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153 A PERSUASÃO DE GÓRGIAS: A PERSONA PLATÔNICA NO PALCO ATENIENSE ADRIANO MACHADO RIBEIRO Universidade de São Paulo Provavelmente nascido em Leontino, na Sicília, no século V a.C., Górgias é visto por nós a partir de focos diversos. Dado o fato de ser personagem e título de um dos diálogos de Platão – além de ser por este mencionado em passagens outras – os contornos de sua persona são delineados muita vez tendo tal ponto de partida. Embora alguns poucos textos de Górgias tenham chegado até nós, a leitura destes geralmente se faz sob a ótica das questões apresentadas pela personagem de Platão. É evidente que se não pode nem se deve procurar reencontrar o verdadeiro Górgias em meio a tal torvelinho, mas talvez, mesmo assim, ainda seja possível configurá-lo mais próximo daquilo que os textos atribuídos a ele apresentam para melhor delinear este autor. Desse modo, se, por exemplo, analisássemos a Apologia de Palamedes, caberia a pergunta: a persuasão seria o escopo central de Górgias? Tal questão, no entanto, não parece antes demandar o cenário e a trama pela qual se modela esta interrogação a par- tir da personagem platônica? Não seria preciso, pois, verificar como na urdidura de Platão ela se apresenta? Não caberia, talvez, antes de buscar responder tais questões, se perguntar por que se faz tal pergunta? Se se parte da personagem do diálogo, sabe-se que o Górgias de Platão, em certo momento, é levado por Sócrates, seu interlocutor, a definir qual tékhne lhe é própria. Depois de intervir na conversa inicial de Querefonte com Polo, pois este, segundo ele, se restringe a elogiar o que faz, sem nomear o que seja isso 1 , é o próprio Sócrates quem afirma, em contraposição firmada, mas não explicada, o procedimento equívoco de 1 PLATÃO. Górgias, 448c-e. K LÉOS N. 19: 153-176, 2015

A PERSUASÃO DE GÓRGIAS: A PERSONA PLATÔNICA NO … · Provavelmente nascido em Leontino, na Sicília, no século V a.C., Górgias é visto por nós a partir de focos diversos

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A PERSUASO DE GRGIAS: A PERSONA PLATNICA NO PALCO ATENIENSE

AdriAno MAchAdo ribeiro

Universidade de So Paulo

Provavelmente nascido em Leontino, na Siclia, no sculo V a.C., Grgias visto por ns a partir de focos diversos. Dado o fato de ser personagem e ttulo de um dos dilogos de Plato alm de ser por este mencionado em passagens outras os contornos de sua persona so delineados muita vez tendo tal ponto de partida. Embora alguns poucos textos de Grgias tenham chegado at ns, a leitura destes geralmente se faz sob a tica das questes apresentadas pela personagem de Plato. evidente que se no pode nem se deve procurar reencontrar o verdadeiro Grgias em meio a tal torvelinho, mas talvez, mesmo assim, ainda seja possvel configur-lo mais prximo daquilo que os textos atribudos a ele apresentam para melhor delinear este autor. Desse modo, se, por exemplo, analisssemos a Apologia de Palamedes, caberia a pergunta: a persuaso seria o escopo central de Grgias? Tal questo, no entanto, no parece antes demandar o cenrio e a trama pela qual se modela esta interrogao a par-tir da personagem platnica? No seria preciso, pois, verificar como na urdidura de Plato ela se apresenta? No caberia, talvez, antes de buscar responder tais questes, se perguntar por que se faz tal pergunta?

Se se parte da personagem do dilogo, sabe-se que o Grgias de Plato, em certo momento, levado por Scrates, seu interlocutor, a definir qual tkhne lhe prpria. Depois de intervir na conversa inicial de Querefonte com Polo, pois este, segundo ele, se restringe a elogiar o que faz, sem nomear o que seja isso1, o prprio Scrates quem afirma, em contraposio firmada, mas no explicada, o procedimento equvoco de 1 PLATO. Grgias, 448c-e.

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Polo. Assim, Scrates solicita a substituio de Polo por Grgias. Ao faz-lo de imediato nomeia e, ao nomear, desqualifica a atitude de Polo como inadequada para definir sua prtica. Ao contrrio, o uso do dialgesthai, no infinitivo, um contraponto que implica uma disponibilidade a agir corre-tamente em busca de definio2. Nesse sentido, a rhetorik 3 inicialmente mencionada como prtica ancorada na polaridade elogio/vituprio sem se preocupar em delimitar a razo de faz-lo. Desse modo, Scrates, depois de nomear a atividade de Polo, insiste que o prprio Grgias passe a res-ponder as questes por ele formuladas:

S.: No. Se voc mesmo quisesse responder, seria muito mais agradvel, pois est claro para mim, a partir do que disse, Polo se dedicar muito mais chamada ret-rica do que a dialogar P.: Por qu, Scrates? S.: Porque, Polo, quando Querefonte perguntou qual a arte da qual Grgias sabedor, voc elogiou esta arte como se algum a criticasse, mas voc no respondeu qual ela . P.: Mas eu no respondi ser ela a mais bela? S.: Certamente. Mas ningum perguntou de que tipo a arte de Grgias, mas o que ela e como se deve chamar Grgias.4

2 No Grgias no h em momento algum qualquer registro da palavra , nem mesmo se define a prtica como dilogo, pois Plato insiste no uso do verbo dialogar. o dialogar como ao, urbanamente modelado, que Plato contrape prescritiva retroativa da retrica (Grgias, 448d-e). Irwin logo se corrige quando nomeia a atividade socrtica no Grgias como dialtica: Socratic discussion (dialektike, also from dialegesthai) is conducted in a dialogue (dialogos) by steady and repeated question and answer. Socrates often declares his preference for this kind of discussion over the long speeches of Protagoras and others; Pr. 329b, 334c-336d, 347b, Hmi. 364b, Ion 530d, Eu. 6c, Eud.275a. Dialogue and his cognates translate dialegesthai and its cognates throughout the G. [Grgias]. This term is a little too specialized to be quite an accurate rendering, since dialegesthai can have a quite general range, like conversation or discussion (this is used to translate logos). But in fact it has a fairly specialized use in the G. it refers to the kind of discussion which follows Socrates rather definite rules insisted on e.g. at 462c ff., 495ab not just to any discussion. PLATO. Gorgias. Translated with notes by Terence Irwin. New York: Oxford University Press, 1989, p. 110-111.

3 Mais frente, ser discutida a questo sobre as implicaes de se atribuir tal arte a Grgias.

4 , , . . . , . , , , , . . . . , , PLATO. Grgias, 448d-e.

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Na trama de Plato, como se a designao lhe coubesse e no provocasse estranhamento, a personagem Grgias, passando a responder, confirma a atividade atribuda a Polo, seu discpulo. Sendo assim, com naturalidade ele assume ser retrica sua tkhne, concordando com a nome-ao socrtica de ser ele um rhtor5.

