do mundo foi inventado, e dizer que “raça” é uma invenção é justamente para não dizer origem, pois dizer que “raça” tem um Arché é recair em pressupostos metafísicos e que tal classificação já estava dada de antemão na história. A palavra “raça” não somente tornou-se um conceito é também um ideal, outrossim, o ideal não tem origem ele é fabricado, ou seja, através de obtusa e obscura relação de poder e estratégia política que as raças foram inventadas: “O conhecimento foi, portanto, inventado. Dizer que ele foi inventado é dizer que ele não tem origem. É dizer, de maneira mais precisa, mais paradoxal que seja, que o conhecimento não está em absoluto inscrito na natureza humana (...) o conhecimento é simplesmente o resultado do jogo, do afrontamento, da junção, da luta e do compromisso entre os instintos. É porque os instintos se encontram, se batem e chegam, finalmente, ao término de suas batalhas, a um compromisso, que algo se produz. Este algo é o conhecimento”. (Foucault, 2005b, p.16). Para não descaracterizar o pensamento da época e não cair em anacronismos axiológicos será mantido a palavra raça sem aspas. 6 Sobre as inúmeras teorias raciais do século XIX e início do século XX, sobretudo no Brasil, ver DE LUCA, T. R. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo: UNESP, 1999; SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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futuro não tão distante, no entanto, era preciso conseguir atrair imigrantes e também ganhar

legitimidade científica perante as “comunidades” científicas da época:

Nos termos da sua versão “científica”, através da memória apresentada por J.B.

de Lacerda no Congresso Universal das Raças, Londres, 1911, como delegado do

governo brasileiro, o branqueamento da raça era visualizado como um processo

seletivo de miscigenação que, dentro de um certo tempo (três gerações),

produziria uma população de fenótipo branco. Portanto, em termos gerais, o

Brasil teria uma raça, ou um tipo ou, ainda um povo (o conceito empregado não

importa) nacional. Em suma, a característica que faltava para definir a nação.

Sendo assim, os imigrantes tinham um papel adicional a exercer: contribuir para

o branqueamento e, ao mesmo tempo, submergir na cultura brasileira através de

um processo de assimilação. (SEYFERTH, 1996, p.49).

Em fins do século XIX a noção de raça se amplia, deixando de ser apenas um

entendimento biológico restrito a um indivíduo e passa a se confundir com a ideia de nação,

“pensadores como Renan, Taine e Le Bon, que no Brasil foram lidos com avidez (...) o

conteúdo semântico do termo raça, até então muito preso à ideia de herança sanguínea,

passou a comportar um significado cultural” (DE LUCA, 1999, p.154), portanto, pensar a

nação, o seu progresso, sua estabilidade política e econômica era encarar a questão da

composição racial da população como fator decisivo para a compreensão da sociedade. Se a

raça era a chave para o entendimento da nação, o melhoramento da raça seria a saída para

os problemas nacionais (social e biológico), nas décadas de 1910 e 1920 a eugenia passa a

ganhar mais espaço no meio científico, político e intelectual, sobretudo nas questões que

envolviam a imigração, a sexualidade, o alcoolismo, a doença, a criminalidade e a loucura.

Fundada por Francis Galton em 1869 com sua obra Hereditary genius, a eugenia7

enquanto ciência estudava a hereditariedade humana a partir de um método estatístico e

genealógico, objetivando possibilitar as condições mais propícias à reprodução e ao

melhoramento da raça, em que a crença consistia na purificação da raça como a melhor

forma de combater a degeneração e fortalecer biologicamente um povo. Para tal idealização

ser possível era preciso restringir os casamentos e “cruzamentos” inter-raciais entre os tipos

7 A eugenia no Brasil e sua articulação com a psiquiatria e antropologia criminal serão analisadas juntamente com a teoria da degeneração no segundo capítulo.

Page 19: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

“inferiores” e “degenerados” (paralíticos, epilépticos, portadores de doenças ou “defeitos”

físicos, criminosos, vagabundos, loucos, etc.) e incentivar o “bom casamento” com os tipos

raciais europeus, sendo assim, impediria uniões de grupos sociais indesejáveis. Se a

eugenia em outros países da Europa e EUA proibiam qualquer tipo de casamento inter-

racial para manter a pureza de suas populações, no Brasil, ao contrário, o racismo não

condenava toda forma de contato inter-étnico, somente com a miscigenação de mestiços e

negros com os imigrantes devidamente selecionados seria possível “salvá-los” e “salvar” a

geração futura do fracasso. Se a reprodução sexual era que possibilitaria o melhoramento

racial da nação e a transmissão da tara hereditária, a mulher seria o elemento cabal desse

discurso. De acordo com Nancy Stepan (2005), o discurso à questão de gênero e raça teve

maior ligação aos discursos sobre a nação nas décadas de 1920 e 1930, período pós

Primeira Guerra Mundial, o qual a eugenia nos países latinos americanos ganhava mais

fôlego concomitantemente com a possível participação da América Latina na economia

mundial e a crescente preocupação com o nacionalismo na região:

O desejo de “imaginar” a nação em termos biológicos, de “purificar” a

reprodução das populações para adequá-las às normas hereditárias, de regular o

fluxo de pessoas através das fronteiras nacionais, de definir em novos termos

quem poderia pertencer à nação ou não – todos esses aspectos da eugenia giravam

em torno de questões de gênero e raça e produziam propostas ou prescrições de

novas políticas invasivas de Estado voltadas para os indivíduos. Em resumo, por

causa da eugenia, gênero e raça ficaram ligados à política de identidade nacional.

(STEPAN, 2005, p.117).

A constante busca de uma “verdadeira” nacionalidade desde o início da República

Velha continua sendo perseguida agora com o respaldo científico da eugenia, assim como a

maioria das elites republicanas, os eugenistas idealizavam uma “nação verdadeira” que teria

uma língua e cultura oficial, um objetivo em comum e um povo homogêneo. A eugenia,

conforme nos aponta Eleonora Antunes (2002), seria um meio pelo qual a psiquiatria

pretendia validar-se como ciência entrando nos cânones do paradigma biológico

(retomaremos mais adiante esta discussão no próximo capítulo).

Page 20: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

Na segunda década do século XX passamos por um deslocamento8, ainda incipiente

mais significativo, do pensamento racial na América Latina atrelada as novas

“reivindicações da identidade mestiça do homem latino-americano no contexto ocidental”

(MARTINEZ-ECHAZÁBEL, 1996, p.109).

No Brasil, o movimento modernista que teve seu auge na Semana de Arte Moderna

em 1922, foi um marco dessa nova atitude em relação a mestiçagem e a cultura afro-

brasileira e sua valorização sociocultural na formação do Brasil, tal perspectiva juntamente

com as inúmeras insatisfações, como a fragmentação da autoridade do Estado Nacional

promovido pela constituição que privilegiava alguns Estados, a corrupção, a fraude e o

monopólio das eleições da política eleitoral do sistema republicano, muitos setores sociais

passaram a questionar os princípios pelos quais a República Velha foi implantada. De

acordo com Helena Bomeny (2001), a construção do Estado Nacional não excluiu por

completo a participação de diferentes grupos intelectuais e setores políticos, literários

modernistas, engenheiros, médicos, bacharéis, políticos positivistas, integralistas, católicos,

socialistas, sindicalistas estavam em muitos momentos lado a lado, nem sempre de forma

harmônica, na consolidação de um projeto de Estado Nacional e identidade coletiva, estas

negociações, conflitos e jogos de interesse se estenderam da Primeira República a meados

do Estado Novo9.

Conforme Thomas Skidmore (1998), a eleição de 1929 teve como eleito Júlio

Prestes o então governador de São Paulo, provocou insatisfações nos Estados rivais de

Minas-Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba que em oposição formaram a chapa da Aliança

Liberal indicando Getúlio Vargas (governador do Rio Grande do Sul) a presidência tendo

como companheiro João Pessoa (governador da Paraíba). A suspeita de fraude eleitoral

entorno da candidatura de Júlio Prestes, fez com que Getúlio conjuntamente com seus

aliados dos estados rebelados atacassem o governo federal, conseguindo atrair para seu lado

o exército federal e outras colunas rebeldes e partiram para o Rio de Janeiro. Enquanto isto 8 A antropologia boasiana influenciou inúmeros meios das ciências sociais, da literatura e da arte, as obras de Athur Ramos e principalmente de Gilberto Freyre foram as que tiveram influência mais notável de Franz Boas, ocorre a partir deste momento uma substituição da noção biológica de raça pela noção de cultura, enquanto expressão material e simbólica do ethos de um povo. Para maior detalhe consulte: GUIMARAES, Antonio Sérgio Alfredo. Preconceito de cor e racismo no Brasil. Rev. Antropologia, 2004, v. 47, n. 1, pp. 9-43. ISSN 0034-7701 Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0034-77012004000100001& script=sci_arttext Acesso em: 10 de setembro de 2008. 9 A título de elucidação desta participação multiforme de diferentes esferas intelectual e social consulte: BOMENY, Helena (org.). Constelação Capanema: intelectuais e políticas. Rio de Janeiro: FGV, 2001.

Page 21: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

no Rio, Júlio Prestes não queria renunciar a presidência não atendendo ao pedido dos

militares, mas acabou sendo convencido pelo arcebispo Sebastião Leme e partiu para o

exílio. Entretanto, as colunas rebeldes não haviam chegado ao Rio, e os comandantes da

marinha e do exército organizaram uma “junta governante” se restringindo somente a

governar o Rio, mas com a chegada de Getúlio Vargas no Rio de janeiro foi empossado

como presidente provisório.10

Este ato de Getúlio Vargas foi intitulado de “Revolução de 1930” e inicialmente não

trouxe as tão almejadas mudanças, a crise mundial de 1929 afetou em maior grau as nações

industrializadas e em seguida as nações de economia rural, atingindo a maioria da

sociedade brasileira passando despercebido à ruptura política e econômica do governo

provisório. O preço do café, principal produto de exportação, no mercado internacional caiu

e a especulação cafeicultora sofreu um grande impacto restando somente a queima de todo

estoque acumulado, o presidente Washington Luís (1926-1930), com algumas medidas,

tentou conter a crise no Brasil, mas não conseguiu contornar a situação. Entretanto, a crise

de 1929 serviu como uma das justificativas principais para a centralização do governo e

dissolução do Congresso Nacional, possibilitando maior intervenção federal na política

estadual repercutindo no confronto político entre São Paulo e Getúlio Vargas engendrando

a revolta paulista (ou “Revolução Constitucionalista”) de 1932 e sua curta duração e

fracasso, o que restou ao “orgulho paulista”, conforme Skidmore, foi a construção da

Universidade de São Paulo como afirmação da superioridade paulista concernente a

intelectualidade, onde seria o local de grande produção do saber científico na área da saúde

pública.

A “Revolução de 1930”, como analisa Edgar De Decca (2004), teria sido uma

construção discursiva e exercício de poder sobre o passado sob a óptica do vencedor, em

que consiste uma nova periodização, dividindo a história do Brasil em duas etapas: a

primeira etapa anterior a revolução – a velha república oligárquica – a qual a nação era

10 “A vitória de Getúlio havia sido obra de uma complexa coalizão da qual os líderes políticos de Minas Gerais e Rio Grande do Sul, ressentidos com o domínio de São Paulo sobre a política nacional, eram apenas um elemento. O segundo era o recentemente fundado (1926) Partido Democrático de São Paulo, (...) o terceiro eram os tenentes, que se haviam rebelado contra as autoridades civis e militares. O quarto eram os cafeicultores (...), que estavam contrariados com o fracasso do governo federal em compensá-los pela queda do preço do café. Uma coalizão tão heterogênea era obviamente instável, com tensões potenciais que deveriam vir á tona assim que o governo provisório começasse a tomar decisões”. (SKIDMORE, 1998, p.155).

Page 22: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

ausente; a segunda etapa pós-revolucionária, vencedora que sobrepuja as oligarquias e faz

surgir na história um sujeito que até então não existia ou estava ocultado, a nação:

Esse discurso como exercício efetivo de poder político, além de periodizar a

história, define o lugar onde ela deve ser lida – o passado como domínio das

oligarquias e o presente como uma revolução sem prazo para acabar. Como um

momento, entre tantos outros, do exercício de dominação, a produção da ideia de

revolução de trinta é a produção também de uma fala definidora do lugar da

história, comportando aí os agentes sociais que obstroem o futuro da nação, e

uma revolução capaz de transformar essa nação num sujeito com uma nova

consciência. (...). Como uma memória histórica a revolução de trinta legitima o

exercício de poder ao definir o campo simbólico através do qual todo o social

deve ser homogeneizar. (DE DECCA, 2004, p.73).

Portanto, a estratégia política de memorização do passado objetivou romper com

tudo que antecedeu, a década de trinta foi considerada um “não-ser da Nação”. A

construção mítica do passado consolida discursivamente um “fato” como marco-histórico-

originário e num divisor de águas entre passado e futuro em que a revolução não cessa de

parar, repercutindo na produção historiográfica que visará daí em diante criar oposições

binárias ente o velho e o novo: “Nação-objeto x Nação-sujeito, economia agro-exportadora

x industrialização/ mercado interno, inorganicidade das classes-sociais x Estado-criador das

classes, liberalismo x autoritarismo, etc.” (Idem, p.73). As oposições binárias exprimem a

ideia de “progresso” e “modernização”, refaz a história memorizando-a e lidima o poder

político que se estabeleceu no pós trinta sob a ótica do vencedor.

Os anos correspondentes de 1930 a 1935 são marcados pela construção de uma

hegemonia nacional centralizadora que se impunha às divergências regionais, o Estado

Nacional passa a se confundir com a bandeira e esta por sua vez se confunde com a face de

Getúlio Vargas, ou seja, o Estado se confundia com a figura mítica do “pai” que está acima

de todas as desigualdades e interesses classistas, todavia, todas as medidas coercitivas e

autoritárias serão sempre vistas como um ato simbólico do “pai” (o presidente) que

repreende o “filho” (a sociedade) para corrigi-lo e colocá-lo no rumo “certo”. O que se vê

aqui é a criação mítica da nação pelo Estado, “o poder apresenta a nação como sua obra

acabada, a dimensão orgânica de uma sociedade que supera as suas disparidades”

Page 23: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

(LENHARO, 1986, p.35). A diminuição de importações e outras medidas do gênero que

fomentaram o crescimento da produção econômica prepararam o terreno para Vargas

estabelecer um governo nacionalista autoritário pautado num discurso nativista a fim de

consolidar sua sustentação política encontrando nas “classes trabalhadoras” seu núcleo de

apoio.

Na década de 1930 assistimos a emergência do fascismo na Europa e uma

radicalização política na América Latina, o medo de um novo colapso econômico e do

comunismo (o qual a Aliança Nacional Libertadora liderada por Luís Carlos Prestes será o

seu representante no Brasil) e de uma revolução nos molde da “Revolução Russa”

contribuiu significativamente para o surgimento de uma direita radical no pós-guerra, sendo

assim, o ideário fascista e antiliberal que inspirou Hitler também encontrou ecos aqui nos

trópicos. “Nos anos 30 e 40, vividos predominantemente sob a tutela varguista (1930-45), a

orientação autoritária do governo pretendeu compor doses complementares de repressão e

doutrinação a fim de construir sua base social de sustentação política” (SEVCENKO, Op.

cit., p.37).

A difusão do fascismo após a “Depressão” foi grande, pois o modelo fascista

alemão conseguiu reduzir com eficácia os impactos da crise e controlar a economia interna

e diminuir o desemprego. As técnicas de manipulação política dos regimes nazifascista

foram importantes no período varguista como veículo de manobra e controle das massas:

“haurindo ensinamentos dos regimes repressivos que se multiplicam na Europa nesse

período, as autoridades federais procurariam tirar o máximo de proveito das técnicas de

propaganda e dos meios de comunicação social, muito especialmente do rádio” (Ibidem,

p.37). Os grupos políticos relativos ao constitucionalismo liberal e ao reformismo

socioeconômico perderam espaço para a manipulação política de Getúlio Vargas que com

astúcia e audácia se valeu dos aparatos áudios-visuais como técnicas de subjetivação (cujo

integralismo também se valeu destas técnicas), assim como o fascismo alemão e italiano

para disseminar os ideais de seu governo:

A utilização das imagens como dispositivos discursivos de propaganda atendia a

finalidades políticas muito claras, que os próprios teóricos do poder não

escondiam. Sua intenção era espalhar essa carga emotiva e sensorial, de modo a

atingir facilmente o público receptor, detonando respostas emotivas que

Page 24: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

significassem, politicamente, estados de aceitação, contentamento, satisfação –

reações passivas e não críticas. (Ibidem, p.16).

Segundo Maria de Almeida (2007), O integralismo foi um grande exemplo da

influência nazifascista no Brasil, o anti-semitismo nos trópicos11 não chegou a proporções

que chegara o nazismo, uma política racista como forma de profilaxia eugênica de

extermínio generalizado de judeus, porém, a luta anti-semita ganhou força no país e muitas

vertentes do integralismo – não podemos ainda afirmar que todos integralistas eram anti-

semitas – buscava a extradição e o impedimento da entrada de judeus no país – quando não

a sua eliminação. O mito de que o judeu era “origem de todo mal” 12 espalhou depressa

com o livro “Os Protocolos dos Sábios de Sião” e com a nova constituição de 1934 que

estabeleciam normas e leis para entrada de estrangeiro, os integralistas redigiram inúmeros

artigos sobre o “perigo judaico” e imagens que construíam um imaginário coletivo

xenofóbico e racista em que o judeu não teria o perfil desejado para construção da

identidade nacional. Essas criações míticas entorno do judeu imaginário (seja como “vilão”

ou “heroi”) não condiziam com a heterogeneidade judaica e com a própria realidades deles

aqui no Brasil:

O que é mais interessante em tudo isso é que os judeus reais que viviam no Brasil,

fossem eles cidadãos ou refugiados, enfrentavam poucos empecilhos cotidianos

ou estruturais para conquista de objetivos econômicos ou sociais. Assim a

questão judaica brasileira era na verdade um esforço dos líderes do Brasil em

encaixar imagens intolerantes dos judeus, filtradas na Europa, com a realidade de

que a esmagadora maioria dos imigrantes judeus não era nem muito rica e nem

11 Sobre o anti-semitismo no Brasil não podemos esquecer-nos de toda polêmica que envolve a figura emblemática de Oswaldo Aranha Ministro do Exterior durante o Governo Vargas, um dos principais defensores do anti-semitismo da base governista. Para mais detalhes das políticas anti-judaicas no Brasil, principalmente no governo de Getúlio Vargas e as divergências de intelectuais entorno do anti-semitismo no país leiam: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (Org.). O anti-semitismo nas Américas. São Paulo, Edusp/ Fapesp, 2007. 12 “Se os ‘sinais de estigma’ do negro são físicos, os dos judeus são comportamentais. Entre os cristãos, o judeu é facilmente identificado por sua religião e seu comportamento social, assim como o negro o é pela cor de sua pele. Por isso, os que desejam perseguir o judeu podem também começar com uma categoria social pré-fabricada; precisam apenas impor o papel de inimigo interno (‘usurário’, ‘banqueiro internacional’, ‘comunista’, etc.) a alguns ou a todos os membros desse grupo. Em resumo, os negros que vivem entre homens brancos, os judeus que vivem entre cristãos, podem ser separados como divergentes por sinais manifestos, ou estigmas manifestos”. (SZASZ, Thomas S. A fabricação da loucura. Rio de Janeiro, Guanabra, 1984, p. 275).

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muito pobre, era raramente ativa politicamente, e rapidamente aculturou-se à

sociedade brasileira (LESSER, 2007, p.275).

Segundo Maria Celina D’ARAUJO (2006), com os atentados dos integralistas e o

medo do comunismo crescente no Brasil pairava um clima de suspeitas e de ameaça ao

governo varguista, contudo, em 4 de abril de 1935 foi promulgada a Lei de Segurança

Nacional que estabelecia como crime tudo aquilo que ameaçasse a ordem política e social,

uma forma estratégica encontrada para transferir tais crimes para uma legislação especial

mais rigoroso em que não haveria as garantias processuais de crime comum. Esta

preocupação em criar uma nova legislação penal era a constatação da mudança da

concepção de guerra, assim como seus métodos e suas finalidades, que trazia no mundo

contemporâneo o inimigo interno como perigo em potencial, podendo ser em muitos casos

mais temíveis do que os inimigos externos.

A LSN, aprovada pelo Congresso, corresponde a uma reação política e jurídica

do governo Vargas contra movimentos grevistas e ideológicos que vinham se

organizando no Brasil em um processo de crescente mobilização social e de

radicalização política. As principais expressões disso são a criação da Ação

Integralista Brasileira (AIB) em outubro de 1932, e da Aliança Libertadora

Nacional (ALN) em março de 1935. (D’ARAUJO, 2006, s/ p).

Logo depois em 11 de julho de 1935 um decreto dissolveu a ALN, e no mesmo ano

Prestes lança um manifesto contra Getúlio Vargas e declara a tomada de poder por um

governo revolucionário, tal ato fez com que a LSN seja os prenúncios de um Estado de

Exceção, podemos dizer que um tipo de Estado de sítio estava ganhando força não somente

com as medidas autoritárias que mencionamos anteriormente, mas também com as

internações compulsórias mais amplas – próprias a políticas de exceção – de leprosos,

tuberculosos, inimigos políticos, delinqüentes e “doentes mentais”, significando neste

último caso uma crescente superlotação de hospícios e as utilizações abusivas e irrestritas

das terapias biológicas de choque para atender a grande demanda. Mas o auge mesmo do

Estado de Exceção no governo de Getúlio Vargas seria com consumação do Estado Novo e

principalmente nos anos correspondente a segunda Guerra Mundial (SKIDMORE, 1998;

D’ARAUJO, 2006).

Page 26: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

1.1 - Urbanização, Crescimento Populacional e Exclusão Social.

Desde início do século XX, São Paulo vivenciava um considerável crescimento

urbano e populacional, relacionado à nova lógica urbana e econômica ligadas à cafeicultura,

industrialização, abolição e imigração. As elites econômicas e intelectuais juntamente com

o poder público almejavam construir uma nova imagem da “cidade que mais crescia”

importando modelos europeus de urbanização e arquitetura, comportamentos, hábitos,

vestimentas e branqueamento populacional. Essas transformações se deram de modo

significativo com as reformas e “regeneração” (ou seja, eliminar os “males” e os elementos

“degenerativos” que atrapalhavam o “progresso”) impostas pelas novas concepções,

sanções e normas urbanísticas, higienistas, racionalizante e tecnocrática visando a

disciplinarização e normatização da sociedade, a remodelação de São Paulo buscava

adaptar ao novo perfil industrial e comercial pelo qual a cidade passava, apagando as

marcas (não por completo) do passado colonial e imperial, principalmente os

comportamentos e costumes considerados “selvagens” e “degradantes”.

