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Centro Universitário de Belo Horizonte - UniBH Lucas Ferreira Mileib A POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA E A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988: Integração latino-americana fora do lugar? Belo Horizonte Novembro de 2010

A POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA E A CONSTITUIÇÃO DA ... · Resumo O presente trabalho visa apresentar uma análise acerca da construção constitucional brasileira que diz da integração

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Centro Universitário de Belo Horizonte - UniBH

Lucas Ferreira Mileib

A POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA E A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988:

Integração latino-americana fora do lugar?

Belo Horizonte Novembro de 2010

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Lucas Ferreira Mileib

A Política externa brasileira e a Constituição da República de 1988: Integração latino-americana fora do lugar?

Monografia apresentada ao Centro Universitário de Belo Horizonte – UniBH como requisito parcial à obtenção do título de bacharel em Relações Internacionais.

Orientador: Professora Marinana Andrade e Barros

Belo Horizonte Novembro de 2010

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Lista de siglas BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento BIRD – Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento EUA – Estados Unidos da América GATT – General Agreement on Tariffs and Trade MIR – Movimento de Esquerda Revolucionário (partido político da Bolívia) MNR – Movimento Nacionalista Revolucionário (partido político da Bolívia) PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro (partido político do Brasil) PDS - Partido Democrático Social (partido político do Brasil) URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas

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Resumo O presente trabalho visa apresentar uma análise acerca da construção constitucional brasileira que diz da integração social, política, econômica e cultural latino-americana. Pretende-se à princípio, estudar o contexto histórico do ordenamento mundial e sua relação com a política externa do Brasil e suas implicações na América Latina. Em seguida, torna-se necessário um debate jurídico sobre a concretização da norma em questão, para se verificar o fenômeno de constitucionalização simbólica. Em último lugar, abre-se um debate sobre a integração desenvolvida no continente desde a criação da norma, questionando se essa norma não estaria fora de lugar. Palavras-chave Política externa brasileira, integração regional, América Latina, Direito Constitucional, constitucionalização simbólica. Abstract The following article aims to present an analysis of the Brazilian constitutional construction regarding the social, political, economic and cultural Latin American integration. The first objective is to study the historical context of the world arrangement, its relation with Brazil foreign policy and implications in Latin America. Secondly, a legal debate regarding the fulfillment of the norm in question becomes necessary to verify the phenomenon of symbolic constitutionalization. Finally, a debate is presented that deals with the developed integration in the continent since the creation of the norm, questioning if this norm would not be "out of place”. Key words Brazil’s foreign policy, regional integration, Latin America, Constitutional Law, symbolic constitutionalization.

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A política externa brasileira e a Constituição da República de 1988: Integração latino-americana fora do lugar?

Lucas Mileib1 Marinana Andrade e Barros2

“As Constituições feitas para não serem cumpridas, as leis existentes para serem violadas...”3

Introdução: três linhas argumentativas

O presente trabalho visa apresentar uma análise entre a política externa brasileira no

contexto da formação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e a

pretensão de sua norma designada no Parágrafo Único do Artigo Quarto que diz que: A

República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos

povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de

nações. (BRASIL. Constituição4, 1988).

Não por acaso, o título deste trabalho inclui os três aspectos mais importantes a serem

abordados para a delimitação da pesquisa e discussão acerca de seu objeto: A política exterior

brasileira, a Constituição da República e a integração regional, pretendida na norma

constitucional. São assim os três argumentos centrais desse estudo que envolvem incursões

nos debates histórico-político, jurídico-filosófico e de relações internacionais e integração.

É importante notar que o trabalho não pretende esgotar todos os aspectos que

poderiam ser elencados a partir do objeto de estudo, e por isso não abrange todos os temas

que se envolvem com o objeto. Assim, a solução para a pesquisa se apega apenas aos

elementos supracitados por acreditar que são suficientes para o entendimento da inquietação

inicial.

Poder-se-ia abordar outras temáticas e estudos como, por exemplo, o Direito

Comunitário, o controle jurisdicional do Direito Constitucional, a constitucionalidade da

norma-objeto de estudo, a origem e as fontes - formais e materiais - do Direito de Integração,

a estrutura e a jurisdição comunitária, além da análise dos tratados e convenções que se

1 Graduando em Relações Internacionais no Centro Universitário UNIBH 2 Professora Orientadora 3 HOLANDA, Sério Buarque de. Raízes do Brasil. 1988. p.136. 4 Título I – Dos Princípios Fundamentais.

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correlacionam com a integração latino-americana. No entanto, o trabalho pretende ter uma

visão compreensiva do objeto investigado e por isso a adoção pela metodologia

multidisciplinar, que, ainda limitada, é estimulada para a solução do problema, mesmo que

gere uma delimitação teórica. O tipo de investigação utilizado, descritivo, favorece o

procedimento “analítico de decomposição de um problema em seus diversos aspectos,

relações e níveis.” (GUSTÍN, 2006, p.29) Desse modo faz-se acreditar que a pesquisa não se

torne apenas um aprofundamento de estudo.

Na primeira parte do trabalho, faz-se necessário analisar a política exterior que

conforme Amado Cervo (2002, p.11), corresponde a um instrumento utilizado pelos governos

que afeta diretamente o destino de seus povos, mantendo a paz ou fazendo a guerra,

administrando a cooperação ou os conflitos e estabelecendo resultados de crescimento e de

desenvolvimento ou de atraso e dependência. Nesse ponto, é destacado o período que

compreende o governo militar brasileiro de 1964 a 1985, e, por conseguinte, prolonga-se o

limite de tempo estudado até o período da promulgação da Constituição de 1988.

Diversos pontos são destacados desse período, com enfoque para o estudo da

intimidade com o Terceiro Mundo, em um foco maior para o Brasil dos anos 1980, que se

colocou em um embate com os Estados Unidos em diversas questões de tecnologia e

comércio. Soma-se a isso um estudo que visa a compreensão da instabilidade econômica

brasileira nos anos 1980, que, por sua vez, se relaciona com uma crise generalizada

complementar em diversos países vizinhos, sobretudo a Argentina. Por fim, ainda dentro do

argumento histórico, é destacado um fenômeno característico do século 21, aqui denominado

de a ascensão do resto, com vistas a ilustrar e completar uma possível futura resposta

conclusiva à indagação contida no título do trabalho. Assim, surge a necessidade de

comparação do contexto histórico internacional moderno em relação ao mundo bipolar que

ilustra a parte referente ao recorte histórico dado à política externa brasileira de 1964 à 1988.

Em uma segunda parte deste trabalho, há um estudo jurídico sobre a norma

constitucional, pois o texto constitucional em questão é, além de motivação direta para

surgimento deste trabalho, o próprio objeto de análise – junto, é claro, da história da política

externa brasileira e dos estudos de integração. Por isso, logo, faz-se necessário uma pesquisa

que se vincule ao campo jurídico, tangenciando o Direito Constitucional, e que aborda mais

profundamente a aplicabilidade das normas constitucionais, em um estudo sobre as normas

programáticas e em seguida também sobre o fenômeno da constitucionalização simbólica. O

primeiro faz referência à Constituição como se o nosso instrumento estivesse repleto de

normas de intenção, e, portanto não imperativas. Já sobre a constitucionalização simbólica

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pretende-se abordar as razões da não concretização das normas constitucionais, em uma

análise filosófica sobre a função meramente simbólica do texto constitucional.

Enfim, chega-se à uma última etapa do desenvolvimento dissertativo anterior à

conclusão, em uma terceira parte do trabalho, que pretende discutir a integração regional no

continente, e como esse imaginado processo de integração citado na norma constitucional se

relaciona com as teorias de integração. Assim analisar-se-á a teoria de integração que melhor

se enquadra para a delimitação do objeto – a construtivista –, e desse modo analisar como a

formação de identidades é tão, ou mais importante, para a própria integração, do que o texto

constitucional. O estudo não pretende esgotar aqui todo o recurso para o entendimento da

própria teoria de relações internacionais que o construtivismo apresenta, mas apenas analisá-

lo com uma abordagem específica relacionada aos estudos de integração. O objetivo de fazer

a discussão teórica chegar até essa parte é o de oferecer uma dimensão multidisciplinar e

suficientemente segura para o entendimento do objeto, mesmo que não se esgote outros

assuntos diversos que poderiam ser estudados para enriquecer a pesquisa, mas que, ainda

assim, definitivamente se relacione com o desenvolvimento argumentativo pretendido ao

longo do trabalho.

Na conclusão, portanto, se pretende responder às perguntas: se não seria a norma

pretensiosa em demasia? Seria assim tão fundamental para a política externa brasileira a

integração tal como pretendida, a ponto da norma ser criada na primeira parte da Carta

Constitucional? E mais adiante, se não estaria a norma constitucional fora de lugar, visto que

uma integração somente sul-americana pareceria suficiente?