Curiosamente, a partir da sugerida crtica socrtica retrica, segundo a qual Polo se lana a discursos em busca de elogios, enreda-se a personagem de Grgias no dilogo em trama articulada por Plato. Por isso no importa tanto discutir o pressuposto do que seja e se existe a prpria arte quanto delinear como Grgias cumprir seu papel na trama: cabe referendar a especificidade articulada entre exibio6 e elogio, visto que aquela confirme este para configurar o thos da personagem. Impor-ta ser bom retor, produzindo lgoi que agradem a audincia. Assim, os limites do encontro entre Scrates, Grgias e os demais apenas aludem a epdeixis, a exibio produtora de discursos, anterior ao dilogo de Pla-to7. Agora, nos limites do dilogo de Plato, encena-se o dialogar. Nesse 5 . , . . . ,

, , , .6 Desde o incio, marcada a prtica da personagem Grgias como epdeixis, exibio

para a audincia. Scrates e Querefonte chegam quando aquele h pouco se exibira, conforme diz Clicles: ( ). Dodds, em nota a este trecho, afirma que o termo epdeixis parece ser introduzido pelos sofistas (cf. PLATO. Hpias Maior, 282b-c) para descrever uma demonstrao pblica de habilidade oratria. Espcimes sobreviventes so a Helena e o Palamedes de Grgias, alm da fbula de Prdico da Escolha de Hracles (XENOFONTE. Memorveis, 2, I, 21 et seq.). Em Tucdides a palavra aplicada com desdm para um discurso exibicionista na Assembleia (3, 42, 3). PLATO. Gorgias. Text, introduction and commentary by E. R. Dodds. Oxford: Oxford Clarendon Press, 1992, p. 189.

7 No texto de Plato Scrates explicitamente contrape a exibio ao dialogar: trata-se de responder a perguntas, no exibir-se a uma audincia: , . , , , (447c). Para o contraponto entre epdeixis e a prtica socrtica do dialogar, Dodds (PLATO, 1992, p. 190) enumera vrias ocorrncias (Protgoras, 329a; Hpias Menor, 364b; on, 530d; Eutfron, 6c; Eutidemo, 2751; Protgoras, 347b). Wardy (WARDY, R. The Birth of Rhetoric: Gorgias, Plato and their successors. London: Routledge, 1996, p. 57), de cuja leitura aqui se discorda, argutamente aponta, a partir da apresentao prvia de Grgias apenas mencionada no dilogo, que the notional feast happens outside the Gorgias, albeit only a little while before its fictional beginning (476a6): is this a text from which rhetoric has been banished? Socrates explains that Chaerephon is responsible, because he forced (anankasas) them to spend time in the marketplace (447a8): so the Gorgianic theme of

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o elogio deveria ser afastado. O thos que deve modelar Polo e Grgias, sendo outro no procedimento ora requerido, implica pergunta e resposta. Esta deve ser breve e ater-se questo apresentada8. A concordncia de Grgias no se restringe, porm, a um mero aceite. preciso para Plato, ademais, que ele conforme seu thos na breve e curta resposta s exigncias prprias do dialogar. A personagem de Grgias curiosamente, ento, ape-sar de reconhecer nem sempre ser possvel a tarefa, assume que o far da melhor maneira possvel. O Grgias que Plato torna aqui presente assim se apresenta pela qualificao superior, como se tratasse sempre de exibir-se e na exibio destacar-se agonisticamente como o melhor: h algumas respostas, Scrates, que necessariamente so dadas com longas respostas. Mas ainda assim, eu tentarei, de qualquer modo, ser o mais breve possvel, porque mesmo isso algo que eu afirmo: no h ningum que possa dizer as mesmas coisas em menos palavras do que eu.9

Scrates, desse modo, requer outra exibio. Na multiplicida-de de sentidos de lgos, eles ora aparecem pela quantidade de palavras, poucas ou muitas; ora como diversidade de argumentos ou discursos que se dirijam a ouvintes. De qualquer maneira, lanando Grgias no territrio da apresentao ao pblico, Plato modela a personagem em busca do elogio e da qualificao que o distinga: assumindo ser um rhtor, fala para ser ouvido sempre como o melhor na apresentao de lgoi. O dialgesthai de Grgias se modela pelos mesmos parmetros da atividade retrica que Scrates desqualificara. Seus lgoi se multiplicam de modo a que a personagem se enrede numa direo que colida com

persuasion/compulsion is present in the dialogue from the outset. Socrates is assured that Gorgias will gladly display for him again, epideixato, 476a6; followed by epideixetai, 447b2, epideixetai, 447b8, epideixin, 447c3, and epideixeos, 447c6. This piling-up of display vocabulary creates a rhythm sharply punctuated by a single word, dialechthenai (447c1), to engage in dialectic, which Socrates request as a substitute for rhetorical performance. Como se viu, no entanto, discorda-se que Scrates requeira engajar-se na dialtica, como se esta aqui tivesse um sentido preciso.

8 PLATO. Grgias, 449b.9 . , , .

. , . . , , , . . , . PLATO. Grgias, 449b-c.

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os procedimentos do dialogar balizados pelo Scrates de Plato10.Por isso, na sequncia, depois de concordar, como quer Scra-

tes, que se possui uma tkhne rhetorik 11 ele deve ser possuidor de um conhecimento e capaz de transmiti-lo para um outro ( 12), per-gunta de Scrates sobre quais seres ela ( ), a personagem de Grgias responder em busca da brevi-10 Aqui, antes de mais nada, preciso lembrar a abrangncia semntica de , e seu

variado uso no dilogo: about speech. Gorgias says that rhetoric is about logoi. Logos refers generally to what is spoken or thought, words, sentences, discourses, and in particular to the expression of rational thought, hence to reason, argument, account, or definition. [...]. These different uses appear regularly in the G. (1) Often logos refers just to speech or talk in general. (2) Sometimes a logos is a systematic, organized body of speech either a continuous speech delivery by an orator, or a discussion [] and so it is a common term for the dialectical conversation carried on in the dialogue. (3) It is a rational account contrasted with a mere story or myth; see 505c, 523a. (4) It refers to giving reasons, explanations, and rational accounts, as opposed to mere habitual or unreflective or rationally unjustifiable action; 465a, 500e-501a. These are not necessarily distinct senses of logos, obvious to a native speaker; perhaps they are partially overlapping uses (cf. e.g. 519d). Socrates expects the logos in the G. to satisfy all four of these conditions, eventually giving us a rational account and justification of the beliefs he accepts. Plato, no entanto, monta a cena para que haja uma lacuna entre o uso da palavra pela personagem de Grgias e a restrio que se lhe deva fazer pela impropriedade do termo: here Gorgias has in mind the general sense, that rhetoric is about speaking; but Socrates plays on the suggestion that logos must be rational discourse, and later rejects the claim of rhetoric to be about logoi in this sense, saying that it is irrational, alogon, 465a. Gorgias suggests that rhetoric has speech as its subject-matter and object as ordinary crafts are. Socrates uses the same technique of looking for the subject-matter to show the peculiarity of temperance and justice as crafts, Ch. 173d-175a, R.332e-333e. (PLATO, 1989, p. 114).

