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A pedra, o zig-zag, a espiral - errância na escrita comparatista

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Íntegra do trabalho apresentado em comunicação no VII Congresso Internacional da APLC: Pensar o Comparatismo: Percursos, Impasses e Perspetivas ( Congresso Comemorativo dos 25 anos da Associação Portuguesa de Literatura Comparada) AVEIRO, Dezembro de 2012.

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A PEDRA, O ZIGUE-ZAGUE, A ESPIRAL

Ana Lúcia Beck – UFRGS/Doutorado em Literatura Comparada

Falamos, e as palavras precisas, rigorosas, não se preocupam conosco, não são

nossas senão por essa estranheza que nos tornamos para nós mesmos.1

Pensar o comparatismo inclui pensar sobre os modos, maneiras, abordagens e

metodologias de enfoque comparatista. Pensar o comparatismo é voltar-se à literatura em seu

aspecto mais singelo: recuperar a admiração pela palavra e suas imagens. Independente do objeto

de estudo, seja este literário ou plástico-visual, o enfoque comparatista pressupõe e origina certo

trajeto, certo olhar para com os objetos. Propor-se pensar o comparatismo permite, neste sentido,

que se amplie o trajeto e o olhar até sua origem identificada naquele que olha, naquilo que aquele

olha, ou naquilo que nos olha2. Sim, é destas reincidências, dessas aparentes redundâncias que se

faz o olhar, reolhar, pensar, repensar comparatista. É com base nessas perspectivas que

apresentamos essa reflexão sobre o trajeto e o pensar comparatista, e propomos ampliar esse

trajeto até seu objeto de estudo específico: as obras plásticas de Louise e Leonilson.

Louise Bourgeois é uma artista plástica franco-americana, considerada uma das maiores e

mais significativas artistas do século XX. Nascida na França em 1911, Louise viveu a maior parte

de sua vida nos EUA, vindo a falecer em 2010. A carreira com as artes plásticas iniciou cedo com

cursos em ateliers de diferentes artistas modernos ainda em Paris. Sua obra é rica em

procedimentos e materiais. Louise trabalhou com esculturas em ferro, aço, mármore, resina e

1 Maurice Blanchot, O livro por vir (São Paulo: Martins Fontes, 2005), p.216.

2 Georges Didi-Huberman, O que vemos, o que nos olha (São Paulo: Editora 34, 1998).

pedra, objetos em madeira e tecido, assemblages, desenhos, pinturas, gravuras. É famosa por suas

gigantescas esculturas de aranhas e, não bastasse toda esta variedade de técnicas e materiais, a

complexa teia através da qual sua poética flui, ainda escreveu – poesia, eu diria – em desenhos,

gravuras, bordados, em milhares de cadernetas, cadernos, diários, anotações e entrevistas sobre

sua vida e seu processo plástico. Foram mais de 70 anos de produção ininterrupta. Louise

começou a produzir na década de 30, período de formação em diferentes escolas e estúdios de

artistas, realizando exposições intermitentemente e mantendo a criação até o ano de sua morte,

quando se inauguraram três exposições suas com trabalhos inéditos3.

Leonilson (José Leonilson Bezerra Dias, 1957 – 1993) foi um dos expoentes da Geração

80, momento historicamente significativo para as artes visuais brasileiras. Desde o início de sua

carreira, teve sua obra reconhecida pela crítica. Postumamente, continua tendo sua obra

valorizada e reconhecida nacionalmente e internacionalmente. Apesar da morte precoce, em

menos de duas décadas, Leonilson desenvolveu uma obra rica em quantidade e técnicas. O

Projeto Leonilson4, que hoje abriga e cataloga a obra do artista, conta com 3000 obras

catalogadas, e estas sabe-se, não são tudo o que o artista realizou entre as décadas de 80 e 90.

Dentre as obras catalogadas, encontram-se desenhos, pinturas, gravuras, pequenas esculturas,

trabalhos em tecido, bordados e objetos feitos em diferentes materiais. Há também cadernetas,

correspondências, cartões postais, livros, entre outros materiais que ampliam a relação de sua

obra com o universo literário, assim como ampliam a presença da palavra no universo plástico5.

A palavra em Leonilson, assim como em Louise, ocupa espaço tanto na obra plástica,

como em anotações e reflexões sobre seus próprios processos criativos. Não nos aprofundaremos

de forma metódica na análise das obras ou dos processos criativos de ambos os artistas.