O espaço urbano era heterogêneo composto por uma multiplicidade étnica, cultural

e econômica, nas mesmas ruas e avenidas encontravam-se operários, homens ricos,

madames, prostitutas, malandros, imigrantes, caipiras, vagabundos, mendigos, loucos,

lavadeiras, curandeiros, ervanários, e entre inúmeros outros indivíduos que vinham para

paulicéia na esperança de melhores condições de vida e trabalho proporcionadas pelo

“progresso”.

A maioria desta população era indesejável, a presença dos populares nestes locais

remodelados e higienizados sempre foi vista com repugnância. Carlos José F. dos Santos

(2003) ao pesquisar sobre a presença de parcelas pobres e populares na cidade de São Paulo,

principalmente no centro da cidade, observa atentamente as estratégias de exclusão social e

expulsão dessas parcelas, como, por exemplo, as lavadeiras que em sua maioria “ex-

escravas e mamelucas” que além de serem “barulhentas”, falavam palavrões, usavam

roupas que “feriam” a “decência”, brigavam muito e tinham condutas “desmoralizantes” e

“envergonhavam a cidade” com suas tradições e costumes, ou sofriam perseguições

Page 27: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

policiais, como o caso de curandeiros, malandros, vagabundos, mendigos, prostitutas, etc.,

fazendo com que gradativamente fossem se afastando, quando não imediatamente do centro

da cidade, mas isto nunca se deu de forma absoluta. Esta lógica de exclusão13 e

exclusividade do centro urbano não era aceita facilmente como pretendiam as camadas

mais abastadas da capital bandeirante.

Todavia, estes espaços urbanos eram territorialidades marcadas tradicionalmente

pelas culturas populares, como nos mostra Santos, a circulação, a mendicância e o comércio

das camadas pobres da cidade não foram de todo extintos do centro urbano. Portanto, era

evidente (e ainda o é) nestas práticas higienizadoras a ideia de que o centro da cidade era

exclusivo para certos grupos sociais das elites locais e, excludente para os demais, pois os

novos equipamentos urbanos eram desfrutados somente pelos setores mais abastados,

enquanto o restante da população deveriam se contentar com o que tinham e se restringirem

às áreas suburbanas e periféricas, regiões deixadas ao descaso, à insalubridade e ao

loteamento clandestino e irregular:

Primeiro manifesta-se o propósito de desqualificar e marginalizar modos de

trabalho e comportamento que fugia à delimitação dos espaços, à constituição de

um mercado de trabalho especializado e ao controle mais direto dos grupos

ligados à administração municipal. Depois, de certa maneira, justificavam-se a

repressão policial e a reorientação do uso daquele espaço, como desejava

Washington Luís (SANTOS, 2003, p.100).

A nova ordem exigia uma disciplina urbana mais eficaz, esquadrinhar e codificar o

espaço urbano para ordenar, vigiar, controlar e impedir comunicações e ações consideradas

perigosas criando um espaço útil, sendo assim, produzir indivíduos trabalhadores e

docilizados mentalmente e fisicamente através de tecnologias disciplinares de submissão do

corpo disposto à nova produtividade industrial, tratava-se de um amplo projeto de

ordenação e “ortopedia social” do qual estavam engajados ativamente, na década de vinte

do século passado, aqueles que se ocupavam da criminologia, da psiquiatria e higiene

13 “[...] Os inúmeros discursos sobre a exclusão declinaram sob todas suas facetas, e até à sociedade, uma degradação do vínculo social que teria marcado a ruptura dos indivíduos em relação a suas pertenças sociais, para deixá-los entregues a si mesmos e à sua inutilidade. ‘Os excluídos’ são coleções (e não coletivos) de indivíduos que não têm nada em comum a não ser partilhar uma mesma penúria. São definidos numa base unicamente negativa, como se fossem elétrons livres completamente dissocializados” (CASTEL, 2005, p.49.).

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mental, da medicina legal, assim como a pedagogia e a psicologia behavorista (aplicada em

industrias sectárias do Fordismo), criaram uma complexa rede de poder-saber de

racionalização política do corpo, nas palavras de Foucault:

(...) o corpo também está diretamente mergulhado num campo político; relações

de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o dirigem, o

suplicam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais.

Este investimento político do corpo está ligado, segundo relações complexas e

recíprocas, à sua utilização econômica; é numa boa proporção como força de

produção que o corpo é investido por relações de poder e de dominação; mas em

compensação sua constituição como força de trabalho só é possível se ele está

preso num sistema de sujeição (onde a necessidade é também um instrumento

político cuidadosamente organizado, calculado e utilizado); o corpo só se torna

força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso. (FOUCAULT,

2006c, pp.25-26).

O trabalho não seria somente uma forma de enobrecimento moral do homem, com a

entrada destes diferentes saberes, as teses bio-deterministas passaram a compor as novas

concepções acerca do trabalho, não buscavam apenas harmonizar corpo e trabalho, os

profissionais da área objetivavam racionalizar tanto o "tratamento" de delinquentes, quanto

à produtividade e disciplina fabris, um exemplo disto é o IDORT14 e os programas de

racionalização do trabalho, uma das discussões centrais nas décadas de 1920 a 1940. Os

debates sobre as instituições penitenciárias giravam entorno de fornecer aos presos uma

diversidade de ofícios profissionais como forma de “regeneração” por uma espécie de

“laborterapia”, como diria Foucault (2006c) a fabricação de “corpos dóceis e úteis”, sobre o

assunto o Dr. Álvaro Pires da Costa sub-diretor penal e de instrução da Penitenciária de São

Paulo escreveu:

Na regeneração do criminoso é, sem dúvida, o trabalho um dos fatores

preponderantes. (...) Complexa como é a matéria, por se ter de atender, de um

lado, á educação profissional do detento e sua conseqüente utilidade futura, e, de

14 Sobre as relações do IDORT com as políticas higienistas consulte: CAMPOS, Cristina de. São Paulo pela lente da higiene: As propostas de Geraldo Horácio de Paula Souza para a cidade (1925-1945). São Carlos, Rima, 2002.

Page 29: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

outro, à preservação da segurança e da disciplina do presídio – uma perfeição

seria impossível, como, afinal, em toda obra humana (COSTA, 1940, p.335)15.

Para que a “regeneração” fosse possível era preciso conhecer a constituição “phisio-

psiquica” do condenado, os exames clínicos e de laboratórios para se conhecer o indivíduo

criminoso será marcado pelo bio-determinismo (será abordado com mais profundidade no

segundo capítulo) e o serviço de Biotipologia Criminal da Penitenciária seria o único

serviço capaz de identificar através de uma “psicologia experimental” a possível

“regeneração” do criminoso:

Desvendadas, assim, de maneira mais ou menos precisa, as variadas faces do

caráter do detento e suas tendências e, contando a Penitenciária com diversas

modalidades de trabalho, não é difícil enquadrar-se êle em determinada atividade

profissional. Nem sempre, é certo, se adapta o sentenciado ao primeiro oficio para

que foi designado, sendo, então, experimentado em outros, até que se consiga o

ajustamento almejado, dentro dos seus pendores.

É o que denominaremos psicologia experimental aplicada na educação

profissional. Sem dúvida, a biotipologia, que marca atualmente acentuado

progresso, virá também colaborar, dentro das modernas tendências penais, no

aperfeçoamento da racionalização do trabalho carcerário (COSTA, pp. 1940, 335-

36).

A presença de imigrantes nos trabalhos urbanos e rurais era grande, era visível nas

fábricas, nos sindicatos, nas formações de partidos, nas greves, nas manifestações

socialistas e anarquistas participando na própria composição étnico-cultural e

socioeconômica da cidade longe de ser harmônica. Conforme Fabio dos Santos (s/d), em

meados da década de 1920 os trabalhadores estrangeiros de diversas nacionalidades

ocupavam a indústria paulistana chegando a ser 52% da mão de obra, tal período é

associado no imaginário social ao aumento irrestrito de imigrantes na população, e com isso

crescia a grande necessidade de regulamentação da imigração e controle das “raças fortes”

que seriam incorporadas ao povo brasileiro para branqueamento e revigoramento racial.

A imigração conforme trabalhada por Santos (2003) não considerou os debates

eugênicos acerca do imigrante indesejável16 como perigo de moléstias e desordem sociais,

15 Será mantida a ortografia original de cada documento citado para manter maior fidedignidade do mesmo.

Page 30: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

os programas eugênicos de controle imigratório foram fomentados com a criminalidade, as

doenças, a prostituição e os movimentos operários, para eugenistas como Renato Kehl não

era suficiente a verificação da aparência, aptidão para o trabalho e das condições de saúde,

portanto, era necessário critérios mais rígidos contra os “degenerados” para o impedimento

“da transfusão de seus sangues nas veias do nosso povo” e o mesmo completa com uma

afirmação categórica: “Além da necessidade de selecionar os imigrantes sob o ponto de

vista physico e mental, devem elles ser selecionados, também, sob o ponto de vista nupcial.

Digam o que disserem, devemos ter a coragem para affirmar que ha algumas raças que

absolutamente, não nos convêm” (apud MARQUES, 1994, p. 91).

A preocupação com a integridade da raça visava à integração física e biológica, a

miscigenação era considerada como proliferadora de “estigmas degenerativos” e se fosse

preciso miscigenar para fortalecer a “prole” era necessário ser programada sobre o ponto de

vista e critérios eugênicos. O psiquiatra Antonio Carlos Pacheco e Silva, diretor do

Hospício do Juquery após a morte de Franco da Rocha em meados da década de 1920, via

na eugenia uma forma de fortalecer a raça paulista e com a seleção de imigrantes “probos”

física, moral e mentalmente diminuiria as taras hereditárias resultadas do mau cruzamento,

num artigo escrito sobre o 1º Congresso Brasileiro de Eugenia ocorrido em 1929 via com

otimismo o futuro de São Paulo:

O Estado de São Paulo é talvez hoje o maior laboratório racial do mundo e não

pode descuidar-se dêsse magno problema, para que futuras gerações paulistas,

produto de cruzamentos os mais variados, mas caldeadas sob o imenso sol,

unificadas pela mesma língua, cimentadas pelas mesmas crenças, possam reunir

as boas qualidades das raças de origem. Mister se faz, pois, fomentar entre nós

a Eugenia, divulgar as leis da hereditariedade, para que se apurem os

caracteres dominantes das raças fortes e se atenuem os que são recessivos e

prejudiciais (PACHECO e SILVA, 1936, p.67, grifos meu).

16 De acordo com Vera Beltrão Marques a imigração japonesa era vista como perigo e prejudicial a “raça brasileira”, nas palavras de Kehl (1929), “se vingarem os propósitos das commissões japonesas que trabalham para intensificar esta imigração, e se o governo brasileiro continuar a favorecel-a, dentro de mais alguns annos teremos formado no Estado de São Paulo um formidável e inassimilável núcleo de filhos do Império do Sol nacente, tal qual o kysto racial com que os americanos tanto se preocupam” (MARQUES, Op. cit., 91)

Page 31: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

As representações acerca do caráter positivo da imigração não demorariam a cair

por “água a baixo”, uma série de problemas emergia ou se agravava em diferentes níveis da

sociedade com o aumento significativo e gradativo do afluxo de imigrantes impedindo

muitos estrangeiros de terem êxito e ascender socialmente17. De acordo com Boris Fausto

(1984), os “inconvenientes” sociais não estavam somente espalhados pela malha urbana da

paulicéia, também vinha de outros continentes juntamente com a massa de “trabalhadores

honestos”, toda fauna de aventureiros, “trambiqueiros”, “desordeiros”, “vagabundos”,

“prostitutas”, “criminosos” e “desajustados mentais” gerando novas modalidades de

criminalidade fazendo com que entre o período correspondente de 1893 a 1920 a população

carcerária aumentasse consideravelmente, principalmente a masculina18. Todavia, não

podemos fazer associações mecânicas entre chegada de imigrantes e o aumento da

criminalidade, inúmeros fatores contribuem de maneira significativa para prisão em massa

de imigrantes, por exemplo, a criminalização generalizada de condutas que fugiam a ordem

urbana, o preconceito e discriminação das autoridades policiais a estrangeiros pobres

“vagabundos”. As novas modalidades de crimes estão relacionadas à criminalização

irrestrita destas condutas incompatíveis a disciplina do trabalho e ampliação dos

comportamentos enquadrados nos crimes de contravenção, assim como a manipulação de

dados nas estatísticas oficiais sobre criminalidade, não trata aqui de defender ou culpar os

imigrantes “criminosos”, mas sim de problematizar as estatísticas do crime como fonte,

assim como é apenas uma amostra parcial da totalidade dos crimes, seja pelo seu

ocultamento ou a não constatação – as cifras negras –, também elas representam os valores

morais e sociais de uma determinada sociedade e sua relação com o que foge a norma e a

lei.

O imigrante, hora aclamado hora rejeitado, esta ambiguidade em relação ao

estrangeiro está ligada a preocupação não somente de “modernizar” o Brasil através de

17 Para mais detalhes sobre as motivações da imigração e de imigrantes pobres e “inconvenientes” que não correspondiam às expectativas de “modernizar” o Brasil e a desconstrução do mito de que todo imigrante prosperou em terras brasileiras leiam: ALVIM, Zuleica. “Imigrantes: a vida privada dos pobres do campo” In: SEVCENKO, Nicolau (org.). História da vida privada Vol. 3, São Paulo, Cia das Letras, 2008. 18 De acordo com Boris Fausto “a população estrangeira tinha ‘características criminógenas’ mais acentuadas, por ser constituída majoritariamente de homens, ao que se presume adultos e jovens [...]. Em 1893, os homens correspondiam a 47,8% dos nacionais e 58,9% dos estrangeiros; em 1920, as percentagens eram respectivamente de 49,3% e 53,5%. Parece, pois, que a medida em torno de 555 de presos estrangeiros não é desproporcional ao conjunto da população”. (FAUSTO, 1984, p.60).

Page 32: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

mão-de-obra especializada e técnicas industriais mais avançadas, mas também com a

composição racial e o destino do país, tanto pela necessidade do branqueamento

populacional, quanto à aceitação do mestiço através de “certos rearranjos teóricos” como

identidade nacional articulou diferentes campos de saberes que abrangiam a antropologia, a

higiene pública, a criminologia, a psiquiatria, a medicina legal, a eugenia, em que todas

serviriam como dispositivos de regulação e controle19. Contudo, esta leva de estrangeiros

indesejáveis engrossava aquilo que as autoridades classificavam como “classes perigosas”,

marginalizados como a maioria das camadas pobres da sociedade estaria também sujeitos a

reclusão, punição ou tratamento médico-psiquiátrico.

1.2 - “Classes Perigosas”: Higienismo e Criminalização da Pobreza.

“Assim, os proprietários de terras, fábricas e maquinários, em cooperação com

os trabalhadores cuja atividade transforma a matéria em bens de consumo, são

percebidos como provedores virtuosos; ao passo que os pobres ociosos, a quem

faltam emprego e propriedades, são percebidos como aberrantes parasitas”

(Thomas Szasz, 1994, p.40)

Nas últimas décadas do século XIX e primeiras décadas do século XX durante o

regime da Primeira República, a questão da salubridade dos espaços urbanos se tornara

emergente conjuntamente com o controle da criminalidade, para as autoridades públicas e

administradores municipais como uma preocupação e dever previdenciário de erradicação

das doenças epidêmicas e do crime. As novas concepções científicas sobre a natureza

biológica do homem e seu comportamento, aliadas as recém descobertas no campo da

saúde são alguns elementos que contribuíram significativamente para criminalização da

pobreza. As reformas urbanas sofreram intervenções de ordem profiláticas (cabe destacar

os projetos eugênicos e as estigmatizações biológicas e raciais), políticas higienistas e

sanitárias nas quais passaram a serem exercidas como medidas preventivas contra

ambientes insalubres, focos de epidemia e ações autoritárias sobre as “emanações

19 Como nos afirma Lilia Schwarcz (Op. cit., p.65) é quase que impossível um estudo da totalidade de intelectuais e institutos e suas peculiaridades que opinaram sobre a questão racial e, podemos dizer ainda mais, também sobre as questões sociais, principalmente os fenômenos do crime e da loucura.

Page 33: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

miasmáticas”, assim como as políticas de segurança pública e suas medidas punitivas e de

contenção a ociosidade e ao vício (SCHWARCZ, 1993; CHALHOUB, 1996; CARVALHO,

1987).

Os médicos e sanitaristas preocupados com os rumos que as cidades (em maior grau

no Rio de Janeiro e São Paulo) estavam tomando, começaram a diagnosticar a sociedade e

seu território, não demoraria muito para constatarem a ausência de higiene, “os miasmas de

putrefação”, a aglomeração de pobres e o crescimento significativo desta população eram

as “causas” das doenças, epidemias e criminalidade que não demoraria muito para

“degenerar” toda a sociedade, portanto, teriam que tomar medidas mais austeras contra a

proliferação destes males. É com este propósito que surgirá aquilo que Chalhoub (1996)

chamará de “ideologia da higienização”, a higiene pública simbolizaria o “progresso” e o

“aperfeiçoamento” moral e material da nação e seu caminho a civilização.

A “ideologia da higienização” das cidades sustenta os dispositivos de exclusão

social, segregação e apartamento social e espacial através das justificativas de invasões e

destruições de habitações coletivas – por exemplo, os cortiços - e grande parte das moradias

das camadas populares, que na visão do poder público, são tidos como “classes perigosas” e

“infecciosas” devendo passar pelos mecanismos de suspeição e inspeção generalizadas do

controle social aos trabalhadores, repressão à ociosidade, suspeita, patologização e

criminalização das “classes pobres”, isto é, distinguir, estigmatizar e esquadrinhar os

grupos sociais formados à margem da sociedade civil. Não foi uma simples eventualidade a

analogia entre “classes perigosas” e “classes pobres”, portanto, não eram somente os

problemas de desordem social, mas também de “degeneração” moral, contágio

epidemiológico de vícios e doenças, proliferação de malfeitores e criminosos.

De acordo com Sidney Chalhoub (1996), o crescimento populacional urbano

desenfreado e sem projetos político-sociais mais abrangentes que se arrasta da Primeira

República – principalmente com a abolição e a imigração em massa – até os dias atuais,

gerou um número grande de pessoas na informalidade com más remunerações ou sem uma

atividade de trabalho fixo (ou mesmo sem nenhum trabalho), todos eram suspeitos de não

serem “bons trabalhadores”, sem “virtudes” e ausência do gosto pelo trabalho, a nova

organização do trabalho e da ordem econômica – a substituição do escravo pelo trabalhador

assalariado – fez do trabalho não mais um fardo e degradação moral (o trabalho era

Page 34: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

sinônimo humilhação e escravidão no período colonial), mas se transmutou em virtualidade,

honradez e honestidade, pois sem trabalho não possuíam virtudes, ou seja, eram

considerados viciosos, portanto, o termo “pobre” e “vicioso” significa a mesma coisa no

imaginário dos parlamentares e das autoridades policiais e intelectuais da época, esta

associação seria muito mais efeitos de abstração do que constatação e compreensão da

realidade:

Uma vez cometida essa abstração, ou essa imprecisão, na origem do raciocínio –

abstração ou imprecisão porque deputados obviamente não podiam encontrar

dados de realidade que fundamentassem a asserção de que todo trabalhador

honesto necessariamente escaparia a pobreza –, o resto se segue como que

naturalmente: os pobres carregam vícios, os vícios produzem os malfeitores, os

malfeitores são perigosos à sociedade; juntando os extremos da cadeia, temos a

noção de que os pobres são, por definição, perigosos. (CHALHOUB, 1996, p.22).

O que evidencia nesta postura determinista das elites é o fracasso da tão sonhada

cidadania igualitária e democrática dos projetos políticos republicanos como nos mostra

José M. de Carvalho (1987). O autoritarismo, conservadorismo liberal, aliados a hierarquia

social existente desde a escravidão, marcou todo o período da República Velha, gerando

grandes insatisfações com os almejados atendimentos das demandas sociais que viria com o

advento da republicanização do país, República e Abolição seriam reduzidas a uma aporia

da abstração jurídica. É justamente neste bojo que as elites buscaram justificativas junto às

diferentes ciências em voga para legitimarem a desigualdade “natural” (racial, social,

biológica e climática) entre os homens, a qual a pobreza e a miséria não seriam uma

condição e sim uma “ontologia” das “classes pobres”:

Esta população poderia ser comparada às classes perigosas ou potencialmente

perigosas de que se falava na primeira metade do século XIX. Eram ladrões,

prostitutas, malandros, desertores do Exército, da Marinha e dos navios

estrangeiros, ciganos, ambulantes, trapeiros, criados, serventes de repartições

públicas, ratoeiros, recebedores de bondes, engraxates, carroceiros, floristas,

bicheiros, jogadores, receptadores, pivetes (a palavra já existia). E é claro, a

figura tipicamente carioca do capoeira (...). Em 1890, estas contravenções eram

Page 35: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

responsáveis por 60% das prisões de pessoas recolhidas à Casa de Detenção.

(CARVALHO, 1987, p.18).

Desde a adaptação do conceito de “classes perigosas” no Brasil, os negros passaram

a serem rotulados e estigmatizados (não podemos deixar de mencionar os extermínios

indígenas) como os suspeitos prediletos da polícia e os cortiços as principais habitações de

inspeção higienista e sanitária. A partir do conceito de “classes perigosas” podemos

compreender um pouco mais as motivações da demolição do cortiço mais famoso no início

da República o Cabeça de Porco por ser o “antro de suspeitos” e um dos principais

disseminadores de “vícios” e “doenças”, segundo as autoridades policiais e médicas, a

destruição deste cortiço “não foi um ato isolado, e sim um evento no processo sistemático

de perseguição a esse tipo de moradia” (CHALHOUB, Op. cit., p.25), um ato simbólico do

fim de uma batalha em que o vencedor seria a ciência e o “progresso”. A intensificação das

questões higiênicas atingiu de maneira enérgica as camadas populares, porém, não

acatavam tudo passivamente, buscavam formas de dissensão e contra-poderes perante as

autoridades médicas e policiais e suas arbitrariedades coercitivas como na violenta Revolta

da Vacina20 ocorrida no Rio de Janeiro.

