7392997 Amazonia E Politica Externa Brasileira

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

DANIEL DE CAMPOS ANTIQUERA

A AMAZNIA E A POLTICA EXTERNA BRASILEIRA: ANLISE DO TRATADO DE COOPERAO AMAZNICA (TCA) E SUA TRANSFORMAO EM ORGANIZAO INTERNACIONAL (1978-2002)

AGOSTO/2006. CAMPINAS, SP.

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS DANIEL DE CAMPOS ANTIQUERA

A AMAZNIA E A POLTICA EXTERNA BRASILEIRA: ANLISE DO TRATADO DE COOPERAO AMAZNICA (TCA) E SUA TRANSFORMAO EM ORGANIZAO INTERNACIONAL (1978-2002)DISSERTAO DE MESTRADO APRESENTADA AO PROGRAMA SAN TIAGO DANTAS, CONVNIO UNESP/PUC-SP, UNICAMP SOB ORIENTAO DO PROF. DR. SHIGUENOLI MIYAMOTO, DOCENTE DO DEPARTAMENTO DE CINCIA POLTICA, DO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS DA UNICAMP, COMO PARTE DOS REQUISITOS PARA OBTENO DO TTULO DE MESTRE EM RELAES INTERNACIONAIS, NA REA DE POLTICA EXTERNABRASILEIRA

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE VERSO PROVISRIA DA DISSERTAO DEFENDIDA E APROVADA EM (31/AGOSTO/2006) PERANTE A BANCA EXAMINADORA: PROF. DR. SHIGUENOLI MIYAMOTO PROFA. DRA. CRISTINA SOREANU PECEQUILO PROFA. DRA. FLVIA DE CAMPOS MELLO PROF. DR. REGINALDO CARMELLO CORRA DE MORAES PROF. DR. PAULO CSAR SOUZA MANDUCA

AGOSTO/2006. CAMPINAS, SP.1

FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP

An87a

Antiquera, Daniel de Campos A Amaznia e a poltica externa brasileira: anlise do Tratado de Cooperao Amaznica (TCA) e sua transformao em organizao internacional (1978-2002) / Daniel de Campos Antiquera. - - Campinas, SP : [s. n.], 2006. Orientador: Shiguenoli Miyamoto. Dissertao (mestrado ) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. 1. Tratado de Cooperao Amaznica (1978). 2. Relaes internacionais. 3. Poltica externa Brasil. 4. Organizao internacional. 5. Integrao regional. 6. Amaznia Relaes exteriores. I. Miyamoto, Shiguenoli. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. III.Ttulo. (cc/ifch)

Ttulo em ingls: Amazonia and the brazilian foreing policy: analisys of Amazon Cooperation Treaty and its change into international organization (1978-2002) Palavras chave em ingls (Keywords): International relations. Foreign policy - Brazil. International organization. Regional integration. Amazon Foreign relations rea de concentrao : Poltica externa. Titulao : Mestre em Relaes Internacionais.

Banca examinadora : Shiguenoli Miyamoto, Cristina Soreanu Pecequillo, Flvia de Campos Mello. Data da defesa : 31-08-2006. Programa de Ps-Graduao :- Relaes internacionais San Tiago Dantas SP

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AgradecimentosNo h nada mais falso do que a idia de que o trabalho intelectual tem natureza predominantemente individual. No s porque ele est relacionado intrinsecamente com as demais esferas da vida, mas tambm pelo fato de a formao intelectual (nunca concluda) ser resultado de um complexo to grande de fatores, que o esforo e as caractersticas pessoais so apenas uma parte dela. Dentre esses fatores, as pessoas so os mais importantes e determinantes. Gostaria de relacion-las todas, mostrando aquilo pelo que cada uma responsvel. Mas tal genealogia ultrapassaria o espao e os fins destes agradecimentos. Vou me concentrar na meno queles que influenciaram mais diretamente na concluso deste trabalho. Que isso no sugira que ignoro a importncia capital de tantas outras pessoas, marcantes desde os momentos anteriores de minha formao. Primeiramente, gostaria de comear agradecendo gentileza e pacincia do professor Shiguenoli Miyamoto, por ter me orientado e tambm por fazer valiosas sugestes e crticas, embora eu no tenha sido capaz de incorpor-las plenamente ao trabalho. Resulta da que a dissertao conserva inmeras imprecises, lacunas e superficialidades, que so de minha inteira responsabilidade. Em todos os momentos o professor foi prestativo e me tratou com respeito, independente de minha (talvez desestimulante) primariedade intelectual. Tambm agradeo aos membros da banca de qualificao, professores Rafael Villa e Flvia de Campos Mello. Procurei incorporar suas sugestes, o que, se tivesse conseguido fazer plenamente, tornaria o trabalho certamente melhor. professora Flvia reforo o agradecimento, no s pela leitura e comentrios na qualificao, mas tambm por compor a banca de defesa da dissertao. Tambm sou muito grato professora Cristina Pecequilo, pela prontido e gentileza com que aceitou participar da banca. Registro minha gratido ao Programa de mestrado em Relaes Internacionais San Tiago Dantas/SP, por propiciar ambiente privilegiado de

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vivncia acadmica. E CAPES, por financiar a maior parte da durao desta pesquisa.

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ResumoEste trabalho analisa o Tratado de Cooperao Amaznica, assinado por Brasil, Bolvia, Colmbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela em 1978, e suas transformaes at se converter numa organizao internacional (2002). O estudo busca relacionar essas mudanas no TCA com os diferentes momentos da poltica externa brasileira, visando em primeiro lugar a avaliar a importncia da Amaznia para a poltica exterior do Brasil, e tambm a compreender o peso que a posio brasileira representa na evoluo do Tratado. A partir do fim da dcada de 1980 h uma renovao no impulso dado ao TCA, que culmina com o protocolo de emenda, assinado em 1998, e a instalao de uma secretaria permanente, em Braslia, em 2002. Tal processo tem poucos estudos, embora indique uma renovao de expectativas sobre o Tratado. O trabalho foi feito por meio da anlise de bibliografia sobre o TCA e a poltica externa, bem como sobre documentao oficial de ambas: discursos, atas de reunies, declaraes, estrutura jurdica. As informaes foram complementadas com entrevistas realizadas com atores relevantes para o andamento do Tratado. A contribuio que este trabalho possa vir a dar acrescentar outra perspectiva s leituras tradicionalmente liberais (no sentido de centrarem-se na cooperao e nos interesses comuns) que em geral so feitas sobre o objeto. Ao mesmo tempo, pretende-se chamar a ateno para a Amaznia e o norte da Amrica do Sul como um espao especfico e importante das relaes internacionais do Brasil.

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AbstractThis work analyzes The Amazon Cooperation Treaty, signed down by Brazil, Bolivia, Colombia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela in 1978, and its transformations until converting into international organization (2002). The study intends to establish a relation between those changes on ACT and different moments in brazilian foreign policy, looking for value amazonian role in this policy as well as for the brazilian role on the evolution of the Treaty. Since the end of the 80s, new strengths focused on ACT lead up to a renews protocol, signed in 1998, and a permanent secretariat at Braslia, in 2002. There are few studies about these processes even than it indicates new expectations about the Treaty. The work was made analyzing the bibliography of ACT and of the foreign policy, as well as the official documentation of both of them. Also interviews have been made with important people involved in the Treaty. The eventual contribution of these research is offering a new perspective of the usually liberals (that focus on cooperation and common interests) points of view of the studys object. At the same time, there is the intention of getting attention for Amazon and for the north of South America as important areas of brazilians international relations.

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LISTA DE SIGLAS

ALALC- Associao Latino Americana de Livre Comrcio ALADI- Associao Latino Americana de Integrao ALCA- rea de Livre Comrcio das Amricas ALCSA- rea de Livre Comrcio Sul Americana BASA- Banco da Amaznia BCA- Banco de Crdito da Amaznia BID- Banco Interamericano de Desenvolvimento CAN- Comunidade Andina de Naes CCA- Conselho de Cooperao Amaznica do TCA CCOOR- Comisso de Coordenao do Conselho de Cooperao Amaznica CE- Comisso Especial do TCA CEPAL- Comisso Econmica para a Amrica Latina e o Caribe CNP- Comisso Nacional Permante do TCA ECO 92- nome dado Conferncia das Naes Unidas para o Meio ambiente e o Desenvolvimento ESG- Escola Superior de Guerra FAO- Food and Agriculture Organization GATT- General Agreement on Tariffs and Trade GEF- Global Environment Facility IBESP- Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Poltica IIHA- Instituto Internacional da Hilia Amaznica IIRSA- Iniciativa de Integrao da Infraestrutura Regional Sul Americana INCRA- Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria ISEB- Instituto de Estudos Brasileiros JK- Juscelino Kubitschek MERCOSUL- Mercado Comum do Sul MRE- Ministrio das Relaes Exteriores NAFTA- North America Free Trade Agreement OEA- Organizao dos Estados Americanos 7

OMC- Organizao Mundial do Comrcio ONU- Organizao das Naes Unidas OTAN- Organizao do Tratado do Atlntico Norte OTCA- Organizao do Tratado de Cooperao Amaznica PIN- Programa de Integrao Nacional PND- Programa Nacional de Desenvolvimento PNUD- Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento PPG-7- Plano Piloto para Proteo das Florestas Tropicais do Brasil RADAM- Reconhecimento Areo da Amaznia RMRE- Reunio de Ministros das Relaes Exteriores do TCA SPVEA- Superintendncia do Plano de Valorizao Econmica da Amaznia UNCTAD- United Nations Conference on Trade and Development SIPAM- Sistema de Proteo da Amaznia SIVAM- Sistema de Vigilncia da Amaznia SUDAM- Superintendncia do Desenvolvimento da Amaznia SUFRAMA- Superintendncia da Zona Franca de Manaus TCA- Tratado de Cooperao Amaznica UNESCO- United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization

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SUMRIOINTRODUO...........................................................................................................09 CAPTULO 1- A AMAZNIA PARA A POLTICA EXTERNA ANTES DO TCA.......................................................................................................................15 1.1 - O CENRIO INICIAL: CONQUISTA E DEFESA DO TERRITRIO (AT 1912) E AMARGINALIZAO DA REGIO (1912-1940)................................................................17

1.2 - OS PLANOS DE DESENVOLVIMENTO DA AMAZNIA E O DIFCIL RECONHECIMENTO DAUTILIDADE DA COOPERAO INTERNACIONAL (DOS ANOS 1940 AOS ANOS