Investigaremos em sobre olhar o espaço que há, que se cria, entre estes pontos de ressonância: a

obra de Louise, a obra de Leonilson – suas palavras e imagens. É em seus processos criativos e

nas marcas destes nas obras finalizadas, assim como em seus depoimentos e reflexões sobre estes

3 Em 2010, Louise inaugurou exposições em Veneza, Londres e Vardo. Philip Larrat-Smith,

Louise Bourgeois: O retorno do desejo proibido (São Paulo: Instituto Tomie Ohtake, 2011) p.

287. 4 Para conhecer mais, acesse: www.projetoleonilson.com.br.

5 A relação entre palavra e imagem na obra de Leonilson foi estudada de maneira mais

aprofundada em trabalho realizado anteriormente. Quanto a esta questão específica sugiro: Ana

Lúcia Beck, Palavras fora de lugar: Leonilson e a inserção de palavras nas artes visuais.

(Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: PPGAV/UFRGS, 2004. Disponível em:

http://issuu.com/palavraimagem/docs/palavras_fora_de_lugar).

processos, que ambos desenham o trajeto que aqui nos interessa; o desenho de analogias

possíveis.

Trajeto é ideia mais ampla que se refere ao deslocamento no espaço e não se refere,

necessariamente, a uma movimentação finda. O trajeto que se propõe adentra o universo

comparatista e o espaço de criação poética plástica e verbal. Desejamos percorrer, refazer,

transitar em memória e imaginação pelo espaço criativo de dois artistas basilares para uma

reflexão sobre o trânsito palavra-imagem no processo de criação nas artes visuais e na poesia.

Avante ao espaço comparatista!

A pedra

Necessitava de um peso que não encontrava. Algo que lhe permitisse marcar e parar no

tempo, num ponto determinado da leitura que avançava pouco a pouco aleatoriamente. Peso que

permitisse iniciar a escrita. A pedra recolhida milênios antes na beira de praia. Na beira da praia,

posto que a praia, mais do que espaço ou lugar lhe era um além: “A identidade de um objeto

consigo mesmo somente deixa de ser um fato trivial quando este se afirma no tempo, resistindo

às suas vicissitudes.”6 Resistia ao tempo praia feito areia da beira do mar. Insistia em tempo

pedra? Lembrou-se das pedras com frases e palavras escritas em nanquin preto que haviam lhe

auxiliado a vislumbrar um ponto de escrita anos antes. Erigir ou coleção de pedras? Virou o livro

que estava aberto de cabeça para baixo ao seu lado e tentou colocar sobre ele a pedra na tentativa

de manter as páginas abertas. Buscava talvez a “solidez em que pudesse confiar e que tornaria o

mundo previsível e, portanto, administrável.”7 Recurso parcamente eficaz, visto que àquela pedra

de forma irregular era necessário encontrar um ponto qualquer de equilíbrio – um ponto de

anulação das forças umas pelas outras – que lhe permitisse manter-se em certo ponto de leitura:

escrever.

6 Georg Otte, “Uma pequena história do espaço (e do tempo)” (Aletria, 15, 2007), p. 239.

7 Zygmunt Baumann, Modernidade líquida (Rio de Janeiro: Zahar, 2001), p. 10.

8

A pedra insistia em seu jogo de forças. Seus pontos de desequilíbrio – desejo lhe dizer.

“Desejar é a coisa mais simples e humana que há. Por que, então, para nós são inconfessáveis

precisamente nossos desejos, por que nos é tão difícil trazê-los à palavra? [...] O corpo dos

desejos é uma imagem. E o que é inconfessável no desejo é a imagem que dele fizemos.”9

Desejei em gesto o equilíbrio da pedra. Desejando um mundo menos contraditório, que meu

universo se equilibrasse por completo. Percebo, porém, em tal desejo, enorme descuido ao

reconhecimento do que nos move na vida. Se há uma imagem de desejo, de equilíbrio, de peso,

de começo, também há a oposição de forças, internas e externas, reais e imaginárias, físicas e

simbólicas em que nos encontramos minhas pedras e eu. Coleção de pedras. Coleção de palavras.