Os discursos higienistas não estavam insulados em si, também dialogava com as

outras ciências da época que incorporavam o fator racial, ampliando pari passu as barreiras

e distinções sociais e raciais e suas diferentes formas de exclusão e, a eugenia – Renato

Khel cria em 1917 a Sociedade Eugênica de São Paulo – e a antropologia criminal com a

noção de “criminoso nato” viria a confirmar genética e biologicamente a “natureza

patológica” e “degenerada” dos pobres e dos não-brancos e seu potencial criminoso e de

proliferação de doenças e vícios.

Segundo Cristina de Campos (2002), a preocupação com a higiene e questões

sanitárias das cidades foi muito presente no pensamento médico-sanitário na década 1920

com a criação do I Congresso de Higiene que ocorreu nos dias 1 a 7 de outro de 1923,

faziam parte da comissão executiva personalidades como Carlos Chagas, professor Raul

20 Para um estudo mais acurado a respeito da Revolta da Vacina, a participação ativa das camadas pobres e seus impactos na sociedade e na política leiam: CARVALHO, J. M. Os bestializados: Rio de janeiro e a República que não foi. São Paulo, Cia das Letras, 1987; SEVCENKO, Nicolau. A Revolta da Vacina: mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo, Brasiliense, 1984.

Page 36: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

Leitão da Cunha e o engenheiro Lino de Sá Pereira. No II Congresso de Higiene realizados

em Belo Horizonte em 1924 alguns temas próximos da psiquiatria se articulam com temas

do higienismo do século XIX como: organização do trabalho epidemiológico, isolamento

domiciliar, expurgo domiciliar, higiene das profissões, higiene mental, para mencionar

alguns exemplos (CAMPOS, 2002, p.80).

A higiene mental aparece em um dos itens discutidos pelos profissionais das

diversas áreas no II Congresso de Higiene, a presença da psiquiatria e da eugenia nas

questões de higiene pública não é mera eventualidade, conciliavam com os projetos de

profilaxia social dos males provocados pelas “classes perigosas”. A preocupação de evitar

que esses tipos “degenerados” se perpetuassem e disseminassem começaram a prestar mais

atenção na criança (estas atenção a criança já vem lá de meados do século XIX com a

invenção do “anormal” pela psiquiatria) e concentrar os esforços de eliminar o mal desde o

berço. O III Congresso Brasileiro de Higiene realizado em São Paulo de 4 a 12 de

novembro de 1926 evidencia esta preocupação com a infância em um dos temas discutidos,

o item 12 é incisivo no que tange esta questão: “Fomação de hábitos sadios nas crianças;

estudo psicológico, pedagógico e higiênico” (III Congresso Brasileiro de Higiene, 1926

apud CAMPOS, 2002, p. 81).

Conforme Marques (1994), para os eugenistas o controle populacional deveria se

estender por todas as esferas sociais para uma depuração racial mais eficaz, a educação foi

objeto de muita reflexão por parte dos eugenistas e a “criança higienizada” e o “saneamento

pela educação” eram questões essências para propagar os “hábitos sadios”:

A escola era pensada pelos eugenistas como veiculo de “formação harmônica do

corpo e do espírito” (Basile, 1920), uma vez que contemplava os educandos,

simultaneamente, com a cultura das “faculdades físicas, intelectuais e morais”, no

sentido do melhoramento do indivíduo e da espécie. Essa visão de escola

modeladora, que não só aperfeiçoava o espírito como também conformava o

corpo, fazia ver como indispensável a presença de novos saberes e compor o

universo da escola. Higiene e Eugenia seriam exemplares nesta tarefa

(MARQUES, Op. cit., p. 101).

O higienismo atrelado a eugenia e psiquiatria se ocuparam de assuntos diversos que

envolviam as questões da educação, do trabalho, da saúde e da criminalidade e um dos

Page 37: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

sinais mais evidentes de doença e “degeneração”, assim como de perigo social, era a

loucura. Durante o Império os “vesânicos” (nome dado à loucura na época pelos populares)

se encontravam presentes no cotidiano da sociedade disseminados pelas ruas pedindo

esmolas e vivendo da “caridade”, desfrutavam de uma aceitação e apreço popular (claro

que muitas vezes eram motivos de risos, violência e humilhação) um pouco mais tolerante e

chegavam a serem representados em máscaras e figura obrigatória dos “carros de ideias”,

estes “tipos de rua” eram incorporados a imagem social, preocupavam apenas as parcelas

mais abastadas imbuídos pela moral burguesa, pela ciência e pelos ideais de modernização

da corte (CUNHA, 1990):

Pobres ou miseráveis, tendo ou não relações familiares ou afetivas, maltrapilhos

ou bem-vestidos, o fato de esses personagens circularem livremente pelas ruas da

cidade significa que os loucos conseguiam manter certo saber e certo poder sobre

si mesmos e sobre sua loucura. Responsáveis pela própria sobrevivência – e,

muitas vezes, garantindo a subsistência de suas famílias –, ainda que para isso

alguns deles tivessem que apelar para a caridade pública, revelam-se também

plenamente capazes de se proteger contra as freqüentes agressões que sofriam.

(ENGEL, 2001, p.49).

Entretanto, Magali Engel nos adverte sobre esta suposta autonomia e integração

social do louco, conforme a autora, esse tipo de abordagem sem o devido cuidado induz ao

engodo a existência pacífica e feliz do louco com a sociedade, em que consiste na retórica

nostálgica de que “vesânico” tinha uma vida “melhor” por serem tratados de maneiras mais

“humanas” e “verdadeiras”. Esta perspectiva ingênua recai naquilo que Robert Castel

(1978) denominou de “mito ecológico da loucura”, ou seja, não é afirmar que no passado a

“loucura” era “mais bem tratada”, pelo contrário, trata-se de uma observação mais ampla da

experiência da loucura a partir da história e constatar as diferentes formas de se lidar com

ela em diferentes contextos, lançar outro olhar sobre a experiência da loucura na história

não se detendo somente ao seu controle institucional do psiquiatra:

Uma tal constatação não implica, aliás, nessa espécie de mito ecológico da

loucura que tende a prevalecer atualmente. Sem dúvida, nunca houve uma

existência feliz do louco. Tanto quanto se pode saber, ele sempre foi controlado,

Page 38: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

ridicularizado, utilizado e, portanto, de certa forma, “reprimido”. O escândalo do

louco sequestrado ou explorado na família ou pelas conivências locais pode

equivaler, efetivamente, ao das “internações arbitrárias”. Quanto aos alienistas

que eram sequestrados em casas de detenção, antes da instauração do sistema

psiquiátrico, sua situação não deixa saudades. (CASTEL, Op. Cit., p.202).

Já no Império havia uma preocupação com a “vesânia”, os médicos reivindicavam

para si os cuidados com a loucura e sua medicalização (um dos grandes símbolos desta

preocupação é a construção do Hospício de Pedro II no Rio de Janeiro, transformado mais

tarde em Hospital Nacional de Alienados), mas com o advento da República e os novos

estudos sobre a loucura que aflorava no mesmo contexto, a loucura ganha o estatuto

nosológico de “doença mental” passou de inofensiva para ameaçadora, potencialmente

perigosa, objeto exclusivo de um saber que vem ganhando espaço no meio científico, a

psiquiatria. O centro da cidade deveria se tornar mais salubre para os segmentos sociais

mais abastados poder habitá-lo, mas antes, os “inconvenientes” e "indesejados" como

mendigos, prostitutas, alcoólatras, criminosos e loucos deveriam ser colocados nos seus

“devidos lugares".

No final do século XIX e durante a primeira metade do século XX em São Paulo

nascem inúmeras instituições de aprisionamento, correção disciplinar, vigilância, controle e

segregação social: Hospício do Juquery21 , Instituto Disciplinar, Colônia Correcional,

Penitenciária do Estado, Manicômio Judiciário, para ficarmos em alguns exemplos. “O

tratamento à loucura, as formas de policiamento urbano, o regime penitenciário, o

confinamento de vadios ou de menores, tudo ganhava sustentação se fosse feito em nome

da ciência”. (SALLA, 1999, p. 189). A psiquiatria desempenhou um importante papel nos

diagnósticos e nas terapêuticas destes indivíduos enquadrados como desviantes

21 “A lógica da instituição, que vai rapidamente tornar-se um modelo para o país e para toda a psiquiatria sul-americana, não era muito original. Em seus traços essenciais, ela constituía um determinado arranjo de ideias e técnicas do alienismo europeu, uma espécie de síntese de seus diferentes momentos ordenados de forma a permitir que três objetivos básicos fossem assegurados: a garantia do poder exclusivo do especialista para intervir nas questões da loucura, que levou à adoção do padrão de grande instituição centralizadora, tendo em vista o pequeno número de alienistas ainda existentes no país; a implantação do hospício medicalizado, inexistente até o final do século XIX, compatibilizando os princípios do ‘otimismo terapêutico’ de Pinel com os pressupostos da teoria de degenerescência; e, finalmente, a ampliação da escala do internamento sob a direção destes especialistas da degeneração, armados pelas novas concepções que conferiam á loucura uma abrangência ilimitada, que permitisse ‘varrer da sociedade’ as levas de degenerados que a ‘ameaçavam’” (CUNHA, 1989, pp. 50-51).

Page 39: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

estabelecendo as fronteiras entre o “normal” e o “patológico”, servindo de instrumento

político de controle social22.

As “medidas de defesa social” não estavam reduzidas somente ao aprisionamento

dos desviantes apenas com a finalidade de proteger a sociedade, a sequestração ou

“asilamento científico” estava correlacionado a um dispositivo de segurança mais complexo

que objetivava a profilaxia do crime, ou melhor, do agente etiológico do crime – o

“anormal” –, o crime não mais centrado na ação e sim no sujeito periculoso, e a

anormalidade seria objeto de estudos científicos mais rígidos, criterioso e metódico da

mente e do corpo do “anormal”. O crime seria o efeito dos desvios físicos, morais e mentais

inerentes ao próprio indivíduo delinqüente, o crime seria algo ontológico que estaria

presente na “natureza” do criminoso antes de ser cometido. Este deslocamento fez com que

médicos, criminologistas e psiquiatras tanto ligados a Escola Positiva de Antropologia

Criminal quanto a Eugenia e a Higiene Mental reivindicassem uma rede de instituições

normalizadoras disseminadas por todo tecido social que estruturassem o “corpo social”

além de seus muros com uma intervenção médica eficaz se estendendo por todas as

instituições já existentes. (FERLA, 2005).

22 Ocorre muitos problemas e divergências em torno da noção de controle social, sendo assim, esta noção, por demais banalizada e com sentidos diversos, não está sendo empregada aqui nos moldes durkheimmianos ou da sociologia clássica norte-americana. Conforme Marcos C. Alvarez (2004), a primeira perspectiva (Durkheim) entende controle social como apenas uma manutenção da ordem e as instituições teriam um papel específico de integração social e reafirmação da ordem; a segunda perspectiva (sociologia norte-americana de início do século XX com Mead e Ross) pensa o controle social não como uma ordem social gerida pelo Estado, mas como mecanismos voluntários da sociedade para cooperação e coesão social, portanto, seriam formas simplificadoras que visam muito mais a busca das “raízes da ordem e harmonia social” do que a complexidade social e suas transformações múltiplas e discrepantes variando de contexto para contexto. Um outro extremo acerca da noção de controle social é a “inversão de pólo”, ou seja, entender o controle social como uma entidade onipresente de dominação “que submeteria qualquer forma de resistência” a “uma força nefasta e coerentemente organizada, que faz total tabula rasa daqueles que estão submetidos a seu controle”, entretanto, pretendemos “pensar formas mais multidimensionais do problema, capazes de dar conta dos complexos mecanismos que não propriamente controlam mas sobretudo produzem comportamentos considerados adequados ou inadequados com relação a determinadas normas e instituições sociais” (ALVAREZ, 2004, p.170). Prendemos aqui superar a visão binária “Estado x Sociedade” e analisar os dispositivos de controle social e suas práticas relacionadas às multiplicidades institucionais da modernidade, como é o caso do Manicômio Judiciário, por exemplo. Contudo, não pretendemos fazer vir à tona a prática meramente “repressiva”, dicotômica e simplista de “dominadores x dominados”, mas a positividade do poder, a produção de comportamentos individuais e coletivos que não apenas controla e restringi as ações, mecanismos que simultaneamente obriga e habilita as ações e as resistências (no sentido foucaultiano) estão no cerne das práticas de poder – os contra-poderes, os mecanismos de poder de controle social não são uniformes e unilaterais.

Page 40: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

1.3 - “Medicalização da Sociedade”: Divergências e problematizações acerca de um

conceito.

Os ambiciosos projetos de intervenção médica em todo corpo social, estão

relacionados com as transformações culturais, epistemológicas, políticas e econômicas

ocorridas no século XIX no seio da medicina incidindo em dois vetores os quais se

intensificaram na primeira metade do século XX: “a penetração da medicina na sociedade,

que incorpora o meio urbano como alvo da reflexão e da prática médica, e a situação da

medicina como apoio científico indispensável ao exercício do poder do Estado” (Machado

et al., 1978). Todavia, a medicina se consolida gradativamente como prática e discurso

políticos indispensáveis para intensificação dos dispositivos de poder e controle social

engendrados pelo capitalismo e pela nova lógica da razão governamental, ou seja, a

“medicalização da sociedade”.

Conforme Roberto Machado e seus colaboradores (1978), as transformações

ocorridas no âmbito da medicina – o “aggiornamento” – 23, efetuaram um deslocamento do

objeto da medicina, da doença para saúde, uma descontinuidade entre as artes de curar do

período colonial e a medicina de intervenção social impulsionadas pela higiene a partir do

século XIX; urge uma preocupação com uma profilaxia social que deve dificultar ou

impedir o surgimento de doenças, objetivando “conhecer o meio e agir para proteger o

indivíduo de um perigo ao mesmo tempo médico e político”, isto não resulta numa

descaracterização do campo de atuação da medicina, mas sim sua intensificação:

Se a sociedade, por sua desorganização e mau funcionamento, é a causa de

doença, a medicina deve refletir e atuar sobre seus componentes naturais,

urbanísticos e institucionais visando neutralizar todo perigo possível. Nasce o

controle das virtualidades; nasce a periculosidade e com ela a prevenção. (Idem,

Ibidem, p.155).

Esta descontinuidade seria uma modificação do próprio modo de atuação do Estado,

uma positividade do poder, não mais o controle sobre a morte e sim sobre a vida, ou melhor,

23 De acordo com Robert Castel o aggiornamento seria “a modificação atual dessas práticas e o deslocamento de suas funções (a partir do projeto, por meio de quais conflitos, a respeito de quais objetivos, etc.)” (CASTEL, 1978, p. 15).

Page 41: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

controle sobre a vida e a morte da população24; não mais evitar a morte de pessoas já

infectadas e doentes, mas sim a prevenção de doenças não somente individual, agora de

modo abranger a população, uma organização positiva dos habitantes em que a questão da

saúde será central à vida. A medicina social marca o surgimento de um novo tipo de

racionalidade estratégica de controle político individual e coletivo contribuindo

significativamente para normalização da sociedade no que tange a saúde, “que não é uma

questão isolada, um aspecto restrito, mas implica uma consideração global do social”:

(...) as grandes transformações da cidade estiveram a partir de então ligadas à

questão da saúde; torna-se, enfim, analista de instituições (o médico): transforma

o hospital – antes órgão de assistências aos pobres – em “máquinas de curar”; cria

o hospício como enclausurarmento disciplinar do louco tornando doente mental;

inaugura o espaço da clínica, condenando formas alternativas de cura; oferece um

modelo de transformação à prisão e de formação à escola. (Idem, Ibidem, pp.

155-156).

Portanto, a medicina emerge neste momento como uma rede tentacular de

correlação de força e relação de poder-saber que pretende estabelecer programas de

normalização do indivíduo e da população, penetrando, ou pelo menos objetivando penetrar,

em todas as dimensões sociais, sobretudo nos mecanismos estatais, a relação da medicina

social com o Estado se dá por imanência a qual a saúde é o fator pivotante. É neste bojo que

nasce a psiquiatria no Brasil em simbiose com a medicina social que se impõem como

instância de controle social, um saber voltado para o isolamento profilático do louco

visando impedir a circulação dos enfermos da razão pela ameaça que representa e do

“potencial desagregador de seu livre trânsito na sociedade”:

Descrevem "a ofensiva médica em relação ao louco" como estando basicamente

configurada "na proposta de criação de uma instituição capaz de medicalizá-lo".

Tratam de recuperar a postulação médica em defesa do hospício, o

estabelecimento especializado que possibilitaria inserir naturalmente a questão da

24 Podemos observar um novo tipo de poder que emerge neste processo (juntamente com o liberalismo), o que Foucault denominou de “Biopoder”, um exercício de poder não mais disciplinar restrito ao corpo do indivíduo, um deslocamento para uma tecnologia de poder sobre o conjunto da população, um poder de fazer viver e deixar morrer, abordaremos esta questão do biopoder no segundo capítulo mais detalhadamente.

Page 42: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

loucura nos objetivos de uma "medicina do espaço social". (ANTUNES, 1999,

p.70).

Numa outra perspectiva, José Antunes (1999) contrapõem a tese de Roberto

Machado ao afirmar que a maioria das propostas da medicina acabou não sendo

implementadas, seja pelas disparidades dos médicos ou na ausência de poder desta

categoria. Segundo o autor, os médicos não tiveram uma ordenação lógica em seus

programas, não estiveram em acordo com todas as medidas propostas, não houve mudanças

sociais efetivas a partir de seus projetos, portanto, como falar em “medicalização da

sociedade”?

O que o autor questiona é o fato do saber médico se estender por toda sociedade e

das questões do cotidiano “revestindo-os de um significado e explicações médicas”

Segundo Antunes, o conceito “medicalização da sociedade” seria impreciso e generalizante,

“uma vez que este não pressupõe uma caracterização do fenômeno assim nomeado”. Por

exemplo, a expressão "medicalização do crime" não significa que a ação do crime tenha se

transformado ou adquirido um sentido médico. O termo medicalização é empregado pelo

pensamento médico sobre determinados assuntos, um tipo de enfoque, "uma arquitetura de

idéias" que aos objetos ou assuntos por ele nomeados e classificados, ou aos qual este

pensamento se aplica. A ineficácia dos ditames médicos propugnados alcançaria uma

amplitude de intervenção como o conceito sugere e seu fracasso com as questões de ordem

morais impediu a constituição de um tipo de “padrão racional uniforme”. Segundo o autor,

a expressão “medicalização” teria somente um sentido:

(...) para designar um processo historicamente datado de modificação da própria

medicina, uma reorientação de seus objetos e métodos, um deslocamento de seu

foco preferencial de observação e análise: das doenças de nossa constituição

biológica para os males de nossa conformação moral (Ibidem, p. 274).

Seguindo o raciocino de Antunes, seria mais apropriado usar o conceito de

“socialização da medicina”, restringindo as mudanças, se caso ocorreram, ao pensamento e

as atividades médicas, submetidos às demandas sociais. Contudo, o autor propõe ainda

Page 43: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

outro termo para nomear tal processo: o de "humanização da medicina", "para sublinhar sua

conversão aos temas e aos procedimentos das ciências humanas" (Ibidem, p. 275).

Entretanto, ocorrem alguns equívocos da crítica de Ferreira Antunes a Roberto

Machado, pois o primeiro recai também nas generalizações que apontou na obra do

segundo. Começando pelo fim, Machado também identificou o que o primeiro autor

denominou de “humanização da medicina”, o médico se tornou em um “cientista social

integrando à sua lógica a estatística, a geografia, a demografia, a topografia, a história;

torna-se planejador urbano” (MACHADO Op. cit., p.155); um outro equívoco concerne a

associação automática de que “medicalização da sociedade” se dá por via de uma

“padronização racional uniforme” do saber médico, em momento algum Machado afirmou

uma unilateralidade do pensamento médico como se fosse um bloco monolítico e

homogêneo, muito pelo contrário, tratou da multiplicidade do saber médico e de seus

desdobramentos e descontinuidades que convergiram em um ponto determinado da história

com os mecanismos do Estado no processo de normalização da sociedade, sendo também

este processo múltiplo e divergente desde seu nascimento a sua finalidade, a medicina

social e nova racionalidade em intima relação com o novo tipo de Estado. Por fim,

Machado e seus colaboradores (trata-se de uma obra conjunta) não pretenderam uma

afirmação categórica e sistemática da “medicalização da sociedade”, como se houvesse um

êxito total da medicina sem insucesso, a medicalização não se dá pela lei e sim pela via da

norma, sua efetivação foi possível por meio da norma não precisando necessariamente da

existência de leis para sancioná-la:

O que se tem chamado de medicalização da sociedade – processo que na

atualidade cada vez mais se intensifica – é o reconhecimento de que a partir do

século XIX a medicina em tudo intervém e começa a não mais ter fronteiras; é a

compreensão de que o perigo urbano não pode ser destruído unicamente pela

promulgação de leis ou por uma ação lacunar, fragmentária, de repressão aos

abusos, mas exige a criação de uma nova tecnologia de poder capaz de controlar

os indivíduos e as populações tornando-os produtivos ao mesmo tem que

inofensivos; é a descoberta de que, com o objetivo de realizar uma sociedade

sadia, a medicina social esteve, desde a sua constituição, ligada ao projeto de

transformação do desviante – sejam quais forem as especificidades que ele

apresente – em um ser normalizado [...]. As técnicas de normalização – que

Page 44: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

instituem e impõem exigências da ordem social como critérios de normalidade,

considerando o anormal toda realidade hostil ou diferente – aonde foram

refletidas e aplicadas pela primeira vez no Brasil senão na medicina do século

XIX que se auto-definiu como uma medicina política? Medicina que medicalizou

a sociedade mesmo que até hoje não tenha conseguido medicá-la. (MACHADO

Op. cit., p-156, grifo do autor).

A medicina, sobretudo em nosso caso a psiquiatria, exerceu um importante papel na

produção de novos tipos de indivíduos e de população equacionando uma relação

teleológica entre sociedade e saúde, na tentativa de construir uma sociedade liberal e

capitalista em nosso país, antes mesmo da constituição de uma cidade industrializada. A

medicina mental ao administrar a loucura, inicialmente atuará no campo da higiene e da

prática assistencial, “transformando questões políticas de organização social em questões

técnicas, traz intrinsecamente a necessidade de afirmar-se como higiene social, para se

legitimar como prática e ciência” (ANTUNES, Op. cit., p.85). A psiquiatria se constituiu

por meio da medicina social que, através de caminhos descontínuos e heterogêneos,

conseguiu se afirmar como um saber especializado sobre as enfermidades mentais

respondendo as demandas sociais de uma sociedade fortemente, mas não totalmente,

medicalizada, constituindo-se paulatinamente como prática de normalização social, e

qualquer coisa que afete um grande número de indivíduos a qual o Estado ou o governo

tenha autoridade, pode ser utilizado com uma forma de controle social.