Aí sim, já com uma delimitação do objetivo em uma abordagem histórica, jurídica e

teórica de relações internacionais suficiente para solucionar a inquietação principal, pode-se

pensar nas respostas, ou soluções, que mesmo com uma restrição nas abordagens

argumentativas do desenvolvimento do trabalho não empobrece a pesquisa como um todo.

A política externa brasileira e a evolução da ordem internacional desde 1964

O sistema internacional atual é muito diferente do que já fora. Há cem anos, havia uma

ordem multipolar comandada por uma coleção de governantes europeus, com alianças que

mudavam constantemente, rivalidades, erros de cálculo e guerras. Em seguida, veio o

duopólio bipolar da Guerra Fria, que se faz muito importante para o estudo, e que fora mais

estável em alguns sentidos, mas no qual as superpotências reagiam e exageravam nessa reação

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a cada movimento da outra. A partir de 1991, o sistema internacional vivenciou um império

americano em um mundo unipolar único. A economia mundial se desenvolveu e sua expansão

faz surgir o pensamento de uma nova mudança recente na natureza da ordem mundial, que

pode ser chamada de a ascensão do resto, ou, o mundo pós-americano (ZAKARIA, 2008).

O Brasil, em 1964, vivera o início de um período militar que duraria até o

restabelecimento da democracia em 1985. Acerca disso e em relação à política externa

brasileira que se iniciaria naquele momento, Cervo e Bueno (2008) comentam:

O regime militar que se instalou no Brasil, em abril de 1964, estabeleceu um padrão de relações internas, com o qual veio a romper em 1967, ao engajar-se em projeto de longo prazo [projeto desenvolvimentista], cuja continuidade não foi comprometida pelo governo civil, restabelecido em 1985. (CERVO, BUENO. 2008, p.367)

Os primeiros movimentos em relação à política externa comandado pelo primeiro

presidente militar daquele regime Castello Branco foram no sentido de destituição da política

externa independente e no afastamento dos ideais nacionalistas. Queria o então presidente

uma correção de rumos em relação aos governos anteriores.

Cervo e Bueno (2008) complementam:

A “correção de rumos” que o novo regime buscou imprimir à política externa compreendia, por um lado, a catarse da conduta anterior, e por outro, novos padrões substitutivos. Julgou-se necessário retificar o “curso sinuoso” que, sob “rótulos variados”, havia desviado a política externa de suas origens. A Chancelaria e a Presidência abriram fogo contra a Política Externa Independente, deturpada e sem “utilidade descritiva” em face da realidade bipolar; contra a política neutralista, que não servia a um país externamente ativo como o Brasil; contra o nacionalismo prejudicial, que afugentava o capital estrangeiro; contra a estatização, que obstruía sua penetração e o desenvolvimento da livre empresa; e contra a ruptura de laços afetivos e políticos com Portugal e o Ocidente, em nome do anticolonialismo (CERVO, BUENO. 2008, p.369)

O resultado dessa transição foi a opção de alinhamento declarada com o ocidente, que

parecia uma postura de defesa estratégica, ao mesmo tempo em que economicamente se

esperava uma maior abertura brasileira ao capital estrangeiro. No entanto, a política de

Castello Branco na verdade teve uma avaliação negativa pelo ocidentalismo declarado, e teve

vida curta, durando somente até 1967. Cervo e Bueno (2008) ilustram o momento:

O regime militar e sua radicalização comprometeram a imagem do país no exterior, subtraindo credibilidade a sua ação: a Venezuela rompeu as relações diplomáticas com o Brasil, o governo dos Estados Unidos inquietava-se com as medidas de exceção e a Europa exigia intensa ação diplomática brasileira para “desfazer equívocos” (CERVO, BUENO. 2008, p. 373)

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Assim, o projeto de política externa de Castello Branco que apresentou resultados

efêmeros, pois não acompanhava o seu tempo e tampouco respondeu às aspirações nacionais,

foi seguido por um projeto desenvolvimentista que tinha um foco claro no crescimento

econômico nacional. É importante ressaltar que a virada da política externa ocorrida em 1967

coincide com uma percepção de mudança entre o paradigma do sistema mundial, em que de

divisão Leste-Oeste, passava-se a perceber uma divisão Norte-Sul. Conforme Cervo e Bueno

(2008, p.372) observa “Deslocava-se o eixo gravitacional do sistema internacional, no que

dizia aos interesses dos povos em vias de desenvolvimento, de Leste-Oeste para Norte-Sul.”

Era uma inquietação dos povos atrasados que tentavam dialogar com os países

desenvolvidos, em uma busca por justiça com o apela por uma nova ordem mundial que

reformasse a vigente.

Cervo e Bueno (2008) dizem:

Concentraram-se os povos atrasados num objetivo-síntese, que se identificou com a luta travada na arena mundial pela implantação de uma Nova Ordem Econômica Internacional, destinada à superação da injustiça e da desigualdade. Pretendia-se, inicialmente, tornar igualitário o sistema de trocas internacionais, mas a esse fator essencial foram-se agregando novas exigências, como o controle sobre os recursos naturais (petróleo, minérios, fundo do mar, etc.) pelos Estados, a reforma das regras que presidiam às finanças internacionais e o controle da própria solidariedade do Terceiro Mundo, que evoluiu para uma “autonomia relativa” (Grupo dos 77), em cujo seio desenvolviam-se a cooperação, a associação, a integração, notadamente Sul-Sul e regional (caso bem sucedido da OPEP). (CERVO, BUENO. 2008, p.392)

O projeto de desenvolvimento estipulado entre 1967 e 1979 contava com

características de “universalismo, autonomia, flexibilidade, ajustabilidade, dinamismo e

coragem por parte da política externa brasileira.” (CERVO, BUENO. 2008, p.397) A

dimensão do poder nacional caracterizada neste momento fazia com que o Brasil rejeitasse o

poder associado aos Estados Unidos e à lógica ocidental, e assim, “o governo Costa e Silva

não conferia ao poder nacional a plenitude soberana, porquanto o vinculou, em grande

medida, ao poder emergente dos povos atrasados, em nova associação que esperava ver

frutificar.” (CERVO, BUENO. 2008, p.398).

No entanto, a postura de coragem da política brasileira contrastava com uma aventura

frustrante pelo cenário internacional, como expõem Cervo e Bueno (2008):

Foi limitado, entretanto, o poder de barganha que resultou da desvinculação brasileira do conflito Leste-Oeste e do apoio às soluções que adviriam pelo diálogo Norte-Sul. Por outro lado, o sistema internacional e as condições internas não induziram outras modalidades importantes de barganha para o Brasil, no período. O poder nocional representado e veiculado

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em escala crescente nos locais decisórios mundiais – o que correspondeu a outra tática para robustecê-lo -, teve, pois, de criar suas próprias alternativas. (CERVO, BUENO. 2008, p. 399)

Nesse sentido, Cervo e Bueno complementam:

As concessões feitas pelos países desenvolvidos diante da luta empreendida pelo Brasil, juntamente com o Terceiro Mundo, ficaram muito aquém das expectativas, porém não foram nulas, (...). Reagiram eles, entretanto, de forma rápida e eficiente, inventando novas modalidades de protecionismo, quando perceberam que tais concessões ameaçavam seus sistemas produtivos. A luta conjunta dos povos atrasados arrefeceu, ante o fracasso das negociações com o Norte, que se desengajou do diálogo com o Sul. (CERVO, BUENO. 2008, p. 403)

No âmbito interno, o projeto de desenvolvimento de Costa e Silva, que serviu por

nortear a política externa desde 1967, tinha fixado objetivos que, segundo Cervo e Bueno

(2008, p. 393-394), eram as fases: “ a) a de consolidação da indústria de transformação (Costa

e Silva e Médici); b) a de consolidação da indústria de base (Geisel); c) a implantação de

tecnologias de ponta (Figueiredo e Sarney).”

Os resultados do pragmatismo na política externa entre 1967 e 1979 favorecerem a

inserção internacional do Brasil no que se refere à aproximação com a América Latina, e isso

é fundamental para a compreensão do estudo que se faz. Nesse sentido Cervo e Bueno vão

dizer:

A política brasileira para a América Latina, entre 1967 e 1979, foi conduzida em três dimensões: a ação nos órgãos multilaterais regionais para promover a cooperação dos Estados Unidos ao desenvolvimento regional, as iniciativas de integração multilateral e bilateral intrazonal e o escalonamento da América Latina na estratégia de inserção mundial. Uma política de “conteúdo econômico”, coerente e contínua e que buscava adaptações sucessivas ao longo do tempo em função de resultados. (CERVO, BUENO. 2008, p. 416)

As ações que aproximaram o Brasil com a América Latina ocorriam em diversos

níveis. Foram feitos diversos contratos bilaterais, por exemplo, destinavam-se a encontrar

fórmulas para o incremento do comércio e da cooperação, debatidas no seio das comissões

mistas. Foram diversos projetos desenvolvidos em parcerias, sobretudo referentes à ligação

rodoviária e ferroviária, mas também construção de pontos e ampliação dos meios de

transporte e comunicação com todos os países vizinhos (CERVO, BUENO. 2008, p. 418).