Coleção de imagens. Coleção de Areia:

Novo país, ainda estou na fase em que tudo o que vejo tem um valor próprio, pois não sei

que valor atribuir às coisas. [...] Quando tudo tiver encontrado uma ordem e um lugar em

minha mente, começarei a não achar mais nada digno de nota, a não ver mais o que estou

vendo. Porque ver quer dizer perceber diferenças, e, tão logo as diferenças se

uniformizam no cotidiano previsível, o olhar passa a escorrer numa superfície lisa e sem

ranhuras. Viajar não serve muito para entender [...] mas serve para reativar

momentaneamente o uso dos olhos, a leitura visual do mundo.10

8 Ana Lúcia Beck, nanquim sobre pedra da Série O que o jardim te contou? (disponível em:

www.paraisonaotemnome.blogspot.com.br/2013/04/o-que-o-jardim-te-contou.html). 9 Giorgio Agamben, Profanações (São Paulo: Boitempo, 2007), p. 49.

10 Ítalo Calvino, Coleção de Areia (São Paulo: Companhia das Letras, 2011), p. 166.

Ver o novo com olhos desconhecidos. Ver as coisas pelo seu valor próprio. Seu valor: são

plenas de possíveis. O conhecimento, tal como percebido por Calvino, se equilibra entre o espaço

do desconhecimento e o espaço mental em que cada coisa ocupa determinado lugar, determinado

valor. Viajar. Conhecer, neste equilíbrio de forças, suporta e remete à idéia de viagem. Não como

turismo – tão completamente dessacralizado, diria Agamben – mas como este permitir-se e

lançar-se em um deslocamento deslizante entre conhecido e desconhecido, entre cheio e vazio.

Caso decidisse utilizar o mapa, permaneceria o espaço do desconhecido, necessário para a

elaboração de qualquer conhecido que possua sentido, ou “brilho”, como diria Baumann. Se for o

mapa uma espécie de notação, geográfica, percurso, deslocamento11

, do conhecido, ou ainda caso

as palavras gerem mapas simbólicos, “[...] para que qualquer mapa “faça sentido”, algumas áreas

[...] devem permanecer sem sentido. Excluir tais lugares permite que o resto brilhe e se encha de

significado.”12

A elaboração e manutenção do significado de algo conhecido e “mapeado”

necessita, portanto, de espaços vazios. Espaços de equilíbrio? Jogo de forças. De posse de um

mapa, ele pouco mais é do que grafismo sem alma, enquanto não é dobrado e esquecido na bolsa

para que se possa preencher os vazios do desenho com as percepções e impressões que o lugar

produz em nós, que imprimimos ao que nos circunda.

Espaço de não sabido que desloca lugares dentro de nós. Sim, lugares dentro de nós:

“lugar no solo tiene referencias geográficas sino que también sirven como marcos de la

experiência [...].”13

Se é possível estabelecer uma analogia entre a escrita e o viajar – pensando

em termos de deslocamento no espaço tempo, escrever deveria ser viajar sem mapa. Sem mapa, a

viagem permanece percurso de tensões infinitas. Ponto de desequilíbrio constante, ponto de ação

de forças várias, ponto de unidade disforme. Sem mapa, o comparatista insiste em certo desejo de

compreensão. Na viagem da escrita, na leitura da viagem, destinos de escritor e leitor se cruzam,

se contaminam. Leitura e escrita encontram-se e deslocam-se. Aproximam-se e se afastam.

Lembrar e esquecer, conhecer e desaprender, ir e voltar se encontram. No percurso

literário, “[...] é menos importante julgar do que descrever a fim de compreender.”14

Descrever

para compreender. Há um diário de viagem no espaço comparatista. Neste percurso, Blanchot

11

Regina Dalcastagne, “Sombras da cidade – o espaço na narrativa brasileira contemporânea”

(Estudos de literatura brasileira contemporânea, 21, 2003), p. 35. 12

Zygmunt Baumann, Modernidade líquida (Rio de Janeiro: Zahar, 2001), p. 122. 13

Claudia Quiroga Cortez, “Vidas e lugares en tránsito” (Cerrados, 27, 2009), p. 51. 14

Maurice Blanchot, O livro por vir (São Paulo: Martins Fontes, 2005), p.41.

exorta o comparatista a um exercício de entendimento da escrita através da própria escrita – mais

ou menos como me lancei a fazer, por liberdade poética ou desejo de equilíbrio. Escrita poética

na medida em que não traduz ou “demonstra” um juízo de valor, mas permite ao leitor/escritor a

mesma atitude elaborativa que caracteriza a ação mesma do autor “original”. Esta escrita,

portanto, elabora, reconhece, relembra, esquece e sinaliza percursos de leitura.