1970).....................................................................................................................32 CAPTULO 2 O TRATADO DE COOPERAO MAZNICA...........................................47 2.1 A MATURAO DA IDIA..................................................................................47 2.2 - AS CONDIES DO SURGIMENTO DO TCA..........................................................49 2.3 O TRATADO DE COOPERAO AMAZNICA.......................................................56 2.3.1 A NEGOCIAO............................................................................................56 2.3.2 - OS OBJETIVOS EXPRESSOS DO TRATADO........................................................60 2.3.3 - A ENGENHARIA INSTITUCIONAL DO TCA...............................................................68 2.4 - OS OBJETIVOS AMAZNICOS E A ESTRUTURA DO TRATADO...............................79 2.5 - OBJETIVOS IMPUTADOS AO BRASIL....................................................................85 CAPTULO 3 A POLTICA EXTERNA BRASILEIRA E O DESENVOLVIMENTO DO TCA....... 89 3.1 - DCADA DE 1980- OS DIFCEIS ANOS INICIAIS.....................................................91 3.2 -TRANSIO PARA A P.E.B. E PARA O TCA (1989-1994).....................................105 3.2.1 - NOVOS E ANTIGOS TEMAS: O DESENVOLVIMENTO SUSTENTVEL COMO CONCEITOESTRATGICO........................................................................................................109

3.2.2 - REGIONALIZAO E NEGOCIAES COMERCIAIS............................................116

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3.3 - A TRANSFORMAO DO TCA EM ORGANIZAO INTERNACIONAL E A POLTICAEXTERNA RECENTE (1995-2002)............................................................................133

3.3.1 - A

DECISO PELA CRIAO DA SECRETARIA PERMANENTE..............................134

3.3.2 - CONSOLIDAO DAS MUDANAS DO INCIO DOS ANOS 1990: POLTICA EXTERNADO PRIMEIRO MANDATO DE FERNANDO HENRIQUE CARDOSO (1995-1998)................145

3.3.3 CONSTRUINDO LAOS COM A AMRICA DO SUL E COM O MUNDO NUM PERODO DEINSTABILIDADE: A IMPLEMENTAO DA OTCA E A POLTICA EXTERNA DO SEGUNDO MANDATO DE FERNANDO HENRIQUE CARDOSO (1999-2002).....................................154

CONSIDERAES FINAIS.........................................................................................169 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS..............................................................................173 ANEXOS...............................................................................................................190 ANEXO I O TRATADO DE COOPERAO AMAZNICA..............................................190 ANEXO II - PROTOCOLO DE EMENDA AO TRATADO DE COOPERAO AMAZNICA.......199 ANEXO III ORGANOGRAMA DA OTCA...................................................................200

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INTRODUOEste trabalho tem o objetivo de analisar a importncia da Amaznia para a poltica externa brasileira, verificar em que medida a regio se projeta na agenda externa do pas. O que leva os formuladores da poltica externa a se preocuparem com a Amaznia? possvel que se identifique uma especificidade amaznica na poltica externa do pas? Questes como essas conduziram escolha do principal instrumento criado para a ao internacional tendo em vista a regio amaznica: o Tratado de Cooperao Amaznica (TCA), proposto pelo Brasil e assinado em 1978 pelos Estados que dividem a regio. Quais os objetivos e perspectivas no momento de sua proposio? Mas mais do que neste momento, o trabalho pretende contribuir com a compreenso da evoluo do Tratado, at sua transformao em organizao internacional, consolidada em 2002. Na literatura em geral, a poltica externa brasileira s costuma entrar como varivel explicativa importante na fase inicial. Assim, quando estudos de poltica externa em geral mencionam o TCA, referem-se proposta brasileira. E as anlises mais especficas sobre o Tratado s o relacionam diretamente com a poltica externa brasileira nesta mesma fase. interessante notar que, apesar de ter sido uma proposta brasileira, a literatura sobre poltica externa praticamente no se detm na anlise do TCA, fazendo apenas referncias tpicas e pontuais. A razo do desinteresse est no fato de a leitura mais comum ser a de que o TCA tenha sido um projeto fracassado. Outra possvel causa da pequena ateno dos estudiosos de poltica externa a concentrao dos esforos na explicao, quando se trata do plano regional, das relaes entre o Brasil e os pases platinos, em especial a Argentina- tendncia que se refora a partir do surgimento do Mercosul. Por outro lado, a pequena literatura especfica sobre o TCA em geral enfatiza os aspectos internos do mecanismo, ou seja, seu aspecto institucional. Nesses casos destacado o processo de cooperao entre os signatrios (o que no implica omitir as dificuldades dessa cooperao). Assim, as explicaes do desenvolvimento do TCA no costumam situ-lo no perfil mais geral da poltica 11

externa brasileira a partir da dcada de 1980, ou seja, a poltica externa deste perodo no aparece como uma varivel importante para a compreenso do objeto. Em suma, a bibliografia sobre o TCA, em geral, no reflete a importncia que tem a poltica externa brasileira para a sua compreenso, e a literatura sobre a poltica externa brasileira praticamente ignora o Tratado. A tentativa deste trabalho justamente caminhar no sentido de diminuir esta ciso, explicando o TCA com a ajuda da evoluo da poltica externa e, por outro lado, procurando dar uma dimenso mais precisa da importncia do tema para a agenda externa geral do pas. evidente que essa tentativa traz inmeras dificuldades, cuja completa superao est alm da capacidade do autor. Mas pretende-se ao menos dar uma contribuio, ainda que pequena, melhor compreenso do objeto, apontando uma perspectiva de abord-lo que, quando melhor desenvolvida, possa esclarecer pontos importantes tanto do TCA como da poltica externa brasileira. A transformao do TCA numa organizao internacional (OTCA), a primeira com sede no Brasil, decidida em 1995 e consolidada em 2002, um processo que carece ainda mais de estudos. Para que se possa compreender melhor a funo desta organizao internacional, suas perspectivas e, principalmente sua funcionalidade para a poltica externa brasileira, preciso voltar ao perodo de formao e evoluo do TCA. Caso contrrio, ou seja, caso se tome a OTCA como um resultado natural da evoluo de um processo cooperativo entre os pases amaznicos, os 22 anos de vigncia at a entrada em vigor do Protocolo de Emenda (2002) podem ser considerados como uma simples efetivao de um futuro pr-determinado pelos objetivos expressos no prprio TCA. A literatura oficial e boa parte da acadmica se aproximam dessa perspectiva. O que este trabalho procura resgatar a presena marcante do Brasil no s como o idealizador do Tratado, mas tambm como o ator mais influente do

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mbito regional. Assim, pretende-se verificar se a histria da evoluo do TCA pode ser melhor compreendida se se atenta para o perfil da poltica externa brasileira em cada perodo. Isso implica afirmar que os objetivos do Tratado no so estticos, mas que variam ao longo do tempo, e de acordo com a prioridade estabelecida pelo Brasil. Desde o fim da dcada de 1980 h um fortalecimento do Tratado. A continuidade dos esforos para vitaliz-lo sugere que no tenha sido to fracassado como se costuma pensar e, principalmente, que o Brasil ainda tenha pretenses para as quais o TCA possa ser til. A primeira questo que este trabalho visa responder, ento, : quais so os objetivos brasileiros na proposio e desenvolvimento do TCA? Eles de fato variam de acordo com as mudanas na poltica externa brasileira? Para isso importante analisar as transformaes histricas por que passou o Acordo. A nfase no papel do Brasil e na correlao entre a evoluo do TCA e a poltica externa brasileira motivada, fundamentalmente, pela ausncia dessa perspectiva na bibliografia disponvel sobre o Tratado. Isso no quer dizer que a perspectiva institucional no ser levada em considerao. Procura-se tambm articular as caractersticas estruturais, e o mbito interno do seu desenvolvimento com a poltica externa brasileira. Certamente, com isso, o trabalho, deixa menor espao a outros aspectos importantes para a compreenso do objeto. O interesse dos demais signatrios nos diferentes momentos um desses aspectos que precisariam ser melhor pesquisados. Mas isso envolveria a necessidade de acesso a material e bibliografia produzidos nos respectivos pases, bem como tempo e recursos para poder consultar seus arquivos e entrevistar atores. A perspectiva desses outros pases importante para enriquecer no s a compreenso do papel do Brasil, como para dar uma noo mais precisa do jogo de foras que move o Tratado na prtica. Procurou-se minimizar tal limitao com artigos, livros e documentos mais acessveis. Assim, alm do vasto material disponvel na internet (como artigos,

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anlises, entrevistas, documentos, notcias, atas de reunies etc.), procedeu-se a pesquisas nas bibliotecas da USP, PUC-SP, UNICAMP, UNB, PUC-RJ, UERJ, UFRJ, alm da biblioteca da ESG (Escola Superior de Guerra) e do prprio MRE (Ministrio das Relaes Exteriores). Tambm algumas entrevistas foram realizadas como tentativa de minimizar a dificuldade da pequena disponibilidade de material e da impossibilidade de busc-lo em outros pases ou mesmo em regies mais distantes do Brasil. Mas, apesar do esforo, sabe-se que o trabalho um recorte, ou seja, que prioriza um enfoque (o da poltica externa brasileira) aos demais possveis. Tambm por uma razo de delimitao do objeto, decidiu-se por estender a anlise at o momento em que se concretiza a criao da OTCA, com a instalao de sua secretaria permanente em Braslia, em 2002. Por isso, no ser feita uma avaliao do funcionamento dessa organizao internacional e nem se atentar especificamente para as discusses sobre essas organizaes. O que este trabalho pretende contribuir com a melhor compreenso de surgimento da OTCA, para que, a partir da, novos estudos possam ser realizados. Ento, a OTCA no ser o objeto deste estudo, mas sim a sua gnese. Em suma, o objetivo desta pesquisa contribuir com a explicao do Tratado de Cooperao Amaznica e de um aspecto especfico da poltica externa brasileira - a importncia da Amaznia como pauta da agenda internacional do pas (o que inclui discutir se h essa especificidade amaznica, ou seja, se a poltica externa brasileira trata de forma diferenciada a regio). Se o pas penso de um ponto de vista geopoltico, ou seja, se h um desequilbrio entre a vitalidade das relaes na bacia platina comparadas com o subdesenvolvimento dos contatos com os pases do norte da Amrica do Sul, a literatura sobre a poltica externa parece acompanhar tambm a tendncia de desequilbrio. A estrutura do trabalho composta por trs captulos. No primeiro, analisase a evoluo da poltica externa para a Amaznia at a dcada de 1970. Apesar de abranger um perodo histrico muito vasto, este captulo fundamental para

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se identificar o surgimento e a manuteno de alguns objetivos e perspectivas pelos quais se concebe a regio quando se pensa na poltica externa. A ausncia desse histrico em outros trabalhos sobre o TCA evidencia o papel restrito que se resguarda para a poltica externa brasileira como varivel explicativa. curioso notar, por exemplo, que raramente se compare o TCA com o Instituto Internacional da Hilia Amaznica (da segunda metade da dcada de 1940), mostrando semelhanas e diferenas da postura brasileira. O segundo captulo mostra as condies e o processo de formulao do TCA, bem como sua estrutura e os objetivos que se podem depreender de sua assinatura. A se descrever sua engenharia institucional, incorporando-a anlise mais geral feita na dissertao. Na tentativa de identificar os objetivos, inclusive dividindo-os em mbitos diferentes, ser exposta tambm a literatura sobre o Tratado, tanto a que lhe mais favorvel quanto outra de carter mais crtico. O terceiro captulo relaciona o desenvolvimento do TCA com o desenvolvimento da poltica externa brasileira entre a sua entrada em vigor (1980) e a instalao da sede da organizao internacional em que se transformou (2002). Este captulo procura unir os dados dos dois captulos anteriores, atualizando-os para o perodo em estudo. Sem dvida a parte que, dada a perspectiva adotada pelo trabalho, mais complexa, do ponto de vista analtico. No se pretende aqui ter esgotado o tema nem tampouco resolvido de maneira plenamente satisfatria os desafios propostos. A inteno maior foi dar uma contribuio, ainda que pequena, aos estudos sobre o TCA e a poltica externa brasileira. Posteriormente, reserva-se um espao para breves consideraes finais.