Neste momento da pesquisa, procura-se fazer uma análise das pretensões diplomáticas

no período dos anos 1980 bem como do sistema internacional neste contexto. Vale dizer que o

próprio sistema internacional era caracterizado por uma oposição não exatamente tácita entre

Norte e Sul, não se acordando em diversas questões de política internacional, que acabou por

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gerar uma aproximação entre os países que pleiteavam um maior desenvolvimento do

hemisfério sul, o que se observa como uma intimidade entre os países de Terceiro Mundo.

No entanto, a diminuição da capacidade de influência no sistema internacional, não

era uma exclusividade brasileira, conquanto um efeito generalizado de grande maioria dos

países considerados de Terceiro Mundo. Assim, dessa dificuldade, pode-se visualizar o início

de uma pretensão integrativa mais elaborada, que acabou por construir uma solidariedade,

sobretudo comercial, entre os países em desenvolvimento na América Latina (CERVO,

BUENO. 2002. p.433).

Cervo e Bueno complementam:

A intimidade com o Terceiro Mundo agia na esfera da consciência política, criava condições para iniciativas regionais, influía em certas decisões multilaterais e situava o universalismo da diplomacia brasileira na solidariedade. O discurso refletia, ademais, o ambiente em que eram tomadas as decisões de política externa com a finalidade de superar dependências e reforçar a autonomia nos setores energético, de comércio exterior, de defesa de tecnologias avançadas para o Brasil, de cooperação e integração em geral.(CERVO, BUENO. 2002, p.431)

A afirmação acima sugere uma parte da questão, mas deixa de lado a política interna

dos países da América Latina. Nesse sentido, tem-se que a política interna nos anos da década

de 1980 coincidiu com o processo de restauração democrática na região (REIS, 1994 p.11).

Sobressaem, desse contexto, no âmbito interno ao Brasil, as enormes dificuldades

relacionadas à política econômica com que o país se defrontava. Todos esses fatores, logo,

tornam-se importantes para o desenvolvimento do texto constitucional brasileiro de alguns

anos depois, e por isso, também é proposta uma observação com minúcia dessa circunstância

histórica, em que os latino-americanos caminharam lado a lado.

Correlacionado ao período, um fato histórico que se considera relevante para a

pesquisa é o contexto da Guerra das Malvinas. Em que, um pouco antes do início de 1982, a

junta militar da Argentina, que havia destituído Viola da presidência e o substituído pelo

general Galtieri5, inspirada no Departamento de Estado, fez-se acreditar que poderia se tornar

um país-chave na região sul-americana, deslocando o Brasil, e se tornando, portanto um

intermediário das diretrizes estratégicas dos EUA. A aspiração ativava uma proposta

oferecida pela Administração de Reagan6, que acabou por estabelecer um pacto político-

militar no Atlântico Sul, que envolvia também a África do Sul, e que o Brasil não aceitara.

Foi nesse contexto, que o governo de Washington induziu a junta militar de Buenos Aires a

5 Roberto Eduardo Viola foi presidente da Argentina em um curto período em 1981. Leopoldo Fortunato Galtieri foi presidente da Argentina de 1981 a 1982. Ambos presidentes da junta militar. 6 Ronald Reagan foi presidente dos Estados Unidos da América de 1981 a 1989.

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crer que os EUA auxiliariam a Argentina na reivindicação das Falklands/Malvinas.

(BANDEIRA, 2003, p.445).

Diante dos fatos expostos, e mesmo que não representem de fato início dos 1980 para

análise fundamentalmente cronológica, servem de estudo ao ponto em que existem dois

aspectos a se destacar desse contexto histórico da política exterior da argentina, que podem

ser relacionados com o Brasil. O primeiro diz respeito às crescentes dificuldades econômicas

e sociais que o governo militar internamente se defrontava, e que se faz imaginar o

significado da conquista das Malvinas como fórmula de estimular a coesão nacional,

conforme ressalta Bandeira:

Com essa expectativa, Galtieri sentiu-se autorizado a ordenar a invasão do arquipélago, reacendendo militarmente uma causa quase sagrada para o povo da Argentina, a fim de promover a coesão nacional, de acordo com a fórmula de criar um inimigo externo para diluir as pressões domesticas, que se avolumavam na Argentina e ameaçavam a estabilidade da junta militar, abatida por forte depressão econômica, desmoralizada pelos escândalos e acossada pelos 20.000 espectros dos mortos e desaparecidos, cujas mães reanimavam a cada dia, na Plaza de Mayo, a resistência da sociedade civil.(BANDEIRA, 2003, p.446, grifo nosso).

O segundo aspecto relaciona-se às conseqüências do desembarque das tropas da

Argentina nas Malvinas, uma vez que a Grã-Bretanha reagiu e enviou uma esquadra em

direção ao Atlântico Sul. Os EUA não tiveram alternativa senão aliar-se abertamente à Grã-

Bretanha, face às pressões internas da opinião pública e do Congresso. Do outro lado, a

Argentina contou com o apoio dos países da América Latina (exceto o Chile, que favoreceu a

Grã-Bretanha, embora se declarasse neutro) e do resto do Terceiro Mundo, ainda que somente

no plano retórico. Com vistas à complementação histórica, tem-se que apenas o Brasil, Peru e

Venezuela deram apoio efetivo à Argentina. Destaca-se nesse sentido, a cooperação Brasil-

Argentina, que apesar de que não conviesse ao Brasil, fora mantida por Figueiredo. Essa

situação, além de suprimir o sentimento de rivalidade, estabelecia a confiança e fomentava as

condições para ulterior integração em seus espaços econômicos (BANDEIRA, 2003, p.449).

Pouco tempo após o término do conflito, do qual a Argentina se rendeu, ocorreu o

processo de colapso dos regimes militares em toda a América Latina, ainda que esses eventos

não tenham qualquer relação de causalidade, estando relacionados a fatores mais

conjeturantes. Dessa forma nota-se que a redemocratização, sobretudo na Argentina, no Brasil

e no Uruguai, contou com influência americana. Bandeira justifica tal assertiva:

A reversão que Reagan promoveu no curso da política exterior dos EUA, reanimando a guerra fria contra a URSS, [...], não obstaculizou, contudo a redemocratização dos regimes militares

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na América do Sul. Afinal as criaturas já não mais serviam ao criador. (BANDEIRA, 2003, p.459).

Naquela época, no Brasil, após praticamente 20 anos do regime autoritário, que fora

corroído pelas suas contradições internas e pressões populares, exauriu-se em favor do

restabelecimento da democracia.

Tancredo Neves, foi um dos líderes do partido de oposição (PMDB)7 que negociou

com o partido do governo PDS8, e acabou por conquistar o mandato de presidente do Brasil,

dentro do próprio Colégio Eleitoral instituído pelos militares, com finalidade de controlar o

processo de sucessão na chefia do governo. Como faleceu, foi seu vice, José Sarney, antigo

membro do regime autoritário, que foi investido no cargo de presidente, sendo o primeiro

civil a ocupar a função desde o golpe de Estado de 1964 (VICENTINO, DORIGO, 2003,

p.611).

Os primeiros anos após o final do regime militar foram marcados pelo

aprofundamento da crise econômica e pela inflação incontrolável. Foram complexos planos

econômicos, alardeados como solução final no combate à inflação, que fracassaram

sucessivamente, o que fez gerar uma piora ainda maior das condições da maioria da

população (VICENTINO, DORIGO, 2003). Bandeira (2003, p.460) complementa ao relatar

que, As estatísticas também indicavam que os 50% mais pobres do Brasil detinham apenas

13,6% da renda nacional, tanto quanto 1% dos mais ricos.

Um importante detalhe do final da Guerra das Malvinas foi que a Argentina acabou

estreitando seus laços com o Brasil, em vista dos recentes atritos com os EUA e com a Grã-

Bretanha, que geraram má impressão para a Comunidade Econômica Européia. Desse modo,

Raúl Alfonsín e José Sarney encontraram-se diversas vezes, e iniciaram importantes

conversas que orientariam o futuro das duas nações, e, o que é mais importante para este

estudo, inaugurariam promoções de condições de integração no continente, no sentido de

melhorias econômicas na América do Sul e intensificação de uma cooperação para o

desenvolvimento de setores capazes de gerar avanços científicos e tecnológicos (BANDEIRA,

2003, p.462-463). Era confirmado, com isso, o temor da não promoção do desenvolvimento

econômico pelos países desenvolvidos aos países do Terceiro Mundo (BANDEIRA, 1987).

Conforme Cervo (2002, p.432) contextualiza, havia, “um protecionismo cruel, um

diálogo Norte-Sul decepcionante ao longo das últimas décadas e a permanência de regras

7 Partido do Movimento Democrático Brasileiro. 8 Partido Democrático Social, que antes da reforma partidária para as eleições diretas para governador de 1982 era denominado Arena.