Essa imagem nebulosa de viagem-percurso, escrita-leitura, lugar e espaço da obra,

sinaliza discussões basilares sobre a concepção da língua e da linguagem e da relação destas com

o mundo às quais a idéia de um “descrever para compreender” remete. Lança-se um raio de luz

pelas frestas de zonas neblinosas de minha memória que tenta compreender algo de um universo

sobre o qual insisto pensar que não entendo. O discurso que descreve para tentar entender não

pretende lançar uma verdade sobre a obra. Justamente por não pretendê-lo, por não assumir um

pensar linear, um caminho reto, pode nos fazer vislumbrar uma verdade possível na obra. Apenas

uma de suas possibilidades. Um ponto do infinito.

Falar em verdade possível não remete a tal preocupação de minha parte. Mas lembra que,

durante muito tempo, se esperava do texto que atestasse a verdade. Tal se esperava

principalmente do texto escrito, uma vez que o imagético, em errônea interpretação da linguagem

enquanto mimese, era considerado por princípio mentiroso. A verdade esperada de um texto

escrito se originaria de um exercício de pensamento abstrato e lógico. Pensamento tão linear

quanto se pretendia que fosse o tempo: o tempo em linha reta das concepções históricas

apontadas por Schultz15

. Logo mais, Proust mostrará o quanto de poético pode existir na

desconstrução – ó ironia das ironias – desta pretensão histórica.

Verdade na obra e não da obra. Se o fato é comparatista o pensamento comparatista

encontra no movimento entre leitor/autor e texto muito mais seu movimento de ir e vir, de buscar

e encontrar, de lembrar e perguntar que não o aloja em lugar algum. Que identifica a obra como

universo em suspensão composto de milhares de universos simultâneos em que o leitor pode

apenas errar. Errância, em um destrinchamento algo bruto, faz pensar imediatamente na mais

banal das somas: errar e ânsia. Ânsia ambígua. Da ânsia enquanto desejo de “ir em frente” até a

mais nervosa das ansiedades sempre metaforizada em imagens de eterno ir e vir em círculos,

quase sempre sobre o mesmo trajeto.

15

Margarita Schultz, Visión epistemologica de la historia del arte (Santiago do Chile: Facultad

de Artes, 2000).

No pensamento comum, andar em círculos é não sair do lugar. Não decidir. Não escolher?

Não alcançar “sucesso” na elaboração de algo. Não encontrar solução. Aqui e ali são lugares

distantes, distintos, que separam a ignorância do saber, a dúvida da resposta. Um percurso de

escrita, ou de leitura, para aquele pensamento histórico, produziria a verdade, posto que a verdade

era lógica e a lógica era verdade. Um círculo de errância, portanto, seria a princípio pensado

como algo oposto ao que se esperava alcançar ou desenhar com o movimento pensamento de

leitura e escrita. Esperava-se, de alguma maneira, certa linearidade. Linearidade de tempo, de

pensamento. Há, porém, outra imagem que se forma no processo criativo. Seja este o processo

criativo do escritor ou do artista. Voltaremos a este ponto, mas, antes, o que nos dizem quanto à

linha Leonilson e Louise em seus trajetos de criação?

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José Leonilson Bezerra Dias. O Zig zag, bordado em tecido, 1991.

Leonilson: O Zigue-zague.

Antecipação e desejo. Desejo e medo. Deslocamento entre momentos. Cartografias do

coração? Leonilson configura e nomeia em muitos trabalhos o herói. O herói desloca-se em um

espaço que, antes de ser geográfico, é emocional. Em seu mapa de montanhas, lagos, viagens,

pontos cardeais, Leonilson remete a um deslocamento pelo vazio.

Ainda menos suportável era a idéia dos “espaços em branco” do globo [...] Intrépidos

exploradores eram os heróis das novas versões modernas das “histórias de marinheiros”

[...]; entusiasticamente aplaudidos na partida e aclamados com honrarias na chegada, eles

andaram, de expedição em expedição, por selvas, savanas e o gelo eterno em busca da

cordilheira, lago ou planalto ainda não cartografado.17

18

Até a Idade Moderna, a idéia de trajeto, ir em direção ao desconhecido, tratava, sobretudo,

de torná-lo conhecido e, portanto, mapeável. Séculos transcorreram até se acertar o desenho do

mundo. Incontáveis mapas diminuíam o mundo desenhado pelos europeus em que não havia

17

Zygmunt Baumann, Modernidade líquida (Rio de Janeiro: Zahar, 2001), p. 133. 18

José Leonilson Bezerra Dias, Longo caminho de um rapaz apaixonado, aquarela, sem data.

lugar para o que não era conhecido. Do não conhecido sequer se intuía. Sequer se pensava que

outro universo persistia em perfeito equilíbrio com o conhecido: o vasto mar dos lugares

ignorados. Viajar, desbravar e conhecer tratavam de ir e vir. Definido finito de chegar e voltar.