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CAPTULO 1 - A AMAZNIA PARA A POLTICA EXTERNAANTES DO TCAEste captulo pretende ser uma leitura panormica da histria da poltica exterior do Brasil at a dcada de 1970. Os diferentes momentos da poltica externa nacional sero explicitados em sua relao com a temtica amaznica, ou seja, pretende-se verificar qual o papel da regio em cada momento das relaes exteriores do pas. O panorama importante para que se identifiquem algumas razes histricas da postura externa com relao Amaznia. A dimenso espacial do Brasil, segundo LAFER (2004:20,23-25), um dos fatores de persistncia da insero internacional do pas, ou seja, um elemento indispensvel para que se compreenda a viso de mundo do pas e sua atuao decorrente dessa viso de mundo1. O Brasil seria, assim, um monster country, qualificao que Lafer toma emprestada de George Kennan e que exprimiria, alm da dimenso do espao, economia e populao, ...a magnitude dos problemas e desafios (op. cit.:23). Mas, ao olhar o Brasil como um monster country, no se pode esquecer que essa caracterstica deve-se em grande parte regio amaznica, de forma que entender a insero (ou ausncia) desse espao especfico na formulao da poltica exterior brasileira fundamental. Ser feito um breve histrico da poltica externa para o territrio amaznico, desde a poca colonial, procurando-se a explicao para o aparecimento ou ausncia da regio na agenda da poltica exterior do pas. Num ou noutro caso, preciso que se deixe claro o perfil predominante da poltica externa em cada poca, com suas prioridades e linhas. Porm, o perodo de tempo em questo demasiado extenso para permitir uma reflexo mais aprofundada ou mesmo minuciosa, abarcando detalhes de cada perodo. A inteno apenas traar uma perspectiva temporal, baseada na literatura a

Embora a dimenso espacial seja um fator importante da insero internacional do pas, isso no implica necessariamente que os Estados tenham uma conscincia espacial a lhe orientar a formulao da poltica externa- este captulo ilustrar um pouco dessa diferena.

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respeito da histria da poltica exterior do Brasil, que possa dar maiores subsdios compreenso do Tratado de Cooperao Amaznica (TCA). bem conhecida a problemtica amaznica como desafio nacional: a necessidade de incorporao ao resto do pas, melhoria das condies de vida de seus habitantes, vitalizao econmica, povoamento, preservao ambiental, proteo etc. Porm, preciso ressaltar que a questo desse espao no apenas interna, mas, antes, internacional e, portanto, objeto de preocupao de um tipo especfico de poltica pblica: a poltica externa. E por duas razes bastante simples: a primeira histrica, pois a regio foi objeto de disputa entre as potncias europias nos sculos XVI a XIX, sendo at o presente sculo foco de interesse global, embora no mais por conquista territorial. A segunda razo geogrfica- a regio amaznica compartilhada por oito pases, o que j mais do que suficiente para se reconhecer as implicaes internacionais desse espao. Tambm preciso notar que a poltica externa pode ser um importante instrumento de apoio aos objetivos da poltica interna. Isso fica bastante claro no caso da Amaznia, j que a imensido territorial desse espao e do Brasil faz com que os projetos possam ser mais eficazes se feitos em cooperao com outros pases mais prximos das questes locais. Por fim, cabe mencionar que, apesar da importncia da Amaznia, a Bacia Platina que historicamente recebe as atenes prioritrias dos formuladores da poltica externa. A responsvel por essa opo a Argentina, o pas do continente sul-americano com maior capacidade de rivalizar com o Brasil em termos de poder. No s capacidade, mas com algumas rivalidades efetivas remanescentes do perodo de consolidao territorial (embora reduzir a relao bilateral Brasil- Argentina a uma relao conflituosa seria distanciar-se da realidade, j que os dois pases cooperaram mais do que se afrontaram durante a histria). Tambm o contato com a Argentina, poltico e econmico, sempre foi maior do que com qualquer outro pas latino americano. Isso quer dizer que este captulo no tem a pretenso de ser um resumo completo sobre a histria da poltica exterior do Brasil. Antes, ele apenas um recorte, a escolha de uma

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perspectiva especfica a partir da qual se olhar o todo, e no o todo sintetizado em poucas linhas.

1.1- O CENRIO INICIAL:

CONQUISTA E DEFESA DO TERRITRIO (AT

1912) E A MARGINALIZAO DA REGIO (1912-1940)O primeiro cenrio em que se insere a disputa internacional pelo espao amaznico a expanso ultramarina europia do sculo XVI. A supremacia da Espanha e de Portugal na tcnica de navegao permitiu aos dois pases dividirem as posses no Atlntico antes mesmo que se confirmassem a existncia de vastos territrios americanos. A bula papal Inter Caetera, de 1493, estabelecia a distino entre as possesses portuguesas e espanholas, garantindo Espanha as terras descobertas por Colombo, e todo o territrio americano. No ano seguinte, em 1494, foi assinado o Tratado de Tordesilhas2. O direito de Portugal, cujo alcance era delimitado pelo meridiano que ficava a 100 lguas de Cabo Verde, estendeu-se para 370 lguas a oeste do mesmo arquiplago. O novo acordo deixava a Portugal a parte leste da Amrica do Sul, onde viria a se constituir o territrio inicial da formao do Brasil. O importante notar que toda a regio amaznica estava sob bandeira espanhola, mas ser objeto de persistente e sistemtica tentativa de conquista e incorporao por Portugal. A tarefa, embora realizada com bastante sucesso pelos lusitanos, s concluda pelo Estado brasileiro. Em suma, a conquista da Amaznia uma das principais tarefas herdadas de Portugal pelo Brasil.

O Tratado de Tordesilhas foi ratificado em 1506 pelo Vaticano. A fora papal nas relaes internacionais evidencia o momento de transio entre a chamada Cristandade Medieval e o moderno sistema de Estados. As grandes navegaes so um processo de constituio da estrutura da futura ordem internacional, mas abenoadas pela anterior. O processo de transio viria se encerrar em 1648, com a Paz de Westfalia, que consagra o princpio bsico da nascente ordem internacional: a soberania. Mas a ordem de Westfalia, tendo o Estado soberano como pilar, restringia-se ao continente Europeu. O novo mundo (bem como as demais colnias na sia e na frica) est excludo dos princpios do Estado Moderno. E ainda depois das independncias, at os dias atuais, a soberania tem na Amrica Latina um carter menos slido do que na Europa ou EUA. E a Amaznia encarna exemplarmente a fragilidade maior da soberania nessa parte do mundo.

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Ainda na poca colonial, o marco mais importante para a histria da formao territorial do Brasil foi o Tratado de Madri, de 1750, pelo qual boa parte da Amaznia passou a Portugal. No entanto, de se notar que o direito (materializado nos tratados) no era plenamente eficaz, especialmente na Amaznia. Tordesilhas foi antes rasgado pelos bandeirantes, que deram bases expanso portuguesa. Tal movimento de incorporao de fato do territrio alm de Tordesilhas foi impulsionado pela Unio Ibrica (1580-1640), quando ... a expanso territorial foi politicamente facilitada, pois no havia problemas diplomticos a instigar a diferenciao entre as possesses portuguesas e espanholas. (LAFER, 2004: 29). Tal ocupao de fato do territrio foi justamente o fundamento jurdico do Tratado de Madri- o princpio do uti possidetis. Mas o prprio Tratado de Madri no alcana plena eficcia, ou seja, no garantiu ao Brasil a estabilidade de suas fronteiras. Segundo Synesio Sampaio Goes Filho (1999: 192), o tratado tornou-se inoperante pelo aumento das tenses entre as coroas espanhola e portuguesa. Mas no s Espanha e Portugal detinham posses e pretenses na regio amaznica. A Frana e a Inglaterra tambm estavam presentes e em disputa por conquista de territrios. Da disputa com a Frana, por exemplo, surgiu a Questo do Amap3, s resolvida no contexto do Brasil independente. O mesmo ocorreu na Questo do Pirara4, tendo como adversria a Inglaterra. Goes Filho sintetiza a formao territorial do Brasil como obra de navegantes, bandeirantes, diplomatas. No entanto, tendo como foco a regio amaznica, salta aos olhos a ausncia de um importantssimo ator na definio das fronteiras do norte: os soldados (com os fortes que lhes serviam de base). Em outros termos, importantssimo acrescentar frmula de Goes Filho o elemento militar, fundamental na conquista e defesa ante s pretenses

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Ver Meira Mattos (1980:43-50) e Goes Filho (1999:271-278) Ver Goes Filho (1999:278-284)

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territoriais estrangeiras, notadamente as francesas. As disputas territoriais resultaram inclusive em conflitos militares na regio5. A poltica externa para a regio amaznica na poca colonial foi basicamente voltada para a conquista do espao e aumento territorial. Ela inseria-se na estratgia portuguesa de expandir seu imprio por meio das terras de alm mar, controlando assim o acesso aos recursos desses locais, bem como as rotas comerciais s quais eles serviam de base, na lgica do sistema mercantilista do sistema colonial. No entanto, o povoamento e desenvolvimento da regio no foram, a princpio, objetivos portugueses:O imprio portugus essencialmente martimo, estruturado como uma rede de bases mercantis atravs do mundo. Um imprio filiforme, preso aos litorais, cuja imensido tornava difcil e caro o empreendimento. Um imprio mantido militarmente, fruto de uma conquista talassocrtica, que abarcava cerca de cinquenta fortalezas e uma significativa fora naval, sem envolver um claro desgnio de efetiva dominao territorial (exceo feita ao Brasil); na verdade, era um controle de rotas ocenicas. (MORAES,2000:74)

Em que pese a colocao do Brasil como exceo lgica da expanso martima portuguesa, no houve, at o sculo XIX, uma pretenso de desenvolvimento do espao brasileiro. O objetivo prioritrio era conquistar e garantir a soberania sobre o territrio para colher os frutos desse domnio. A mudana mais significativa deu-se com a transferncia da corte para o Brasil, movimento que Demtrio Magnoli identificou como um projeto geopoltico de continuar o imprio portugus na Amrica, em 1807 (MAGNOLI, 1997:80-83). Mas a presena do Estado Portugus no Brasil se encerra logo em seguida, com a independncia de 1822.