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injustas no comércio internacional.” Ele ainda reitera que, mesmo com as dificuldades

econômicas no âmbito interno, o Brasil sofrera com restrição dos mercados do Norte, no

âmbito internacional.

Como anteriormente dito, Cervo (2002, p.431-432) exemplifica as ações da política

externa brasileira que se prestavam a superar dependências o que ocasionou a chamada

intimidade com o Terceiro Mundo.

Cervo complementa com os dados:

E o perfil das exportações ia-se modificando: em 1967, o Terceiro Mundo participava com 12,8% das exportações brasileiras, 35,71% em 1981 e 31,6% em 1982; em 1973, absorvia 30% das exportações de manufaturados, 51,7% em 1981. Entre 1973 e 1982, a taxa média anual de crescimento das exportações para os países desenvolvidos fixou-se em 11,4%, e para os países em desenvolvimento em 20,7%, o que comprova o dinamismo do Terceiro Mundo e o acerto da solidariedade brasileira com ele. Colhiam-se os frutos da retórica. (CERVO, 2002, p. 432-433, grifo nosso).

Ainda nesse período, houve um episódio em que as exportações brasileiras estiveram

ameaçadas pela proposta americana de regulamentação pelo GATT, levada às reuniões de

Estocolmo (1985) e de Punta del Este (1986). Cervo e Bueno dizem que:

Se vitoriosa, consagraria a hegemonia norte-americana sobre o setor de comércio internacional e levaria o Terceiro Mundo a mais uma forma desastrosa de dependência, com a reserva do mercado de serviços para os países ricos (comunicações, transportes, publicidade, informática, seguros, etc.) Brasil e Índia lideraram a oposição aos Estados Unidos e obtiveram uma vitória temporária, porquanto decidiu-se que as negociações seriam conduzidas fora do GATT e as novas regras eventualmente seriam incluídas em seus regulamentos quatro anos depois. (CERVO, BUENO. 2002, p.433).

O Congresso dos EUA, em 1984, aprovou uma lei que impunha retaliação comercial a

países que dificultassem suas exportações. Ao mesmo tempo, no Brasil, houve a criação de

uma lei que definia uma política nacional de informática, que muito enfureceu os americanos,

que trataram de investigar tais práticas legais, a fim de averiguar se não configurariam uma

prática desleal de comércio. O confronto entre o Brasil e o EUA acerca da informática se

agravou, e por fim, o governo americano mostrou-se resignado com a resistência brasileira,

até mesmo para não provocar uma reação em reservas para outros setores de tecnologia

(CERVO, BUENO. 2003, p.435).

Além da carência de capitais nacionais próprios, a instabilidade crescente e a

desorganização econômica afugentavam investidores e debilitavam a credibilidade do país no

exterior.

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O distanciamento entre o modelo desenvolvimentista brasileiro e a vanguarda

capitalista mundial devia-se, principalmente, a profundas e importantes transformações

internacionais, relacionadas à dinâmica da globalização e às alterações geopolíticas. No

âmbito da produção, o Brasil não conseguia investimentos para a nova dinâmica produtiva e

tecnológica. Esse processo é denominado, por Vicentino e Dorigo (2003, p.643), como

Terceira Revolução Industrial, que era privilégio dos países mais poderosos.

No entanto, a respeito dessa situação brasileira, Cervo e Bueno vão dizer:

Nenhum setor prejudicou tanto as relações exteriores do Brasil, a economia e a sociedade brasileira, desde 1980, quanto o de endividamento externo. É inútil, porém, buscar na vasta documentação publicada pela Chancelaria informações sobre o andamento das negociações, porque o Itamaraty esteve ausente desse processo, como também o Congresso Nacional. As negociações foram conduzidas pelos economistas da Fazenda, do Planejamento e do Banco Central, à revelia da sociedade e de outros órgãos que a representavam. (CERVO, BUENO. 2003, p.435, grifo nosso).

No contexto da redemocratização do Brasil, havia a ideia em meio à população

brasileira de que todos os males do país se deviam exclusivamente à má administração da

economia por parte dos governos militares. Entretanto, a dimensão dos problemas a ser

enfrentada exigia muito mais que apenas um novo regime político. Vicentino e Dorigo (2003)

completam ao dizer que “à conjuntura política, ao mesmo tempo incerta e esperançosa,

acrescentava-se a deterioração do quadro econômico, no auge da crise da dívida externa”.

Do tratamento econômico e não político dado à crise da dívida externa, Cervo e Bueno

dizem que:

(...)Conjetura-se que o Itamaraty houvesse associado a negociação da dívida, utilizando-a de forma enérgica como poder de barganha, ao quadro do diálogo Norte-Sul, das negociações globais que exigia e da reforma da ordem internacional que delas haveria de resultar. Outra, entretanto, foi a visão dos economistas, inclinados a soluções monetaristas negociadas bilateral e diretamente com a comunidade financeira. Para não demonstrar falta de coordenação, o governo brasileiro inibiu a Chancelaria, liberando a área econômica, com o que queimou um extraordinário poder de barganha, em dissonância com as práticas de política externa exercidas desde Vargas. (CERVO, BUENO. 2003, p.435-436).

Não é difícil imaginar que, assim, os foros internacionais de soluções para as dívidas

externas de diversos países da América Latina consagrassem-se débeis e inoperantes.

A vontade imperfeita da Chancelaria brasileira no tratamento político da dívida

externa contribuiu para que toda a América Latina malbaratasse um poder de barganha de que

realmente dispunha para negociar com os países desenvolvidos. Sendo assim, o resultado, foi

uma recessão dos anos 1980 com o pagamento da dívida.

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Entende-se que o crescimento acelerado da maior parte da grande dívida externa

brasileira deu-se em dois momentos distintos. O primeiro correspondente ao período 1974-

1979, em que a maioria dos recursos foram destinados ao desenvolvimento da base

econômica, sobretudo pelas empresas estatais, no conhecido II Plano Nacional de

Desenvolvimento. O segundo momento corresponde de 1980 a 1987 quando, segundo Cervo

e Bueno:

(...) o crescimento da dívida deu-se por si mesmo, sob efeito de técnicas que os economistas chamavam de “rolagem”, ou seja, a contratação de empréstimos para prorrogar serviços e o acréscimo ao principal de juros e spreads vencidos. O montante da dívida evoluiu dos 49,9 para 115 bilhões. Fernando Henrique Cardoso demonstrou que um quarto da dívida de 1986 (101 bilhões), 25 bilhões de dólares, referia-se aos efeitos das altas taxas de juros. Entre 1983 e 1986, o Brasil pagou 42,9 bilhões de juros, não recebeu dinheiro novo para investimentos produtivos e, apesar disso, a dívida passou dos 70,2 para 101 bilhões. As transferências correspondiam a 20% ao ano da poupança nacional e a 4,1% do Produto Interno Bruto, superiores às transferências exigidas da Alemanha nos períodos de pós-guerra. Remetendo recursos líquidos reais ao exterior, um país pobre financiava os ajustes dos países centrais. (CERVO, BUENO. 2003, p.437, grifo nosso).

As manobras econômicas efetuadas durante o excesso de liquidez internacional,

durante a década de 1970, fez com que os credores da dívida, tivessem interesse em repassar

os recursos aos países de Terceiro Mundo. Nessa circunstância, foram impostos contratos, dos

quais os economistas brasileiros aceitaram em que as taxas flutuantes correspondiam a 77,5%

em 1988. De acordo ainda com Cervo e Bueno:

Aquele tipo de contrato assegurava aos credores a faculdade de elevar unilateralmente os serviços da dívida, em função de ajustes nas políticas monetárias de seus países, de tal modo que os ônus fossem repassados ao Terceiro Mundo. (CERVO, BUENO. 2003, p.437).

A evolução econômica, do período em que assumia Sarney, foi liderada por equipe de

economistas que, em sua maioria, criticavam o modelo econômico adotado nos últimos anos.

Foi preparado um combate à inflação que ficou conhecido como o Plano Cruzado, divulgado

e implantado de surpresa no primeiro dia de março de 1986. Esse plano consistia em uma

tentativa de combate à inflação sem comprometimento do crescimento econômico, partindo

do pressuposto de que a implantação da recessão seria um equívoco, dadas as desigualdades

sociais e o estado de miséria em que vivia grande parte da população (VICENTINO,

DORIGO, 2003).

No âmbito interno, foram adotadas medidas de caráter heterodoxo, tais como:

congelamento de preços pelo período de um ano, com o objetivo de combater a inflação

inercial; imediato reajuste dos salários acrescido de um abono e determinação para que os

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reajustes posteriores ocorressem quando a inflação alcançasse 20%; livre negociação de

salários entre empresários e trabalhadores, à época dos dissídios anuais, desde que os

aumentos não incidissem sobre o preço final dos produtos ou serviços; implantação de um

novo padrão monetário e novas regras para a realização de operações financeiras a fim de

adequá-las a uma situação de baixa desvalorização da moeda.