Contudo, a constituição da psiquiatria como dispositivo de normalização da

sociedade, nos possibilita outro entendimento de poder. Não um exercício de poder que

teria por função somente “reprimir” condutas indesejadas, mas também um poder que

produz comportamentos convenientes segundo as normas previamente estabelecidas. Uma

transformação do modelo negativo de controle da lepra, marcado pela exclusão e

marginalização, para modelo positivo de controle da peste, marcado pela inclusão do

pestífero, modelo este que nasce juntamente com a ascensão do poder disciplinar. Podemos

inferir a partir destes dois exemplos que o poder não é unicamente repressivo, ele se exerce

em muitas vezes como produtor de comportamentos, estabelece condutas ideais e relações

de sujeição segundo critérios pré-definidos aos indivíduos. Portanto, o “normal” é quem se

submete rigidamente a essas normas de conduta e a disciplina uma técnica de

Page 45: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

“normalização” que fabrica corpos submissos e dóceis. A psiquiatria irá se inserir neste

modelo de positividade do poder, que com o modelo da peste nós observamos o que

Foucault chamou de “invenção das tecnologias positivas de poder” (FOUCAULT, 2002,

p.59).

As estratégias psiquiátricas em São Paulo nos anos 20 e 30 do século passado

ampliaram seu campo de atuação intervindo sobre todo o “corpo social” (a sociedade

concebida metaforicamente como corpo que estava doente), fez da loucura um problema

público e passou a disciplinar e regulamentar o corpo e a sociedade operando seu poder não

somente sobre as doenças mentais, mas sobre todos os comportamentos desviantes e

“anormais”, todo sujeito que subvertesse as leis vigentes e normas estabelecidas não

poderia ser “normal”, e seria, portanto, passível de tratamento médico, ou seja, a psiquiatria

deixou “de ocupar-se estritamente de seu objeto inicial, os loucos de hospício, para tratar da

condução da família, da educação, da melhoria da raça, da sociedade como um todo. Em

suma, como a psiquiatria historicamente se expande além do hospício consagrado à loucura,

e se introduz no espaço da ‘normalidade’” (LOUGON, 2006, p.70).

Page 46: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

2. CRIME, LOUCURA E ANORMALIDADE: BIO-DETERMINISMO, EUGENIA E

BIOPODER COMO DISPOSITIVO DE SEGURANÇA E REGULAMENT AÇÃO

DA VIDA.

“Em linhas gerais, a psiquiatria dizia: com você que é louco, não vou levantar o

problema da verdade, porque que eu própria detenho a verdade pelo meu saber,

a partir das minhas categorias; e se detenho um poder em relação a você, louco,

é porque detenho essa verdade. Nesse momento, a loucura respondia: se você

pretende deter de uma vez por todas a verdade em função de um saber que já

está todo constituído, pois bem, vou instalar em mim mesma a mentira. E, por

conseguinte, quando você manipular meus sintomas, quando você lidar com o

que chama de doença, vai cair numa cilada, porque haverá bem no meio dos

meus sintomas esse pequeno núcleo da noite, de mentira, pelo qual eu te

colocarei a questão da verdade. Por conseguinte, não é no momento em que o

seu saber for limitado que te enganarei – o que seria simulação pura e simples –;

ao contrário, se você quiser um dia efetivamente agir sobre mim, será aceitando

o jogo da verdade e da mentira que eu te proponho” (Michel Foucault, 2006b,

168).

2.1 - Da monomania homicida à degeneração25: a psiquiatrização da justiça

A medicina mental e a justiça começam a travar uma longa disputa entre estes dois

saberes entorno das classificações de culpado ou louco, e a medida a ser aplicada: punição

ou tratamento. Com a mudança ocorrida durante o século XIX na concepção de prisão e

punição em uma tecnologia disciplinar, o direito de punir pretende humanizar-se,

pedagogizar-se até mesmo medicalizar-se, não se trata de castigar como antes no suplício

ou somente punir o individuo, mas de corrigi-los, uma suposta equidade entre o tipo de

crime cometido e a sanção a ser aplicada, sendo assim, o criminoso é responsável por suas

ações, portanto, será inserido dentro de um sistema racional de julgamento e punição.

Contrariamente é o caso do louco, a irracionalidade do indivíduo faz com que ele se 25 Segundo a tradução direta do francês seja “degenerescência” (dégérescence), optou-se pelo termo “degeneração” (do latim degeneratione), por este ter sido consagrado pelo uso na psiquiatria brasileira desde fins do século XIX (CARRARA, 1998).

Page 47: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

desvincule da infração realizada com a punição a que é submetido. No entanto, terá que ser

tratado e não sancionado, mesmo que o tratamento seja outro tipo de sanção e um exercício

de poder disfarçado legitimado pela racionalização terapêutica (CASTEL, 1978):

(...) em um sistema contratual, a repressão do louco deverá construir para si um

fundamento médico, ao passo que a repressão do criminoso possui

imediatamente um fundamento jurídico. Somente muito mais tarde (...) é que a

medicalização do criminoso, por sua vez, mudará de sentido. Ela não será mais

uma intervenção a posteriori para ajudar a melhor aplicar a sanção, mas sim uma

tentativa de fundar a legitimidade da punição a partir de uma avaliação psico-

patológica da responsabilidade do criminoso. (...) A analogia entre as instituições

(prisão-asilo) e as tecnologias de disciplinarização (reeducação penal-tratamento

moral) não deve, portanto, dissimular o antagonismo de princípio entre o direito

de punir e o dever de dar assistência. A solução do problema social da loucura

não pode ser encontrada no prolongamento daquela que vai prevalecer para a

criminalidade, muito ao contrário. (...) Mas elas ganharão sentido, como veremos,

após ter sido constituída uma legitimidade médica diferente da justiça. Aí então, a

psiquiatria poderá tocar a sua partitura no grande concerto da vigilância e da

disciplinarização que remodela, na época, todas as instituições. Mas antes, deverá

conquistar seu espaço de intervenção ao lado de e, sob certos aspectos, contra o

espaço da justiça. (CASTEL, 1978, p.38, grifos do autor).

A primeira conquista da medicina mental na intervenção social fora do hospício se

deu inicialmente no começo do século XIX na França, com a requisição de seus serviços

pelos tribunais sobre o problema do crime, ou de determinados crimes considerados

“enigmáticos”, como nos mostra Robert Castel. Conforme o autor, a presença da psiquiatria

nas questões da justiça foi solicitada pelo próprio jurisconsulto dentro do âmbito judiciário.

O sistema judiciário, opera segundo a pressuposição de que todas as ações do homem são

intrinsecamente racionais, entretanto, o mecanismo judiciário via-se impossibilitado de

operar quando se tratava de crimes sem motivos os quais colocava aos juízes grandes

problemas, o crime poderia ser punido assim que encontrassem o seu autor e, que não

sofresse de demência e não tivesse justificativa para o seu ato racionalmente arquitetado,

motivado por uma razão: como julgar e punir indivíduos que não se enquadravam na

nosografia psiquiátrica clássica, todavia, ignoravam todos os motivos e permaneciam

Page 48: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

emudecidos diante do juiz? Como punir se o crime era sem motivo? “Nem lucros, nem

paixões, nem qualquer interesse podiam ser imediatamente identificados como instigadores

de certos comportamentos ou ações criminosas de indivíduos que não pareciam loucos,

impedindo assim o bom funcionamento da máquina judiciária” (CARRARA, 1998, p.70).

Esses crimes “sem razão aparente” por um lado traziam sérios problemas para o

sistema judiciário e, por outro lado, eram valorizados pelos psiquiatras, pois a psiquiatria

queria se estender por toda sociedade, para além dos muros dos asilos, constituindo-se

como ciência médica e os psiquiatras reivindicavam para si o direito de intervenção no

âmbito penal. Sem sinais de loucura, os juristas se viam incumbidos de aplicar a lei: eram

crimes considerados cruéis, “assassinatos sanguinários”, sem qualquer vestígio de

demência ou manifestação de perturbação mental – o que era denominado de “grau zero da

loucura” (FOUCAULT, 2006a, p.6) –, ações logicamente organizadas, então era

imprescindível a aplicação da lei. Não era tão simples assim, outro problema surgia quanto

à aplicabilidade da lei, a questão do motivo, a punição está interligada ao motivo, as razões

do crime. Sobre esta questão do motivo, Sergio Carrara lembra-nos de dois casos, o de

Pierre Reviére ocorridos na França na primeira metade do século XIX26 analisados por

Foucault (1977) e de Custódio Serrão ocorridos no Brasil na virada do século XIX para o

XX, os quais os motivos para explicação dos crimes foram negligenciados

intencionalmente por se tratar de uma “aberração” subversiva dos valores instituídos

considerados consensualmente ontológicos27, “são moralmente tão inaceitáveis que a razão

parece se recusar a compreendê-los, permitindo, exigindo mesmo, a presença dos

alienistas” (CARRARA, Op. cit., p.71).

A problemática do “crime enigmático” fez emergir o confronto teórico entre

psiquiatras e juristas, ambos defendiam seus lugares institucionais e sociais, cada qual

buscando pra si mais legitimidade face ao problema do destino deste criminoso. Contudo,

26 A intervenção da psiquiatria no seio do sistema penal começou a partir de uma série de casos ocorridos entre 1800 e 1835 na França, resguardavam algumas semelhanças por se tratar de tipos de loucuras “inéditos” para a medicina mental da época (FOUCAULT, 1977; CASTEL, 1978). 27 Há crimes em nossa sociedade atual e dantes que colocam em xeque a própria “humanidade” do homem quando ele subverte valores sociais considerados “ontológicos”, supostamente intrínsecos a “natureza humana”, a título de exemplificação: o infanticídio, o parricídio, a violência sexual, a pedofilia, os assassinatos frios e “sanguinários”; tais crimes são associados à “selvageria” e a “anormalidade”, sobretudo, a “monstruosidade”, a figura do “monstro moral” ou “monstro criminoso” tão recorrente nos noticiários e jornais em nossa atualidade. “É antes de mais nada como monstro, isto é, como natureza contranatural, que o louco criminoso faz sua aparição” (FOUCAULT, 2002, p. 137).

Page 49: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

uma questão se coloca: a qual especialista deve ser entregue este criminoso, e qual será o

seu destino, a sentença do juiz ou diagnóstico do psiquiatra? A psiquiatria nascente da

primeira metade do século XIX visará à ampliação de sua intervenção “entre o depois e o

antes, a repressão consecutiva e a ação preventiva, na qual o futuro da medicina mental vai

se desdobrar. Num sentido, “o aparelho judiciário se põe em marcha quando os jogos são

feitos” (CASTEL, 1977, p. 260). Doravante ocorrem as primeiras reflexões sobre a relação

entre crime e loucura, cujas discussões iniciais sobre esta simbiose é indispensável para

compreensão dos múltiplos fatores que estão ligados direta ou indiretamente à problemática

da emergência do Manicômio Judiciário. No seio dos confrontos teóricos, no qual uma

psiquiatria do crime começa mostrar sua face, aparece uma nova categoria nosológica

elaborada por J. E. D. Esquirol (discípulo direto de Pinel), a “monomania” ou “loucura

parcial”, uma “doença” que se manifestava de múltiplas formas segundo os alienistas da

época, mas iremos nos deter somente na “monomania instintiva” em sua categoria de

“monomania homicida”. Tal categoria, mesmo com pouco respaldo científico, foi

recorrente nos diagnósticos psiquiátricos sobre determinados tipos de crimes, seguindo a

fórmula dada, a “monomania homicida” seria:

1) em algumas de suas formas puras, extremas, intensas, a loucura é

inteiramente crime; portanto, pelo menos nos limites últimos da loucura, há

crime;

2) a loucura é capaz de acarretar não simplesmente desordens da conduta, mas o

crime absoluto, aquele que ultrapassa todas as leis da natureza e da

sociedade;

3) essa loucura, que pode ser de uma intensidade extraordinária, pode

permanecer invisível até o momento em que eclode: portanto, ninguém pode

prevê-la, exceto aquele que tem um olhar adestrado, uma longa experiência,

um saber bem armado. (FOUCAULT, 2006a, p.10).

O monomaníaco, segundo Esquirol, seria portador de uma loucura parcial delirante,

cuja manifestação é latente, teria uma vida aparentemente “normal” e lúcida mantendo sua

“doença” velada passando despercebido pelos familiares mais próximos. O estágio

homicida da “doença” é impulsionado por atos violentos chegando ao assassinato por uma

“convicção intima”, ou por uma perturbação imaginária advindo de um falseamento da

Page 50: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

razão, ou uma paixão delirante, ou em muitos casos sem alteração mental ou das afeições

empurrados por uma força maior que ele, por algo indefinível e irresistível28 – “vozes

ocultas”, “espírito maligno”, algo que o empurra – ligadas diretamente às paixões, “é no

coração do homem que ela tem sua sede”; por exemplo, o delírio de perseguição, um

monomaníaco se sentiria perseguido e coagido por um “suposto perseguidor” e, para se

livrar da perseguição, cometeria um ato de “pseudovingança” ou “pseudodefesa”

culminando num assassinato, num homicídio. Problemas obscuros desta proporção que os

tribunais enfrentavam, somente o psiquiatra através do seu saber e suas técnicas fariam vir

à superfície o delírio que se escondia e permanecia oculto, mas caso não identificado traria

sérios problemas quanto ao destino do criminoso, tornando o problema mais perigoso

(CARRARA, 1998; FONTANA, 1977). Os alienistas objetivavam conquistar parte das

prerrogativas tradicionais da justiça, para Leuret (alienista coevo de Esquirol) a intervenção

psiquiatra nunca seria tarde, “porque ela estaria fundamentada sobre um saber capaz de

antecipar a possibilidade de uma conduta delituosa antes mesmo que ela se produza” (apud

CASTEL, Op. cit., p. 260), aqui já vemos os indícios do pensamento profilático o qual será

mais frequente e atuante na segunda metade do século XIX. De acordo com Michel

Foucault, não basta a realidade do delito ou a imputabilidade de um culpado para a

“mecânica punitiva” operar, será necessário estabelecer um motivo, “uma ligação

psicologicamente inteligível entre o ato e autor”, portanto:

Os médicos, que só deviam ser convocados para constatar os casos sempre muito

evidentes de demência ou de furor, vão começar a ser chamados de “especialistas

do motivo”; eles deverão avaliar não somente o motivo do sujeito, mas a

racionalidade do ato, o conjunto das relações que ligam o ato aos interesses, aos

28 Ocorreram inúmeros debates sobre uma loucura sem delírio ou a existência de delírio em toda loucura. Georget em 1820 afirmava a impossibilidade de uma loucura sem delírio, em resposta a afirmação de Georget, Esquirol refletindo sobre a responsabilidade penal em 1827 diz: “Desde essa época observei loucuras sem delírio, tive que me submeter à autoridade dos fatos”; trata-se de fatos novos para o alienismo da época apurados e revelados pela perícia e, continua o psiquiatra: “Eles (os fatos) demonstram que, se os alienados enganados pelo delírio, pelas alucinações, pelas ilusões, etc., matam, após terem premeditado e raciocinado o homicídio que irão cometer; existem outros monomaníacos que matam por impulso instintivo. Esses últimos matam sem consciência, sem paixão, sem delírio, sem motivo; eles matam por arrebatamento cego, instantâneo, independente de sua vontade; encontram-se num acesso de monomania sem delírio” (apud CASTEL, 1978: 72, grifos do autor). Com este breve debate acerca da existência ou inexistência de delírio na loucura fica evidente que a noção de monomania não era consenso não somente entre os confrontos teóricos entre alienistas e magistrados, mas também não era aceito unanimemente pelo circulo psiquiátrico, podemos constatar uma pequena demonstração de inúmeras e intermináveis discussões acerca do problema.

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cálculos, ao caráter, às inclinações, aos hábitos do sujeito. E se aos magistrados

freqüentemente repugna aceitar o diagnóstico de monomania, ao qual os médicos

tanto se aferram, eles não podem em compensação deixar de acolher de bom

grado o conjunto de problemas levantados por essa noção: ou seja, em termos

mais modernos, a integração do ato à conduta global do sujeito. (FOUCAULT,

2006a, p. 13).

Essa manifestação da alienação ultrapassava as “leis naturais” e da sociedade e

poderia manter-se oculta até o momento de sua eclosão, quanto menor for a evidência dessa

forma-loucura maior será aplicação da punição, quanto maior ela for sua evidência o sujeito

é menos responsável e punível, suas ações são incontroláveis. Será confinado em uma

prisão psiquiátrica, e a justiça confiará o louco-criminoso à medicina mental. “A doutrina

da monomania29 encontrava, com efeito, uma hostilidade igual nos juristas e magistrados, e,

entre os médicos, junto aos partidários das nascentes concepções anatomopatológicas da

loucura” (FONTANA, 1977, p.285). Os psiquiatras não se deteriam apenas na descrição do

pensamento do homem “normal”, mas também em delinear o seu comportamento, ocorre

um deslocamento do “olhar médico” do plano das representações para o plano das ações,

“uma vez que somente aí poderia avaliar a incidência de uma loucura sem palavras”

(CARRARA, Op. cit., p. 76). Assistimos aqui o poder de intervenção dos alienistas e início

de outro processo de classificação das doenças mentais e patologização do indivíduo,

sobretudo do criminoso, à medida que importava era avaliar se as motivações dos crimes

estavam atreladas à personalidade, ao caráter ou ao instinto dos sujeitos, somente os

alienistas poderiam localizar ou diagnosticar uma loucura que se conservava invisível ao

doente e as autoridades judiciárias.

A noção de monomania, mais especificamente a “monomania homicida”, enrijeceu

o potencial moralizador e normativo do poder psiquiátrico, “(...) serve aos objetivos de

regulação moral do comportamento a que se propõe a medicina mental” (MACHADO et al.,

1978, p. 402). A psiquiatria do crime emerge no seio de uma patologia do monstruoso,

inventaram uma certa “loucura que é inteiramente crime”, classificada como “monomania

homicida”. 29 Não pretendemos abordar aqui toda trajetória da medicina mental nascente, mas apenas analisar os alicerces da interface entre o campo psiquiátrico e o campo jurídico e a intervenção do primeiro sobre o segundo, mas precisamente, “como as noções de loucura raciocinante, de delírio parcial e de monomania permitiram o surgimento da palavra e da escrita do louco-criminoso” (FONTANA, Op. cit., pp 280-281).

Page 52: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

Todavia, na segunda metade do século XIX a monomania30 receberia árduas críticas

e perderia sua credibilidade no circulo psiquiátrico com o surgimento da teoria da

“degenerescência”, ou “degeneração”, amparada pelas concepções organicistas, pela

biologia, pela hereditariedade patológica e pela antropologia. Doravante o indivíduo

anteriormente classificado de “monomaníaco” passará a ser classificado como

“degenerado”.

Os ataques à categoria de “monomania” entendida como uma “loucura parcial”

partirá de B.A Morel, discípulo de Esquirol, com seu Tratado das Degenerescências (1857).

Segundo Morel, o sintoma não poderia ser equiparado á própria alienação mental, a

sanidade seria a superfície aparente das áreas específicas do aparelho cerebral corrompidas

pela alienação, as doenças mentais só poderão ser identificadas por uma causalidade

orgânica – a “degeneração”:

A originalidade de Morel parece ter consistido justamente em relacionar

degeneração, significando alteração do tipo antropológico ou biótipo do Homo

sapiens, com a patologia, particularmente com a patologia mental. A degeneração,

transformada por Morel em concepção antropopatológica, passou a ser definida

por ele enquanto o conjunto de “desvios doentios do tipo normal da humanidade,

hereditariamente transmissíveis, com evolução progressiva no sentido da

decadência” (CARRARA, Op. cit., p.82).

Conforme Sérgio Carrara, a teoria da “degeneração” concebia o homem de forma

unívoca, portanto, uma concepção monista do homem como entidade orgânico-metafísica:

no que tange a moral, o caráter, princípios éticos, crenças; e no que concerne sua estrutura

física, fisiológica e patológica de seu organismo. Outro pressuposto de tal teoria é da

hereditariedade mórbida, as características mórbidas dos ascendentes eram transmitidas

para seus descendentes, uma progressiva degeneração mental passadas de geração a

geração, podendo gerar características mórbidas diferentes: nervosos gerariam neuróticos, 30 A expressão monomania não sumiu abruptamente com o conceito de “degeneração” porque ainda era recorrente a sua utilização pelos alienistas durante todo o século XIX. Segundo Henrique Roxo, um proeminente psiquiatra brasileiro do século passado, o termo ainda era utilizado nas primeiras décadas do século XX, demonstrando a influência e a confusão que ainda trazia o termo: “O termo monomania não correspondia absolutamente ao que em todos os tempos se chamou mania, e isto basta, para que se evidencie a confusão que de tal deriva. A designação hoje já se não adopta, mas a influencia do auctor foi de tal ordem, que ainda, aqui e ali, surge, de vez em quando, a relembrar a confusão” (ROXO, 1925, p. 19). As rupturas e deslocamentos epistemológicos não são processos súbitos e unilaterais.

Page 53: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

que produziriam psicóticos, que gerariam idiotas ou imbecis, até a extinção da “linhagem31

defeituosa”. A “degeneração”, assim podemos definir, seria um desvio de um tipo

“primitivo perfeito” causado por sua transmissão hereditária corrompendo

progressivamente a “prole” descendente engendrando tipos antropológicos desviantes

corrompidos moral, mental, fisiológica e organicamente: “Um determinado juiz, que teria

duvidado da loucura de um assassino em face dos traços mentais e morais, não podia mais

negar a evidência diante do leque de seus antecedentes hereditários e do quadro de suas

alterações morfológicas” (DARMON, 1991, p.131).

De acordo com Carrara, a noção de degeneração trazia consigo alguns problemas

em face de sua ambiguidade, a distinção entre o “degenerado” e o “predisposto hereditário”.

Segundo Morel, a distinção se daria pelo fato de que os “degenerados” já traziam um

“estado mental anormal” de “deformidades anatômicas” e de “alterações fisiológicas” no

decorrer de toda sua existência manifestando-se graus diferentes em diversas formas

sintomáticas, ou seja, “os estigmas da degeneração”. Para Magnan, os “predispostos” se

dividiam em dois subgrupos “predispostos hereditários simples” e os “predispostos com

degeneração”: O primeiro subgrupo seria caracterizado pelo funcionamento do cérebro um

pouco mais frágil do que o “normal” e irromperia em formas de alienação mais simples; o

segundo subgrupo seria dos casos “congênitos” de “deformidade cerebral”. O cerne da

questão sobre a distinção entre “degenerados” e “predispostos” era esclarecer as fronteiras

da alienação e da “sanidade mental”, a degeneração era gradativa, “estabelecendo entre o

normal e o patológico, entre o alienado e o homem são, um continuum de inúmeros pontos”

(CARRARA, Op. cit., p. 93).