Tudo que provocasse dobras, retornos, hesitações, medos ou apegos neste trajeto constituía

aventura. E a aventura era personagem em si, não era mapeamento de um percurso daquilo que

nunca foi simplesmente ir e vir. A hesitação provocada pelo desconhecido, e pelo jogo de forças

entre o medo e o desejo é o que conduz Leonilson a, de maneira aparentemente tão pueril,

realizar uma cartografia do coração cheia de espaços vazios, cheia de entornos fluídos, feito de

figuras em suspensão no espaço, figuras que se equilibram entre o sim e o não, que vão e vem em

ziguezague.

O processo criativo de Leonilson cria corpo em sua obra a cada vez que depõe, que

mostra ou remete à hesitação em zigue-zague que elabora trajetos emocionais e plásticos

retirando o processo de criação e o pensamento da linha reta. Haveria certezas no coração?

Leonilson confronta-se com linhas, tecidos, pontos de bordado, desejos, insatisfações: mergulha

sem paraquedas em seus espaços vazios: a criação, o amar.

Nesta cartografia do coração, o desejo só subsiste posto que o universo de um momento

de realidade coloca em suspenso, em tensão ao seu redor, as forças dos desejos, dos medos, dos

passados e dos futuros do amar.

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Louise Bourgeois, desenhos.

Louise e o eterno retorno.

Na persistência do tempo amoroso, vivendo intensamente a sobreposição dos tempos,

Louise marca em sua obra insistentemente o retorno. O círculo, o retorno ao passado, a espiral

que sobrepõe tempos, espaços, lugares da infância na percepção presente em seu coração do que

lhe faz, afinal, Louise. Tão distinta é a ação poética, o espaço da obra de Louise da descrição de

Baumann: “O espaço só era “possuído” quando controlado – e controle significava antes e acima

de tudo “amansar o tempo” neutralizando seu dinamismo interno: simplificando, a uniformidade

e coordenação do tempo.”20

Louise não amansa o tempo. Ao contrário, é de certa maneira

massacrada por ele.

Grande parte da poética de Louise marca a persistência da presença de sua infância,

sempre de novo retomada na circunscrição da temática de suas obras, assim como no impulso

subjetivo emocional que lhe leva a revisitar insistentemente esse lugar. A referência, o retorno à

infância é tal que, em seu mais conhecido livro, antes de qualquer outra coisa, Louise nos afirma;

“Minha infância jamais perdeu sua magia, jamais perdeu seu mistério e jamais perdeu seu

drama.”21

É revivendo esses dramas que Louise desenha sua obra e estabelece seu processo

criativo. No espaço de sua poética, passado e presente se sobrepõe e constituem num mesmo

tempo, um mesmo lugar: a obra, tempo do pensamento insistente. Controle não é o que ela busca.

Manter-se em equilíbrio em determinado ponto do universo por uma fração de tempo? Sim!

Lugar de eterno retorno: seus espaços internos. A persistência circular de mamam: a teia

da aranha. O círculo da persistência, o círculo da “armadilha”. O círculo cujo movimento pode se

realizar de dentro para fora, ou de fora para dentro. A sobreposição espacial de tempos. Círculos

internos e externos. Círculo relacional. Como me coloco no círculo? Círculo da força de Eros:

espiral.

20

Zygmunt Baumann, Modernidade líquida (Rio de Janeiro: Zahar, 2001), p. 134. 21

Louise Bourgeois, Marie-Laure Bernadac, Hans Ulrich Obrist. Louise Bourgeois – Destruição

do pai, Reconstrução do pai. (São Paulo: Cosac & Naify, 2000).