A situação trazida pelo plano, entretanto, não durou muito. A turbulência econômica

foi acrescida às questões políticas, visto que ficariam incumbidos de elaborar uma nova

constituição os deputados e senadores eleitos nas eleições de 1986, da Assembléia

Constituinte. A inflação escapou de qualquer controle, até atingir a taxa mensal de 2,5% em

novembro e 7,5% no mês seguinte (VICENTINO, DORIGO, 2003).

Em fevereiro de 1987, o país não tinha mais condições técnicas, isto é, dinheiro, para

pagar a dívida externa, e se somava à Argentina e ao México, na declaração da “moratória

técnica”. O Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas divulgou que, em

1984, o país tinha 11.995 bilhões de dólares em reservas líquidas internacionais e 700,2

positivos no balanço de pagamento. Entretanto, nos anos de 1985, enquanto tinha 11.608

bilhões de dólares em reservas líquidas somava um déficit de 3,2 bilhões na balança de

pagamentos, e em 1986, suas reservas atingiram somente 6.760 bilhões de dólares, enquanto o

déficit crescia enormemente, chegando ao saldo negativo de 12.356,3 bilhões de dólares

(FGV, 2003).

A crise econômica dos anos 1980 não era exclusividade brasileira, e acabou por gerar

uma complementaridade comercial, tecnológica e produtiva, sobretudo entre Brasil e

Argentina. No entanto, segundo Bandeira (2003), a aproximação desempenhada por Alfosín e

Sarney em diversos encontros, não se limitava às suas relações bilaterais, mas eram em favor

de um processo de integração que estivesse aberto a outras nações da região.

Nesse sentido, Bandeira complementa;

(...) Eles [Sarney e Alfonsín] chegaram à conclusão de que, isoladamente, o Brasil e a Argentina pouco ou quase nada iriam mudar na ordem mundial, mas unidos, poderiam influir gradativamente nas decisões de interesse da América Latina, desde as ameaças que afetavam a estabilidade do continente – crise centro-americana, dívida externa – a diversas outras questões, como corrida armamentista, as diversas formas de protecionismo comercial praticado pelas potências industriais, a instabilidade dos preços dos produtos exportados pelos países em desenvolvimento, a transferência e o desenvolvimento da tecnologia. (BANDEIRA, 2003, p. 468, grifos nosso).

Os acordos bilaterais entre o Brasil e a Argentina criaram a necessidade de

reavaliação, reestruturação e rearticulação com o Pacto Andino e com os demais países da

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América Latina. Naquele momento, o eixo Argentina-Brasil, representavam, segundo

Bandeira (2003, p.470), “parque industrial, como conjunto, era o maior, o mais dinâmico e o

mais sofisticado da América Latina”.

Para Cervo e Bueno (2003), houve um avanço nos aspectos de segurança e cooperação

do governo de Figueiredo para Sarney, na história da chancelaria brasileira. Em relação com a

América Latina e o Caribe, eles complementam:

(...) A aproximação com a América Latina e o Caribe foi determinada por fatores endógenos e exógenos: a função da política externa para a região, como para o resto do mundo, permanecer com o fim de viabilizar o setor ante as demandas do desenvolvimento e da segurança nacionais, mediante o incremento das exportações, de ações cooperativas bilaterais e multilaterais e da boa convivência. A crise da dívida externa, a esterilização do diálogo Norte-Sul, a intervenção norte-americana na América Central e no Caribe, a contra-ofensiva inglesa sobre as Malvinas com o apoio dos Estados Unidos, as retaliações econômicas impostas pelo Norte contra a Argentina, entre outros elementos, contribuíram para unir o continente latino-americano. (CERVO, BUENO. 2003 , p.450, grifos nossos).

Foi, nesse contexto, que os Estados Unidos acharam ser prudente, devido ao reflexo na

sua economia, causados pelas perdas de mercados na América Latina, elaborar medidas de

reforma que visavam um programa de privatização, uma desregulamentação da economia e a

liberalização unilateral do comércio exterior. Para Washington, essas seriam conditio sine qua

non para que, segundo Bandeira (2003, p.476), “os países da América Latina pudessem

renegociar a dívida externa e receber qualquer recurso das agências financeiras

internacionais”.

No entanto, vale ressaltar que esse consenso norte-americano tinha limitações às

políticas econômicas dos países que se aventuraram em negociar financiamentos com o BID

ou o BIRD, pois havia uma fixação de limites para os gastos militares, além, é claro, de uma

maior fiscalização internacional (BANDEIRA, 2003, p.476).

Bandeira, ainda, observa que:

O Washinton Consensus resumia-se na recomendação de que o Estado se retirasse da economia, quer como empresário quer como regulador das transações domésticas e internacionais, a fim de que toda a América Latina se submetesse às forças do mercado. E as medidas propostas, de caráter neoliberal, não eram muito diferentes das que foram tentadas pelos governos militares, entre os anos 60 e 70, e somente no Chile alcançaram certo êxito, embora com enorme custo social e total desconsideração dos direitos humanos. Depois, a Bolívia, serviu também como laboratório para a aplicação dessas medidas, sob o regime democrático, sem necessidade de maior repressão. Lá, todos os presidentes democraticamente eleitos depois de 1985, desde Victor Paz Estensoro (1985-1989), do MNR, a Jayme Paz Zamora (1989-1993), do MIR, e Gonzalo Sánchez de Losada (1993-1998), do MNR, aplicaram com certo êxito o mesmo programa neoliberal, dado que a hiperinflação o tornara aceitável para a população Em 1988, Carlos Salinas de Gortari, ao ascender à presidência do México (1988-94), cuja dívida externa representava 17% do PIB, tratou de empreender a reforma do Estado e promover a estabilidade macroeconômica, com base na correção

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estrutural dos desequilíbrios fiscais e monetário, assim como a desregulamentação do mercado interno e a privatização das empresas estatais, i. e., as medidas formalizadas posteriormente pelo Washington Consensus. O mesmo fez Carlos Andrés Pérez, da Acción Democrática, que inaugurou em 1989 seu segundo mandato como presidente da Venezuela. Igual rumo tomaram Carlos Saúl Menem, do Partido Justicialista, depois de assumir em 1989 a presidência da Argentina, e Fernando Collor de Melo, ao investir-se na presidência do Brasil, em janeiro de 1990, com a promessa de modernizá-lo no Primeiro Mundo, mediante a privatização de empresas estatais, a desregulamentação da economia e a liberalização do comércio. Depois foi a vez de Alberto Fujimori, eleito presidente do Peru em 1990. (BANDEIRA, 2003, p. 477, grifos nossos).

A ilustração do ambiente latino-americano supracitado é conferida, por suposto, pelo

movimento de consolidação da restauração democrática. Com isso, Reis (1994, p.11) diz que

“a América Latina ganhava autoconfiança e alimentava expectativas: descobrira, por conta

própria suas potencialidades de cooperação, em bases mais pragmáticas e realistas.” Reis cita

ainda, como título de exemplificação, o entendimento entre Brasil e Argentina, amparado pelo

estímulo presidencial Sarney-Alfonsín. Contextualizando o processo descrito por Bandeira,

Reis (1994) complementa: “Como a verdadeira mão invisível, a democracia tem o dom

benigno de curar”, pois ajuda a sepultar as rivalidades arcaicas e abre perspectivas para uma

aproximação latino-americana.

No entanto, com uma visão mais abrangente, Cervo e Bueno (2008) dizem:

Em 1989, conluía-se o ciclo desenvolvimentista da política exterior inaugurado por Vargas nos anos 1930. Ao invés de servir à inserção madura no mundo interdependente, a política exterior perdeu seu norte desde 1990, caracterizando-se pela dispersão operacional entre os interesses do desenvolvimento e a subserviância às novas estruturas e formas do poder global. (CERVO, BUENO. 2008, p. 368)

Nota-se, em um momento seguinte ao ilustrado acima, e com o devido corte temporal

que salta a década de 1990, o fenômeno da ascensão do resto. Tal fenômeno atual merece

devida análise para logo se poder concluir sobre a pergunta-título deste trabalho. Identifica-se

no recorte histórico agora mencionado (século 21), pela primeira vez na história um genuíno

crescimento global que está criando um sistema internacional em que países de todos os

cantos do planeta não serão mais objetos ou observadores, mas atores por seus próprios

méritos (ZAKARIA, 2008).

No século 21, o mundo se apresenta mais globalizado do que nunca, com uma grande

abertura dos mercados que somados à evolução da tecnologia definitivamente pode-se ajudar

na constatação de um sistema internacional realmente multipolar. Há ainda uma maior

difusão do poder, com o crescimento dos atores não-estatais, dos organismos internacionais,

por exemplo. Zakaria (2008, p. 14) explica que:

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(...) O poder se afasta dos Estados-nações, para cima, para baixo e para os lados. Nesta atmosfera, as aplicações tradicionais do poder nacional, tanto econômica quanto militares, tornaram-se menos eficazes. (ZAKARIA, 2008, p. 14)

Neste ponto, pretende-se destacar ainda, que a referência às aplicações tradicionais do

poder nacional que se encontrariam menos eficazes, também pode-se elencar o poder das leis

nacionais, como se pretende abordar na próxima parte do trabalho.