31 Infelizmente o termo “linhagem” em sua acepção racialista ainda é utilizado em seus princípios orgânico-morfológicos nas áreas de humanidades por alguns acadêmicos que introjetam, consciente ou inconscientemente – penso que seria mais uma dissimulação – estas categorias raciológicas do século XIX como mecanismo imaginário de defesa contra o “outro”, ou seja, os supostamente serem de outra “cor”. Portanto, uma vitimização baseada na auto-racialização, porém “vencedora”, pois por serem “negros” conseguiram “vencer” na vida. Podemos observar um processo de ontologização bio-tipológica alicerçada numa “linhagem” de sobrenome de antepassados “negros”, como que por hereditariedade genealógica do nome fosse transmito de geração a geração o “caráter” e a “moral” da “prole”: “a linhagem dos oliveiras, silvas, etc.” – como foi referido por um professor acadêmico. Isto é um processo de subjetivação! Um devaneio orgânico-metafísico irrisório mostrando a pertinência e atualidade desses estudos, pois se trata de “professores” que ministram suas aulas em cursos de humanidades, principalmente das disciplinas de História da África e História Contemporânea, quando não estão em alguns postos um pouco mais “elevados” da academia, por exemplo, coordenação de curso. É lamentável que pessoas de tamanho arcaísmo, mentalidade conservadora e reatividade racista ressentida estejam nos âmbitos acadêmicos, sobretudo em nossa faculdade.

Page 54: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

Anos mais tarde, em 1870, o psiquiatra V. Magnan abordará a teoria da degeneração

de Morel sob os auspícios do evolucionismo, a degeneração seria um estado patológico,

em que os desequilíbrios físicos e mentais do “indivíduo degenerado” interromperiam o

“progresso natural da espécie”, distanciando-se assim do “tipo antropológico originalmente

perfeito” de Morel para a idéia darwinista de seleção natural o qual o homem teria em dado

momento melhor se adaptado à “civilização”, e a degeneração seria no sentido de

“retrogradação”, pois até mesmo o homem “primitivo” poderia evoluir e se adaptar, quanto

o “degenerado” perderia a capacidade de se adaptar tornando-se arruinado e irrecuperável

esperando com que a sua extinção se de pela seleção natural. Somente os mais “aptos”

continuam vivos na luta pela vida. Para Magnan, todo degenerado seria um doente mental,

entretanto, todos os loucos não eram degenerados; a degeneração era adquirida ou herdada

apresentando “estigmas”, indícios degenerativos a nível físico, comportamental e mental.

A teoria da degeneração, alicerçada na dicotomia normal-anormal, foi

imprescindível para desdobramento da psiquiatria até as primeiras décadas do século XX e

sua intervenção médica ulterior a simples preocupação com o indivíduo estendendo-se a

sociedade com programas de normatização social e especificando os locais de exercício do

seu poder, principalmente no meio dos trabalhadores, da pobreza urbana e da família. A

noção de “degeneração” demarcará a vida familiar: a família será o suporte coletivo dos

fenômenos da loucura e da “anomalia”. A “criança degenerada” será estigmatizada pela

herança da loucura passada pelos pais ou seus ascendentes; o efeito da “anomalia”

produzido na criança pelo pai, ou seja, a “anomalia” poderá trazer a tona, em determinadas

circunstâncias ou através de certos números de acidentes, a loucura. “Se a anomalia conduz

à loucura e se a loucura produz a anomalia, é porque já estamos no interior desse suporte

coletivo que é a família” (FOUCAULT, 2006b, p. 282). Essa afirmação de M. Foucault

pode ser verificada mais de perto ao depararmos com estudos realizados por Juliano

Moreira e Afrânio Peixoto32 sobre a paranóia no qual tratam da degeneração e atavismo33

32 MOREIRA, J. & PEIXOTO, A. A paranóia e as síndromes paranóides. Arquivos Brasileiros de Neuriatria e Psiquiatria, 1914. 33 “O conceito de atavismo, explica Juliano Moreira, foi desenvolvido pelos italianos Tanzi e Riva: parte do princípio de que a humanidade evolui em direção a um subjetivismo decrescente – o eu subordinado mais e mais ao mundo exterior. A permanência no estado egocêntrico, próprio à infância, seria aquilo que permite definir as degenerescências como uma regressão atávica à ancestralidade, à qual se pode atribuir a razão de muitas doenças mental ser chamada de ‘doamento de atavismo’” (PORTOCARRERO, 2002, p. 51). Este conceito foi recorrente nos estudos de Nina Rodrigues adepto das teorias da Escola Positiva.

Page 55: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

comparando o desenvolvimento da humanidade ao da criança dentro da perspectiva de

Morel: “Cada criança que nasce é socialmente comparada ao primeiro homem; o Eu lhe é

hipertrofiado, e sem as restrições modificadoras seria comparável a um louco ou criminoso.

È a educação que as submete e modifica, dando-lhes identidade social” (apud

PORTOCARRERO, 2002, p. 51).

Ao final do século XIX, a psiquiatria alemã com Krafft-Ebing e E. Kraepelin toma o

lugar de prestígio até então ocupado pelos alienistas franceses na medicina mental.

Kraepelin partiu da teoria criada por Morel para asseverar a existência de um estado de

predisposição a doenças mentais, um “fundo comum” a partir do qual poderiam ser

originadas diversas patologias mentais e do qual os comportamentos moralmente

reprováveis ou perversos seriam os seus indícios significativos. Na última edição de seu

Tratado de Psiquiatria (1915) forja o diagnóstico de “personalidade psicopática”, que

consiste na condição imediata para a emergência do conceito de psicopatia análogo a

periculosidade.

Não demorou a associação da degeneração com a baixa produtividade e o lento

crescimento do Brasil perante as nações desenvolvidas, os indivíduos degenerados e

atávicos eram considerados os principais responsáveis pelos altos índices de criminalidade.

No início do século XX, muitos desses indivíduos não eram classificados especificamente

como doentes mentais, mas representava uma ameaça à ordem social e obstáculo para o

progresso do país, por exemplo, os sifilíticos, os alcoólatras e os epiléticos34, foram taxados

de improdutivos, indisciplinados e criminosos que transmitiam o seu “gérmen” aos seus

futuros filhos. Para Vera Portocarrero (2002), a teoria da degeneração e o conceito de

atavismo possibilitaram um novo campo para o discurso psiquiátrico, criação de um amplo

programa assistencialista para toda sorte de “degenerados”:

34 Sobre o problema das relações entre crime e epilepsia Francis Galton em 1883 escreveu: “As classes criminosas compreendem uma parte considerável de epilépticos e outras pessoas de temperamento instável e emotivo, sujeitas a explosões nervosas que irrompem, de quando em quando, e aliviam o sistema (...). A forma superior de instabilidade emocional é geralmente associada à epilepsia; em todos os casos, é uma distorção assustadora e hereditária da humanidade”. E completa sua fala de maneira categórica: “Mas se eles continuarem a gerar filhos com características morais, intelectuais e físicas inferiores, é fácil crer que tenha chegado a hora de essas pessoas serem consideradas inimigos do Estado e de perderem o direito a reivindicar amabilidades” (apud SZASZ, 1994, p.85).

Page 56: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

A teoria psiquiatra se alarga, lançando-se ao mesmo tempo no saber da medicina

geral, devido a suas tendências organicistas, e no saber sócio genético, ao

estabelecer novos fundamentos para a relação entre doença mental e sociedade: a

saúde mental se torna ‘um problema que concerne ao estudo dos fatores de

desenvolvimento físico e intelectual da raça’” (Idem, Ibidem, p.52).

A criminalidade, as doenças mentais, a prostituição, os vícios, a pobreza, a inaptidão

para o trabalho foram associados ao “patrimônio genético”, ou melhor, às taras hereditárias,

à medida que o conceito de degeneração proporcionou modificações teóricas e viu-se na

urgência de esquadrinhar novas enfermidades, como é o caso da epilepsia, que será

enquadrada como patologia psiquiátrica; a sífilis e o alcoolismo foram encarados como

“fatores de degeneração”, assim como a “miscigenação” “considerada disgênica e um

caminho aberto para todos os males da vida” (SILVA, 2005, p. 76), que gerava indivíduos

predispostos às degenerescências físicas, morais e/ ou mentais produzindo “raças mais

fracas”, conseqüência do “cruzamento de raças diferentes”. Para combater o problema da

degeneração e prevenir os fatores causadores deste mal, a psiquiatria incorporará em seu

seio a eugenia:

A eugenia foi artefato conceitual que permitiu aos psiquiatras dilatar as fronteiras

da psiquiatria e abranger, desta maneira, o terreno social. A nova noção justificou

psiquiatricamente a expressão dos anseios culturais dos psiquiatras que, sem ela,

teriam que tomar os caminhos políticos e ideológicos adequados á sua

manifestação (COSTA, 1989, pp. 79-80).

A teoria da degeneração possibilitou a ampliação de atuação do campo psiquiátrico

nas questões judiciárias, permitiu um alargamento dos diagnósticos, se não são doentes

todos os criminosos, mas grande parte passaria a ser; qualificados como irresponsáveis,

portanto deveria ser tratado e não punido. No entanto, o criminoso degenerado poderia ser

apenas um predisposto hereditário em um momento e noutro já como doente mental, não

havia um consenso entorno do estatuto médico-legal desses indivíduos:

Não é fácil, se não definir, ao menos limitar ou circunscrever, a degeneração. É o

debarras da psiquiatria. O que não cabe, em outras rubricas de diagnóstico, vai

ter ai. Por isso mesmo, faz-se-lhe o diagnostico por exclusão, reunindo o que, não

cabendo alhures, consistirá o corpus da degeneração. Se um ou alguns estigmas

Page 57: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

somenos têm pouca ou nula significação, um conjunto dêles, algum com notável

relêvo e maior importancia, constituem indicio grave e base para o diagnostico

(PEIXOTO, 1933, pp. 186-187).

Esta (in)definição entre sanidade e loucura, como foi apontado por Afrânio Peixoto,

acarretou sérios problemas aos tribunais, esta categoria transitou num nihil legal e

institucional e “ficaram conhecidos na literatura médica como ‘fronteiriços’ ou

‘semiloucos’ (...), que não pareciam encontrar facilmente um termo mediano entre a culpa e

a inocência, entre a responsabilidade e a irresponsabilidade moral, que pudesse contemplá-

los” (CARRARA, Op. cit., p.99).

2.2 - A Escola Positiva: a antropologia criminal e o bio-determinismo

A Escola Positiva de direito penal, Nova Escola Penal ou Escola Italiana nasceu nas

últimas décadas do século XIX na era vitoriana, a partir dos estudos e trabalhos de Cesare

Lombroso e de seus dois sectários, Enrico Ferri e Rafaelle Garofalo, deslocando a atenção

da ação do criminoso para a natureza do criminoso, mudando de maneira radical o foco do

crime para o criminoso, buscava na antropologia criminal e na criminologia35 sua

legitimidade científica. A cientificidade, ou melhor, seu cientificismo está fundamentado no

evolucionismo de Darwin, no positivismo de Comte, na antropometria e cranioscopia de

Broca, na Fenologia de Gall, na teoria da degeneração de Morel, na fisiogonomia de Della

Porta, até mesmo nas primeiras classificações das diferenças raciais do século XVIII, como

as de Buffon, Linné e De Paw (SILVA, 2005; CARRARA, 1998). Contudo, os objetos de

investigação da antropologia criminal sobre o criminoso serão os atos, degeneração, taras,

instintos e hereditariedade:

O criminoso, como o louco e todos os tipos considerados anormais, será

considerado resultado de uma hereditariedade funesta, disgênica. Anormalidades

de fundo biológico, passíveis de serem mensuradas não só nos seus aspectos

35 De acordo com P. Darmon (1991) a criminologia surge com a obra La criminologia de R. Garofalo publicada em Turim em 1885 e em seguida publicado na França e traduzida mundo afora. A criminologia era um estudo antropológico específico do homem delinqüente, portanto, era sinônimo de antropologia criminal.

Page 58: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

físicos como morais e comportamentais. (...) Os métodos frenológicos, a

craniometria e a antropometria logo se tornaram norteadores de uma série de

sistemas classificatórios. As diferenças raciais apontadas logo serão relacionadas

ao comportamento criminoso permitindo (...) determinar a priori as

predisposições ao crime assim como as características dos criminosos

relacionando-as aos tipos de crimes mais comuns (SILVA, 2005, p. 28).

A antropologia criminal ou criminologia só se consolidou como uma etiologia do

criminoso devido à interligação de saberes em um contexto histórico epistemologicamente

específico, de um horizonte explicativo que possibilitou o surgimento de um objeto de

estudo e processos múltiplos que assinalaram a existência de variados agentes de ação e de

certas categorias analíticas que lhe forneceram um fundamento, sendo assim, passou por

grandes transformações, mas permanecendo o seu eixo principal: a patologização do “ato

anti-social”. As novas abordagens tidas como científicas sobre o crime engendrou uma

nova doutrina em direito penal, a criminologia, cuja sua influência e repercussão é inegável

aos códigos penais modernos.

A Escola Positiva negava a existência do livro-arbítrio e fundamentava-se no

determinismo biológico da degeneração, da hereditariedade, do atavismo. O atavismo como

causas condicionantes do crime coletados pelos exames biológicos do corpo do criminoso e

dos resultados do tratamento estatístico da craniometria e frenologia, os quais constataram

uma variação desviante do tipo “normal” humano peculiar a uma categoria

antropologicamente distinta classificada por Lombroso de Homo criminalis, homem

delinqüente ou o criminoso nato (expressão que na realidade foi criada por Ferri). É esta

classe de criminosos que possibilitou a afirmação do poder psiquiátrico e a presença

incontestável do médico no tribunal:

Assim, a criminalidade transformou-se, por volta do final do século XIX, num

trampolim para a medicina na sua conquista de poderes e o criminoso nato de

Lombroso foi uma peça mestra do arsenal que permitiu ao médico travar a

batalha do tribunal. Os progressos da medicina legal também iriam representar

um papel que não pode ser negligenciado. Mas seriam eles capazes de fazer com

que o médico fosse outra coisa além de um perito a serviço do magistrado? (...).

Ao contrário, graças ao criminoso nato, o médico tornar-se-ia, com certeza,

senhor do tribunal (DARMON, 1991, p. 16).

Page 59: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

Portanto, o criminoso nato e seu comportamento perverso e obstinado é

impulsionado pelas taras hereditárias, pelos instintos e por suas paixões fora de qualquer

escolha racional do livre-arbítrio, pois as ações humanas são determinadas por leis causais,

mecânicas e evolutivas. As discussões estiveram centradas, em certa medida, no enfoque

filosófico acerca do binarismo livre-arbítrio e determinismo, e o que podemos observar

com este intento da Escola Positiva é a passagem do crime, antes considerado pelo Direito

Clássico como questão da “responsabilidade moral” e escolha racional, para questões

médicas, psicopatológicas e sociológicas, em outras palavras:

(...) a valiosa contribuição desses dois vultos (a Escola Clássica e a Escola

Positiva), no campo das idéias penais, e em particular em relação à Criminologia,

pode ser assim resumida: enquanto Beccaria proclamou “Homem, conheça a

Justiça”, espécie de grito de alerta sobre as inomináveis práticas da Justiça Penal

de então, Lombroso, por sua vez, diria “Justiça, conheça o homem”, ou seja, a

recomendação para que se estude a natureza humana, o seu comportamento, as

causas de sua conduta, sob o aspecto da delinqüência (SOARES, 1986, p. 74).

O Classicismo penal, surgido no final do século XVIII e início do século XIX com

advento do iluminismo inspirados por J. Bentham, C. Beccária e J. Rousseau é marcado

pelos princípios do utilitarismo e do humanismo (sobretudo o ideal de perfectibilidade

humana) e se fundamentava no livre-arbítrio: o homem que é são e tem racionalidade tem

arbítrio, ou seja, a possibilidade de escolher cometer ou não um crime, se caso venha

cometê-lo é por sua livre opção, entretanto, os homens desprovidos de razão não podem ser

atribuídos à responsabilidade de um crime. A Escola Clássica vê o homem criminoso como

um homem comum, a não ser que tenha insanidade ou alguma anomalia que o torna

irresponsável pelo crime, o menos importante num crime é a “personalidade” do criminoso

e aplicação da pena deve ser pelo delito cometido, e não por medidas profiláticas. A escola

clássica assumiu o discurso de culpabilidade e punição, o crime como quebra do contrato

social e a correção como meio de sua ratificação A prisão para a Escola Clássica será

concebida como uma “máquina” de punição e correção do criminoso, uma “tecnologia

punitiva/ ortopédica” (e moral) característica da sociedade disciplinar, diferente do sistema

punitivo do castigo e do espetáculo do suplício próprio ao Antigo Regime. A necessidade

Page 60: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

da individualização das penas em conformidade com as características peculiares de cada

delinquente e a taxionomização dos crimes e das penas, de modo que cada delito particular

e cada criminoso possa ser submetido a uma lei geral sem nenhuma margem de arbítrio está

relacionado a uma nova legislação que estabelece o poder de punir como uma “função geral

da sociedade que é exercida da mesma maneira sobre todos os seus membros, e na qual

cada um deles é igualmente representado” (FOUCAULT, 2006c, p.195), cujo panóptico de

Bentham – tanto como arquitetura prisional quanto dispositivo de segurança – será o

símbolo de eficiência do poder disciplinar, o qual direito clássico é subjacente. A Escola

Positiva sob a influência direta de Darwin e Comte travou um longo confronto com os

adeptos do Direito Clássico, pois rechaçava todo pensamento jurídico clássico de abstrato,

metafísico e arcaico sem base científica (aqui ele se refere, sobretudo ao método

experimental ou empirismo positivista) que no máximo a sua única contribuição foi ter

estabelecido alguns limites à opressão e tortura dos sistemas punitivos medievais e do

Estado Absolutista – os suplícios –, mas não será abandonado por completo o modelo do

panóptico da sociedade disciplinar da primeira metade do século XIX.

A crítica dos positivistas36à ideia mística de responsabilidade moral é realizada em

nome da ciência, segundo estes teóricos, o classicismo penal não tinha base científica que o

legitimasse. À ciência seria incumbida de estudar e classificar as diferenças biológicas e

fisiopsíquicas, a partir daí medir a perversidade do culpado. Garofalo com base neste

quadro afirmará a existência de um “criminoso típico” o qual somente o especialista seria

capaz de identificar pela fisionomia e “temibilidade”, em outras palavras, pela “cara”,

mesmo se o indivíduo não tivesse ainda cometido nenhum crime. O racismo era explícito

na identificação do criminoso, o fenótipo era o “espelho d’alma”, “no qual refletiam

virtudes e vícios” (SCHWARCZ, 1993, p. 166). Outro exemplo de estigmatização das

classificações antropologista é o “tipo criminalóide” Lombrosiano, o qual Garofalo

estabelece duas variações, os “sem probidade” e o “sem piedade”. “Esses dois tipos

apresentam caracteres físicos e, sobretudo, traços fisionômicos muito marcantes. Mas no

detalhe, existem também subclasses que se afastam cada vez mais da grande

monstruosidade” (DARMON, Op. cit., p. 144). Garofalo discordava de algumas

36 Daqui pra frente o termo positivista será utilizado para designar os seguidores da Escola Positiva de Direito Penal.

Page 61: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

classificações anteriores e estabelece mais três classes de criminosos: o assassino, o ladrão

e o violento. As feições do criminoso se tornaram vulgarizadas e fáceis de serem

identificadas, facilitando o manuseio por advogados, juizes, médicos, jornalistas e pela

população, banalizadas em fotos de jornais e nos tribunais permanecendo até nossos dias.

Percebemos que se tratam mais de critérios subjetivos que objetivos tão rejeitados pelos

positivistas.

A Escola positiva patologizou o criminoso e o crime era uma expressão reveladora

da “personalidade anormal” do criminoso, as ações humanas eram bio-determinadas por

sua estrutura “fisioantropológica” e os atos “anti-sociais” eram determinados pelos desvios

biológicos do comportamento dito “normal”, “(...) fazendo com que o condenado

demandasse tratamento terapêutico mais que punição, promoviam uma transferência de

ênfase do objeto jurídico do crime para o objeto científico do criminoso” (FERLA, 2005, p.

17). Essa transferência da qual nos fala Luis Ferla (2005), pode ser bem observada com a

substituição de “responsabilidade moral” pela noção menos mística de “responsabilidade

social” realizada por Ferri autor de Sociologie criminelle (1892). Segundo Ferri, o homem

só é responsável perante a sociedade e por viver nela, e se esse homem for um louco

continuará ser responsável frente à sociedade, a qual deve reagir contra o perigo por ele

representado. Todavia, o mecanismo de “defesa social” não será a prisão e sim ao hospital

psiquiátrico ou manicômio judiciário:

As delegacias, prisões, penitenciárias, manicômios, institutos disciplinares,

deveriam se transformar em institutos terapêuticos, de caráter científico, o que

implicaria, dentre outras coisas, em produção de conhecimento. Não se defendia

mais apenas uma sequestração para isolar o indivíduo criminoso do conjunto da

sociedade, na intenção de protegê-la, mas um estudo rigoroso, criterioso,

metódico e científico do corpo e da mente de cada indivíduo “desviante”. Estudo

que iria subsidiar a definição da melhor terapêutica, e que também iria aprimorar

o próprio desenvolvimento científico da criminologia (FERLA, Op. cit., p. 18).

Esta ruptura epistemológica ao nível da punição, não irá beneficiar somente a

criminologia como abordou Ferla, mas também a psiquiatria, no caso brasileiro, ela irá

produzir um vasto conhecimento multidisciplinar no interior do asilo sobre a loucura e o

crime, e a criação de inúmeras revistas científicas, sociedades e ligas diretamente

Page 62: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

relacionadas às questões da psiquiatria, da neurologia, da eugenia e da criminologia

abordando múltiplas temáticas que eram objetos de seu estudo e intervenção.