11 Ao comentar sobre a dnamis de uma tkhne, Irwin apresenta os usos possveis de serem encontrados no dilogo para compreenso do que Plato supe ser uma arte: Here the question just means what is his craft capable of?, which amounts to asking for a definition of the craft; cf. Isocrates, 15.178, 186. Craft (techne) is the normal term for any systematic productive skill, such as carpentry or shoemaking (see Socrates examples at 447d); but it is also applied to less obviously productive abilities, such as arithmetic or geometry (Ch.165e-166b), so that is virtually interchangeable, in Platos early dialogues at least, with episteme (knowledge, science). [] Socrates treats a craft as something more than a tendency to perform efficiently. He associates craft-knowledge with systematic teaching and instruction, reliably successful performance (see 514a-c), and the ability to explain the actions of the craft and their over-all point; see 449a, 465a, 500e-501a, 503de, La. 186ab. These conditions are gradually explained during the dialogue. (PLATO, 1989, p. 111). As exigncias prprias de uma techne em Plato enquadram a atividade da personagem Grgias no dilogo. Caberia, no entanto, estabelecer se tais relaes so passveis de se apresentarem nos textos do prprio Grgias.

12 PLATO. Grgias, 449d.

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dade elogivel, pois no elogio e na aprovao da audincia que se encon-tram os parmetros de sua atuao como personagem platnica.

Grgias assim responde prontamente, com rapidez e brevidade. O reforo socrtico pelo elogio segue-se na urdidura de Plato, como se Grgias se esforasse em exibir-se brevemente para se revelar o melhor pela mera aprovao da epagog socrtica que afirma artes diversas e suas especificidades. Assim, este diz para aquele que a retrica conhecimen-to de lgoi. No entanto, de imediato h o contraponto socrtico, pois h diversidade de tkhnai que utilizam lgoi diversos. A epagog ora mostra que o lgos mdico sobre sade e doena; ora, sobre as boas ou ms dispo-sies do corpo encontra-se o lgos da ginstica. Outra condio, pois, se revela de qualquer tkhne: ela, alm de especfica, conhece seus contrrios, ou seja, tanto se direciona para o melhor, quanto para o pior. Ademais, o lgos funciona como a razo pela qual algo se faz, ou seja, determina na especificidade uma finalidade.

Antes, porm, para tentar responder objeo socrtica, Grgias contrape as tkhnai citadas por Scrates quelas que se fazem unicamente pela eficcia do lgos, sem habilidades manuais ou qualquer outra atividade. Scrates reconhece a diferena e at mesmo a delineia mais precisa, ao citar tkhnai que prescindem de um lgos discursivo, como a escultura e a pintura, feitas em silncio. No entanto, prossegue Scrates, preciso ver que:

H outras artes, porm, que realizam tudo por meios de lgos e, pode-se dizer, ou no tem qualquer necessidade de ao, ou muito pouco, como a aritmtica, o estudo da razo numrica, geometria e mesmo xadrez, assim como muitas outras artes que tm os lgoi em igual nmero ao das aes, enquanto outras tm mais lgoi, e nas quais absoluta-mente todas as aes e execues de mestria ocorrem por meio de lgoi.13

H, assim, artes diversas. Se todas parecem ter trs caractersti-cas principais, pois implicam um conhecimento terico, alguma habilidade

13 , , , , , . . PLATO. Grgias, 450d-e.

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prtica e certa experincia com particularidades quando aplicada14, h de se poder expor suas especificidades. Neste sentido, Scrates explicita que nelas h de haver um lgos que no se pluraliza e efetiva na multiplicidade discursiva calcada nas epidexeis destinadas a diversos assuntos e auditrios15. Deve assim haver uma razo (lgos) pela qual a retrica se distinga das de-mais artes que tambm se utilizam totalmente ou o maior tempo possvel de lgoi. No pode ela assim, afirma Scrates, ser confundida com a arit-mtica nem com a geometria16, j que ambas tambm se utilizam apenas ou preferencialmente de lgoi. preciso, pois, a especificidade que a determine.

Pode-se, continua Scrates, dizer que a aritmtica, clculo e as-tronomia so todas elas preferencial ou totalmente por meio de lgoi. Mas se se indagar o que as diferencia ser sempre possvel especific-las. Assim, pode-se responder serem elas, sucessivamente, ou sobre o par e mpar; ou o par e o mpar em suas mtuas relaes; ou movimentos de estrelas, sol, lua e a relao entre eles. Cabe, pois, especificidades definidoras, ainda que todas estas tkhnai se faam nica ou preferencialmente por meio de lgoi.

Questionado, ento, sobre qual a especificidade da retrica, Grgias, personagem de Plato, novamente se espraia pela qualificao, sem especific-la, mas pela brevidade requerida por Scrates. Sendo assim, responde: os maiores assuntos humanos, Scrates, e os melhores17. No-vamente, em vez da definio que especifique sobre o que a retrica, a resposta implica o elogio que a destaca como insupervel em comparao com as demais. Permanece, pois, na montagem de Plato, a incomensura-bilidade das respostas de Grgias em relao s perguntas de Scrates. A brevidade das respostas evidenciam mais claramente esta desproporo. Produtor de lgoi, a personagem do retor lana-se para a plateia, exibe-se, 14 SACHS, J. Plato Gorgias and Aristotle Rhetoric. Newburyport: The Focus Philosophical

Library, 2009, p. 30.15 Como observa Joe Sachs em nota a sua traduo, o contraste com artes que utilizam

pouca fala introduz no dilogo a palavra lgos no singular. uma palavra com vasta gama de sentidos possveis, mas aqui ele toma seu sentido primrio da sua relao com o plural. As falas feitas pelos retricos ocorrem num meio que conecta o falante e os ouvintes, e este meio a fala. O contraste entre lgoi no plural e o lgos no singular logo tornar-se- enftico como a diferena crucial entre Grgias e Scrates. SACHS, 2009, p. 34.

16 PLATO. Grgias, 450e.17 , , . PLATO.

Grgias, 451d.

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mas, na montagem platnica, cumpre seu papel ao no cumpri-lo como, segundo as exigncias socrticas, lhe caberia.

Em razo disso, Scrates aponta a insuficincia da resposta em epagog distinta, pois hipoteticamente trazida no por comparao habitual com as tkhnai, mas numa, por suposio, produzida pela poesia, modo pelo qual a exibio e o elogio melhor se evidenciam, j que se apresenta para pre-sentificar algo como melhor sem, contudo, justificar a razo de ser ele assim apresentado. Agonstica e simposiasticamente modelado, Scrates d suposto exemplo de cano apresentada em tais ocasies18. De acordo com ela, sa-de, beleza e riqueza so respectivamente elencadas em primeiro, segundo e terceiro lugar. Remodelando para a discusso presente o exemplo, Scrates estende uma hipottica explanao de cada um dos possveis defensores do que seria uma justificativa de cada qual para se considerar o melhor, pois o mdico defenderia ser a sade o melhor; o treinador de ginstica, a fora e beleza do corpo; o financista, a riqueza. Neste sentido, explicita o elogio como funo prpria do poeta, mas especifica que sabero os artfices ( ) responder qual a funo que lhes apropriada. Na urdidura de Plato, entrev-se assim a proximidade da personagem de Grgias ao poeta, cumprindo papel semelhante. No simpsio, caber a um o elogio do outro; na epdeixis do retor, no entanto, ser ele prprio quem far seu autoelogio.