Abordagem jurídico-filosófica da Constituição

Aquilo que, reverencialmente, o homem comum denomina direito, observa Arnold

(1971, apud FERRAZ JÚNIOR, 2008, p. 09):

(...) corresponde a uma certa atitude, uma forma de pensar, uma maneira de referir-se às instituições humanas em termos ideais. Trata-se de uma exigência do senso comum, profundamente arraigada, no sentido de que aquelas instituições de governo dos homens e de suas relações simbolizem um sonho, uma projeção ideal, dentro de cujos limites funcionam certos princípios, com independência dos indivíduos.” (ARNOLD, 1971, apud FERRAZ JÚNIOR, 2008, p.09, grifo nosso).

Não se propõe este trabalho, no entanto a discutir o que seria o direito em si, discussão

que não se faz necessária, devido ao diferente enfoque dado ao trabalho. Nesse sentido, a

assertiva de Arnold tráz importantes expressões que serão necessárias para compreensão da

dimensão da Constituição da República de 1988, relacionando-se com seu contexto político,

histórico e econômico desta pesquisa.

As expressões “simbolizam um sonho, uma projeção ideal” podem ser associadas,

entre outros entendimentos, à percepção brasileira perante a América Latina. É nesse sentido,

que Reis (1994, p.14) argumenta em um conceito apenas retórico, ao dizer da “América

Latina é a Nossa Circunstância”, título de uma parte de seu trabalho sobre o Brasil e a

América Latina. Assim, complementa:

Embora influenciado pelo momento histórico, o “latino-americanismo” da Carta de 88 tem raízes mais profundas e implicações mais amplas. Pode-se dizer que é a culminância de um processo histórico e, concomitantemente, o ponto de partida de um novo ciclo. Muito já se tem escrito sobre este tema, e talvez por isso convenha retroceder ao essencial. Explico-me: a História diplomática não é apenas uma crônica e uma avaliação, sem dúvida indispensáveis, é sobretudo uma interpretação, uma hermenêutica. O passado não se reproduz como tal, mas se repete em espiral, ascendente ou descendente. O que fica é uma consciência mais apurada da nossa própria percepção, dos seus caminhos e descaminhos. Este resíduo se incorpora à

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sensibilidade do ofício diplomático, talvez antes de emergir no próprio discurso. (REIS, 1994, p.13, grifo nosso).

Em 1992, o então Ministro das Relações Exteriores do Brasil, Celso Lafer9,

pronunciou uma frase que, de fato, auxilia na compreensão da criação da norma

constitucional, onde diz: “A América Latina não é para nós uma mera opção diplomática. É,

como tenho afirmado, a nossa circunstância.” E o Ministro complementa, “A América Latina

é grande demais, importante demais, ausente da construção dos novos tempos”.(1992, apud,

REIS, 1994, p. 13).

O debate jurídico não se pode resumir à pretensão expressa pelos governantes, mas

deve atentar-se para o próprio texto constitucional em si. Destarte, localizar o Direito

Constitucional e a Constituição como elementos fundamentais da democracia que se iniciava

em 1988 é de grande relevância. Nesse sentido, Gonçalves (2009) afirma que a Constituição

de 1988 passou a ser o centro de toda a ordem jurídica brasileira.

Conforme Gonçalves:

O Direito Constitucional não existe sem o poder, pressuposto da existência do político. Trata-se, contudo, de poder juridicamente vinculado ao Direito o que dá sentido e constitui objeto do Direito Constitucional. Por isso é que o estudo do Direito Constitucional envolve o conhecimento do Estado Democrático de Direito, seus paradigmas e problemas. (GONÇALVES, 2009 p.01).

Antes de aprofundar o estudo na concretização da norma constitucional, faz-se

necessário uma pequena discussão acerca do conceito da Constituição. A palavra Constituição

vem do verbo latino constituere, que significa estabelecer definitivamente. Foi somente

depois da revolução francesa que se teve uma noção do regime constitucional moderno, e que

transpõe a idéia de imperium, sendo assim a constituição como o resultado da vontade

criadora do povo. (GONÇALVES, 2009, p277).

Segundo Silva (1989, p.37),

A Constituição do Estado, considerada sua lei fundamental, seria então, a organização dos seus elementos essenciais: um sistema de normas jurídicas, escritas ou constumeiras, que regula a forma do Estado, a forma de seu governo, o modo de aquisição e o exercício do poder, o estabelecimento de seus órgãos e os limites de sua ação. (SILVA, 1989, p. 37).

Conforme Schmith (1934, apud GONÇALVES, 2009, p 278), “a Constituição está no

conjunto de políticas fundamentais do poder constituinte, que refletem a realidade do povo

9 Celso Lafer, conferência pronunciada na Escola Superior de Guerra em 24 de agosto de 1992.

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(...)”. Ele ainda distingue quatro conceitos básicos que se possa formar a esse respeito, sendo,

o conceito absoluto, o conceito relativo, o conceito positivo e o conceito ideal. O primeiro se

refere à Constituição como um todo unitário, o segundo conceito diz da sua pluralidade de leis

particulares. O terceiro conceito trata a Constituição como decisão de conjunto sobre o modo

e a forma da unidade política. O último conceito trata a Constituição assim chamada em

sentido distintivo e com certo conteúdo.

Nesse sentido, cita o fenômeno denominado de “constitucionalização do Direito” que

não significaria apenas que o texto constitucional tenha incluído normas específicas de cada

domínio do direito, mas, sobretudo, que a reinterpretação do direito infraconstitucional se faz

sob a óptica e o crivo da própria Constituição. Abre-se espaço, para que se estude a própria

interpretação constitucional, Gonçalves afirma:

(...) toda interpretação jurídica é também interpretação constitucional. Qualquer operação de realização do direito envolve a aplicação direta ou indireta da Lei Maior. Aplica-se a Constituição: a) Diretamente, quando uma pretensão se fundar em um uma norma do próprio texto constitucional. (...). b) indiretamente, quando uma pretensão se fundar em uma norma infraconstitucional, por duas razões: (I) antes de aplicar a norma, o intérprete deverá verificar se ela é compatível com a Constituição, porque se não for, não deverá fazê-la incidir. Essa operação está sempre presente no raciocínio do operador do Direito, ainda que não seja por ele explicitada; e (II) ao aplicar a norma, o intérprete deverá orientar seu sentido e alcance à realização dos fins constitucionais. Em suma: a Constituição figura hoje no centro do sistema jurídico, de onde irradia sua força normativa, dotada de supremacia formal e material. Funciona, assim, não apenas como parâmetro de validade para a ordem infraconstitucional, mas também como vetor de interpretação de todas as normas do sistema. (GONÇALVES, 2009, p. 21-22, grifos nossos).

Ainda no Direito Constitucional, Gonçalves (2009, p.51) apresenta informações

necessárias para entendimento no estudo em questão, ao dizer que: “(...) Estado e Constituição

revezam-se historicamente como conceitos-chave do Direito Público.” Isso dito, tem-se a

impossibilidade de se entender o Estado sem a Constituição. Completa ao afirmar que: “E a

Constituição deve ser entendida não apenas como norma, mas também como estatuto do

político, para o que há de se reportar ao Estado, cuja existência concreta é pressuposto da sua

existência”.

Gonçalves (2009, p.279) diz que “a Constituição é concebida como uma estrutura

normativa que envolve um conjunto de valores”. Esse “conjunto de valores” torna-se portanto

muito necessário para a compreensão do fenômeno da constitucionalização simbólica bem

como das normas programáticas.

Em seguida, ainda dentro da abordagem jurídica, torna-se válido o questionamento

sobre a aplicabilidade da norma constitucional que pretende a integração latino-americana.

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Dado que a Constituição é conhecida como a forma de legislação que se localiza no cume da

hierarquia da ordem política. Como se não bastasse, a norma figura ainda, na primeira parte

da Carta Magna, denominada Título I – Dos Princípios Fundamentais. (GONÇALVES, 2009).

Sendo assim, faz-se necessário analisar o conteúdo social das constituições, que quando

normas, são chamados de normas programáticas.

Destarte, quando o conteúdo social das constituições, que têm princípios ideais em

suas normas, essas são chamados de normas programáticas.

A Constituição de 1988 é um documento que serve de grande exemplo para se

entender as normas programáticas, por ser uma constituição dirigente que tem em suas

normas diversos exemplos de definições de programas para ação futura, no sentido de uma

orientação social democrática. Assim, a Carta Constitucional previa providências ulteriores

para incidir de modo a gerar a real concretização das normas elaboradas (SILVA, 2007).