22

“Pessoas com as mãos livres mandam em pessoas com as mãos atadas; a liberdade das

primeiras é a causa principal da falta de liberdade das últimas.”23

O poder, a dor, a mobilidade de

ir e vir, num espaço real ou simbólico, tornam-se trajeto artístico para Leonilson e Louise. Em

Louise, em analogia com seu ir e vir, seus círculos, mandalas, teias de aranha e espirais tornam-se

marca plástica de uma busca constante: a independência emocional. Permitindo-lhe

deslocamentos no tempo, no material, no espaço emocional, lhe permitia certo pensar e fazer

artístico: ir, vir, sentir, ressentir, novo sentir, deixar de sentir, sintetizar, puxar e soltar. Voltar.

Impossível não imaginar minha pedra presa em suas teias...

22

Louise Bourgeois, composição em tecido, 2005. 23

Zygmunt Baumann, Modernidade líquida (Rio de Janeiro: Zahar, 2001), p. 139.

24

Dos muitos espaços de Leonilson, Jogos Perigosos também remete à guerra por espaços

que são territórios de liberdade. Liberdade de amar? O espaço é simbólico, mas nem por isso

menos importante enquanto espaço que determina a possibilidade de ação dos sujeitos cientes da

capacidade de mobilidade. Interessa que “o acesso diferencial à instantaneidade é crucial entre as

versões correntes do fundamento duradouro e indestrutível da divisão social em todas as suas

formas historicamente cambiantes: o acesso diferencial à imprevisibilidade.”25

Nos

comportamentos presentes em relacionamentos também a mobilidade e imprevisibilidade de um

dos sujeitos envolvidos configura ameaça ao outro, enquanto o outro seja sujeito que deseja

segurar este primeiro em certo espaço ou enquanto o segundo, pela sua imobilidade, se sente

ameaçado pelo excesso de mobilidade do primeiro, identificada muitas vezes em seu “excesso de

liberdade”. Louise e Leonilson em ir e vir, em decisão e indecisão com o outro, no equilíbrio

entre seus desejos, seus medos e seus ressentimentos, transferem para obra, marcam na obra, um

percurso emocional e temporal de eterno zigue-zague, espiral. A relação de Leonilson e Louise

produz e sustenta um espaço ou campo emocional que faz pensar nas estratégias e

comportamentos que ambos adotam para resolver este acesso à liberdade de ir, vir, odiar, amar.

Abre-se a fenda: a errância da leitura e a errância da escrita em metaforização com a errância de

24

À esquerda: Louise Bourgeois, Casal, 2002. À direita: José Leonilson, Jogos Perigosos, 1989. 25

Zygmunt Baumann, Modernidade líquida (Rio de Janeiro: Zahar, 2001), p. 139.

amar e de criar. Não se costura o amor, não se desenha o espaço comparatista em linha reta.

Erramos na vida talvez, mas jamais na criação.

Saindo do lugar

A imagem da errância parece apontar a princípio este erro de “não sair de fato de certo

lugar” logo, de não “chegar de fato em lugar algum”. Tal imagem, e seus valores implícitos, estão

erigidos sobre aquele “desejo de verdade” citado anteriormente. Mas há valor no pensamento em

zigue-zague, em espiral; modulação, dirá Pierre Brunnel, ao nomear este “olhar singular” que o

leitor/escritor tem, por direito, de lançar a suas leituras.

Olhar singular e movimento de pensamento que pode ser caracterizado conforme o

“mudar constantemente de direção, ir como que ao acaso e evitando qualquer objetivo, por um

movimento de inquietação que se transforma em distração feliz [...].”26

Blanchot, ao caracterizar

a tarefa do escritor, o momento e o tempo – lugar ? – da gênese do romance, reivindica esta

errância. Volta à errância ao caracterizar o tempo em Em busca do tempo perdido. Ao falar dos

vários tempos que surgem nesta narrativa, chama a atenção para o aspecto mais impressionante

da obra: mais do que narrar diferentes, paralelos, simultâneos e imbricados tempos, Proust

transpõe para sua narrativa a errância do pensamento de um homem qualquer, este sim, feito de

uma idéia de consciência que é apenas um ponto no espaço. “Há apenas “momentos” – pontos

sem dimensões” diria Baumann27

a respeito do tempo da modernidade líquida. Mas, no

percurso/trajeto de uma consciência será este momento ponto confluente, irradiante de tempos. O

pensar deste homem comum, perdido, ou melhor, inquieto em sua errância, se pretende

“pensamento” e talvez por isso adquira potência e potencial de consciência, posto que recolhe,

aqui e acolá, o vestígio da memória que lhe reconta seu lugar no espaço da memória num minuto

qualquer, 60 segundos de distração que separam – e aproximam – 20 anos ou minutos passados.