Como no roteiro de Plato tambm h Scrates, este insiste, a par-tir do uso da hipottica epagog, que qualquer tkhne, para ser assim considera-da como tal, ter um especialista para determinar e circunscrever sua ativida-de. Desse modo, Grgias dever saber qual sua especificidade e explic-la. Afastado o elogio apropriado ao poeta e a quem se exibe para uma audincia ampla, no pode haver outra possibilidade seno Grgias definir seu campo de atuao nas regras do dialogar desde o princpio sinalizadas: responder especificamente a questo posta. Diz Scrates: Ento, Grgias, creia que est sendo perguntado por eles e por mim e responda o que voc afirma ser o maior bem para os seres humanos e afirma ser disso um artfice19.18 ,

, , ,

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Grgias desta feita no apenas qualifica comparativamente sua arte, mas ao faz-lo tambm circunscreve seu campo de atuao. Dessa maneira, se esta arte ainda agonisticamente o maior bem, justifica-se por ser causa no somente de liberdade para os homens, mas tambm de comandar os demais em sua prpria cidade20. A personagem assim deli-neia o horizonte em que sua atividade deve se desenvolver. Em cada plis permitir a liberdade de quem se utiliza de sua arte. Liberdade, porm, que ocorre por, paradoxalmente, subjugar os que no a utilizam. Trazida para a cena da Atenas democrtica, implicaria ser a liberdade dos retores mais hbeis ancorada na submisso dos demais cidados no especializados.

Instado por Scrates a explicar melhor o que quer dizer, a per-sonagem Grgias institucionaliza Atenas como palco de seu ensino para explicitar a razo pela qual sua arte domina qualquer outra e, ao rivalizar com elas, supera as trs elogiadas pelo poeta e hipoteticamente justificadas pela argumentao de Scrates por cada um de seus praticantes. Ao con-trrio disso, produtor de lgoi, a personagem Grgias prescinde de outro que o defenda e ela prpria se justifica:

Eu estou dizendo ser capaz de persuadir pelos discursos: juzes no jri, conselheiros no Conselho e na assembleia seus participantes e em toda qualquer outra reunio, que venha a ser uma reunio poltica. E assim ter-se- em vista deste poder o doutor como escravo; o treinador como escravo; e este financista a logo estar fazendo negcios para outro, no mais para si mesmo; em outras palavras, para voc, o nico com o poder para falar e persuadir as multides 21.

O persuadir, portanto, seria a finalidade da arte de Grgias. Seu ensino, como aponta o dilogo de Plato, se direcionaria para a atividade poltica na democracia a fim de, por lgoi, dominar ao persuadir. Nos li-

20 , , , . PLATO. Grgias, 452e.

21 , . , , . PLATO. Grgias, 452e.

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mites da liberdade, sua arte se estende como poder de um homem livre que sujeita os demais cidados pela fora e poder da palavra. Apresenta-se como o maior bem para o homem, pois controla e sujeita os demais a seus ditames e vontades. A retrica, diferentemente da sofstica22, apresentada pelo Grgias de Plato nos limites de uma educao poltica a ser exercida sobretudo na democracia para que o retor se apresente como detentor do poder que subjuga os demais cidados23. Estes, transformados em multi-

22 interessante notar que na Apologia, v.g., Grgias, Prdico e Hpias so citados como sofistas (19e). Prximos de homens ricos, como deixa entrever a referncia a Clias, eles recebem para ensinar a jovens a virtude. Neste plano, pois, no so unicamente apresentados como conferencistas que falam a uma plateia indefinida em lugares tambm imprecisos, como ocorre no Grgias. Neste aqui a exibio parece se concentrar unicamente no efeito persuasrio que ensina a dirigir-se e convencer multides indeterminadas. No Protgoras, no entanto, a casa de Clias um cenculo de professores cuja figura central Protgoras. Nesse dilogo, ao invs de Querefonte de Grgias, o jovem Hipcrates quem conduz Scrates ao encontro. Em lugar definido e dirigindo-se a aclitos, Protgoras diz abertamente ser um sofista e ensinar algo diverso de outros sofistas: . , . , , , . (318e-319a) pois Hipcrates, vindo at mim, no se submeter ao que se submeteria ao frequentar algum outro sofista; com efeito, os demais tm destrudo os jovens, pois depois de estes terem evitado as artes, aqueles novamente, mesmo que os alunos no queiram, reconduzem-nos s artes e os lanam a elas, ensinando clculo, astronomia, geometria e msica e ele olhou de relance para Hpias. Quem vier a mim, no entanto, no aprender nada alm do que aquilo a que veio. O ensino a boa deliberao acerca dos assuntos da casa, a fim de que administre sua prpria casa da melhor maneira possvel, e para que, quanto aos assuntos da cidade, seja poderosssimo ao agir e ao falar. O ensino sofstico de Protgoras, desse modo, no separa a educao do cidado: a administrao da casa se estende ao espao pblico.

23 Dodds (PLATO, 1992, p. 202) lembra a semelhana da passagem do Grgias com a do Fedro: , , , , (261b) No seria, ento, em seu todo a retrica uma certa psykhagoga por meio de palavras, no apenas em tribunais e em todas as demais reunies pblicas, mas tambm em encontros privados? Note-se, contudo, que esta passagem, diferentemente do Grgias, investe tanto no ensino pblico quanto no particular, estendendo a retrica a uma gama mais ampla, pois seria prprio dela a conduo das almas numa amplitude que vai da persuaso em tribunais e assembleias aos encontros amorosos, como no Fedro, em que o discurso de Lsias sobre as vantagens de no se

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des indeterminadas, inclinam suas vontades e desejos ao poder da persu-aso que instaura a vontade do nico homem livre cujo poder de persuadir torna-o um tirano na plis democrtica. Adaptado a Atenas, o ensino de Grgias implica o uso das peculiaridades prprias da plis democrtica no melhor proveito, por meio do lgos, daquele que saiba discursar melhor e com isso obter as maiores vantagens.

O Grgias de Plato, sendo assim, explicita a consequncia do seu ensino: tornar escravos, na competio pelo poder, as personagens enaltecidas pelo poeta no agonismo simposistico. Apresenta-se, assim, sua exibio prvia da makrologa como entretenimento24. A epdeixis co-mentada no dilogo, mas j nele finda, epiditicamente, em termos aristotli-cos, parece assim ter revelado audincia o poder do retor. A fora deste poder, no entanto, afastada por Plato a fim de transitar em outro terre-no, o da atividade implicada ao dialogar. Aqui o retor se apresenta como o poeta simposiasta que, diferentemente da sugesto de Scrates, apenas canta o valor alheio. Exaltando o financista, o mdico e o treinador, tal poeta no explica a razo por que um ou outro deve ser apontado como melhor. So eles prprios que, hipoteticamente, deveriam, para Scrates, apresentar argumentos que justificassem sua escolha. No dialogar, porm, o prprio Grgias quem deve ora justificar-se. Independentemente do

amar conduz a ele almas de possveis amantes.24 Interessante pensar a matriz de Aristteles para definir o epidtico pela finalidade

quando afirma: as espcies de retrica so trs em nmero; pois outras tantas so as classes de ouvintes dos discursos. Com efeito, o discurso comporta trs elementos: o orador, o assunto de que fala e o ouvinte; e o fim do discurso refere-se a este ltimo, isto , ao ouvinte. Ora, necessrio que o ouvinte seja espectador ou juiz, e que um juiz se pronuncie ou sobre o passado ou sobre o futuro. O que se pronuncia sobre o futuro , por exemplo, um membro de uma assembleia; o que se pronuncia sobre o passado o juiz; o espectador, por seu turno, pronuncia-se sobre o talento do orador. De sorte que necessrio que existam trs gneros de discursos retricos: o deliberativo, o judicial e o epidtico. . , , , . , . , [] , , , , , [1358b1]. ARISTTELES. Retrica. Trad. Manuel Alexandre Junior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento Pena. So Paulo: Martins Fontes, 2012.