As normas constitucionais de princípio programático são aquelas em que se faz

necessária a utilização de programas a serem desenvolvidos ulteriormente pela atividade dos

legisladores ordinários. (SILVA, 2007)

Para este trabalho, a razão do estudo do livro Aplicabilidade das Normas

Constitucionais, de Silva (2007), se faz no sentido de reconhecer se o parágrafo único do

artigo quarto da Carta seria apenas uma norma programática. Silva elenca alguns elementos

que podem comprovar tal assertiva, ao dizer que:

Regras jurídicas programáticas são aquelas em que o legislador, constituinte ou não, em vez de editar regra jurídica de aplicação concreta, apenas traça linhas diretoras, pelas quais se hão de orientar os Poderes Públicos. A legislação, a execução e a própria justiça ficam sujeitas a esses ditames, que são como programas dados à sua função. (SILVA, 2007, p.137.)

E completa definindo que são:

(...) aqueles normas constitucionais com as quais um programa de ação é assumido pelo Estado e assinalado aos seus órgãos, legislativos, de direção política e administrativos, precisamente como um programa que a eles incumbe a obrigação de realizar nos modos e nas formas das respectivas atividades.” (SILVA, 2007, p.138)

Após a compreensão da programatividade da norma, SILVA ainda nos ajuda a

perceber que “tais normas traduzem os elementos sócio-ideológicos da constituição”, e,

portanto teriam a importância de iniciar “os fins e objetivos do Estado” (SILVA, 2007,

p.139). Nesse sentido, a pretensão de criação de uma comunidade latino-americana bem como

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a implicação que tal norma gera, parece ficar dependente de outras ações. É como se a norma

por si só, não fosse necessária o bastante para a concretização do que diz.

É nesse momento, em que se configura a necessidade de se fazer mais uma abordagem

jurídica. Desta vez, a pretensão tem enfoque no significado social e político dos textos

constitucionais, exatamente na relação inversa de sua concretização normativo-jurídica.

O problema aqui não se reduziria à tradicional discussão sobre a ineficácia das normas

constitucionais, mas se procura analisar os efeitos sociais da legislação constitucional

normativamente ineficaz. É nesse contexto que se procura discutir a função simbólica de

textos constitucionais carentes de concretização normativo-jurídica (NEVES, 2007).

Nesse sentido, sobre a relação entre o texto e a realidade constitucionais como

concretização de normas constitucionais, Neves reitera que:

Não se trata, aqui da antiga dicotomia “norma/realidade constitucional”, mas sim do problema referente à “concretização” das normas constitucionais, que, nessa perspectiva, não se confundem com o texto constitucional. Sob esse ponto de vista, o texto e a realidade constitucionais encontram-se em permanente relação através da normatividade constitucional obtida no processo de concretização. (NEVES, 2007 p.83).

Com efeito, a pergunta levantada traz à tona a insuficiência constitucional,

denominada por Neves de “A Constitucionalização Simbólica”, que é inclusive o título de seu

livro consultado. Neves (2007) procura fazer uma incursão no significado social e político dos

textos constitucionais, o que se torna importante para a análise valorativa do parágrafo único

do artigo quarto da Constituição da República de 1988. Propõe que as normas constitucionais

não se concretizam no universo normativo-jurídico. Em outras palavras, haveria um enorme

problema com a concretização e aplicação dos diplomas constitucionais que existem, tendo

assim importância apenas simbólica.

Tais fundamentações parecem desmedidas visto o enorme esforço e esperança

depositado para a consolidação do Estado Democrático de Direito e para com a

redemocratização. Se, por um lado, foi dada tamanha importância à construção do diploma do

mais necessário à nossa situação, porque este teria efeitos simbólicos? Neves demonstra como

a carência normativo-jurídica da concretização das normas seria um efeito social da legislação

constitucional ineficaz (NEVES, 2007).

A integração regional na América latina: teoria e prática

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Uma análise mais precisa do sistema internacional nos leva a concluir que poucos

Estados são homogêneos e muitos são profundamente divididos (HOROWITZ, 2000). Nesse

sentido, os estudos da integração regional, em sua maioria, quando tratam de seu fenômeno

teórico, têm como base o exemplo europeu. (RAMOS, MARQUES, JESUS, 2008).

Tem-se, hoje, na União Européia o melhor exemplo de um processo de integração

regional bem sucedido. No entanto, ainda assim, esse objeto político para análise comparativa

que é a União Européia por si só apresenta diversas dificuldades estruturais para sua

implementação. A integração latino-americana está ainda muito distante da realidade do

processo europeu.

Não foi uma identidade especial entre os povos latino-americanos que fez com que o

legislador criasse a norma visando a integração. Aliás, mesmo que os ventos da integração já

soprassem no continente americano desde o momento de início das independências, esta

sempre esteve bem interligada com a questão econômica. A necessidade de auto-afirmação da

sociedade estatal de mercado, somada à luta contra a Espanha, remontam ao início do século

XIX esse argumento. Somente a idéia da formação da Confederação Bolivarista tinha um

cunho político (CARNEIRO, 2007).

Carneiro aponta ainda um fator principal a prejudicar a consolidação dos blocos

regionais a se formarem na América do Sul como sendo, justamente, a indefinição de seus

verdadeiros propósitos. Haveria, no caso sul-americano, uma face voltada para a Europa e

outra para o próprio aprofundamento das relações americanas. O embate persistiria e são os

americanos que perdem com a falta de cooperação para solucionar, por exemplo, seus

problemas sociais (CARNEIRO, 2007)

Carneiro (2007) ainda aborda o cunho utópico da integração, que pode se relacionar

com a utopia constitucional já abordada:

A integração dos povos – um sonho acalentado pelos socialistas do século XIX – não apenas no âmbito regional, mas planetário, trata-se, hoje, de uma inexorabilidade histórica irrefutável – embora o humanismo universalista permaneça circunscrito à esfera da utopia. Da mesma forma, a interdependência econômica dos Estados, o que torna a cooperação regional praticamente inevitável em face da evidente hipossuficiência local em suprir as necessidades de bem-estar de cada população. (CARNEIRO, 2007; 02)

Tem-se ainda o surgimento, com a globalização, de novas demandas que são

complexas e extrapolam as questões que sempre orientam o sistema mundial de mercado,

como a ênfase no livre-comércio e a necessidade estatal de exportação de capital. Essas novas

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demandas complexas, que envolvem, além dos aspectos da nova ordem mundial que Zakaria

(2008) elenca no chamado mundo pós-americano, também outros assuntos que, por sua vez,

não serão abordados nesse estudo como os problemas ambientais, as migrações

extraterritoriais, combate ao crime organizado, entre outros. Ainda assim, essas demandas

prementes não podem ser tratadas e reguladas unilateralmente e daí a importância da

integração para que juntos os Estados possam ofertar soluções a esses problemas regionais

estruturais. (CARNEIRO, 2007)

Essa visão apresentada caminha em contra do sistema interstatal clássico, westfaliano

– no qual cada Estado é potencial inimigo – e que para Carneiro ainda persiste. Como se

mesmo com o potencial de desenvolvimento integracionista entre os estados, ainda houvesse

um sentimento egoísta enraizado no seio dos Estados, que dificultasse o processo de

integração.

Assim, ainda com os perigos da herança do sistema westfaliano temos, na assertiva a

respeito do regionalismo, por Ramos, Marques e Jesus (2008) em que:

O regionalismo, de modo geral, está relacionado ao surgimento concomitante de arranjos regionais que contemplam a cooperação em diferentes áreas, tais como, político-institucional, econômica e sociocultural. A integração regional não requer, necessariamente, cooperação econômica, sendo que existem arranjos de integração regional voltados exclusivamente para a área de segurança. (RAMOS; MARQUES; JESUS, 2008, p.08).

Para complementar a essa questão, estudar-se-á o fenômeno do regionalismo,

amparado na teoria de integração em que se destaca a visão construtivista como teoria de

integração regional. Assim, não se abordará, como dito, uma maior compreensão histórica do

processo de integração do continente, seus conflitos, rivalidades e políticas particulares de

instituições que podem incorrer no ângulo latino-americano.

Desse modo, no que se busca compreender para este trabalho, da integração

pretendida associada à fragilidade econômica brasileira do momento da criação da norma

constitucional, temos a assertiva de RAMOS; MARQUES; JESUS, (2009, p. 06) que diz que:

A Regionalização pode fazer emergir grupos, atores e organizações regionais. A Regionalização e o Regionalismo são fenômenos complementares, em que um impulsiona o outro. Assim, a regionalização pode tanto preceder quanto advir do regionalismo. No regionalismo, a formação de blocos regionais pelos acordos de integração, provoca uma liberalização de comércio, de modo seletivo, ao mesmo tempo em que impõe barreira comerciais àqueles que não fazem parte do acordo (RAMOS; MARQUES; JESUS, 2009, p. 06, grifo nosso).

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Acresce-se, à tal assertiva, a conclusão de acordos comerciais que vinculam

praticamente todos os atores da região, como um fator importante a ser considerado também

nesse cenário. No entanto, tais acordos não são, como já dito, objeto de análise para o

presente trabalho.