Sobre a importncia do elemento militar na ocupao da Amaznia, bem como dos conflitos blicos internacionais, ver Meira Mattos (1980:32-62). O prprio autor da frmula navegantes, bandeirantes e diplomatas admite que, por no ser objeto de seu estudo, no atentar para as atividades militares na Amaznia, representada pelos fortes. Mas reconhece que Privilegiando fatores como estes, e no os diplomticos como faremos aqui, poder-se-iam ter, pois, outras vises da Amaznia (GOES FILHO, 1999: 3- nota de rodap).

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A poltica exterior do imprio tem, basicamente, dois intuitos, segundo Demtrio Magnoli: combater a poltica anti-escravista da Gr Bretanha e consolidar as fronteiras nas bacias Amaznica e Platina (MAGNOLI, 1997:131). Celso Lafer considera que a poltica externa imperial estava voltada, no plano mundial, para a busca de autonomia frente s grandes potncias, notadamente a Inglaterra, e regionalmente visava praticar uma poltica de balano de poder, que tinha como foco principal de ateno a Argentina (LAFER& PEA, 1973:85,86). Entre os pases da Bacia Amaznica a preocupao com a balana de poder no era significativa, j que no havia nenhuma fora que representasse qualquer ameaa de desequilibrar o subsistema regional. A importncia da regio para a poltica externa estava ligada, primeiramente, ao objetivo de consolidao das fronteiras. Podem-se citar, nesse sentido, os tratados de 1851 com o Peru, de 1859 com a Venezuela e 1867 com a Bolvia6, alm das questes do Acre, do Pirar e do Amap, que s seriam resolvidas na Repblica. Juntamente com o territrio, era o prprio Estado que se estava construindo, ao mesmo tempo em que se tentava constituir uma nao. Nesse sentido, a Amaznia tinha uma importncia objetiva, referente ao espao geogrfico a ser conquistado e tambm uma forte funo simblica, materializada no discurso geogrfico que visava atribuir ao territrio um carter natural, como se fosse uma ddiva, uma unidade dada pela natureza e no construda na histria. Assim, na imagem da unidade das bacias platina e amaznica (base do mito da Ilha Brasil), a Amaznia, com sua vasta rede hidrogrfica e sua portentosa natureza, tinha papel de destaque7. Outra importante questo para a atuao internacional do Brasil envolvendo a Amaznia a relao com os EUA. Desde o incio do sculo XIX, no se pode compreender a histria do continente americano sem que se atente6

Interessante notar que os trs tratados citados referiam-se a limites, comrcio e navegao, mas, nos casos da Bolvia e do Peru, as partes que no tratavam de limites foram denunciadas. Da mesma forma, em 1853 foi assinado um Tratado de Amizade e Limites com Nova Granada (Colmbia), o qual no foi aprovado pelo senado desse pas. 7 Sobre a importncia da imaginao e do discurso geogrficos, bem como do mito da ilha Brasil, ver MAGNOLI (1997)

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para a posio e atuao dos EUA. Esse pas, em plena ascenso econmica, baseava sua poltica externa nas doutrinas do destino manifesto, a justificar sua expanso territorial e na doutrina Monroe, que propugna pelo afastamento dos pases europeus da poltica americana, Inspirada reservando nessas o continente os preponderncia estadunidense. concepes, EUA

praticaram, no sculo XIX, verdadeira poltica expansionista, anexando enormes territrios, principalmente do Mxico. A estratgia de conquista era feita em quatro fases: penetrao demogrfica, provocao, conflito e anexao (BUENO & CERVO, 2002: 102). Diante desse cenrio, quando cidados dos EUA comearam a discutir a importncia da Amaznia para seu pas8, o assunto ganha relevo na pauta poltica do Imprio. A questo chave da discusso estava na abertura do Amazonas livre navegao, disputa que ope os dois pases, j que os brasileiros temem que os EUA utilizem esse como o primeiro passo para uma posterior anexao. Embora houvesse quem defendesse no Brasil a abertura navegao (destacando-se Tavares Bastos), a posio majoritria, tanto no governo como na imprensa, era de que seria preciso resistir s presses norte americanas, para que no se corresse o risco de perder o territrio. Assim posicionou-se o Conselho de Estado, convocado por Pedro II e reunido em 1/04/1856: defendendo todas os direitos do Brasil sobre os rios que passam em seu territrio9.

Alguns inclusive propondo o povoamento da regio com os negros dos EUA, como o tenente Mathew Fontaine Maury, o principal propagador da idia de interveno norte americana na Amaznia. Segundo Moniz Bandeira O secretrio de Estado, William H. Seward, instruiu os diplomatas americanos, em 1862, para propor aos pases situados dentro dos trpicos que recebessem os negros dos Estados Unidos, libertados pela Guerra Civil. Watson Webb, representante americano junto ao governo do Rio de Janeiro, iniciou as gestes. Os Estados Unidos, conforme a conveno que sugeriu, transportariam, gratuitamente, os ex- escravos para o Vale do Amazonas e o Brasil doaria 100 acres para cada um, cabendo a companhia de colonizao, que financiaria o treinamento, o restante das terras. O projeto no encontrou receptividade, tal como aconteceu nos pases da Amrica Central (BANDEIRA:1978:96). Sobre o assunto, ver Ncia Vilela Luz (1968). 9 Ver GARNER (1996:2-6)

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Os EUA empenhavam-se em cooptar os pases andinos sua causa, e a diplomacia brasileira despendeu esforos para convencer os vizinhos amaznicos de sua posio:Para contra-atacar a ao norte-americana, despachou o governo brasileiro trs eminentes diplomatas para as posies-chave do confronto. Duarte da Ponte Ribeiro, nas repblicas do Pacfico, e Miguel Maria Lisboa, junto a Venezuela, Nova Granada e Equador, iriam assestar o canho norte-americano, procurando convencer os governos e a opinio de que a aliana antibrasileira servia-lhes para facilitar a penetrao imperialista, que acabaria por engoli-los (BUENO & CERVO, 2002:104).

A estratgia brasileira consistia em abrir a navegao do Amazonas exclusivamente aos ribeirinhos, tentando vincul-los posio brasileira em detrimento dos objetivos dos EUA. Estes, por sua vez, tentavam forar o Brasil a ceder s suas reivindicaes por meio da influncia sobre os demais Estados Amaznicos- o Equador e o Peru foram os pases onde esta influncia se fez mais forte. No entanto, o Brasil no desenvolvera, historicamente, uma poltica de cooperao com os vizinhos amaznicos, como reconhece Paulino Jos Soares de Souza, em parecer de 1854:J era tarde porm para fundar esta poltica. Para colher resultados de uma poltica daqui a muitos anos preciso comear a semear hoje, e no semear no mesmo dia em que o fruto necessrio... Se a 20, 15 ou 10 anos tivssemos com deciso e firmeza com uma poltica feita, tomado a iniciativa nestas questes, poderamos t-las dirigido. Poderamos ento inspirar aos ribeirinhos uma confiana que no confiamos hoje. As intrigas, as maquinaes dos Estados Unidos, da Inglaterra e da Frana no tinham ainda produzido os resultados com que hoje lutamos (Apud LUZ, 1968: 142).

Dentro da mesma concepo de segurana, em 1864, Pimenta Bueno props um pacto de integrao regional que abarcaria a livre-navegao, a

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resoluo das questes de limites e um incentivo ao comrcio regional10 (BUENO & CERVO, 2002:106):A viso mais completa e equilibrada da questo amaznica seria desenvolvida, em 1864, pelo eminente jurista Jos Antnio Pimenta Bueno. Nela associa o direito, a economia, o comrcio, a navegao, os limites, numa poltica externa de amizade efetiva, cuja verso a integrao dos pases da Bacia Amaznica. Constri dessa forma a teoria antecipada de um pacto amaznico. (CERVO, 1981:90)

Desde de 1855, entretanto, quando os EUA voltam-se para seu conflito interno, a tenso entre os dois pases diminu e, finalmente, em 1866, assinado o decreto que abre (para navios mercantes) a Tocantins, Tapajs, Madeira, Negro e So Francisco. Bandeira (1978:95) considera que a Amaznia foi responsvel pela primeira campanha anti-americana no Brasil. No entanto, Amado Luiz Cervo pondera que o conflito no era to significativo assim, prevalecendo as relaes amistosas:As relaes entre o Brasil e os Estados Unidos, embora marcadas por atritos ocasionais, pelos quais tinham maior responsabilidade certos agentes insolentes, deveriam pautar-se pelo entendimento de alto nvel, porque se vinculavam interesses comuns. O comrcio bilateral era o maior comrcio continental, necessrio e til para ambos os lados. A entente cordiale Brasil- Estados Unidos fortalecia o equilbrio de poder EuropaAmrica, uma das metas externas comuns. A singularidade das duas grandes naes do continente aconselhava estrategicamente boas

navegao

do Amazonas,

Esta proposta de pacto pode ser considerada o antecedente mais antigo do Tratado de Cooperao Amaznica, assinado mais de um sculo depois, em 1978. Embora a idia de Pimenta Bueno no tenha prosperado, suas motivaes jogam luzes sobre o projeto do TCA, ou seja, evidencia que antiga a estratgia de aproximao dos pases amaznicos para evitar que eles sirvam de apoio interferncia das grandes potncias na regio. No caso da Amaznia essa preocupao ganha destaque, pois j bastante difcil o controle das fronteiras e regies de acesso. Se os pases amaznicos, nos quais nascem o rios e at onde se estende a floresta, facilitarem ou permitirem o acesso de foras inimigas, o trabalho de defesa do Brasil pode ser imensamente dificultado. Mesmo em questes no militares, a liceidade de pases para atuao internacional na Amaznia dificulta o controle por parte do Brasil, alm de, obviamente, enfraquecer politicamente sua posio.

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relaes recprocas. Era, em suma, de bom alvitre poltico superar os conflitos ocasionais. (BUENO & CERVO, 2002:105).