Ao falar da criação de M. Teste, Valéry indica: “Estas ideias me vieram durante o mês de

outubro de 93, naqueles instantes de lazer em que o pensamento brinca somente de existir [grifo

meu].”28

A distração feliz de Blanchot, ou o brincar de existir de Valéry, sinalizam um

pensamento errante que descobre que não está de fato em lugar algum, em tempo algum. Tempo

26

Maurice Blanchot, O livro por vir (São Paulo: Martins Fontes, 2005), p.7. 27

Zygmunt Baumann, Modernidade líquida (Rio de Janeiro: Zahar, 2001), p. 138. 28

Paul Valéry, M. Teste (São Paulo: Ática, 1997), p. 17.

e lugar se desconstroem enquanto categorias fixas de análise, pois nenhuma fertilidade encontra-

se onde se procura por verdades.

Com Leonilson e Louise, ao adquirimos consciência sobre o quanto a escrita é reveladora

do sujeito que escreve, o quanto a obra é reveladora do sujeito, escrever e criar se revela como

processo semelhante ao terapêutico que assusta na medida em que vamos localizando e

percebendo quais são as questões, as temáticas, as linhas de pensamento e os códigos de valores

que, feito manipuladores de marionetes, determinam em grande parte o que podemos ver no

palco do texto: “[...] é o “desvio da busca por certas coisas” que nos faz “vê-las como

valiosas”.”29

Afinal, “A imobilidade das coisas que nos cercam talvez lhes seja imposta por nossa

certeza de que essas coisas são elas mesmas e não outras, pela imobilidade de nosso pensamento

perante elas. [...] o bom anjo da certeza imobilizara tudo em redor de mim.”30

Só mesmo o bom

anjo da certeza – sutil ironia – para fazer cessar a inconstância do mundo! A inconsistência de um

pensamento que nomeia como amor o que talvez seja, de fato, a persistência de nossas

memórias...

Há uma força e quase uma apóstrofe do esquecido, que não podem ser medidas em termos

de consciência, nem acumuladas como um patrimônio, mas cuja insistência determina a

importância de todo saber e de toda consciência. O que o perdido exige não é ser

lembrado ou satisfeito, mas continuar presente em nós como esquecido, como perdido e,

unicamente por isso, como inesquecível.31

Não descrevi ou expliquei exatamente o que penso que entendi, ou o que poderia ter sido

dito ou concluído de minhas leituras. Nem defini por completo, em forma finda, em linha reta, o

método do pensamento comparatista. Antes, tratei de traçar mais ou menos assim feito colagem

de recortes, um mapa de brilhos e esquecimentos. Um trajeto que vagueia entre as imagens e

palavras do processo criativo de Leonilson e Louise. Com eles, e com as palavras que aqui

escrevo, vagueio, tateio, erro através de meus próprios desejos. Vagueio no comparatismo.

Comunico?

29

Simmel apud Zygmunt Baumann, Modernidade líquida (Rio de Janeiro: Zahar, 2001), p. 136. 30

Marcel Proust, Em busca do tempo perdido (São Paulo: Globo, 2006), p. 23 e 27. 31

Giorgio Agamben, Profanações (São Paulo: Boitempo, 2007), p. 35.

Comunicar a alguém os próprios desejos sem as imagens é brutal. Comunicar-lhe as

próprias imagens sem os desejos é fastidioso. [...]. Comunicar os desejos imaginados e as

imagens desejadas é a tarefa mais difícil. Por isso a postergamos. Até o momento em que

começamos a compreender que ficará para sempre não cumprida.32

Escrevo, descrevo, lembro, vou e volto no universo eterno dos ruídos de pensamentos

inacabados. Esquecimentos que não cabem na pele. Inesquecível, o bom anjo sopra em meu

ouvido:

Nesta rua, nesta rua tem um bosque

Que se chama que se chama solidão

Dentro dele, dentro dele mora um anjo

Que roubou, que roubou meu coração...

(CANTIGA popular brasileira de autoria desconhecida)

33

32

Giorgio Agamben, Profanações (São Paulo: Boitempo, 2007), p. 49. 33

Ana Lúcia Beck, bordado da série Infinitude, 2005.

(www.paraisonaotemnome.blogspot.com.br/2011/06/infinitude.html).