Para entendermos melhor as formulações teóricas da Escola Positiva iremos

discorrer um pouco mais sobre o conceito lombrosiano de “criminoso nato” e sua

repercussão da noção de periculosidade na psiquiatria e no direito penal. Lombroso em

1870 publica o seu livro Uomo deliquente e irá fazer com o crime algo semelhante ao que

Morel fez com a loucura. Ambos os autores conceberam o crime e a loucura sob a égide da

hereditariedade, como comportamentos desviantes advindos de variações de tipos

antropológicos degenerados. Ao contrário de Morel, Lombroso lança a mão do conceito

darwiniano de atavismo para compreender o crime, o comportamento criminoso era próprio

de homens “primitivos” e “inferiores”, entretanto, tal comportamento poderia aparecer

abruptamente em sociedades “evoluídas” 37, portanto, o criminoso ao praticar o crime

“apenas obedeciam á sua natureza bestial”. “O crime nada mais seria, a seus olhos, que a

irrupção da animalidade ou da barbárie no interior da civilização” (CARRARA, Op. cit.,

p.105). Podemos observar melhor o atavismo e a identificação do homem criminoso com o

“selvagem” num discurso de Lombroso no Sexto Congresso de Antropologia Criminal em

Turim no ano de 1906, onde relatou:

Em 1870, eu prosseguia há vários meses, nas prisões e nos hospícios de Pavia,

em cadáveres e em vivos, pesquisas que visavam fixar as diferenças substanciais

entre os loucos criminosos, sem chegar a um resultado: de repente, numa triste

manhã de dezembro, encontro no crânio de um malfeitor toda uma longa série de

anomalias atávicas, sobretudo, uma enorme fosseta occipital média [abertura

situada no nível da parte inferior da caixa craniana que dá passagem ao eixo

cérebro-espinal] e uma hipertrofia da fosseta vermiana [região mediana do

cérebro] análogas ás encontradas nos vertebrados inferiores. À vista dessas

estranhas anomalias, como se tivesse surgido uma grande planície sob um

horizonte em chamas, o problema da natureza e da origem do criminoso

pareceu-me resolvido: os caracteres dos homens primitivos e dos animais

37 De acordo com Carrara (1998), Lombroso associava pejorativamente o “criminoso nato” ao “homem selvagem” ou “pré-histórico” (anteriores ao homo sapiens), contudo, além do evolucionismo biológico podemos perceber um evolucionismo histórico próprio da Escola Histórica contemporânea do médico de Turim.

Page 63: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

deviam reproduzir-se em nosso tempo (apud DARMON, 1991, p.35, grifos

meu).

Os debates infindáveis sobre as controversas da Escola Positiva não ficou restrito ao

circulo europeu, chegou ao Brasil provocando grandes discrepâncias entre os que

receberam entusiasmados as teorias da Nova Escola Penal e os que encaravam com

desconfiança e receio. As reformas penitenciárias ocorridas a partir de 1870 e estendendo-

se até as primeiras décadas do século XX, estiveram ligadas as concepções bio-

deterministas do saber médico (não podemos deixar de mencionar a presença do perito

legista), abandonando gradualmente a concepção jurídico-social de correção. As

interpretações do Brasil e de seu povo pelo viés da raça ganharam novo fôlego com a

antropologia criminal, segundo esta teoria, a partir das características físicas de um povo é

que se poderia identificar a criminalidade, a loucura, a degeneração, as taras hereditárias, as

virtualidades e o estágio evolutivo de uma nação, assim como o progresso e a ruína de um

país. O professor de direito criminal Laurindo Leão num artigo de 1919 proferiu as

seguintes palavras:

Uma nação mestiça é uma nação invadida por criminosos. (...) Somos o que

somos será porque sejamos uma sub-raça, um paiz de mestiços, uma fusão de

elementos ethnicos inferiores ou porque sejamos uma nacionalidade em vias de

formação o que explica o estado de delinquencia social do povo brasileiro? (apud

SCHWARCZ, 1993, p. 167, grifos meu).

Novamente a mestiçagem passa ser um entrave à “evolução” do Brasil, a nação por

estar num estágio inferior de “evolução” não tinha gerado ainda um tipo racial homogêneo

e a “miscigenação” propiciava a loucura e a criminalidade, assim como escrevera Cândido

Mota em seu conhecido livro Classificações dos criminosos reeditado em 1925: “(...) os

crimes contra a pessoa, cometidos pelos mestiços, são quase sempre revestidos das mais

atrozes circcunstâncias e da mais requintada crueldade (...)” (apud ALVAREZ, 2003, p.

111). Conforme Lilia Schwarcz, não podemos pensar esta questão da miscigenação como

consenso da época, pois alguns higienistas e legistas se opunham à afirmação de Laurindo

Leão, o prof. Luis e Silva dizia também em 1919 que era impossível enquadrar a realidade

brasileira nos moldes da antropologia criminal devido a sua diversidade do “typo

Page 64: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

anthropologico” e de sua geografia, os problemas nacionais poderiam existir mas não seria

por fatores causados pela diversidade racial e, através da higiene, da saúde e da educação

seria possível em meio a tanta “degeneração” sinais de “evolução”. Ao contrário da Escola

Positiva, para estes teóricos será preciso “higienizar o país e educar seu povo, é assim que

se corrige a natureza e se aperfeiçoa o homem” (SHWARCZ, Op. cit., 169).

O contexto cultural da época propiciava a recepção calorosa das mais variadas

teorias cientificistas europeias e, os bacharéis iniciantes e mesmo renomados se valeram

das teorias da Escola Positiva para realçarem um certo prestígio intelectual seja na carreira

jurídica ou na carreira política, como Cândido Mota (1870-1942), Paulo Egídio (1842-

1906) e Viveiros de Castro (1862-1906), para citarmos alguns exemplos (ALVAREZ,

2003). A maior dificuldade de penetração da criminologia no âmbito penal é a presença

forte e maciça de juristas adeptos da Escola Clássica e do liberalismo, importantes nomes

foram de Rui Barbosa, Clóvis Beviláqua (1859-1944) e João Mendes. Rui Barbosa, por

exemplo, se opõe fortemente à indeterminação das penas e abolição do júri proposta pela

Escola Positiva, segundo o jurista, estas medidas eram antinômicas diante da legislação

liberal em vigor e suas garantias, e não poupou críticas a criminologia:

(...) Certamente não foi nas doutrinas da ‘nova escola penal’, que se moldou a

constituição republicana. O espírito liberal, que nesta palpita, está no mais

acentuado antagonismo com as inspirações daquela. Para nos harmonizarmos

com a ciência da criminologia, cujas opiniões se simbolizam nos célebres nomes

de Lombroso, Garofalo e Ferri, teríamos de subverter ab imis fundamentis as

garantias mais respeitáveis do processo penal entre nós, os dados elementares da

sua dogmática, favorecendo a ampliação do cárcere preventivo, diminuindo os

casos de liberdade provisória, abolindo a publicidade na formação da culpa,

cerceando as seqüências naturais à prevenção constitucional de inocência,

mutilando o direito de graça, amesquinhando a anistia e restaurando a pena de

morte (apud ALVAREZ, 2003, p. 119).

Entretanto, Rui Barbosa tinha algumas recaídas pelas teorias de Lombroso, seja no

vocabulário criminológico ou na questão da internação em manicômios dos criminosos

degenerados como veremos a seguir:

Page 65: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

Da a que esses tresviriados obedecem, não se pode hoje duvidar. Nuns, é o

misticismo hereditário, noutros, o delírio de perseguição, noutros, a idéia fixa

do martírio, quase sempre a degeneração atávica sob os caracteres mais

evidentes da epilepsia e histeria. São, quase sempre, anormais, geralmente

matóides, ou semi-doidos (apud Idem, p. 120, grifos meu).

Os juristas sectários da criminologia não se encontraram sozinhos nos debates

jurídico-penais, terá apoio de médicos importantes do período aludido, o médico legista

Nina Rodrigues (1862-1906) e como o psiquiatra Franco da Rocha (1864 – 1933). De

acordo com Marcos C. Alvarez durante toda a Primeira República, “a criminologia se

tornou um ponto de convergência entre o saber médico e o saber jurídico, um discurso

comum usado tanto por médico, quanto por juristas interessados em questões jurídico-

penais” (Ibidem, 121).

O médico maranhense Raimundo Nina Rodrigues foi um dos principais

divulgadores das teses lombrosianas no Brasil no final do século XIX, o médico começou a

se dedicar aos estudos de criminologia quando passou a lecionar na Faculdade de Medicina

da Bahia. Autor de inúmeras obras e artigos que versavam de variadas temáticas da

medicina à antropologia, da psiquiatria ao direito penal e civil, cabe destacar uma obra em

particular que chegou receber elogio do próprio Lombroso o livro As raças humanas e a

responsabilidade penal no Brazil publicado originalmente em 1894, o qual tratava sobre a

criminalidade, o direito penal e a imputabilidade ou inimputabilidade penal do criminoso e

suas relações com as diferenças raciais na sociedade brasileira. Nina Rodrigues acreditava

que os três tipos raciais principais para formação do povo brasileiro (negros, índios e

brancos) ao se misturarem transmitiriam aos produtos de seus cruzamentos caracteres

patológicos degenerativos diferenciais, e que a correta diferenciação das raças seria muito

importante para a prática médica, nas doenças físicas e como nas mentais. Para ele, a

inferioridade racial dos negros e indígenas, com relação ao branco, era evidente e

incontestável. Contudo, a miscigenação entre raças em diferentes níveis evolutivos causaria,

fatalmente, indivíduos desequilibrados, degenerados, híbridos do ponto de vista físico,

intelectual e nas suas manifestações comportamentais (SCHWARCZ, 1993; DE LUCA,

1999; SILVA, 2005). Esta posição radical e pessimista de Nina Rodrigues pode ser mais

Page 66: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

bem observada num pequeno trecho do livro Os Africanos no Brasil publicado em 1904 o

qual afirmava:

O negro da América, mesmo tendo assimilado as formas de vida civil, no fundo

da alma é uma criança. Na escola da civilização, o afro-americano ocupa ainda

um dos últimos degraus, a raça anglo-saxônia um dos primeiros, senão o

primeiro. O mais humanitário dos antiescravitas jamais poderá cancelar as

diferenças biológicas entre os homens. Quaisquer que sejam as condições

sociais em que se coloque o negro, está ele condenado pela sua própria

morfologia e fisologia a jamais poder alcançar o branco. Só uma parada da

civilização européia e anglo-americana daria tempo aos negros para sua

lentíssima e não espontânea evolução, atingir-nos e igualar-nos (apud SILVA,

2005, p. 29, grifos meu).

O psiquiatra paulista Franco da Rocha formou-se em Medicina no Rio de Janeiro,

discípulo direto de Teixeira Brandão, um dos mais renomados psiquiatras do século XIX,

foi planejador, fundador e diretor do Hospício do Juquery o qual dedicou sua vida inteira e

foi também membro da Sociedade Eugênica de São Paulo. Participou da escolha do local,

planejou sua estrutura e dedicou sua vida no atendimento dos pacientes e construindo uma

equipe que foi fundamental no desenvolvimento da psiquiatria paulista (CUNHA, 1986).

Para Franco da Rocha a criminologia seria uma forma de aproximar direito e psiquiatria

possibilitando a intervenção da segunda sobre as questões judiciárias relacionadas aos

loucos criminosos, o psiquiatra paulista pensava de acordo com a antropologia criminal,

todo criminoso encerraria uma personalidade, mais ou menos, mórbida, merecendo punição

conforme o seu grau de periculosidade e, em muitos casos, exigindo a aplicação de medidas

de segurança social. O estreitamento de relações entre juristas e psiquiatras almejado por

Franco da Rocha fica evidente em uma passagem de sua obra Esboço de psiquiatria forense

de 1904:

(...) Foi mesmo o estudo da psiquiatria que levou Lombroso a revolucionar o

Direito Penal, tão estreitas se mostram as relações entre alienados e criminosos.

Seja ou não aceita por completo a concepção de Lombroso, ele conseguiu

imprimir nova direção ao estudo do Direito Criminal, chamando a atenção dos

juristas diretamente para o indivíduo delinqüente, estreitando as relações

entre os juristas e os psiquiatras, criando um novo ramo comum de estudos –

Page 67: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

a Antropologia Criminal . Esta se encontra com a psiquiatria num terreno neutro,

vasto, onde as duas disciplinas se confundem (...) (apud ALVAREZ, Op. cit., p.

122, grifos meu).

O entusiasmo de Franco da Rocha demonstra sua adesão à criminologia como uma

ciência capaz de construir um “terreno neutro” onde os profissionais da psiquiatria e do

direito poderiam exercer seus ofícios conjuntamente na normatização da sociedade e no

combate ao crime e a loucura. Mesmo com a decepção dos médicos em relação aos

resultados efetivos da antropologia criminal não abalou a tão almejada comunhão entre

medicina e justiça.

De acordo com Mozart L. da Silva (2005), jamais os juristas poderiam ceder

facilmente o espaço para o médico-perito no Tribunal e, para manter a integridade dos

juristas frente às críticas veementes aos postulados da Escola Clássica será forjado outro

tipo de determinismo mais brando pela Escola Neoclássica (Manzini, Rocco, Massari), que

se caracterizava pela convergência da noção de livre-arbítrio com um determinismo

psicossocial como as principais causas do crime, “(...) ela mantém o postulado da razão e

da liberdade, mas pondera ao colocá-lo numa perspectiva histórica, ou seja, considera sua

trajetória de vida, seu meio social e físico e suas condições educacionais” (SILVA, pp. 30-

31). O mesmo após das críticas radicais que sofreu pela antropologia criminal ancorada no

bio-determinismo, que concebia o degenerado como anormal e incorrigível, portanto

suscetível à pena de morte, o sistema penitenciário continuará a existir sem perder por

absoluto, mas com algumas mudanças, os princípios da perfectibilidade, a correção (agora

medicalizada e terapêutica) será forma de reintegração social, permanecendo em sua devida

proporção os princípios da Escola Clássica, ou seja, a correção terá primazia frente à

punição (pelo menos em tese, a prática no transcurso histórico se revelará outra). Um novo

discurso vem à superfície, um discurso híbrido que pairava entre a concepção correcional

da punição e positivista do criminoso. À medida que estes debates continuavam em São

Paulo, médicos e juristas estabeleciam redes de contato e de cooperação, ocuparam cargos

em Faculdades e em instituições diversas no campo da justiça criminal, buscaram

influenciar as políticas de combate a criminalidade e as reformas na legislação penal.

Um problema ainda parecia insolúvel, o do criminoso nato e sua periculosidade, o

indivíduo perigoso incorrigível por “natureza”, colocava em cheque os pressupostos ainda

Page 68: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

existentes do direito clássico, a delinquência era intrínseca ao seu comportamento bio-

determinado, sem livre-arbítrio o qual se fundamenta a responsabilidade penal e o direito de

punir. Longe de tranqüilizar, o debate acerca do crime e da loucura chega às décadas de

1910 a 1930 em proporções maiores, tornando-se mais denso e mais drástico, um grande

problema se coloca agora:

Se o homem age apenas obedecendo aos imperativos de sua natureza frente à qual

nenhuma barganha ou negociação é possível, se age sob coação, como puni-lo ou

louvá-lo por seus atos? O criminoso nato era, sem dúvida, o delinqüente mais

perigoso, mas era também o menos passível de punição nos termos do direito

clássico ou “livre-arbitrista”. Como controlá-lo? Como defender a sociedade de

seus ataques? (CARRARA, Op. cit., 110).

A resposta a estas perguntas virá de todos os lados, o interesse público perante tal

problema só poderá satisfazer-se com o desaparecimento radical do criminoso, do louco, do

anormal, do monstro. É preciso defender a sociedade, até que ponto a chamada “medida de

defesa social” ou “medida de segurança” será eficaz e satisfatória como resposta a este

problema? Puni-los, tratá-los, esterilizá-los, eliminá-los ou exterminá-los, qual é a melhor

defesa?

2.3 - O “monstro”, o “anormal” e o “indivíduo perig oso”: sequestrá-los, esterilizá-los,

eliminá-los ou exterminá-los?

“O que caracteriza o bio-poder é a crescente importância da norma que distribui

os vivos num campo de valor e utilidade. Tal poder tem a função de qualificar,

medir, avaliar, hierarquizar, operando distribuições em torno da norma. A

própria lei funciona como norma, com funções reguladoras. Uma sociedade

normalizadora é o efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida”

(Vera Portocarrero, 2002, p.123)

O problema do crime, do criminoso e da criminalidade depois da antropologia

criminal trazia a necessidade de reformulação de todos os preceitos jurídicos por novos

preceitos embasados na ciência. Não precisa opor o crime monstruoso e misterioso como

Page 69: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

fundamentalmente ocasionado pela loucura frente ao pequeno delito, pois é possível agora

presumir se era um desvio mais ou menos grave da razão e dos instintos ou uma interrupção

do desenvolvimento humano causado pela degeneração. Ocorre aqui um “continuum

psiquiátrico e criminológico”, para usar uma expressão de Foucault, possibilitando

interrogar todos os graus da escala penal em termos propriamente médicos. “A questão

psiquiátrica não é mais situada em alguns grandes crimes; mesmo que se deva dar a ela uma

resposta negativa, convém situá-la dentre todo um domínio das infrações” (FOUCAULT,

2006a, p.16).

A psiquiatrização da justiça traz sérias conseqüências para a teoria jurídica da

responsabilidade, a ideia de degeneração, base das principais concepções psiquiatras e

criminológicas, permitiria uma análise de todas as condutas humanas determinadas por

causalidades, não importa se é criminoso ou não, o problema psiquiátrico e jurídico residirá

na determinação causal – “nexus causal” – de todas as ações, portanto, os indivíduos não

serão mais concebidos como livres. O que fazer com o individuo perigoso que seria

provavelmente um criminoso nato? Como manter a bandeira de igualdade entre os homens

sustentada pelos adeptos da Escola Clássica arraigados nos princípios iluminista se se

tratava de homens “anormais” e condenar um criminoso sem considerar sua peculiaridade?

A legislação penal amparada na Escola Positiva sofrerá uma inversão do princípio da

igualdade e achará uma solução curiosa, nas palavras de Cândido Mota: “tratar

desigualmente os seres desiguais” (apud ALVAREZ, Op. cit., p.112). Esta seria pelo menos

uma das soluções.

Conforme nos mostra Sergio Carrara (Op. cit.), a punição será convertida em

“medida de defesa social” e sua reação ateria sobre o criminoso e não ao tipo de crime

cometido. Portanto, a sociedade reagiria contra a criminalidade patológica de forma

“homogênea” com dois pólos que justificaria a existência de um “continuum” protetor que

irá da instância médica de cura de um lado e de outro a instituição penal, e no extremo o

“patíbulo”, ou seja, vai da primeira correção aplicada ao indivíduo até a última grande

sanção jurídica que é a morte. Este conluio está voltado para o “indivíduo criminoso” que

não era nem propriamente criminoso e nem propriamente doente, e no exame, no

diagnóstico, no interrogatório psiquiátrico o indivíduo perigoso estará submetido e, de

Page 70: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

acordo com Foucault, duas noções serão fundamentais para a análise do “indivíduo

perigoso”:

(...) a noção de “perversão”, de um lado, que permite costurar uma outra na outra

a série de conceitos médicos e a série de conceitos jurídicos; e, de outro lado, a

noção de “perigo”, de “indivíduo perigoso”, que permite justificar e fundar em

teoria a existência de uma cadeia ininterrupta de instituições médico-judiciárias.

Perigo e Perversão: é isso que, constitui a espécie de núcleo essencial, o núcleo

teórico do exame médico-legal (FOUCAULT, 2002, p.43).

Segundo Foucault (2006a), essa situação de grande clamor social e político de

reação ao crime e também de repressão ao criminoso só poderia ser pensada em termos

médicos e jurídicos, e a noção de “responsabilidade” não parecia condizente para pensar

esse domínio tão amplo e complexo da criminalidade médico-legal. Para tanto, a pena não

deveria mais ser pensada como punição, mas agora como mecanismo de defesa social, a

diferença não repousa mais em condenação dos responsáveis e libertação dos

irresponsáveis, “mas sim entre sujeitos absoluta e definitivamente perigosos e aqueles que,

por meio de certos tratamentos, deixam de sê-lo” (FOUCAULT, 2006a, p.18).

O tratamento adequado ao criminoso de toda modalidade e ao louco seria uma

forma de regeneração do indivíduo, mas outra instância médica cientificista entrará na

discussão sobre a profilaxia ou punição do crime e da loucura travada entre os psiquiatras e

juristas, os eugenistas. Segundo Silva (2005), a eugenia no Brasil na virada do século XIX

para o XX teve uma recepção ambígua, a eugenia seria uma possibilidade científica de

intervenção na depuração racial de uma população, consequentemente da cultura e da

“civilização”, entretanto, desempenharia uma árdua “missão” numa nação miscigenada, a

qual sua composição racial era considerada o principal problema para o “progresso” e

“evolução” do país. A miscigenação, como vimos anteriormente, era disgênica e trazia

consigo todas as assolações degenerativas, sobretudo, o crime e a loucura. Em nosso país,

“a Eugenia não se constituiu como um projeto nacional definido e instrumentalizado. Sua

reverbação, entretanto, pode ser percebida mesmo nas falas oficiais e nomeadamente nos

enunciados das áreas médicas, jurídica e criminológica” (SILVA, Op. cit, p. 76).

Page 71: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

A eugenia no Brasil teve inúmeros sectários principalmente no Rio de janeiro e em

São Paulo onde foram criadas as primeiras e as principais ligas de higiene mental da

América Latina. Contudo, não pretendemos refazer toda a trajetória da eugenia em São

Paulo, mas de maneira breve e elucidativa pegaremos as principais questões discutidas

pelos eugenistas em relação à temática do crime e da loucura e os projetos (não seria por

falta de um projeto definido que os eugenistas não tivessem nenhum projeto) eugênicos de

esterilização e exterminação dos degenerados de toda sorte. Aqui retomaremos a questão da

eugenia a partir da explicação de Afrânio Peixoto sobre o que seria esta ciência:

A eugenia, ou boa geração, reúne e propaga, depois de investigar e resolver,

os problemas biologico da gestação, para que se produzam seres sadios e

válidos, dotados de todas as qualidades requeridas para um perfeito exemplar

humano. É a aplicação serôdia, ao homem, de todos esses processos notorios em

zootécnica, pelos quaes a sciencia e a industria têm conseguido melhor e

aperfeiçoar as raças animaes. Apenas o caso humano (...) é imensamente mais

difícil de resolver, porque haverá mister de todos os estudos preparatorios

indispensaveis que produzem as convicções e ainda das condições praticas,

achadas ou procuradas para as uniões felizes e capazes de uma bôa geração. (...)

Na eugenia, com a degeneração a evitar, evitar-se-hão os criminosos de

indole, os tarados pelas reacções sociaes violentas (PEIXOTO, 1935, p.79,

grifos meu).