Nessa disputa houve alguns incidentes diplomticos mais srios, como o caso da embarcao que saiu do Brasil e foi at a Bolvia sem a licena necessria, gerando manifestaes hostis da populao e dos governantes locais. A situao ainda foi agravada quando se descobriu que o navio levava ao presidente dos EUA uma proposta de Tratado com a Bolvia, pelo qual o pas do Amrica do Norte se comprometeria a colaborar com uma possvel guerra contra o Brasil (BANDEIRA, op. cit.: 153-155). O motivo de desconfianas mtuas deviase mal resolvida questo do Acre, que seria o primeiro problema diplomtico a ser resolvido pelo governo republicano. Mas, ainda que se reconhea o significado da regio amaznica para uma poltica externa que tinha em vista, primeiramente, a conformao territorial, no se pode negar que, durante o Imprio, a principal preocupao da atuao internacional do Brasil estava na relao com a Argentina e com os demais pases do Conesul. A ocorrncia da Guerra do Paraguai (1865-1870) dispensa maior argumentao para comprovar e explicar essa priorizao. A partir da proclamao da Repblica (1889) at o final da gesto do baro do Rio Branco (1912), a Amaznia continua a ter importncia para a poltica externa pela necessidade de consolidao territorial. Recm nascida a Repblica, resolvida a antiga questo do Amap (1900), por laudo arbitral que ps fim h mais de 200 anos de controvrsias com a Frana. Logo em seguida, a valorizao econmica do territrio do Acre, pela produo de borracha, e decorrente povoamento por brasileiros fizeram fraquejar o consenso estabelecido entre o Brasil e a Bolvia, pelo Tratado de Ayacucho (1867). Mais uma vez mostra-se insuficiente o comando das normas internacionais incidentes sobre a regio amaznica. A controvrsia foi resolvida em 1903, pela diplomacia e a compra do territrio em disputa. Tambm os limites com a Inglaterra foram resolvidos no incio do perodo republicano, de forma que a Amaznia, at os primeiros anos da Repblica ainda tinha um grande significado para a poltica externa brasileira, que visava consolidar o espao nacional. 26

O caso do Acre o mais significativo11. A regio, poca pertencente Bolvia, era ocupada em grande parte por brasileiros vindos do Nordeste, motivados pela valorizao econmica da borracha. Os brasileiros residentes no local organizaram uma resistncia presena de bolivianos, chegando inclusive a proclamar o Estado Independente do Acre (14/07/1899), mas tal estado no foi reconhecido pelo Brasil. A poltica do governo brasileiro era de no interferir no problema do levante - a maior preocupao brasileira referia-se a uma possvel participao dos EUA na questo, como queriam os bolivianos. A possvel presena do poderoso Estado do norte da Amrica resgatava receios antigos, de ameaa soberania brasileira na regio. No conseguindo exercer sua soberania sobre a regio, a Bolvia cedeu poderes a um consrcio internacional denominado Bolivian Syndicate, entre os quais o de manter polcia e equipar uma fora armada, para a defesa dos rios e manuteno da ordem interna, arrecadar impostos e administrar o territrio. O fato preocupou seriamente a diplomacia brasileira, que vetou a utilizao dos rios que ligavam o Acre ao Atlntico, de forma a inviabilizar a continuidade do negcio. At o incio da Repblica, o governo brasileiro reconhecia a soberania boliviana sobre o Acre, aceitando a interpretao dada pelo vizinho ao Tratado de 1867. Porm, a crescente conflituosidade na regio, bem como a preocupao com os poderes de um grupo multinacional na regio mobilizaram debates pblicos no pas. O legislativo posicionou-se fortemente contra a concesso feita pela Bolvia ao grupo estrangeiro, e manifestaes mais exaltadas chegam a mencionar a possibilidade de se fazer uma interveno blica para solucionar a questo12. A Cmara dos Deputados manifestou uma posio divergente daquela do executivo, considerando o Acre como territrio litigioso.

Sobre a questo do Acre, ver, entre outros, BANDEIRA (1978: 153-165), BUENO (2003:309326), REIS (1982:122-132). Destes autores foram tiradas as informaes presentes nesta parte do trabalho. 12 Sobre os debates no Congresso Nacional, ver BUENO (2003:313-318)

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Segundo Bueno, a posio do governo brasileiro dificultava a resoluo eficaz do conflito, pois reconhecia a soberania boliviana, mas ao mesmo tempo procurava interferir na gesto do territrio, tentando impedir a concesso a um consrcio internacional:O problema criado pelo arrendamento do Bolivian Syndicate se encontrava, assim, do lado brasileiro, num impasse. A opinio e o Congresso Nacional repudiavam o contrato. O executivo- a quem competia tomar iniciativas e conduzir a poltica exterior, acionava a sua diplomacia em Washington e na Europa com o intuito de anular o arrendamento, no aceitando, portanto,a presena de soberania estranha nos lindes nacionais, mas declarava ser o Acre boliviano. A posio brasileira, embora no fosse ambgua do ponto de vista jurdico, era na prtica ineficaz.A ao da diplomacia s poderia apresentar escassos ou nenhum resultado, pois o governo tolhia suas prprias aes, apegando-se a um posicionamento jurdico que conflitava com sua posio poltica. Campos Sales e Olinto de Magalhes concluram o quadrinio legando para a gesto Rodrigues Alves- Rio Branco um problema de difcil soluo. (BUENO,2003:318)

Ao assumir a questo, Rio Branco muda a poltica do governo anterior, tornando o Acre territrio oficialmente litigioso, por meio da dvida colocada sobre por onde deveria passar a linha fronteiria. Alm disso, para encaminhar a resoluo do problema do levante dos brasileiros que haviam expulsado os bolivianos, o chanceler primeiro trata de afastar o consrcio internacional, por meio da indenizao pela interrupo da concesso para atuar na regio (tal negociao somou-se medida de fora, j referida, de fechamento dos rio amaznicos navegao internacional). Com a Bolvia, Rio Branco negociou tambm uma compensao pecuniria, alm da concesso de um pedao (bastante pequeno, se comparado com o Acre) de territrio brasileiro e do compromisso de construir a ferrovia Madeira- Mamor. Esse entedimento, que significou, em outros termos, a compra do Acre pelo o Brasil, foi formalizado pelo Tratado de Petrpolis, assinado em 17 de junho de 1903. 28

Em suma, a finalizao da conformao territorial do Brasil pode ser atribuda gesto do baro do Rio Branco no Ministrio das Relaes Exteriores (1902-1912):Essa busca [de consolidao do espao nacional] corresponde a um dos sentidos da histria do Brasil e foi o primeiro vetor da poltica externa brasileira- vetor que prevaleceu no perodo monrquico e se estendeu, at Rio Branco. O tema bsico a ocupao efetiva do territrio, a sua defesa, em especial na vertente platina dentro da qual se insere a guerra do Paraguai. Este perodo culmina com a obra de Rio Branco que, com sua ao, equacionou a configurao definitiva de nossas fronteiras. (LAFER, 2004:42-43).

Aps a gesto de Rio Branco, e at a dcada de 1960, a poltica externa brasileira caracteriza-se pela aproximao dos EUA, concebida inicialmente pelo prprio Rio Branco. A opo baseava-se na percepo da crescente importncia do vizinho do norte no cenrio internacional, e da tentativa de construir uma aliana que pudesse conferir maior peso posio brasileira no concerto dos pases.Nessa interpretao, a gesto do Baro do Rio Branco na Chancelaria (1902-1912) construiu um marco conceitual para as relaes externas do Brasil, ao deslocar de Londres para Washington o eixo da diplomacia brasileira. Seu componente fundamental consistiu na percepo da emergncia dos Estados Unidos como futura potncia global e eixo necessrio da poltica externa brasileira, levando busca de uma aliana que possibilitasse o aumento do poder de barganha do pas e aceitao de um vnculo pragmtico entre o apoio a posies norteamericanas e a expectativa de ajuda a objetivos brasileiros. Com reinterpretaes nas dcadas subseqentes, que levaram a variaes seja na sua dimenso pragmtica, seja na sua dimenso ideolgica, os principais componentes do paradigma da aliana especial com os

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Estados

Unidos

foram

mantidos

por

mais

de

meio

sculo.(MELLO,2000:27)13

Paralelamente, a estratgia visava permitir uma certa autonomia com relao Europa, notadamente com relao Inglaterra14. O fundamental seria manter o status quo territorial, e, a partir da, desenvolver o espao nacional. Para esses objetivos internos que se volta a poltica externa. Porm, apesar da idia de desenvolvimento do espao nacional, a Amaznia perde importncia na agenda das relaes exteriores brasileiras. Alm de o pas ter outras prioridades, como facilitar as exportaes do setor agrrio, fundamental que se compreenda que, at a metade do sculo XX, o Brasil era um pas com poucos recursos, uma infra-estrutura bastante precria, e um predomnio absoluto do centro- sul no campo poltico nacional. No mais, as relaes com os pases do norte da Amrica do Sul eram nfimas. Para que a Amaznia ocupasse um lugar de destaque na formulao da estratgia internacional do pas era necessrio que se tivesse uma clara conscincia da sua problemtica, e tambm meios de lidar com ela. Na primeira metade do sculo XX no havia no Brasil nenhum dos dois. Ento, at meados da dcada de 1940, a Amaznia basicamente ignorada, assim como os vizinhos do norte da Amrica do Sul. Na denominada Primeira Repblica, alguns fatores contriburam para a perda de importncia da Amaznia para a poltica externa brasileira. O primeiro que a aproximao diplomtica dos EUA, amparada principalmente no incremento das relaes comerciais, fez diminuir os receios com a possvel pretenso norte americana na regio. Os EUA substituem a Inglaterra como potncia que serve de principal parceiro e referncia para as relaes exteriores do Brasil. Assim, a principal ameaa soberania brasileira na regio (os EUA) se tornam o principal aliado e parceiro do pas. Tal alterao se reflete no que Bueno (BUENO & CERVO, 2002:165-167) denominou a americanizao da poltica

13 14

Ver tambm BUENO (2003: 319,320) Ver, Lafer (LAFER & PENA, 1973: 86-88).

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exterior do Brasil. Outro importante fator explicativo o fato de a borracha ter perdido a sua importncia econmica, pelo fato de outros pases comearem a produzi-la de forma mais competitiva. Por fim, pode-se mencionar a definitiva consolidao das fronteiras da regio. O passo seguinte ao da construo do espao nacional, o do seu desenvolvimento, no poderia ser dado com relao Amaznia nas primeiras dcadas do sculo, por absoluta falta de recursos e infra-estrutura: Efetivamente, entre 1915 e 1950 a Amaznia conheceu um perodo de marginalizao e debilidade produtiva que abalou profundamente a sua economia (PEREIRA, 1978: 134-135). A debilidade financeira da regio levou a projetos estaduais de captao de recursos externos e concesso de terras e benefcios. Em 1922 o governador do Amazonas formulou projeto para obter um emprstimo de banqueiros norte americanos, a fim de promover o desenvolvimento da regio. A contrapartida seria dada por diversos benefcios comerciais, fiscais, de infraestrutura e tambm por concesses de transportes e comunicaes. O caso gerou uma controvrsia entre o estado e a Unio (informada por diplomatas em Washington das negociaes). A Unio travou o negcio por meio da discusso, no congresso, da extenso das faixas de fronteiras, cujo resultado poderia prejudicar as garantias dadas pelo estado do Amazonas ao investidor. A partir de 1927 foram feitas diversas concesses de terras, a grupos japoneses, poloneses e norte americanos, sendo o caso mais famoso o da concesso Companhia Ford Industrial do Brasil, negcio que deu origem ao nome de uma cidade - a Fordlndia. (REIS, 1982:136-146). Em suma, o desenvolvimento da Amaznia foi relegado aos esforos de iniciativas privadas internacionais. A poltica externa foi meramente defensiva, refletida num acompanhamento dos acontecimentos que por l se desenvolviam, sejam internos, como os projetos citados, sejam externos. Mas desde este momento h o reconhecimento de que preciso captar capital estrangeiro para aplicar na regio.