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discurso apresentado como anterior ao prprio dilogo de Plato, visto que nele pouco importe sobre o que Grgias falara, mas sim como a audi-ncia reagiu a sua apresentao, as perguntas de Scrates incidem sobre as possveis consequncias da atividade de Grgias. Por isso deve-se afastar o elogio imediato e a epdeixis como mera diverso. Este, na trama de Plato, s faz sentido se se determinar a razo pela qual ele se justifica.

No momento em que apresenta a razo de ser sua atividade a melhor, a personagem de Grgias sai do espao indeterminado da plis em que se encontra no incio do texto do dilogo para adentrar na amplitude da cena poltica ateniense. A epdeixis anterior revela, no cenrio de Plato, querer ecoar sua voz para alm de sua apresentao. O espetculo gorgia-no de lgoi variegados que se modelam para o prazer da audincia resso-am assim, para Plato, como fala que ganha espessura no palco poltico. O lgos que Scrates exige dos lgoi de Grgias implica que este os lance ao combate na arena da plis na qual, paradoxalmente, ele est impedido de militar diretamente. A personagem Grgias de Plato, conduzida pelo Scrates platnico, estende a amplitude e eficcia de sua tkhne para dar a razo de ela ser a melhor: ela no , como se poderia no incio do dilogo supor, nem mero entretenimento, nem simples jogo discursivo. Ela ca-paz de exercer o poder de modo mais vigoroso, pois a palavra e o discurso seu lgos pleno configuram o ensino do rhtor Grgias, que, no dilogo, professor e estrangeiro em Atenas, mas, paradoxalmente, moldado e mo-delado pela atividade dos rhtores da democracia ateniense que curvariam assim os cidados a seus desgnios.

O Scrates de Plato pode, ento, no dilogo, concluir qual seja a tkhne de Grgias e tambm sua finalidade. Sendo assim, afirma Scrates sobre a fala anterior do Grgias de Plato:

agora, Grgias, voc est mais perto de mostrar que tipo de arte voc acredita ser a retrica e, se nisso o sigo, voc diz que a retrica produtora de persuaso e toda sua atividade e escopo principal para este fim se dirigem. Ou voc pode dizer que a retrica capaz de algo mais alm de produzir persuaso na alma dos ouvintes? 25

25 A definio explcita se completa apenas pela formulao de Scrates, como se este apenas chegasse s consequncias definidoras da atividade de Grgias: , , , , ,

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A eficcia da tkhne de Grgias se apresentaria, pois, no palco democrtico. Atenas, com suas instituies, o cenrio em que se exer-ceria sua finalidade. No conselho, nos tribunais e na assembleia ocorre a persuaso pelos discursos. O poder do dmos passaria por meio da persua-so a ser no a liberdade dos cidados, mas sua escravido pelo rhtor; no a isegora das falas, mas a fora maior de quem detm da fala sua arte; no um poder disseminado na plis, mas de quem o moveria pela persuaso26. Isso implica que, de algum modo, o ensino do rhtor Grgias encontraria sua finalidade na atividade dos rhtores atenienses, seus possveis discpulos,

(PLATO. Grgias, 452e-453a). Muito comentrio, com efeito, ressaltando a propriedade definidora de Plato, no lhe deixa de fazer jus, afirmando como de Plato aquilo que lhe de direito. Mas com isso se deixa de lado a justeza histrica que o dito de Plato implica: cette expression qui dfinit la rhtorique comme la production dun sentiment de conviction devait demeurer fameuse. Il ny a pas lieu den retirer la paternit Platon et de faire remonter soit Gorgias soit aux premiers rhteurs, Tisias et Corax, prcurseurs de Gorgias. On trouve, en effet, dans le Charmide (174e, o il est dit que la mdecine produit la sant) et le Banquet (188d, o lamour nous procure la capacit dtre amis avec les dieux comme avec les hommes) des expressions de mme facture que la clbre formule du Gorgias: elles attestent donc le style platonicien de lexpression. (PLATON. Gorgias. Traduction, introduction et notes par Monique Canto. Paris: Flammarion, 1993, p. 317, n. 16). Mas o platnico da expresso mais do que um estilo. Alm de nomear uma possvel de Grgias como retrica, Plato a modela segundo suas categorias e pressupostos: the clearest and simplest of these authoritative pronouncements are definitions in terms of final cause. Rhetoric is the artificer of persuasion (Plato in the Gorgias [453a]) or the influencing and swaying of the mind (psychagogia) through words (Plato in the Phaedrus [261a7-8]). More cautiously, it is the capacity for seeing how to be as persuasive as subject and situation will permit (Aristotle in the Rhetoric [1.2 1355b25-26], making allowance, as the medical analogy [1355b12-14] that accompanies his definition indicates, for a technically successful operation in which the rhetoricians client nevertheless dies). The conviction that persuasion produces may be true or false, but it ranks as belief, not knowledge hence the Platonic distinction (Gorgias 454d-55a) between persuasion and teaching, and Aristotles insistence (1.2 1356b34-57a7) that rhetoric is called for situations where rigorous, conclusive demonstration is either unavailable, or incapable of being taken in by audience. COLE, T. The Origins of Rhetoric in Ancient Greece. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1991, p. 3.

26 In Athens the situation was otherwise. Demokratia was meant litterally: the demos the adult male citizen body in its entirety held power (kratos) and did so unconditionally. Traditional social and economical divisions within the citizen body did not disappear; but full and equal political and legal privileges that is, citizenship were held by all Athenian men regardless of family background or wealth. The demos delegated no authority or power to any person or group of persons to decide matters independently on their behalf . YUNIS, H. Taming Democracy: Models of Political Rhetoric in Classical Athens. New York: Cornell University Press, 1996, p. 4.

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mas tambm a submisso de qualquer possuidor de riqueza ou de espe-cficos conhecimentos persuaso poderosa da palavra. A figurao de Plato configura a possesso da tkhne ao uso dela como poder poltico. Ao faz-lo, cria o que inicialmente nomeia e ressignifica seu uso.

Em primeiro lugar, o termo rhtor27, especificamente na Atenas do V sculo, parece especificar simplesmente o falante de uma assembleia:

the term rhetor (pl. rhetores), which literally means speaker, was used to designate any cityzen who volunteered to adress the Assembly either to move a proposal or just a contribute to debate. Thus any citizen could become a rhetor at any meeting of the Assembly by mounting the platform and speaking.

Como destaca Yunis, a igualdade de tomar a palavra era partilha-da por todos e o prprio Plato apresenta tal cenrio no Protgoras28.