Pode-se chegar portanto, pelo estudo até aqui já efetuado, que uma perspectiva crítica

do processo de integração latino-americano envolve uma abordagem em que se destaca o

construtivismo, que vai em contra ao racionalismo.

Para esta teoria as estruturas sociais que dão suporte para as interações entre os

Estados, bem como há uma valorização do social e desvalorização das estruturas da política

mundial consideradas materiais. Melhor dizendo, no construtivismo, não existiriam estruturas

materiais. Explica Rosamond (2000):

Para o construtivismo as estruturas da política mundial são sociais e não materiais. Assim, as estruturas da política mundial são vistas como resultado de interações sociais, não sendo os Estados sujeitos estáticos, mas agentes dinâmicos. Nesse sentido, suas identidades não são dadas mas (re)constituídas através de práticas históricas complexas e sobrepostas. Uma vez que a interação social passa a ser vista como o mecanismo fundamental por meio do qual se dá a reprodução das estruturas, começa-se então a perceber distinções fundamentais entre o construtivismo e o racionalismo. (Rosamond, 2000. apud RAMOS; MARQUES; JESUS 2009)

A teoria aqui vai auxiliar o estudo, pois demonstra como os racionalistas quanto os

construtivistas concordam no ponto em que as instituições importam na medida em que

exercem certa influência causal independente nas relações internacionais.

(...) Contudo, o grande desacordo entre essas duas grandes abordagens reside em seus argumentos sobre como as instituições importam. Por um lado, os racionalistas geralmente definem as instituições como regras formais ou informais do jogo que incentivam os atores racionais a adotarem certas estratégias na busca por suas preferências (que são dadas exogenamente). Por sua vez, o construtivismo define as instituições de maneira mais ampla, incluindo normas informais e entendimentos intersubjetivos bem como regras formais, e dão uma importância fundamental às instituições, que constituem os atores e moldam não apenas os incentivos, mas também as preferências e as identidades dos atores (Pollack, 2001. apud RAMOS; MARQUES; JESUS 2009)

Assim, é interessante perceber que na lógica construtivista da teoria de integração

existe uma complexidade do processo dinâmico de constituição de identidades sociais

buscando conhecer atores internacionais não só como objetos da transformação sistêmica,

mas como agentes. (Aalberts, 2004; Wendt, 1992, 1999; Jepperson et al., 1996; Hall, 1999;

Risse, 2003; apud RAMOS; MARQUES; JESUS. 2009)

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Destarte, as idéias compartilhadas tem significado essencial, pois a realidade social é

construída a partir das convenções humanas e dos entendimentos intersubjetivos, e assim as

identidades e os interesses das entidades sociais são concebidos como relacionais e mutáveis.

(Aalberts, 2004; in RAMOS, 2009). Ramos; Marques; Jesus; (2009, p.79) complementam que

“Novas identidades podem ser internalizadas, não sendo esse um processo que ocorre fora dos

atores ou que possa afetar apenas seu comportamento.” Essa afirmativa pode remeter ao

pensamento, até aqui dedutivo, de que a norma constitucional em análise é fruto de um

processo que ocorre “fora dos atores”.

Partindo-se da análise da lógica construtivista é possível conceber para Aalberts

(2004, p. 33 apud RAMOS; MARQUES; JESUS, 2008, p. 80) que “a integração como uma

construção social e política que existe em virtude da prática estatal de aceitação desse fato

institucional como real.” Um ponto muito importante aqui percebido é o da “a relevância da

soberania como parte de uma identidade social, na medida em que é concebida como um

status garantido pelos demais Estados por meio do reconhecimento.” (RAMOS; MARQUES;

JESUS; 2008, p. 81). Situando esse argumento como um aspecto fundamental do

construtivismo para os Estudos de Integração Regional. A soberania não seria imutável, mas

entendida com as práticas políticas complexas dos Estados modernos.

São diversos processos dinâmicos de constituição de identidades sociais da

perspectiva construtivista. Como, por exemplo, as construções das identidades individual e

coletiva, e logo dos grupos sociais, relacionando-se por fim com as identidades nacionais. De

modo que em um processo em que cada construção se vincula à outra. (RAMOS;

MARQUES; JESUS; 2008, p. 81)

Partindo desses elementos, este texto apresenta uma análise do processo de integração

do Brasil com a América Latina, com vistas a investigar os motivos que levaram os

legisladores brasileiros a criarem a norma estabelecida no parágrafo único do artigo quarto da

Constituição. Além disso, se propõe a compreender a idéia da conjuntura internacional

contida nesse texto, bem como sua simbologia normativa, e sua real concretização. Assim,

tem o propósito de avaliar em que medida a integração proposta tem lugar no ordenamento

jurídico e na política brasileira.

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Conclusão

O que está exposto na norma constitucional base para análise desse trabalho não

depende exclusivamente da ação brasileira para seu cumprimento. Uma integração social,

econômica, política e econômica que formasse um bloco comunitário em toda a América

Latina não é um algo fácil de conseguir.

Se o horizonte pretendido pela criação da norma imaginava uma mudança imediata

nas relações exteriores do Brasil a fim de conseguir sua concretização, hoje passados mais de

vinte anos da promulgação da Constituição de 1988, as perspectivas para a política externa

são outras.

Inteligentemente, Reis disse que:

A partir do texto constitucional, estas páginas procuraram mostrar que, para a nossa política externa, a América Latina não é uma prioridade excludente, mas é certamente uma prioridade diferente, catalisadora, nervosa. Transita por ela a possibilidade de criar e de operar outras prioridades. Para estar bem com o resto do mundo, o Brasil precisa – primeiro – estar bem com seus vizinhos sul-americanos. Por outro lado, o estar na América Latina não esgota a dimensão (múltipla) do ser latino-americano. A circunstância – como categoria de análise – não é certamente a racionalização da periferia (seria anacrônico), nem a apologia do paroquialismo (seria um equívoco). Isso não impede que a nação independente, como o cidadão autêntico, traga a circunstância dentro de si. Sabiamente reservado e avesso a dogmatismos, Rio Branco parecia desvendar essa intimidade com seu lema Ubique Patriae Memor10. (REIS, 1994, p.35).

O constituinte brasileiro, ao criar a norma constitucional em questão, não imaginaria

as transformações que aconteceriam alguns poucos meses depois de promulgada a Carta

Constitucional. No curso de 1989, os regimes comunistas nos países do Leste Europeu

entraram em colapso. O Muro de Berlim foi derrubado, o que possibilitou reunificação da

Alemanha, em 1990. As condições políticas também se alteraram na América Latina.

Segundo Bandeira (2003, p.474), “A exaustão das ditaduras militares, que exprimiram como

subprodutos da guerra fria, o Estado em contra-revolução permanente, facilitara o

restabelecimento da democracia política em quase todos os países da América Latina”.

Nesse sentido, pode-se concluir que mais do que uma falha na normatividade da Carta

Constitucional, a norma entrava em vigor em um momento de transição do mundo. As

perspectivas de política externa seriam modificadas, e através dos anos 1990 diversificadas.

Com isso, o comércio globalizado fez às vezes das tentativas de criação de blocos

regionais, que tentavam escapar do desequilíbrio econômico entre Norte-Sul. O mundo mais

comunicante desenvolveu-se, ainda com desigualdades, mas com muito mais dinamicidade do

10 “Em qualquer lugar, terei sempre a Pátria em minha lembrança.”

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que no contexto bipolar. E a integração latino-americana tal como pretendida na norma,

acabou quase esquecida. Enquanto no contexto sul-americano, alguns anos depois, foi criado

o MERCOSUL.

De volta ao debate jurídico, se nota que muitos autores negam juridicidade às normas

programáticas. Sendo assim, se o movimento de consolidação do processo de integração

latino-americano ocorresse no sentido de criação de normas que favorecessem a construção de

identidades latino-americanas de modo mais prático, a integração ocorreria naturalmente.

Sim, a integração latino-americana é demasiadamente pretensiosa por ser lei

imperativa que não possui característica prática, não sendo concretizada jamais. Ainda mais,

com um mundo pós-americano, em que é importante se abrir e integrar com todos os lados.

Cervo e Bueno (2008) ilustram brilhantemente o momento:

(...) conclui-se que no mundo da globalização toda atenção convém devotar ao bilateralismo, caminho vital para a realização de interesses nacionais. E tentador, aliás, visto que multilateralistamo e integração tornam-se duas tendências em declínio, ao tempo em que o andar solto dos Estados nacionais apresenta-se como tendência em alta. (CERVO, BUENO. 2008, p. 521)

Assim, a integração é uma construção identitária, constrói-se do “povo”, de pessoas, e

depois por leis. A norma não é sempre uma vontade social. E assim, a solidariedade como

princípio elementar ao direito de integração, admite o pensamento utópico de uma lei como a

que se faz esse estudo.

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