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Alm disso, outro fator a impedir que as atenes da diplomacia brasileira se voltassem para o norte sul americano a concentrao das preocupaes no sul, em especial na Argentina. Na primeira metade do sculo XX a Argentina dispunha de vantagens econmicas e militares sobre o Brasil. A Argentina era o centro das atenes brasileiras na Amrica do Sul. Um relatrio da embaixada em Buenos Aires afirmava em 1937 que a Repblica Argentina atingia a fase culminante de sua prosperidade, espelhada... nos balanos bancrios, nas iniciativas do poder Executivo, no Bem-Estar do comrcio interno e na atividade sem precedente do comrcio exterior. (CERVO, 2001:70). Um dos fatores que conferiam vantagem estratgica Argentina sua vasta rede de comunicaes pela Amrica do Sul. E justamente esse fato que joga luzes sobre a importncia da poltica amaznica do Brasil, mesmo quando se tem em vista a disputa com o vizinho platino. Em 1931, o ento capito Mrio Travassos escreve um livro denominado Aspectos geogrficos sul americanos15. Ele tece diversos elogios poltica de comunicaes Argentina, primeiramente por ter escolhido a expanso pelas comunicaes terrestres. A opo por comunicaes martimas levaria ao confronto com o Brasil, alm disso a expanso por linhas interiores "se manifesta sob a forma altamente simptica de solidariedade continental." (TRAVASSOS, 1938: XX). A Argentina, nesta poca, j se ligava diretamente com Santiago, La Paz e Assuno. Conjugandose com as ligaes bolivianas e peruanas, a influncia argentina chega at Cuzco, " a cavaleiro mesmo do anfiteatro amaznico" (id. ibidem). Ou seja, o primeiro ponto destacado pelo autor a possibilidade de extenso de influncia do pas platino sobre os pases amaznicos. A disputa seria por definir qual dos dois pases (Brasil ou Argentina) serviria de sada para o Atlntico aos pases pertencentes Vertente Pacfica da Amrica do Sul. A Amaznia, como regio geogrfica, ganha importncia neste contexto justamente por oferecer ao Brasil a possibilidade de contrabalanar a fora geopoltica argentina, sem precisar recorrer ao confronto direto. A posse pela Argentina daA partir da segunda edio, de 1935, o livro passa a chamar-se Projeo Continental do Brasil.15

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desembocadura do Rio da Prata lhe confere uma grande vantagem geopoltica, vantagem de que dispe o Brasil no caso da bacia amaznica. Essa diferena uma das motivaes da idia de intensificar as atividades da bacia amaznica como forma de compensar a fora geopoltica da Argentina no Prata. A estratgia brasileira, segundo Travassos, deveria ser vitalizar as comunicaes amaznicas, garantindo que Santa Cruz de La Sierra sobrepujasse em importncia a cidade de Cochabamba (ambas bolivianas), de forma que a bacia amaznica trouxesse para sua influncia o tringulo boliviano, e o Brasil pudesse disputar em melhores condies, com a Argentina, o poder na Amrica do Sul. A favor do Brasil a "espontaneidade viatria da Amaznia" e da Argentina o avano das polticas de comunicao efetivadas- o Prata se aproveitaria das insipincias da Amaznia para neutralizar sua m posio, enquanto a bacia amaznica teria como trunfo a sua potencialidade e a inteno da Bolvia de livrar-se da "servido s comunicaes platinas" (op.cit: 23-40)16. A anlise geopoltica de Mrio Travassos no influencia a poltica brasileira17, mas destaca um ponto importante: apesar de o foco das atenes externas do Brasil ser a Argentina (e por isso mesmo), o norte da Amrica do Sul mantm sua importncia por duas razes. A primeira a realidade da extenso dessa disputa por hegemonia entre os dois pases aos pases andinos (que so, com exceo do Chile, amaznicos). A segunda a possvel estratgia brasileira de utilizar a Bacia Amaznica como plataforma de projeo de sua influncia na Amrica do Sul. At a dcada de 1940, no entanto, nenhum dos dois aspectos motivar a poltica externa brasileira a voltar-se para a Amaznia. A preocupao com presena Argentina vai se manifestar em meados dos anos 1940, e a concepo da Bacia Amaznica como um espao estratgico de atuao externa vai ser desenvolvida aos poucos entre os anos 1940 e 1970.

A disputa pela influncia sobre a Bolvia acontecia de fato entre Brasil e Argentina, como mostra Amado Luiz Cervo (2001:191) 17 Mesmo durante o regime militar, de 1964-1985 a influncia do pensamento geopoltico bastante limitada. Cf MIYAMOTO (1985)

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1.2 - OS

PLANOS DE DESENVOLVIMENTO DA

AMAZNIA

E O DIFCIL

RECONHECIMENTO DA UTILIDADE DA COOPERAO INTERNACIONAL ANOS 1940 AOS ANOS 1970)

(DOS

A partir da dcada de 1940 a regio retorna ao centro das preocupaes brasileiras, devido ao nascente projeto desenvolvimentista e tambm s preocupaes de interferncia externa na regio. Em discurso de outubro de 1940 o presidente Getlio Vargas d uma dimenso de prioridade nacional ao desenvolvimento amaznico18. Do ponto de vista dos aspectos internacionais, podem-se destacar dois elementos: 1) O carter internacional da Bacia Amaznica, e a sugesto de cooperao com os pases ribeirinhos: As guas do Amazonas so continentais. Antes de chegarem ao oceano, arrastam ao seu leito degelos dos Andes, guas quentes da plancie central e correntes encachoeiradas das serranias do norte. , portanto, um rio tipicamente americano, pela extenso de sua bacia hidrogrfica e pela origem das suas nascentes e caudatrios, provindos de vrias naes vizinhas. E, assim, obedecendo ao seu prprio signo de confraternizao, aqui poderemos reunir essas naes irms para deliberar e assentar as bases de um convnio em que se ajustem os interesses comuns e se mostre, mais uma vez como dignificante exemplo, o esprito de solidariedade que preside a relao dos povos americanos,

Trechos do discurso: ...terra do futuro, o vale da promisso na vida do Brasil de amanh (...) Todo o Brasil tem os olhos voltados para o Norte, com o destino patritico de auxiliar o surto do seu desenvolvimento (...) Nada nos deter nesta arrancada que , no sculo XX, a mais alta tarefa do homem civilizado: conquistar e dominar os vales das grandes torremtes equatoriais, transformando toda sua fora cega e a sua fertilidade extraordinria em energia disciplinada. O Amazonas, sob o impulso fecundo da nossa vontade e do nosso trabalho, deixar de ser, afinal, um simples captulo da histria da terra e, equiparando aos outros grandes rios, tornar-se- um captulo da histria da civilizao. (VARGAS, 1944:1-3). H que se ponderar, no entanto, que o prprio Vargas, em seu dirio, no faz qualquer meno especial ao discurso: Dia 10: Visitasquartel federal, enfermaria, desfile escolar, Departamento Administrativo, Museu de Nunismtica, Associao Comercial. Almoo numa cervejaria, regresso a palcio, recepo aos cnsules etc. noite banquete no club- discursos.(VARGAS, 1995: 343).

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sempre prontos cooperao e ao entendimento pacfico. (VARGAS, 1944:3- grifo meu) 2) No havia qualquer preocupao com a participao de estrangeiros nos esforos de desenvolvimento da Amaznia: Todo o Brasil tem os olhos voltados para o Norte, com o desejo patritico de auxiliar o surto do seu desenvolvimento. E no somente os brasileiros; tambm os estrangeiros, tcnicos e homens de negcios, viro colaborar nessa obra, aplicandolhe a sua experincia e os seus capitais, com o objetivo de aumentar o comrcio e as indstrias e no, como acontecia antes, visando formar latifndios e absorver a posse da terra, que legitimamente pertence ao caboclo brasileiro. (op. cit.: 2- grifo meu). Pode-se destacar a identificao da falta de conhecimento tcnico e de recursos, e tambm a reiterao da idia de um convnio internacional com os pases amaznicos, desta vez menos focado na segurana (como no caso da proposta de Pimenta Bueno), e mais voltado para a cooperao. Em seguida ao discurso, Vargas deu uma entrevista Associetad Press, onde falou mais da conferncia entre os pases amaznicos:Quanto conferncia de que falei no discurso de Manaus, devo esclarecer que dela participaro, principalmente, os pases vizinhos tributrios da bacia amaznica e que precisam fazer escoar seus produtos para o Atlntico. Esses pases so a Venezuela, Colmbia, Peru, Equador e Bolvia. Podero ser convidados os EUA, tendo-se em vista o seu interesse como grande mercado consumidor. Os assuntos a tratar parecem-me da maior importncia: intercmbio comercial, navegao, transportes, tarifas aduaneiras e outros. Devemos chegar a um acordo em que se assegure, praticamente, a expanso das nossas atividades em sentido amplo de solidariedade. A exemplo do recente convnio com a Argentina, esse ajuste de interesses mtuos vir ter salutar reflexo sobre o fortalecimento das relaes entre os pases americanos. No devemos

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cogitar, apenas, de prevenir atritos possveis, mas, principalmente, de fortalecer os motivos, que nos sobram, para nos unirmos e formarmos uma verdadeira comunidade econmica. claro que, assim procedendo, aumentaremos nossas reservas de defesa e a nossa capacidade para resistir a qualquer tentativa de absoro. Embora no tenhamos, no momento, felizmente, razes para nos sentirmos ameaados, cumpre-nos consolidar a obra de solidariedade comeada com iniciativas como essas que no visam hostilizar ningum e s concorrem para desenvolver, entre as naes americanas, o esprito de mtua confiana e a convico da necessidade de nos prepararmos para enfrentar quaisquer eventualidades (VARGAS,1941:87)19