Tal condio prvia, como possibilidade de partilha da plis de-mocrtica, nem sempre, contudo, efetivamente ocorreria. Da poder-se tambm dizer que

the term rhetor was also used to designate the notable citizens who regularly or frequently moved proposals or participated in debates, and thus repeatedly put themselves in the public eye as potential leaders. In this latter sense rhetores were citizens who concerned themselves with politics full-time in attempt to establish longterm leadership; thus rhetor is often translated as politician. 29

Sem, contudo, como destaca Yunis, serem profissionais, eles acabam por serem poucos, pois passam a dominar o debate nas assem-bleias. Fossem de origem nobre ou obtivessem eles prprios sua riqueza,

27 O termo se apresenta desde Homero. Gagarin assim descreve a passagem: We think of a Homeric hero like Achilles as the greatest of Greek fighters, but Achilles tutor Phoenix was charged with teaching him about public speaking (agorai) as well as about fighting to teach you to be both a speaker (rhetor) of words (mythoi) and a doer of deeds (Iliad 9.442-443). Instruction in speaking, like instruction in fighting, probably took the form of supervised learning by experience, though some general rules presumably were known. GAGARIN, M. Background and Origins: Oratory and Rhetoric before the Sophists. In: WORTHINGTON, Ian (Ed.). Companion to Greek Rhetoric. Oxford: Blackwell, 2007. cap. 3. Ver p. 27.

28 PLATO. Protgoras, 319c-d.29 YUNIS, 1996, p. 10.

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era necessrio tempo livre disposio para liderar as assembleias, visto melhor pudessem se informar das questes a serem debatidas. Havia as-sim uma discrepncia entre o amadorismo do dmos e a necessidade de uma liderana nas assembleias.

Plato indica tal sentido em Atenas no Grgias num momento posterior ao anteriormente apresentado. Aps Scrates dizer que, mesmo no quadro de uma arte determinada h sempre especificidades, a ponto de se dizer que Zuxis, alm de pintor, apresenta quadros de figuras vivas30, Grgias levado a admitir que h nas outras artes tambm persuaso acompanhada de ensino de sua especificidade. Sendo assim, diz Scrates que a aritmtica no apenas persuade, mas tambm ensina sobre os nme-ros pares e mpares. Grgias ento analogamente admite que ela persuade sobre o justo e injusto.

Scrates, na sequncia, admitida a diferena entre aprender e crer31, destaca que h persuaso: uma que instrui com conhecimento; ou-tra que produz crena sem conhecimento. Neste caso, a retrica no en-sina, mas, como afirma a personagem Grgias, persuade, sobre o justo e o injusto, a multido32. ento que Scrates afirma haver, nas prprias assembleias, a necessidade do especialista na arte determinada quando o assunto requer tal mestria. Nelas sero escolhidos para aconselhar os co-nhecedores da arte, falaro ou sobre doenas, ou sobre muros, ou cons-truo de navios e portos, os respectivos conhecedores da respectiva arte que domina. O mesmo ali ocorre quando se trata de assunto militar. Diz assim Scrates:

do mesmo modo, por sua vez, quando se aconselha sobre escolha de generais, a ordenao ttica contra os inimigos ou ocupao de territrios, aconselharo os especialistas na arte militar, no os especialistas em retrica. O que, Grgias, dizes de tais coisas? Pois j que tu mesmo afirmas ser um rhtor e tornar outros rhtores, bom indagar de ti as coisas acerca da tua arte 33.

30 PLATO. Grgias, 452c.31 PLATO. Grgias, 454c.32 PLATO. Grgias, 455a.33

, , , ,

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Importa aqui destacar na fala de Scrates a sutil mudana de vocabulrio e ressaltar o emprego do sufixo -kos que diferencia, num primeiro momento, o strategs do strategiks; num segundo, do rhetoriks para o rhtor, pouco notada entre muitos dos tradutores34. A personagem Scrates parece, assim, marcar uma mudana vocabular que se norteia pela exigncia do que se demanda de uma arte. Sendo assim, ao contra-por o especialista ao leigo, sem maiores ressalvas, a consulta ser feita a quem detenha conhecimento. Curiosamente, no entanto, ao escolher ge-nerais (), sero conselheiros na escolha os que detenham a arte da estratgia militar (). A analogia se faz do mesmo modo, diferenciando praticantes de conhecedores, com relao aos rhetoriko e os rhtores. Assim, supe-se que haja conhecedores de estratgias e tticas militares que se diferenciam dos que so escolhidos pela assembleia a partir do conselho de tais especialistas para o posto de estratego. H aqui a possibilidade de o especialista nomear outro que a ele se assemelhe, mas tal relao no parece necessariamente determinada pela escolha da multido. O mesmo vale, ento, para a separao entre o rhtor e o rhetoriks pois se supe a clivagem entre um especialista de uma arte e o praticante de uma atividade que no pressupe conhecimento. Inte-ressante notar como Plato assim apresenta a possvel separao entre o persuadir que se faa pelo aprendizado e uma empeira que se lance desprovida de qualquer saber prvio. A montagem da cena em Plato precisa para seu escopo: importa apresentar claramente a diferena entre saberes delimitados em sua especializao para sua consecuo, como o caso da construo, daqueles que orbitam na esfera poltica: o estratego e o conhecimento ou no da arte militar; o rhtor que se contrape ao rhetoriks porque na acepo ltima se apresenta a necessidade de um conhecimento capaz de instruir, de ensinar. Neste sentido, no final desta fala Scrates requer de Grgias que ele explicite no apenas para si, mas

, . PLATO. Grgias, 455b-c.

34 De vrias tradues consultadas apenas as de mile Chambry e a de Jacques Cazeaux notam a mudana e traduzem-na. PLATON. Protagoras, Euthydme, Gorgias, Mnexne, Mnon, Cratyle. Traduction, notices et notes par mile Chambry. Paris: Garnier, 1967; PLATON. Gorgias. Traduction, introduction, notes et commentaires de Jacques Cazeaux. Paris: Le Livre de Poche, 1996.

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tambm para a audincia presente, com os possveis discpulos que da podem surgir, se ser apenas sobre o justo e o injusto ou se haver ainda outros aprendizados decorrentes do seu ensinamento.

A resposta da personagem Grgias ignora a insinuao plat-nica presente na tnue mudana de vocabulrio; com efeito, a resposta parece implicar a acepo de rhtor no sentido poltico anteriormente apresentado. Sendo assim, a fala seguinte de Grgias retira do rhtor a exigncia da especializao para destacar que os conselhos militares e de preparao de portos no foram dados pelos tcnicos, mas por Temsto-cles e Pricles, ou seja, pelos polticos35. Sendo assim, continua Grgias, e quando h alguma escolha acerca do que tu falavas agora mesmo. Scrates, vs que so os retores os que aconselham e que fazem prevalecer suas opi-nies sobre estas questes36.

Se a personagem Grgias assume a contraposio entre o tcni-co e o rhtor, ele no a dimensiona na contraposio entre conhecimento preciso e opinio, pois esta pode implicar um conhecimento por experi-ncia que no se fundamenta numa certeza como a que fornece a mate-mtica, seja aritmtica ou geometria. Sem, contudo, entrar em tal seara, importa aqui destacar a implicao, urdida pelo prprio Plato, entre um possvel vocabulrio corrente em Atenas que no se firma na distino entre conhecimento tcnico e avaliao poltica. Reserva assim Plato para sua personagem Grgias entrever a fluidez de um vocabulrio que no se dimensiona pela possesso de uma arte com finalidade precisa e conheci-mento especfico. Como isso no ocorre, Plato lana Grgias numa tra-ma em que este s se enreda porque cumpre exigncias apresentadas pela personagem socrtica. De qualquer maneira, o prprio texto de Plato re-vela em seus interstcios a insinuao nele presente que modela uma nova acepo do termo e que passa a moldar o Grgias dos textos suprstites pela personagem presente no dilogo de Plato. Neste sentido, insere a personagem Grgias no cenrio poltico da democracia ateniense, retiran-

35 , . PLATO. Grgias, 455d-e.