A eugenia foi aclamada entusiasticamente como a solução definitiva para os males

da degeneração, os bons resultados coletados do cruzamento de plantas e animais eram

visto com otimismo, como é o caso de Afrânio Peixoto, embora tivesse os que viam a

miscigenação de forma negativa e que impossibilitaria a eugenia de cumprir sua missão,

como é o caso de Nina Rodrigues. Segundo o autor “o cruzamento acaba sempre por dar

nascimento a productos evidentemente anormaes, impróprios para a reprodução e

representando na esterilidade de que são feridos, estreitas analogias com a esterilidade da

degeneração psychica” (RODRIGUES, 1938).

No entanto, um conjunto de fatores de ordem social e moral atrelados aos fatores

bio-deterministas a partir da primeira década do século XX irão se somar e culminará no

Page 72: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

otimismo regenerador da nação38. Renato Kehl. um dos nomes mais significativos do

movimento eugênico e divulgador das teorias de Galton no Brasil, participou ativamente na

fundação da primeira sociedade sobre assuntos eugênicos da América Latina em 191839, a

Sociedade Eugênica de São Paulo, e poucos anos depois foi fundada no Rio de Janeiro em

1923 a Liga Brasileira de Higiene Mental (LBHM) por Gustavo Riedel (De LUCA, 1999;

CUNHA, 1986; COSTA, 1989; MARQUES, 1994). Segundo Nancy Stepan (2005), a

maioria dos eugenistas brasileiros buscava suas bases científicas nas noções lamarckianas

de hereditariedade ao invés do mendelianismo genético que predominava na Inglaterra,

Estados Unidos e Alemanha, isto devido às estreitas relações culturais e conexões

científicas entre Brasil e França, mas não seja por isso que, a teoria de Mendel não tinha

apreciadores em nosso país, por exemplo, podemos citar o nome de Octávio Domingues.

A eugenia atuaria radicalmente sobre os fatores disgênicos e combateria na raiz a

degeneração, a “origem” de todos os males pessoais e sociais, a “anomalia” seria agora

controlada pelo homem, e isto só seria possível desde que se conheçam as leis da

hereditariedade, controlando-as poderiam: intervir no casamento para se obter uma

gravidez sadia; na imigração para melhor selecionar os imigrantes de boa prole; educar as

novas gerações a partir de seus ensinamentos; aperfeiçoar a espécie a partir da higienização

do campo e da cidade; através da educação eugênica poderiam combater mais eficazmente

o álcool e a sífilis, considerados venenos sociais e raciais; poderiam enfim esterilizar toda

espécie de degenerados evitando o nascimento de seres “monstruosos”, “anormais”, loucos

e criminosos; estudar as epilepsias e as psicopatias mais freqüentes e os meios de evitá-las.

Os objetivos da Sociedade Eugênica podem ser mais bem observados com a reprodução de

um trecho do primeiro artigo do estatuto da sociedade eugênica:

Ella estuda as leis da hereditariedade, esmiuçalha as questões da evolução e

descendencia, tirando desses conhecimentos as bases applicaveis á conservação e

melhoria da especie humana. Nesta sociedade serão discutidas as questões

38 A eugenia, assim como outras teorias europeias, não foram aceitas de maneira passiva e transferidas de modo automático para a realidade brasileira, como os debates entorno da mestiçagem era ordem do dia, houve um esforço por parte dos intelectuais da época em adaptar estas teorias e em criar um modelo teórico próprio para pensar as questões atinentes ao Brasil. 39 Entre 1918 e 1919 foi publicado o livro de Monteiro Lobato O problema vital em conjunto pela Sociedade Eugênica de São Paulo e pela liga Pró-saneamento do Brasil liderada pelo sanitarista Belisário Penna. O livro trazia estudos sobre os problemas brasileiros sob viés higienista, eugenista e sanitarista (STEPAN, 2005; MARQUES, 1994).

Page 73: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

relativas á influencia do meio, do estado econômico, da legislação dos costumes,

do valor das gerações sucessivas e sobre as aptidões physicas, intellectuaes e

Moraes, sempre tirando dessas discusões idéas mais palpaveis desta aggremiação

e ao qual dou a maior importancia, é o de divulgar, entre o publico, conhecimento

eugênicos e destinados a bem da nossa raça (...). Um dos fins, de resultados

hygienicos, que o tirem da ignorancia, no que se refere aos vicios sociaes e ás

doenças infecciosas. Por meio de conferências públicas e nas escolas, sempre

procurando mostrar o que é o alcoolismo, a syphilis, a tuberculose, ensinar como

escapar as suas garras. Entre outros fins da sociedade está o estudo da

importantíssima questão da regulamentação do meretrício (...) bem como a

importante questão do exame pré-nupcial, um dos meios de cercear a liberdade de

dar nascimento a uma prole de degenerados, de idiotas, de tarados de toda espécie

(Annaes de Eugenia 1919, pp. 6-7 apud MARQUES, 1994, pp. 53-54).

A sexualidade era um dos eixos centrais do pensamento eugênico, os eugenistas

viam o sexo como um ato procriativo bio-determinado puramente natural, a subversão desta

lei natural poderia provocar uma aversão da natureza como a sífilis, entendida como uma

reação natural contra uma conduta imoral de contra-natureza, como era entendido o

meretrício. Perante este problema que incomodava Renato Kehl, será criado o Direito

Eugênico que traria medidas de ordem profilática como a intenção de eugenizar a

população, para tanto, buscará uma multidisciplinaridade passando pela criminologia,

psiquiatria e medicina social, para fundamentar o exercício profilático da eugenia contra a

tara hereditária da loucura e do crime:

É crime contra a civilização, o descuido da geração de amanhã! Os governos têm

moralmente a obrigação de zelar pelo futuro da raça, pela qualidade dos homens,

pela saúde da população. O legislador de hoje não pode ignorar os phenomenos

biológicos da hereditariedade. E a eugenia é a religião nova que dirige os destinos

da raça humana, de modo a tornal-a mais bella, mais moralizada, mais inteligente.

(...) Se a loucura é herdada, se a tendência ao crime, se as doenças e outros

factores depressores são herdados, porque cruzar os braços ante o augmento dos

hospitais, dos asylos, das prisões? E a Eugenia não é um sonho (apud SILVA,

2005, p. 87).

Page 74: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

Segundo Kehl, a “eugenia não é um sonho”, pois se trata de uma “ciência do

aperfeiçoamento moral e físico da espécie humana”, na esperança de introduzir no Brasil os

projetos eugênicos40 aplicados com “sucesso” nos países mais “civilizados”, incentivavam

a reprodução dos mais belos, robustos e bem dotados impedindo “seja por confinamento,

esterilização compulsória ou eutanásia, dos portadores de doenças venéreas, mentais ou de

deficiências físicas; dos criminosos, alcoólatras, prostitutas, vagabundos, enfim de qualquer

um que fosse considerado socialmente inadaptado” (DE LUCA, 1999, p. 152).

Conforme Magali Engel, objetivos de implementação da eugenia nos trópicos nos

moldes europeus e norte americano só poderiam ser viabilizados mediante três eixos

principais de atuação:

Em primeiro lugar, caberia promover condições favoráveis ás “procriações sãs”,

por meio da educação eugênica. O segundo ponto fundamental seria o de evitar a

reprodução dos “homens de mal” – em oposição aos “homens de bem” ou

“normais” –, ou seja, dos degenerados – loucos, vagabundos, criminosos etc. –, já

que os “defeitos morais, físicos e psíquicos” podiam ser transmitidos

hereditariamente. (...) O terceiro eixo de atuação deveria compreender, ainda

segundo Kehl, um conjunto de medidas higiênicas que, formuladas pelos médicos

e viabilizadas por meio das leis, pelos governantes, combatessem os fatores

disgenéticos, entre os quais algumas doenças – especialmente a sífilis, a

tuberculose e o alcoolismo (ENGEL, 2001, p. 170).

A reprodução de “homens de mal” deveria ser combatida segundo duas estratégias

essenciais: a primeira se daria através do dispositivo de controle sexual, pela regulação

médica do casamento através de exame pré-nupcial de sanidade compulsório; a segunda

pela esterilização da “multidão de aberrados da natureza”, e completa Kehl, “com suas

desarmonias físicas e mentais, sobrecarregam a parte sadia e trabalhadora da humanidade”

(apud ENGEL, 2001, p. 170). A regulação eugênica pré-nupcial do casamento era uma das

ideias mais defendida por Kehl e outros eugenistas como Miguel Couto, Souza Lima,

Pereira Junior, etc., como demonstrou Engel, eles queriam que o exame pré-nupcial e a

40 De acordo com Stepan, a Sociedade Eugênica de São Paulo obteve sucesso rapidamente e, “apesar de sua eminente relação de cientista médicos – a maior parte dos quais dedicava-se à clínica médica – a Sociedade jamais realizou qualquer pesquisa. Sua principal função era divulgar a idéia da eugenia e introduzir uma nova linguagem no debate brasileiro. Temas tradicionais da medicina – alcoolismo, doenças venéreas, degeneração, fertilidade, natalidade, tuberculose – eram ligados á ‘purificação’ e a eugenização da nação brasileira” (STEPAN, 2005, p. 56). A

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proibição de formação conjugal de pessoas incapazes de gerarem filhos “saudáveis” fossem

incluídas entre as disposições do art. 219 do Código Civil. De acordo com Engel (Op. Cit.),

“pretendia-se, assim, assegurar, legal e efetivamente ao médico, o papel de representante

dos direitos da sociedade, conforme ambicionava Bougeois em 1880. Mas as intenções de

controle dos médicos iriam muito além” (ibidem, p. 171).

A eugenia não era unilateral no que concernem seus objetivos, Juliano Moreira não

compartilhava com as ideias de esterilização, segundo o psiquiatra, era mais eficiente uma

campanha eugênica de “hygiene mental” intensiva que reformasse radicalmente os

costumes a partir da regeneração. A postura de Juliano Moreira fica evidente no texto a

seguir utilizado por ele na conferência de 1928 da “Liga Brasileira de Hygiene mental”:

Já vos disse que não devemos encarar com pessimismo a herança mórbida.

Continuo a acreditar que a transmissão das taras hereditarias não é fatal e nem

sempre é progressiva de geração a geração, como a iniludível condição de que as

gerações novas sejam subtrahidas ás causas de que soffreram os ascendentes.

Que a luta contra essas influencias mórbidas se reforce por toda parte através o

territorio nacional. Devemos convencer-nos de que a nossa gente muito mais

lucrará cultivando os ideaes de regeneração do que em fixar-se nas idéas

esterilizadoras de irremediavel degenerescência (apud Revista de Criminologia e

Medina Legal, 1928, pp. 91-92).

De acordo com Jurandir Freire Costa (1989), a eugenia dispunha de medidas

análogas ao nível da psiquiatria, por exemplo, as medidas adotadas pela LBHM (Liga

Brasileira de Higiene Mental)41 como a esterilização sexual, segregação ou purificação

racial, só para citar algumas delas. A adoção destas medidas como instrumento terapêutico

é apenas uma das faces do dispositivo psiquiátrico e seu exercício de poder, cuja violação

dos direitos de preservação da integridade do corpo e da liberdade individual era uma das

características do antiliberalismo das ligas de higiene mental e sociedades eugênicas,

41 Na LBHM figuravam além de Gustavo Riedel, Renato Kehl (que ingressou depois de sua chegada no Rio de Janeiro) e muitas outras personagens como: “Felix Pacheco, Afonso Pena Jr., Guilherme Guinle e Lineu de Paula Machado, Miguel Couto, Carlos Chagas, conde Afonso Celso, Pontes de Miranda, Afrânio Peixoto, Lemos de Brito, Ataulfo de Paiva, Roquete Pinto, General Rondon, Evaristo de Moraes – perfazendo um elenco representativo de empresários, juristas, médicos e intelectuais –, ao lado dos grandes nomes da medicina mental, como Juliano Moreira, Franco da Rocha, Gustavo Riedel, Pacheco e Silva” (CUNHA, 1986, p. 167-68).

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principalmente da LBHM que apoiara a vitória antiliberal da “Revolução de 1930”, que

entravam em rota de colisão com os princípios democráticos e liberais (mesmo que seja

uma espécie de “democracia oligárquica”) os quais a Primeira República se alicerçou. A

opção terapêutica da LBHM foi escolhida de acordo com os valores e intenções morais das

elites locais, como por exemplo, o antialcoolismo que começou a ficar mais forte depois de

1926 com os pedidos para o Governo Federal sancionasse uma lei de proibição ao álcool

como a “lei seca” norte-americana. Segundo os psiquiatras da LBHM, o alcoolismo era

uma doença hereditária e se não fosse contida por ações eugênicas de prevenção por meio

da higiene mental cresceria o número de “alcoólatras degenerados” caso não impedisse a

proliferação de sua prole. Este ideal eugênico passa a ser atendido, não em sua plenitude,

com o novo governo provisório, a reivindicação dos psiquiatras se dava num momento

estratégico, pois o Brasil passava por um momento de estado de exceção (COSTA, 1989).

A principais características da LBHM, como nos aponta Costa (Op. Cit.), são: o

antiliberalismo e seu “elitismo dogmático”, o moralismo, o racismo e a xenofobia; os

membros deveriam ter “a mesma face e a mesma alma”, ou seja, partilhar dos meus valores

e ideais que eram considerados parâmetro modelar para as outras condutas, seus valores

raciais, culturais e sociais – o etnocentrismo de suas exigências moral normativas –

deveriam se constituir como norma a ser seguida pelo restante da sociedade:

Entretanto, o mais curioso é que a nova sociedade devia ser composta por

indivíduos feitos á sua imagem e semelhança. Os psiquiatras não se contentavam

em querer recriar uma sociedade nova. Eles se impunham, também, como norma

de saúde mental e comportamento social. Seus atributos étnicos, culturais e

psíquicos deveriam ser a norma para todos os indivíduos de todas as classes e de

todas as etnias. E se a herança cultural, psíquica ou biológica se mostrava

rebelde a esta conversão, o remédio proposto era a sua exterminação

(COSTA, 1989, p. 124, grifos meu).

A defesa da esterilização dos degenerados e o impedimento do casamento entre

pessoas de “hereditariedade mórbida” ganharam força na virada de século do XIX para o

XX na medicina ocidental. Morel, Lombroso e Galton, para citar alguns dos pensadores

mais influentes das ciências médicas, viam na reprodução dos degenerados que tinham o

“vício no sangue” e o “instinto do crime” a multiplicação dos delinquentes, doentes mentais

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e tarados de todos os tipos, aos seus olhos a degeneração tornou a Europa doente, o

casamento disgênico procriava “criminosos”, “dementes”, “tuberculosos”, “sifílicos”,

“tarados”, “anormais” de toda ordem e “raças inferiores” de todo os tipos fadados a uma

vida miserável predestinada às “anomalias” físicas, mentais e morais. Para expurgar o mal

que assolava a “civilização” insurge o “sacerdote de todos dos tempos modernos, o médico

pretende ser, a partir de então, juiz supremo em matéria de casamento” (DARMON, Op.

cit., p. 195).

Pacheco e Silva em seu manual intitulado Psiquiatria Clínica e Forense no capítulo

dedicado a higiene mental articula a ideia de esterilização com a educação assim como

propõem outras formas para solucionar o problema da hereditariedade dos “anormais”.

Citaremos a seguir alguns itens propostos neste capítulo:

a) O AFASTAMENTO dos elementos degenerados (...).

b) A SEGREGAÇÃO com o objetivo de evitar a procriação dos indivíduos

fadados a uma prole degenerada.

c) A ESTERILIZAÇÂO. O grande número de procriadores de indivíduos com

defeitos físicos e mentais (...) obrigou a aplicação de medidas enérgicas,

como fito de obstar o aumento assustador de elementos que representam um

pêso morto para a sociedade (...).

d) A SUPRESSÃO. Alguns autores, extremamente radicais, vão ao ponto de

propor, como ENGEL, a supressão pura e simples dos indesejáveis, com o

fito eugênico e humano, acreditando poder dessa forma pôr termo ao

sofrimento dos seres degenerados, aos quais está reservada uma vida de

miséria e sofrimento.

e) A EDUCAÇÃO. Segundo a moral eugênica deve-se, como princípio

educativo, desenvolver, em todo cidadão, a responsabilidade da raça (...), um

apelo às faculdades da inteligência e da responsabilidade moral do homem.

(PACHECO e SILVA, 1951, pp. 201-2)

Conforme Darmon, o problema da degeneração e da hereditariedade levou aqueles

que combatiam os “males da raça” a pensarem soluções extremas e inconsequentes, além

da esterilização, especulavam sobre a castração e a execução como medidas que

assegurariam a “regeneração da humanidade”. Um dos árduos defensores da castração dos

degenerados era o médico parisiense Dr. Mazier, a sua tese de 1895 intitulada A

Page 78: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

degenerescência da espécie humana, suas causas principais tinha as teorias de Morel e

Lombroso como pano de fundo de suas formulações e via na procriação “de criaturas

horrivelmente degeneradas” um “desastroso futuro” para “espécie humana” e o único

remédio para esta “ameaça” era a “castrar os degenerados inúteis ou suprimi-los de uma só

vez”. Algumas vozes ressoavam a favor da castração de criminosos como Viaud-Bruant e

Dr. Servier. Segundo o Dr. Servier, os crimes tinham “origem na hereditariedade

patológica” e a “cópula dos assassinos reserva uma ameaça constante para o futuro em

razão da má qualidade provável dos produtos que dela resultarão”, portanto, somente a

castração impediria a proliferação dos criminosos. Para Viaud-Bruant a castração não

deveria se restringir somente aos criminosos, mas deveria ser executada em todos os

indivíduos taxados de “anti-sociais”, a castração do “apache”, classificado como uma classe

de “anti-social”, resultaria na destruição dos “germes viciados” na fonte, pois impediria a

“polulação dos animais nocivos” e traria uma vantagem em relação à pena de morte, a

prisão ou o trabalho compulsório, seria uma pena alternativa mais eficaz (apud Ibidem, pp.

200-01).

Cesare Lombroso era um dos partidários assíduos da pena de morte, o criminoso

nato era ontológica e naturalmente criminoso e louco impossível de ser corrigido e tratado,

nascido para o mal não faria outra coisa a não ser praticar o mal, um “monstro” que só

cometeria assassinato e eliminando-os fariam um “bem social” evitando o fim de muitas

vidas. Para Lombroso, como nos mostra Darmon, os crimes de anarquia ou políticos

deveriam ser penalizados, o anarquista era um “degenerado moral” com “propensão ao

mal” e mesmo sendo partidário fanático da pena capital se posicionava contra sua aplicação

ao crime político, pois não seria suficiente neste caso, a ideia não morreria com seus

autores e a pena de morte como suplício exaltaria o criminoso como um mártir. A crença de

exemplaridade da pena capital42 e a crença de que bastava uma execução para intimidar os

42 De acordo com Clayton Reis, a pena de morte vigorou no Brasil até o Império e foi banida com a primeira constituição republicana de 1891. Um dos últimos enforcamentos ocorreu em 7 de mar. de 1855, quando Motta Coqueiro - fazendeiro de Macabu - recebeu a pena capital. O crime de Motta Coqueiro foi de ser mandante do assassinato de Francisco Benedito, camponês que vivia em suas terras, sua esposa e seus cinco filhos. Três assassinos invadiram a casa de Benedito à noite e mataram as 7 pessoas a facadas. Depois, atearam fogo. O crime chocou toda a região. A população em seguidas manifestações exigia o enforcamento do acusado, pressionando a Justiça. Motta Coqueiro depois de um mês foi encontrado e preso. Durante todo o processo ele negou envolvimento no crime. Mesmo pedindo apelação não conseguiu reverter a pena. Em suas cartas à família, com grande desespero, deixava claro que não possuía nenhuma relação com o acontecido. No

Page 79: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

criminosos não traria os resultados tão esperados na luta contra o crime, e unicamente a

execução eliminatória seria eficaz no combate ao criminoso nato o qual deveria ser

extirpado para livrar-se do mal e evitaria ao paciente um sofrimento inútil. O paradoxo do

médico residiria agora na busca de técnicas que melhor se aplicariam a morte, técnicas

científicas e eficazes que não derramassem sangue, não mutilasse o corpo e distante de

todos os métodos “bárbaros” do suplício:

Nada disso é muito científico. Ora, a execução capital é coisa muito séria para ser

entregue ao arcaísmo artesanal. Por toda parte os médicos penalistas reclamam,

portanto, não só a abolição da publicidade dada a tais exibições, já que a

exemplaridade do castigo não passa de um engodo, mas também a adoção de um

sistema de eliminação medicinal inspirado pela medicina.

Na Itália, Lombroso imagina a instalação de câmaras de gás onde os condenados

seriam asfixiados em meio a alucinações “agradáveis” causadas por emanações

de éter ou de clorofórmio. Na França, o Prof. Lacassagne também propõe

anestesiá-los, e, nos Estados Unido, o Prof. Packard, de Filadélfia, acha que seria

mais simples fazê-los respirar o óxido de carbono, depois de tê-los fechado numa

cela hermética. (...) De todas essas invenções foi, no entanto, a cadeira elétrica

que, inventada pelos médicos americanos em 1888, iria alcançar a glória (Ibidem,

pp. 186-87).

Podemos observar com essa série de medidas, projetos e especulações sobre a

necessidade de políticas de esterilização, castração e exterminação do criminoso, do louco,

do anti-social, em suma de todos os degenerados nos remetem a questão do “monstro”, do

“anormal”. No Brasil a questão da castração e exterminação em série dos degenerados não

teve a mesma intensidade como nos países europeus e nos Estados Unidos, mas as

campanhas de esterilização, regulamentação do casamento e as políticas de normatização

de todas as instâncias sociais, sobretudo, a justiça e a saúde, e foram, seja parcial ou

completamente, incorporadas e desempenharam um papel crucial na nova configuração do

Estado que buscava incessantemente se modernizar. O que está no centro deste jogo é o

domínio da gerência e administração da vida por parte do Estado, a assunção da vida pelo

poder e a estatização do biológico no controle da vida e da morte.

dia de seu enforcamento rogou uma praga à cidade de Macaé: por 100 anos a cidade ficaria estagnada (REIS, 2001).