A Constituio de 1946, em seu artigo 199, reserva 3% da receita tributria nacional para a execuo do plano de valorizao econmica da Amaznia. Como poltica pblica, no entanto, o plano de incorporao da regio s ter incio em 1953, com a criao da Superintendncia do Plano de Valorizao Econmica da Amaznia (SPVEA). Do ponto de vista internacional, o Brasil faz, na primeira reunio da Unesco, em 1946, a proposta do Instituto Internacional da Hilia Amaznica (IIHA). A idia seria captar recursos para desenvolver pesquisas na e sobre a regio. Embora o Instituto tenha sido aprovado pela Conveno de Iquitos, de 1948, o prprio Brasil (pas que sediaria a organizao, em Manaus), em razo da mobilizao no Congresso Nacional, no ratificou a Conveno de Iquitos e a idia naufragou, no ano de 1950. A razo foi a grande polmica de que o projeto representaria a internacionalizao da regio. Pode-se considerar o Instituto Internacional da Hilia Amaznica o antecessor direto do Tratado de Cooperao Amaznica. Esta organizao internacional (IIHA) baseava-se na conscincia do governo brasileiro de que no dispunha de meios (recursos financeiros, infra-estrutura e pessoal qualificado)Em discurso proferido no dia 11/11/1940, no Rio de Janeiro, Vargas, ao fazer um balano dos 10 anos de governo, destaca o projeto amaznico, referindo-se projeo internacional do Brasil: ... e, h pouco, lanamos a idia, recebida com manifestaes de geral regozijo, de reunir, na Amaznia, uma conferncia de naes limtrofes, interessadas no trfego da grande artria fluvial. (VARGAS, 1941:181)19

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suficientes para conhecer, pesquisar e desenvolver seu territrio amaznico. Da a importncia da cooperao internacional, e uma das razes pelas quais a poltica externa fundamental quando o assunto a Amaznia. No entanto, os pases que compartilham a regio com o Brasil tambm no podem suprir a falta de recursos, donde torna-se claro um grande dilema que vai acompanhar no s a poltica externa para a regio, como a poltica externa brasileira em geral: a pretenso de autonomia seriamente limitada pela carncia de recursos20. A independncia no apenas uma opo poltica ou retrica, dado que a dependncia uma condio estrutural21. A proposta do IIHA foi feita pelo representante do Brasil na Unesco, Paulo Berredo Carneiro (primeiro, em 1945, ao governo brasileiro e no ano seguinte na reunio da prpria Unesco em Londres). Em 1948 foi aprovada a Conveno de Iquitos, criando o Instituto, que teria, inicialmente, a participao de Brasil, Peru, Equador, Colmbia, Venezuela, Bolvia, Frana, Holanda e Itlia. Apesar dessa aprovao, e do parecer favorvel da Comisso de Relaes Exteriores da Cmara dos deputados, a imprensa e o legislativo, mais uma vez (a exemplo do caso do Acre) posicionaram-se de forma distinta do executivo. Um dos principais opositores da idia foi o ex-presidente (ento deputado) Arthur Bernardes. Somou-se ainda forte oposio de setores das foras armadas, de forma que a Conveno de Iquitos no foi ratificada pelo seu idealizador, o Brasil. O malogro do Instituto Internacional da Hilia Amaznica fez com que a regio sasse novamente da pauta da poltica externa brasileira22. Note-se tambm que a poltica externa do pas foi marcada, no perodo 1946-1961, por um alinhamento aos EUA, exemplificados pela assinatura do Tratado

20 A questo da incapacidade de concretizar os prprios projetos, autonomamente (com recursos prprios), na regio amaznica, ir acompanhar permanentemente o desenvolvimento do TCA. 21 Sobre a teorizao da estrutura de dependncia dos pases da Amrica Latina ver, principalmente, CARDOSO & FALETTO (1975), MARINI (1992) e FERNANDES (1973). 22 Como conseqncia direta do fracasso do IIHA foi criado, pelo decreto 31.672/52, o Instituto Nacional de Pesquisas da Amaznia. Segundo Reis (op.cit:164), a Colmbia e o Peru tiveram iniciativas semelhantes, mas sem o mesmo xito da brasileira. importante notar que tais medidas se restringem ao plano interno, perdendo qualquer caracterstica de cooperao internacional.

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Interamericano de Assistncia Recproca (1947), a Comisso Mista Brasil- EUA (1950) e o Acordo de Cooperao Militar (1952). Alm da justificativa econmica para tal alinhamento, no se pode esquecer a conjuntura mundial, em que a Guerra Fria estruturava as relaes internacionais. Nesse contexto, menor o espao para um projeto voltado para os vizinhos latino- americanos. Tanto o Brasil como a Amrica Latina aparecem no sistema internacional como rea de influncia dos EUA, e muitas vezes atuam de acordo com essa condio. Mas, se internacionalmente a Amaznia perde importncia na atuao poltica do Brasil, internamente, a partir de 1953 (quando criada a SPVEA), o Estado passa a tomar iniciativas para tentar incorporar a vasta rea desgarrada do pas. A partir dessa poca outras iniciativas so tomadas no plano interno, passando pelo Plano de Metas (1958), com a construo de rodovias de que o exemplo mais ilustrativo a Belm-Braslia, a criao, em 1966, da Superintendncia do Desenvolvimento da Amaznia- SUDAM, substituta da SPVEA, o mapeamento de recursos por meio do RADAM (1970), a lei de incentivos fiscais para empresas que investissem na regio (1968), a criao da Superintendncia da Zona Franca de Manaus- SUFRAMA, em 1967, o Programa de Integrao Nacional (PIN- 1967), cujo smbolo maior a construo da Transamaznica. No se podem esquecer tambm o papel do Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria (INCRA), a construo da rodovia CuiabSantarm e a estratgia dos plos de desenvolvimento adotada pelo II PND (Programa Nacional de Desenvolvimento), j no governo Geisel. (ver COSTA, 2000: 65-71). Todas as iniciativas so medidas exclusivamente nacionais, no implicando cooperao internacional. Elas se inserem no contexto desenvolvimentista, projeto que caracterizou a histria do pas da dcada de 1950 de 1980, amparado em doutrinas da Comisso Econmica para a Amrica Latina e o Caribe (CEPAL), fundada em 1948, da Escola Superior de Guerra (ESG), criada em 1949 e do Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Poltica (IBESP), nascido em 1953 e depois transformado em ISEB (Instituto de Estudos Brasileiros). A ocupao e aproveitamento econmico do imenso 38

territrio nacional passaram a ser objetivos prioritrios para os sucessivos governos brasileiros, e a construo de Braslia, com a conseqentemente transferncia da capital nacional para o interior (1960), um smbolo dessa meta de conquista do prprio territrio, desafio que a Amaznia encarna em toda a sua complexidade e magnitude. No plano externo, o contato com os pases amaznicos continuou inexpressivo, mas a poltica externa tambm visava, desde a dcada de 1950, o desenvolvimento do pas23. As estratgias internacionais para o desenvolvimento, no entanto, eram variveis. E um dos principais elementos dessa estratgia a relao do Brasil com os EUA e a Amrica Latina24. De 1946 a 1950, logo aps o trmino da Segunda Guerra e o incio da Guerra Fria, a poltica externa caracterizou-se, como j mencionado, pelo alinhamento aos EUA. Os governos que sucederam Dutra (Vargas, Caf Filho e JK) continuaram, at 1961, uma poltica de colaborao e aproximao com os EUA, porm reforando os elementos de barganha e buscando vantagens em troca desse apoio, poltica que ganhou a denominao de desenvolvimento associado (BUENO & CERVO, 2002: 273-307). Exemplo dessa postura a proposio, por Juscelino Kubitschek, da Operao Panamericana, uma tentativa de converter a aliana poltica e estratgica em apoio econmico. Ainda assim, o perodo marcado pela referncia que os EUA representavam para a poltica externa brasileira, deixando pouco espao para um projeto latino- americanista. Durante sua segunda gesto frente do MRE (1955-1958), Macedo Soares concebeu uma aproximao com os vizinhos amaznicos, sob a liderana do Brasil25.

... a poltica externa brasileira, principalmente a partir dos anos sessenta, constituiu-se num instrumento atrelado poltica nacional de desenvolvimento. (OLIVEIRA, 1994:2). 24 Luiz A. P. Souto Maior (1996: 107-109) identifica duas espcies de tendncias de aproximao (regionalismos): o latino americanismo e o pan americanismo, que traduzem a alternativa: prioridade aos EUA ou Amrica Latina. 25 O chanceler Macedo Soares, construtor da Paz do Chaco e negociador dos 31 instrumentos internacionais da grande negociao Corumb-Robor-La Paz, dedicou-se articulao de esforos com os pases amaznicos, buscando iniciar uma etapa de colaborao internacional que fosse proveitosa ao Brasil e aos demais ribeirinhos (Soares, 1960: 28).

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Relanceando um olhar ao mapa, verificaremos que a Amaznia, que nos pertence em trs quartas partes, tambm interessa Colmbia, ao Peru e Bolvia, pases vizinhos e amigos. Por conseguinte, evidente existir um destino comum na Amaznia, que interessa a quatro naes, trs das quais so ribeirinhas de montante. Valeria, pois, ter presente essa circunstncia geogrfica, j devidamente assinalada pelo presidente Vargas em seu discurso de Manaus, em 1940. Assim, sendo o Brasil o scio mais rico em extenso territorial e em haveres financeiros, nada impediria que nossa experincia no assunto, em termos de realizao de um vasto plano de aproveitamento econmico da regio, fosse comunicada aos pases vizinhos, partcipes pela prpria geografia da zona banhada pelo rio-mar (Soares, 1960: 28).

No entanto, a grande preocupao brasileira no norte da Amrica do Sul era a possvel pretenso expansionista da Venezuela, sob o comando de seu presidente Prez Jimenez, inclusive com possveis ambies sobre territrios brasileiros (CERVO, 2001: 207). Uma poltica de cooperao de fato com os pases amaznicos estava muito distante da realidade e tambm da orientao geral da poltica externa da poca, e por isso no foi frente, assim como no teve xito o principal motivador da preocupao brasileira, o projeto hegemnico do ditador venezuelano, tirado do poder em janeiro de 1959. A partir de 196126, o Brasil adota a poltica externa independente, que colocava, acima de um compromisso com os EUA e com a Guerra Fria, os

Quero referir-me ao Ministro Embaixador Jos Carlos de Macedo Soares, que no comando da poltica exterior do pas preocupou-se com os destinos brasileiros da Amaznia. (...). Dele recebi a incumbncia de estruturar, no Itamaraty, um grupo de trabalho que o assistisse naquele particular. Entendia o ministro que no devamos deixar passar a outras mos a conduo de uma poltica de integrao das seis amaznias, alm da brasileira, a boliviana, a peruana, a equatoriana a colombiana e a venezuelana. Era preciso que, sem intenes de absoro, mas de coordenao, exercssemos esse comando, pela nossa posio, pelo equilbrio de nossas decises, pela civilizao que j realizramos na prpria regio, e que tudo, devidamente aferido, teria de ser meditado para a nossa conduta. Os acordos que fez celebrar com vrios daqueles pases de mundos amaznicos estavam dentro daquele objetivo de poltica exterior. (REIS, 1971: 375- grifos meus). 26 Importante mencionar que, em 1960, surge a primeira tentativa institucionalizada de integrao da Amrica Latina, a ALALC (Associao Latino Americana de Livre Comrcio). Mas no acordo inicial, s o Brasil e o Peru, dentre os pases com territrio amaznico, estavam presentes. Colmbia e Equador ingressaram em 1961, a Venezuela em 1966 e a Bolvia em 1967. Mas a ALALC, por razes variadas, fracassou (KUNZLER & MACIEL, 1994: 152-153).