36 , , . PLATO. Grgias, 456a.

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do do vocabulrio poltico desta o prprio cerne da atividade pedaggica e da tkhne deste Grgias.

Possivelmente assim se justifique a razo de atrelar a epdeixis inicial e at apresentada no texto como anterior ao prprio dilogo; com efeito, conduzir a personagem Grgias a delineada do espao indetermi-nado da exibio prvia para as instncias institucionais da plis ateniense implica de certo modo fundar nesta ltima a razo de seu ensino: os lgoi da personagem gorgiana multiplicam-se e multifacetam-se em funo do direcionamento poltico presente na atividade do rhtor que fundamenta sua atividade pedaggica. A passagem do rhtor poltico ao rhtor professor, detentor de um conhecimento e finalidade especfica assim se justificaria:

The dialogue does not distinguish the craft of the orator who knows how to produce certain effects on his audience from the craft of the rhetorician who knows how to teach others to produce these effects on audience. But the double use of rhetor for both orator and rhetorical teacher might not seem strange to Platos readers. Originally it probably means just speaker [] referring to public orators (see 455de; cf. Aristoph. Ach. 38, Eq.60, 358, Thuc. 8.1). The same term is naturally applied to the rhetorician because early rhetorical instruction was teaching by example, prescribing model speeches to be memorized and reproduced, rather than systematic formal instruction in the elements of speech-making 37.

Tal passagem, no entanto, pode ser tambm urdida por Plato justamente por ter como finalidade conduzir o leitor a aceitar tal entrelaa-mento. O prprio termo retrica refere algo que Grgias desconheceria como tkhne 38. Para Grgias, com efeito, no faria sentido uma arte da 37 PLATO, 1989, p. 113.38 All the material I have discussed thus far is evidence for early oratory (not rhetoric).

But it indicates that not only in Homer and Hesiod but throughout the archaic period, Greeks put a high value on effective speaking and thought about ways of making speeches effective. On the other hand, there is no evidence to suggest the systematic study or analysis of the practice of public speaking beyond the simple observation of individuals manners of speaking. Rhetoric in the fourth-century sense is still lacking. As mentioned above, however, traditional accounts of rhetoric locate its origin in the early or mid fifth century. The earliest evidence we have for this tradition are remarks of Socrates and Phaedrus in their discussion near the end of Platos Phaedrus (probably written 470450), when they mention several earlier figures who have written about the art of words (he logon techne, 266e267e). There are also scattered references in Aristotle to earlier writers of rhetorical technai (GAGARIN, 2007, p. 30)

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fala como posteriormente foi compreendida. A clivagem entre retrica e um sentido especfico do lgos funciona dentro da molda de Plato. No h, com efeito, a partir dos textos do V sculo uma retrica. Cole mostra o equvoco em se tratar os textos do perodo a partir da tica de Plato e o que ele quer que a se veja. Sendo assim, certas caractersticas do perodo mostram a distoro das lentes dos que empregam a correo do olhar.

No h a rigor no V sculo uma arte retrica segundo o molde de Plato. Ao contrrio, interessa a Plato firm-la, pois

[] the practice, inaugurated by Plato and Aristotle, of using the word rhetoric to refer both to an essential part of their own pedagogical program and, rather more frequently, to the inept or irresponsible (so it seemed to them) anticipations and alter-native versions of it to be found in the work of their contemporaries and predecessors. Rhetoric is thus made to seem, not only a discipline separated from philosophy, but one fundamentally at odds with it 39.

No Grgias, pois, ela apresenta seu carto de visita em batalha que fabrica o adversrio:

yet it is in philosophical texts that we first hear of this discipline; and the word rhetoric itself bears every indication of being a Platonic invention. There is no trace of it in Greek before the point in the Gorgias (449a5) where the famous Sophist after hesitation and (possibly) a certain amount of prompting from So-crates (448d9) decides to call the art he teaches the rhetorly that is, rhetors or speakers art (rhetorike techne). And the speakers art would probably have sounded too much like the shysters or demagogues art for the historical Gorgias or any of his contemporaries to want to lay claim to it himself. Even in the next generation the orator and educator Isocrates (c. 436-338 B.C.), usually credited with the creation of one of the two major traditions in ancient rhetorical theory, never uses the word nor does any other Attic orator. Down to the end of the fourth century, all occurrences are, with a single exception [Alcidamas 15. 1], confined to Plato and Aristotle 40.

A retrica como arte assim se especificaria, segundo Cole, com e

39 COLE, 1991, p. 2.40 COLE, loc. cit.

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por Plato, como um contraponto verdade, ainda que se possa ter um bom uso dela quando subsumido o verossmil s regras da verdade. O mesmo se poderia estender, tivesse Cole o cuidado que demonstra em re-lao retrica, a Grgias como sofista. o prprio Plato tambm quem firma a uniformidade de um gnero, como ocorre sobretudo na Apologia, para dele retirar Scrates. No h, pois, diversamente do que afirma o Grgias, um conjunto de preceitos no V sculo que, ensinando as regras, modelem o verossmil com fins persuasivos a partir de uma arte retrica, em sentido estrito. Ao contrrio, a persuaso como distinta do ensino, se aquela no for calcada na verdade, ou seja, a retrica como arte que se afasta do conhecimento verdadeiro dos valores morais, percute o escrutnio de Plato e por ele estabelecida.

Alm disso, como se viu, Grgias no podia participar direta-mente dos poderes que, no dilogo, ele afirma que a retrica possui. Sendo assim, restando-lhe a possibilidade do ensino, este deveria ser modelado independentemente das formas de governo de cada plis. Seria interessan-te imaginar a recepo deles fora de Atenas. Na tica, no entanto, sem d-vida, o pblico visado era o de oradores ou de possveis oradores. Destes, esperava-se a persuaso nas instituies atenienses em que a palavra tinha peso e espessura para tanto. Cabe, no entanto, verificar que os textos do V sculo, posteriormente classificados como retricos, utilizam-se de pro-cedimentos que, do ponto de vista da persuaso do ouvinte, podem ser considerados arretricos.

preciso assim distinguir o funcionamento do que opera no di-logo como prprio da finalidade persuasria das especificidades que mar-cam os textos do V sculo e as caractersticas que lhes so prprias; com efeito, se se notam as particularidades da prosa tica do perodo, como mos-tra Cole, o efeito menos o de mover e agradar do que o de tornar mais inteligvel os movimentos argumentativos. Analisando A Orao Fnebre de Grgias, por exemplo, Cole ressalta-lhe as qualidades arretricas: a rigidez decorrente da restrio no uso de partculas coloquiais; a dureza na sonori-dade, evitando a ligao dos sons entre uma palavra e outra; o uso de uma sintaxe regular, precisa e complexa, diversamente do modelo de Herdoto e de Plato; a densidade argumentativa de que falava Ccero ao se referir aos antiqussimos gregos: sententiis magis quam uerbis abundantes41; a 41 CCERO. De Oratore, 2, 92.