Page 80: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

Conforme Foucault (2005), a teoria da degeneração tem como problema principal a

sexualidade, pois ela está no foco principal das doenças da hereditariedade e no núcleo da

degeneração, surge assim o ponto de articulação do poder disciplinar e de um poder

regulamentador, e o conjunto de saber técnico constituído pela medicina e higiene, portanto,

emergirá no século XIX um elemento importante nas influências científicas sobre os

processos biológicos como técnica política de intervenção sobre o corpo e a população. “A

medicina é um saber-poder que incide ao mesmo tempo sobre o corpo e sobre a população,

sobre o organismo e sobre os processos biológicos e que vai, portanto, ter efeitos

disciplinares e efeitos regulamentadores” (FOUCAULT, 2005, p.302). O elemento que

circula entre a disciplina e a regulamentação é a norma, que pode ser tanto aplicado a um

corpo que se quer disciplinar quanto a uma população que se quer regulamentar.

O poder disciplinar opera pela vigilância hierarquizada, pela sanção normatizadora e

pelo exame, uma tecnologia de poder que atua na centralização e normatização do corpo

individual e na vigilância espacial entre as técnicas de visibilidades e as estratégias

disciplinares da ortopedia por meio da correção e da punição, o panóptico como projeto

arquitetônico e instrumento de controle disciplinar não se restringe ao âmbito da prisão, ele

se generaliza pelos manicômios, asilos, hospitais, escolas e qualquer outro local o qual as

pessoas precisam ser vigiadas e mantidas sob inspeção. “Os dispositivos panóptico organiza

unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente” (FOUCAULT,

2006c, p.166). O poder disciplinar se exerce por um dispositivo que obrigue pelo jogo de

olhar, um aparelho que se organiza de forma múltipla, automática e anônima, e os meios de

coerção se tornam visíveis claramente aqueles sobre quem atua, produz efeitos

individualizantes sobre o corpo manipulando-o de forma a se tornar em corpo útil e dócil,

sendo assim, “o poder na vigilância hierarquizada das disciplinas não se detém como uma

coisa, não se transfere como uma propriedade: funciona como uma máquina (...) o que

permite ao poder disciplinar ser absolutamente indiscreto, pois está em toda parte e sempre

alerta” (Idem, p.148).

A sociedade de normalização, como bem salientou Foucault, não é uma sociedade

disciplinar generalizada onde as instituições disciplinares foram banalizadas encobrindo

todos os espaços, pelo contrário, e sim uma nova tecnologia de poder que se introduziu,

integrou e se implantou em conjunto com o poder disciplinar e não substituindo-o, mas se

Page 81: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

organizando num nível mais amplo, não se atendo somente as individualidades e operando

no plano do controle da população como um todo:

A sociedade de normalização é uma sociedade em que se cruzam, conforme uma

articulação ortogonal, a norma da disciplina e a norma da regulamentação. Dizer

que o poder, no século XIX, tomou posse da vida, dizer pelo menos que o poder,

no século XIX incumbiu-se da vida, é dizer que ele conseguiu cobrir toda a

superfície que se estende do orgânico à população, mediante o jogo duplo das

tecnologias, de uma parte, e das tecnologias de regulamentação, de outra

(FOUCAULT, 2005, p. 302).

Conforme Foucault, o que vemos nestas políticas de esterilização, castração,

execução e isolação dos degenerados, dos indivíduos perigosos, dos anormais é um poder

que se ocupa em gerenciar tanto o corpo quanto a vida atravessando os pólos do corpo e da

vida, uma nova tecnologia de poder que tem por objeto e por objetivo a vida, esse poder foi

chamado por Foucault de Biopoder (FOUCAULT, 2005). O biopoder gerencia a vida

doravante os problemas provocados com a emergência da categoria população, o foco se

desloca para o prolongamento da vida, a manutenção da homeostase normalizada, controle

da mortalidade, previsão dos riscos e dos perigos, essas seguridades exercem um poder que

prioriza a vida no lugar da morte – “fazer viver e deixar morrer” –, como na soberania cujo

é a morte que tem primazia sobre a vida – “fazer morrer e deixar viver” –, ou seja,

(...) uma das mais maciças transformações do direito político do século XIX

consistiu, não digo exatamente em substituir, mas em completar esse velho

direito de soberania – fazer morrer ou deixar viver – com outro direito novo, que

não vai apagar o primeiro, mas vai penetrá-lo, perpassá-lo, modificá-lo, e que vai

ser um direito, ou melhor, um poder exatamente inverso: poder de “fazer” viver e

de “deixar” morrer. O direito de soberania é, portanto, o de fazer morrer ou de

deixar viver. E depois, este novo direito é que se instala: o direito de fazer viver e

de deixar morrer (Idem, p.287).

Essa “engenharia política” e sua eficácia prático-discursiva se da nas condições

estratégicas do poder na complexidade do campo de forças em que atua, a sociedade, como

é o caso do discurso psiquiátrico e eugênico que no Brasil durante as décadas de 1920 e

Page 82: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

1930 ampliava o campo biológico de intervenção da medicina ulterior aos muros do

manicômio, do asilo, do hospital e do tribunal invadindo o corpo social, controlando a vida

e regulamentando a população. Contudo, de acordo com Foucault, algumas questões são

cruciais para entendermos este fenômeno: Como um poder que tem por objetivo fazer viver

pode deixar morrer? Como foi possível a conversão de um poder que se dirigia para o

prolongamento, melhoria e multiplicação da vida passou a se dirigir para morte? “Como,

nessas condições, é possível, para um poder político, matar, reclamar a morte, expor à

morte não só seus inimigos mas mesmos seus próprios cidadãos?” (Ibidem, p. 304). Para o

autor, o exercício do poder de morte num sistema político sob a égide do biopoder só é

possível com a emergência da raça e o controle biológico da vida, ou melhor, o racismo:

Com efeito, o que é racismo? É, primeiro, o meio de introduzir afinal, nesse

domínio da vida de que o poder se incumbiu, um corte: o corte entre o que deve

viver e o que deve morrer. No contínuo biológico da espécie humana, o

aparecimento das raças, a distinção das raças, a hierarquia das raças, a

qualificação de certas raças como boas e de outras, ao contrário, como inferiores,

tudo isso vai ser uma maneira de fragmentar esse campo do biológico de que o

poder se incumbiu (...). Isso vai permitir ao poder tratar uma população como

uma mistura de raças ou, mais exatamente, tratar a espécie, subdividir a espécie

de que ele se incumbiu em subgrupos que serão, precisamente, raças (Ibidem, pp.

304-5).

É preciso tornar a sociedade “pura” e “sadia”, a regulamentação da vida e o cuidado

com a pureza da população será incumbência do Estado e a medicina será decisiva para

sistematização do poder no campo de intervenção biopolítica, resguardar a vida das

incapacidades biológicas e suas influências sobre o meio social permitindo uma intervenção

médico-policial sobre o controle urbano. A patologização do crime invade o campo jurídico,

o crime transforma-se em “doença” deixa de ser um fenômeno exclusivamente da ordem

jurídico-social para se tornar um fenômeno biológico, ou melhor, bio-social e não apenas o

louco, mas também o louco criminoso, o criminoso nato são também degenerados e suas

“doenças” contaminam a sociedade “sadia” e o racismo vai operar de forma múltipla no

centro deste processo mesmo que superficialmente nos apareça maniqueísta, ou seja,

“normal” e “anormal”. A purificação social se dará pela depuração racial e distinção dos

Page 83: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

tipos raciais como critério de qualificação das raças “boas e sadias” as quais devem

preservar e multiplicar a vida e, das raças “inferiores e doentes” as quais devem ser

eliminadas ou exterminadas.

De acordo com Foucault, o racismo não se exerce somente pela “negatividade”, o

racismo terá uma segunda função de positividade, quanto mais deixar morrer a raça “ruim”,

mais se fará viver a raça “sadia”, e esta maneira que o racismo se exerce é próximo à

relação guerreira a qual consiste na necessidade de matar o inimigo para se manter vivo,

com efeito, o racismo inova e atualiza essa relação guerreira de maneira a convergir para o

exercício do biopoder no plano biológico entre a vida que deve viver e a morte do outro:

(...) “quanto mais as espécies inferiores tenderem a desaparecer, quanto mais os

indivíduos anormais forem eliminados, quanto menos degenerados haverá em

relação à espécie, mais eu – não quanto indivíduo mas enquanto espécie – viverei,

mais forte serei, mais vigoroso serei, mais poderei proliferar”. A morte do outro

não é simplesmente a minha vida, na medida em que seria minha segurança

pessoal; a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior (ou do

degenerado, ou do anormal), é o que vai deixar a vida em geral mais sadia: mais

sadia e mais pura (Ibidem, p. 305).

A partir das análises empreendidas por Foucault (2002; 2005), podemos

compreender a inserção da psiquiatria no dispositivo de defesa social, ela se torna em uma

ciência de proteção científica da sociedade e biológica da espécie, e tendo por base

epistemológica o evolucionismo da teoria da degeneração surgida em meados do século

XIX como ciência da hereditariedade conjuntamente com a eugenia nasce um outro tipo de

racismo que não vai anular o já existente, o que Foucault chamou de “racismo étnico”, mas

um racismo contra o anormal podemos nomear de raciologia, aquele que por ser

degenerado traz consigo um perigo hereditário e uma ameaça patológica a sociedade sadia.

Para extirpa suas características indesejáveis, os males biológicos e sociais propiciados

pelos “anormais” e pelos indivíduos perigosos (o louco, o criminoso nato, o psicopata, o

“anti-social”, etc.) não precisam efetivamente da pena capital, da castração esterilização43,

43 As propostas de obrigatoriedade da esterilização no Brasil foram rejeitadas, mas não por isso tiveram um fim definitivo, Renato Kehl foi o principal defensor e divulgador da esterilização. A eugenia não era uníssona no Brasil, havia conflitos teóricos e divergência de vertentes teóricas como é o caso de Octávio Domingues

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pode ser feito positivamente pelo simples fato de deixarem morrerem, ou seja, “de expor à

morte, de multiplicar para alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte política,

a expulsão, a rejeição, etc.” (FOUCAULT, 2005, p.306). O que se pretende é a eliminação

do perigo biológico que coloca em risco a espécie, a positividade do Biopoder é verificável

quando o Estado intensifica vulnerabilidades aos indesejáveis, o fato de expor á morte e

deixar que a própria natureza encarregue da eliminação biológica do mal, assim pensava

Franco da Rocha que se posicionava contra a esterilização e a pena de morte de certos

degenerados e criminosos como ocorria nos Estados Unidos, “era partidário da tese de que

nos degenerados a capacidade de reprodução tenderia a se extinguir, já que a própria

natureza encarregar-se-ia de ‘cercear o mal, impedindo aos monstros o poder de se

propagar’” (ENGEL, 2001, p.172). A tese da extinção natural dos degenerados de cunho

escancaradamente darwinista pode ser bem observada na fala de Afrânio Peixoto:

A degeneração, que tantas causas sociaes e patologicas possue, accentua-se

agravada pela convergencia forte, atinge a esterilidade, que suprime o

indivíduo, poupando a especie: antes disso, infelizmente, os loucos, os

deficientes, os aleijados, os criminosos... causam aos sãos sérios distúrbios,

prejuízos, emquanto a piedade lhes vai ao encontro para aliviá-los e corrigi-

los, até que a seleção natural da morte os suprime, para a felicidade geral.

Quanta maldade inconsciente de permeio, que se poderia ser evitada! (PEIXOTO,

1935, p.79, grifos meu).

O que vemos emergir no Brasil desde meados do Império e que se tem intensificado

nas décadas de 1920 e 1930 entre as teorias biológicas do século XIX e o discurso do poder

é o surgimento de uma psiquiatria que sai dos asilos e invade o cotidiano, como higiene

pública e depois como regulamentação da vida biológica, detecta e codifica um perigo

social como doença objetivando se legitimar como um saber-poder de intervenção

que era contra a obrigatoriedade da esterilização e do exame pré-nupcial e a favor de uma educação eugênica amplamente divulgada pela imprensa, pela escola, pela academia, pela igreja e pelo Estado estimulando uma “consciência eugênica” que doutrinaria a população fazendo com que as pessoas fizessem o exame pré-nupcial, sendo assim espontaneamente os próprios “aberrados” evitariam de se propagarem (STEPAN 2005). Conforme Sergio Carrara (1998) a adoção do exame pré-nupcial no Brasil foi prevista na Constituição de 1934, mas não houve nenhuma lei que regulamentasse o exame, definitivamente o país nunca implantou o exame compulsório, porém, não podemos descartar a possibilidade do exercício desses exames sem a tutela da lei e de forma clandestina para fins científicos.

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científica e autoritária de proteção social capaz de identificar e mostrar o perigo por ser um

conhecimento médico. A psiquiatria no decorrer do século XIX teve como principais

problemas a loucura e a criminalidade e sempre procurou e procurará desvendar os

segredos dos crimes, e seu interesse pela loucura que mata foi no sentido de se constituir

como um saber e poder de proteção da sociedade, a loucura criminal possibilitou a

patologização do crime e de todos os comportamentos “anti-sociais”, imprevisíveis por

irromper abruptamente num crime, e somente a medicina mental será “capaz de reconhecê-

lo, quando se produzem, e no limite prevê-los, ou permitir prevê-los, reconhecendo a tempo

a curiosa doença que consiste em cometê-los” (FOUCAULT, 2002, p.152). A psiquiatria

com base na teratologia visará encontrar o monstro que se oculta por traz não apenas dos

crimes mais “cruéis”, mas de todos os pequenos crimes. O monstro é aquele que subverte

as leis da justiça, as leis naturais, as leis da sociedade, violando não somente as normas

biológicas mas também o direito constituído, portanto, não é o crime que é monstruoso e

sim monstro que é criminoso. A partir de então, algumas questões acerca da periculosidade

do criminoso será colocado ao psiquiatra pelo tribunal, assim como posto pela antropologia

criminal sobre o criminoso nato: “O indivíduo é perigoso? O réu é acessível a pena? O réu

é curável?” (Idem, p.404).

O criminoso psiquiátrico é descriminalizado da responsabilidade civil e passa a ser

inimputável ou passível de imputabilidade sem liberdade, independente de seu estatuto ele

é definitivamente perigoso, conforme as formulações da antropologia criminal, pelo seu

alto índice de probabilidade criminal ele é intrinsecamente criminoso constituindo-se como

um risco eminente de crime. E qual é sua pena? Uma das vitórias da psiquiatria e da

antropologia criminal e de seu bio-determinismo foi a construção do Manicômio Judiciário

de São Paulo em 1927 sob a direção de Antonio Carlos Pacheco e Silva que deu sequência

ao projeto de Franco da Rocha, portanto, a pena é ser recluso neste estabelecimento

ambivalente – psiquiátrico/ jurídico – que é mais um mecanismo de defesa social do que de

punição. Esta penalização dos “loucos criminosos” não é apenas um mecanismo de

apartamento social, mas de isolamento indeterminado e de eliminação desses “indivíduos

perigosos” ou do refugo humano da sociedade.

A medicalização do “anormal” verá no controle das anormalidades ou anomalias

uma profilaxia da degeneração, e é o problema da degeneração reposto na árvore da

Page 86: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

hereditariedade que a psiquiatria incidirá sobre o corpo e a população como dispositivo de

segurança e defesa social e o racismo se torna algo eminente, o racismo contra o anormal

conjuntamente com o racismo étnico. Contudo, trata-se de um racismo que não terá por

objetivo a prevenção ou a defesa contra o outro, objetivará no interior mesmo de uma

população detectar quem são efetivamente os indivíduos perigosos, quem são portadores de

perigo contra a espécie, operando no nível da positividade, da sobrevivência da “espécie”, o

biopoder é ambivalente. O racismo constituído no interior de uma sociedade como meio de

defesa interna, possibilitou nascimento da antropologia criminal e da eugenia articulando-se

com a psiquiatria e a medicina social permitindo filtrar, selecionar, expulsar, segregar,

eliminar ou mesmo exterminar qualquer indivíduo “anormal” nela existente (como o caso

extremo do nazismo). Este racismo e seus mecanismos biopolíticos continuam operando

cotidianamente de forma multifacetadas escancarada no mass-mídia e disseminadas

socialmente, portanto, mesmo se tratando do passado, o “degenerado” ganha novas

roupagens no discurso demagógico jurídico, psiquiátrico, psicológico e jornalístico, o bio-

determinismo continua vivo e travestido em supostos problemas sócio-políticos e a

patologização do crime é uma constante com a fabricação incessante de “crimes cruéis” e

“crimes monstruosos” consubstanciado pelo apelo indignado da pena capital contra a figura

teratológica – ou mesmo mitológica – do “monstro criminoso”. São essas perdurações e

mutações do racismo étnico e científico, a raciologia, que demonstram a atualidade das

problemáticas aqui analisadas e que merecem uma nova pesquisa, pois esta pesquisa de

maneira alguma encerra este debate, muito pelo contrário, é o ponto de partida.

Page 87: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

CONSIDERAÇÕES FINAIS O “individuo perigoso”, mas precisamente o “anormal”, derivado da exceção

jurídico-natural do monstro foi, não somente na Europa e Estados Unidos mas também no

Brasil no decurso do Século XIX e XX, objeto de variadas instituições, saberes e discursos

que partir da teoria geral da degeneração de Morel justificará todas as técnicas de detecção,

classificação e intervenção social inicialmente concernente aos “anormais”e depois se

espalhando por toda a população em graus variados, sendo assim, engendrou uma

complexidade de redes institucionais estruturadas como receptáculos para os “anormais” e

instrumentos de “defesa social” atrelados aos mecanismos de poder que circula entre a

medicina e a justiça aplicando a norma para disciplinar o corpo e regulamentar a população.

A teoria da degenerescência no controle da sexualidade, esta por sua vez está no

centro das doenças individuais e da degeneração, exercerá a disciplina e a regulamentação,

do corpo e da população e controle da vida biológica, o condicionamento coercitivo e a

constituição do indivíduo como unidade patológica na fabricação dicotômica de sujeitos

“normais” e “anormais” para exilar, prevenir ou regenerar moralmente o homem. A

antropologia criminal, mesmo condenada ao limbo da história cuja existência tem que se

esquecer, é reanimada diariamente no século XXI pelo sistema penal e pela psiquiatria

contemporânea incidindo muitas vezes no dispositivo judiciário e nas políticas de

segurança pública, a partir da reativação incessante das questões colocadas pelo tribunal à

psiquiatria do século XIX e primeiras décadas do século XX amparada pelo bio-

determinismo da degeneração – a periculosidade do sujeito criminoso.

O “criminoso nato”, o “monstro”, o “anormal”, os “indivíduos perigosos” de toda

espécie, segundo uma rede de teóricas de diferentes áreas do saber científico – abordado ao

longo da pesquisas –, são frutos da degeneração, ou melhor, da teoria da degeneração

pautada pelo bio-determinismo erguida sobre o problema da hereditariedade a qual foi

centro de intensos debates no Brasil desde meados do século XIX, sobretudo em São Paulo

entre as décadas de 1910 e 1930, entre juristas, criminologistas, médicos, psiquiatras,

eugenistas e autoridades públicas sobre as “causas” do crime e da loucura e, principalmente

sobre as “causas” do “enfraquecimento” biológico da raça e do homem enquanto “espécie”,

cujo evolucionismo atravessou do começo ao fim todas as discussões entorno dos perigos e

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da regulamentação da vida e da morte. A exclusão social, a criminalização da pobreza, a

medicalização da sociedade, a fabricação de doenças (hoje em dia sob o rótulo de “doenças

modernas”) a patologização do crime e a eliminação física – implícita ou explicita, como o

caso do extermínio indígena que ainda hoje não para de cessar – que culminaram na

República, ainda permanece em nossos dias de forma metamorfoseada e mascarada. O

extermínio do “refugo humano”: os indesejáveis, os “anormais”, os “monstros”, os

marginalizados de toda ordem – as “vidas matáveis” –, é reativado cotidianamente pelo

medo generalizado e pela banalização da fórmula perversa das políticas de segurança

pública sob a égide da “tolerância zero”.

A fórmula “fazer viver e deixar morrer” é exercida pelo soberano, ou seja, o Estado,

o “genocídio” desse contingente se da nos moldes agora do Biopoder, a regulamentação da

vida pelos imperativos da segurança e da saúde – eugenia neoliberal e os projetos genéticos

e biotecnológicos – se dão também pela positividade do poder, assim como o corpo tem que

expurgar os vírus e bactérias para “revigorar-se” e manter-se “belo” e “saudável”, a

sociedade tem que eliminar suas “bactérias” e “vírus” (a criminalidade, a loucura, o tráfico,

a pobreza, a mendicância, a prostituição, etc.) para o revigoramento do “corpo social”, esta

metáfora organicista persiste subjacente aos discursos políticos em seu âmago um

continuum biológico-metafísico.

As guerras se constituem como mecanismo capilar do Biopoder – não trata aqui

somente de guerra entre Estados, mas na guerra que da no interior de um Estado, de uma

População é exercida: “guerra ao crime”, “guerra às drogas”, etc. –, quando se encontra em

seus limites de atuação e engendram-se no ponto urgente da emergência do racismo e da

raciologia. Trata-se, desse modo, de um continuum histórico-político da luta das raças, na

medida em que o funcionamento assassínio dessa política de controle das contingências e

“preservação” de certo estatuto civil numa sociedade sustentada pelas estratégias de poder

no qual ativam normatizações, patologizações, criminalizações e exclusões prementes,

tantas outras derivações de domínio de determinados grupos e setores sobrepujando outras

populações acerca de incisivos sistemas de produção de subjetividades xenofóbicas e

xenofílicas, ou seja, o “corpo estranho” entre a eficácia e agenciamentos discursivos dos

valores tecnologicamente generalizados, produz mecanismos de segurança a partir do

“esclarecimento” da manutenção biológica do poder, executando dispositivos para a

Page 89: Da patologização do crime à racialização da anormalidade

asseguração geral e homeóstase da vida social que se operacionam no instante prático de

suas extremidades, no vetor de saída do elemento viver, cujo seria a função sistemática do

direito legítimo de matar – seja a morte concreta do corpo ou a morte social e simbólica do

“sujeito”.

Se as “leis da natureza” não servem mais como táticas de juízo às “espécies

humanas”, surgem novas estratégias do uso epistêmico nas relações guerreiras, uma forma

de saber sobre as lutas entre as redes do historicismo consubstanciadas pelo racialismo, este

modo de fomentar a guerra pela “História” e, a “História” como destino para fazer guerrear,

essa biopolítica articula-se na máquina de regulamentação populacional da vida e da

“espécie” no campo de fora do pacto de soberania sistematicamente forjados pelos

alinhamentos do exílio, políticas de inclusão excludente, exposição de seus próprios

“cidadãos” a morte, a emergência do Estado de exceção e leis de extermínio, explicita ou

implicitamente declaradas. Todas estas problemáticas que emerge a partir da historicidade

destas práticas de controle social e político da vida, a Biopolítica, são questões para mais

outros capítulos...

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