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ausncia de thos discursivo; a aplicao buscando um efeito mais geral em detrimento do acmulo de particularidades, como se verifica na contrapo-sio de Tucdides a Herdoto. Afora o balano sinttico, que prolonga na prosa o efeito potico, as caractersticas da maior parte da prosa do perodo tem um efeito que escaparia da qualificao do que se traa como retrico:

this prose is removed in one further way from anything ordinarily thought of as rhetorical: it is obviously a written prose, composed to be studied and deciphered by the eye as well as heard by the ear. Compactness, precision, regularity, and complexity are all more effective in a work composed for perusual at leisure than in one improvised for oral performance, and the syntactical features mentioned are probably essential components of the exactness (akribeia) regularly seen (Arist., Rhet. 3.12 1413b8-9) as characteristic of written rather than oral discourse. By the same token, harshness to the ear, formal stiffness, and lack of attention to euphony are more likely to be excused by a reader than by an audience 42.

Concomitantemente ao uso destacado da escrita, os textos do V sculo revelam tambm preocupaes com os efeitos das apresentaes orais. Como se disse, o pblico visado era o de oradores ou de possveis oradores. O texto tico seria assim composto para adequar-se a questes prprias a reunies polticas, judiciais ou epidticas, ou seja, ser utilizado na maior variedade de situaes possveis em que se desse uma apresenta-o oral que necessitasse empregar alguns dos argumentos presentes nos textos. o caso, afirma Cole, das Tetralogias de Antfonte e os Disso Lgoi. Mas, para alm disso, o prprio texto poderia ser empregado em apresen-taes pblicas:

it would be easy for such practice and demonstration texts to become display texts as well, pieces designed to show off the masters skill to admiring amateurs as well as illustrate its workings to prospective professionals. Of the two complete works of Gorgias that survive, the Helen or Apology for Helen and the Defense of Palamedes, the former probably belongs to this category. But its epideictic function has not been allowed to interfere with its pedagogical one 43.

42 COLE, 1991, p. 74.43 Ibid., p. 75.

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Em nenhum dos dois casos, no entanto, os argumentos seriam empregados apenas para o caso singular que apresentam. Ao contrrio, os argumentos visam aos mais amplos campos de utilizao, pois

there is to be, so far as possible, no case to which some of his arguments would not apply, and, as a consequence, no case to which all of them would apply. The particular situation, when it arises, will determine which of the arguments presented would be of actual use to pupil who memorized the sample piece 44.

Assim, dependendo da situao ou da habilidade maior ou me-nor do falante, o texto escrito era mais ou menos elaborado para apre-sentaes orais. Mas s a partir do uso primeiro, sempre independente de uma situao particular, passava-se ao segundo, ou seja, como epdeixis do poder do que o autor professava.

Por isso os textos de Grgias devem ser compreendidos na es-pecificidade de sua funo, prospectivos para uma apresentao oral, mas escritos. Decorrendo disso seu uso pedaggico, como mimetizao de uma situao especfica cujo fim precpuo sua reutilizao em ocorrn-cias outras em que seus argumentos possam ser reapresentados.

O modelo da resultante, compacto para ser mais facilmente memorizvel, destaca tambm o elemento ldico como adequado a seu uso educativo. Contrastando com seu emprego para fins de dominao poltica, tal como se apresenta no dilogo de Plato, o prprio Grgias aponta sua obra como brinquedo: [...] like in the Helen, only more so, the result is a toy (pagnion: cf. 21), but at the same time also like the Helen in this respect an educational toy45. Nesse sentido, o texto de Grgias pode empregar a pardia para contrapor argumentos, sempre tendo em vista seu valor pedaggico:

[...] even a certain element of self-parody is not excluded. Gorgias is on record as having appreciated the value of humor in countering the serious allegations of an opponent, and he may have been equally aware of the usefulness of parody and

44 COLE, 1991, p. 76. 45 Ibid., p. 78.

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pastiche as a mean for focusing students attention and making their memories more retentive 46.

Sendo assim, o texto de Grgias se lanaria prospectivamente ao jovem a quem se destinava, traando contornos pelos quais se atenta mais apropriadamente para a funo cumprida por estes textos mode-lares do V sculo como modelos argumentativos. Plato, ao contrapor o dialogar com seu uso de uma linguagem que mimetiza a fala, apresenta nele a personagem de Grgias falando como se escrevesse, ou seja, gor-gianizando47. O prprio efeito pardico utilizado por Grgias produzi-do tambm por Plato, mas com efeito diverso: tudo se passa como se a comicidade da personagem adviesse de sua vaidosa seriedade, diver-samente do modelo pedaggico que os textos suprstites de Grgias deixam entrever. Neles, nem se tem a persuaso como finalidade, nem se confirma uma dominao poltica.

Por fim, caberia melhor verificar detidamente nos textos do prprio Grgias a distncia que neles se verifica entre a modelagem de Plato de uma personagem cuja atividade se enquadraria no ensino de uma arte com finalidades polticas. O debuxo aqui delineado buscou apenas tracejar como a mestria de Plato delineou uma personagem a partir de questes prprias da democracia ateniense e das inmeras personagens platnicas, cidados ou estrangeiros, que a figuram e se movem na ameaa de uma dominao de lgoi que, como Clicles, no escutem nem discutam o lgos filosfico.

46 COLE, 1991, p. 78-79. 47 A montagem de Plato assim percute em muito comentrio como fidelidade histrica, pois

o intrprete assume a fala da personagem e a mimetiza como dado. Desse modo, por exemplo, opera Monique Canto: Cest sans doute encore une imitation platonicienne, la manire de Gorgias cette fois, dont le style est caractris par lemploi de termes rares ou recherchs, tels action manuelle (kheirourgma) - auquel Socrate substituera travail manuel (ergasia, cf.450c), synonyme plus prcis, plus courant, moins pompeux -, excution (kursis) que Socrate remplacera par accomplissement (kuros, cf.450e). Socrate commente du reste ce style gorgien dans le Mnon (76e): Mnon qui fait une rponse la manire de Gorgias, Socrate rplique en disant quil sexprime de faon bien tragique et majestueuse. (PLATON, 1993, p. 135, n. 9). Mas isso dar como evidncia histrica um efeito pardico de Plato.

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RESUMO O artigo analisa as passagens iniciais do dilogo Grgias de Plato a fim de verificar como, ao responder a Scrates, a personagem que d nome obra explica qual sua atividade. A trama platnica urde Grgias como um professor cuja tkhne tem por finalidade persuadir a multido. O trabalho discute se possvel que uma tkhne retrica se faa a partir da atividade do rhtor ateniense e seus vnculos com as instituies polticas de Atenas. Palavras-chave: Grgias. Plato. Democracia. Retrica.

RESUME Cet article analyse le dbut du dialogue Gorgias de Platon pour vrifier comment, en rpondant Socrate, le personnage qui donne le nom loeuvre explique quelle est son activit. La trame platonicienne tisse Gorgias comme un professeur dont lart a pour finalit la persuasion. Ce travail discute sil y a la posssibilit que lart rhtorique trouve ses dbuts de lactivit du rhtr athnien et ses liens avec les instituitions politiques dAthnes. Mots-cls: Gorgias. Platon. Dmocratie. Rhtorique.

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