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objetivos prprios do pas. Assim, relaes com o mundo comunista foram reatadas e/ou reforadas (Europa Oriental, China e URSS) e a tnica foi a diversificao dos parceiros internacionais, com a aproximao de pases africanos. No ano de 1961, o governo dos EUA anunciou a Aliana para o Progresso, programa pelo qual prometeu destinar 20 bilhes de dlares para o desenvolvimento da Amrica Latina nos 10 anos seguintes (BUENO & CERVO, 2002: 323), como forma de reforar sua influncia no continente. Cuba representava um exemplo preocupante para a Casa Branca. A aproximao do Brasil com a Amrica Latina se deu em vista de entendimentos com a Argentina, expressa em acordos de cooperao (BUENO & CERVO, 2002: 330-331), e com o Chile, expressa pela visita oficial de Joo Goulart a Santiago (BANDEIRA, 1995: 199-200). Ainda que a poltica externa independente de Jnio e Jango pudesse representar uma certa aproximao da Amrica Latina, possibilitada pela pretensa autonomia frente aos EUA, o norte da Amrica do Sul continua sendo uma rea alheia realidade brasileira nesse perodo, permanecendo a Bacia Amaznica uma rea geopoltica relegada a segundo plano, do ponto de vista das relaes internacionais dos pases que a compem. Principal ator da regio, sem contar o Brasil, a Venezuela manteve, durante a dcada de 60, uma postura isolacionista, e no tinha interesse em que uma fora como o Brasil tivesse espao nas relaes sub regionais. O pas no queria ingressar na ALALC nem apoiava qualquer projeto de integrao. Em 1962 rompeu relaes com o Peru e, em 1964, com o Brasil, devido a seus governos originados em golpes. A postura foi denominada doutrina Beatencourt, que cobrava da Organizao dos Estados Americanos (OEA) sanes aos pases que atentassem contra a legalidade das instituies, os direitos humanos e a democracia. A Venezuela tinha a poltica externa voltada para o norte: EUA, seu principal consumidor de petrleo e Caribe, por interesses de segurana. (CERVO, 2001: 203-209, 229-233).

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No perodo aps o golpe militar no Brasil, as relaes com a Amrica Latina pioram, pela poltica brasileira de realinhamento com os EUA, alm da teoria do cerco, que reservava aos vizinhos hispnicos um olhar desconfiado e atento, pronto para reagir a qualquer contratempo. Por fim, o eixo Norte- Sul da poltica externa substitudo pelo Leste- Oeste (VIZENTINI, 1998: 31-32). A Venezuela, como j exposto, rompeu as relaes diplomticas com o pas. A estratgia do Brasil era colocar-se como aliado preferencial dos EUA contra o perigo comunista, na tentativa de conseguir deste pas recursos l27. A participao do Brasil na interveno na Repblica Dominicana (1965), por meio da Fora Interamericana de Paz, mostra aos demais pases da Amrica Latina que o apoio aos EUA poderia significar medidas de fora na regio, ainda que se argumente que o Brasil agisse em funo de seu interesse, e no como mandatrio de interesses externos. No Chile, em 1966, o chanceler brasileiro Juracy Magalhes declarou-se enfaticamente contrrio formao de blocos econmicos na Amrica Latina. (VIZENTINI, 1998: 50). O governo de Costa e Silva passa da prioridade segurana para a prioridade ao desenvolvimento, motivo por que sua poltica externa denominada diplomacia da prosperidade (VIZENTINI, 1998: 84-92). Com relao aos EUA procura manter uma certa autonomia, evidenciada principalmente nas divergncias sobre o Tratado de No Proliferao Nuclear (1967). Na Bacia Platina, foi assinado, em 1969, o Tratado da Bacia do Prata28, um projeto de integrao fsica dos pases platinos, que prev um rgo permanente- o Comit Intergovernamental de Coordenao. No mesmo ano formado o Pacto

Oliveiros Ferreira (2001: 48-53), divergindo da maior parte da literatura a respeito, no v grande diferena na poltica externa de Castelo Branco, Costa e Silva, Mdici e Geisel. Para o autor, a essncia da posio do Brasil a mesma (as diferenas seriam apenas tticas, e no estratgicas): o interesse em ser ouvido pelos fortes e respeitado pelos fracos, partindo de uma planejamento geogrfico dos interesses - os crculos concntricos, que mostram a Amrica Latina como rea prioritria ao interesse nacional, seguida pelo continente americano e o Ocidente. Independente das divergncias da literatura, que no cabe avaliar por no serem objeto de pesquisa e portanto, no haver material emprico para tal comparao, o que importa aqui perceber que, independente da caracterizao da poltica externa de Castelo Branco, a postura do Brasil no era percebida como simptica pelos vizinhos. 28 Integrado por Argentina, Bolvia, Brasil, Paraguai e Uruguai

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Andino29, configurando os dois plos de integrao da Amrica do Sul. Na Bacia Amaznica, a Venezuela reata as relaes com o Brasil (1967), diminuindo o seu isolamento. Por parte do Brasil, o governo adota um discurso mais palatvel para os vizinhos. O sucessor de Costa e Silva, Mdici, adota uma postura mais individualista, que vislumbra o Brasil Potncia sem necessariamente adotar um discurso terceiro mundista ou multilateralista. No lugar negociaes multilaterais, o pas optou por acordos bilaterais com seus vizinhos:O realismo da Diplomacia do Interesse Nacional liberava o Brasil de pactos ou acordos de solidariedade e lhe permitia seguir caminhos exclusivamente bilaterais que no prejudicavam sua ascenso ao primeiro mundo. Antes disso, o Brasil encontrava-se diante de duas alternativas de desenvolvimento: 1) integrao com os pases da regio ou 2) tentativa isolada no caminho do desenvolvimento e da autonomia internacional. A opo pela segunda foi influenciada por condicionantes externos... A poltica externa do governo Mdici produziu enorme desconfiana por parte dos demais pases da Amrica Latina. (VIZENTINI, 2001: 145, 151).

O breve panorama que se fez da poltica externa at o governo de Mdici no buscou um aprofundamento. Antes, a pretenso foi apenas demonstrar que as variaes na postura internacional do Brasil no contriburam com a incorporao da regio geopoltica constituda pela Bacia Amaznica, ou seja, o esforo interno de conquista do espao30 no teve um correspondente externo. A imagem do pas penso do ponto de vista geopoltico apenas aumentou com a celebrao do Tratado da Bacia do Prata (1969). Outro efeito que se quis evidenciar que, nas relaes continentais, a complicada oscilao entre os EUA e a Amrica Latina deixou muitas vezes um sentimento de desconfiana nos demais pases que compem esta ltima. A pequena presena da Amaznia na agenda da poltica externa brasileira evidencia um problema relevante da atuao internacional do pas: a falta de umaOriginalmente formado por Bolvia, Chile, Colmbia, Equador e Peru. Em 1973 a Venezuela ingressa no Pacto e, em 1976, o Chile se retira. 30 A criao da SPVEA, SUDAM, SUFRAMA, RADAM e as construes de grandes rodovias.29

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conscincia espacial, ou seja, a incapacidade de tomar a totalidade do espao e do territrio como dados primrios a fundamentar a formulao da poltica externa. Em outros termos, percebe-se que h um entrave na relao entre o espao e a poltica externa, na medida em que esta no concebida de acordo com aquele, e tambm no contribui com a tarefa poltica geral de incorporao e aproveitamento do territrio nacional. Para Miyamoto, o TCA marca uma transformao nesse cenrio:"No era mais a Bacia do Prata, palco externo das disputas regionais com a Argentina, o nico local a merecer as atenes do Itamaraty. A Amaznia completava o quadro de atuao da Chancelaria brasileira e, a partir de ento, todos os pases do continente receberiam igual destaque" (MIYAMOTO, 1989: 152).

O governo em que o TCA foi negociado e assinado, Geisel (1974-1979), foi marcado por uma relao pouco amistosa com os EUA, simbolizada pelo acordo nuclear com a Repblica Federal da Alemanha (1975), pelo relatrio sobre os direitos humanos feito pelo governo Carter e pela denncia do acordo militar com os EUA, bem como dos demais instrumentos de cooperao (1977). Paralelamente postura de autonomia frente aos EUA, e de diversificao dos parceiros internacionais (URSS, China, Leste Europeu, Europa Ocidental, Japo etc) o perodo mostra uma aproximao do Brasil com relao Amrica Latina. O eixo leste-oeste das relaes internacionais definitivamente

relativizado, com significativas aberturas para uma atuao conforme o eixo norte-sul. Com Geisel e Azeredo da Silveira, e seu pragmatismo responsvel, consolida-se o paradigma de atuao externa iniciado com a poltica externa independente, caracterizado pela busca por autonomia no sistema internacional, notadamente com relao aos EUA. Por essa perspectiva, o Brasil deveria transcender o sistema interamericano como rea de priorizao exclusiva do pas, pois ao restringir sua atuao a elemento desse sistema, o pas ficava sujeito aos interesses norte-americanos, e apareceria internacionalmente meramente como um de seus aliados.

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Desde a poltica externa independente, mas principalmente com o pragmatismo responsvel, o Brasil busca justamente marcar seu peso especfico no cenrio internacional. Com o rpido desenvolvimento econmico, apoiado no impulso industrializante das dcadas de 1940 e 1950, e fortemente acelerado nas dcadas de 1960 e 1970, o enorme contingente populacional, um dos maiores territrios do mundo e uma abundante disponibilidade de recursos naturais, o pas desejava ganhar seu prprio espao no cenrio mundial31, desvinculado da imagem de apndice dos EUA. A aproximao da Amrica Latina e de outros pases (inclusive externos ao bloco Ocidental) tinha no s uma motivao econmica (diversificao de mercados e parceiros), mas tambm era estimulada por uma pretenso, amparada nos fatores de poder citados, de o Brasil alcanar uma certa liderana no bloco dos pases menos desenvolvidos. Desenvolvimento interno e projeo internacional. Para alcanar esse duplo objetivo, a poltica externa, sob o governo Geisel, adotou uma postura heterodoxa, sem nenhum determinante externo prvio, pretendendo-se sem restries geogrficas ou ideolgicas. E a Amrica Latina ganha destaque no discurso da diplomacia nacional32. Nesse contexto da histria da poltica externa do Brasil que se insere o TCA. Mas, apesar das regularidades, importante atentar para o fato de a poltica externa, assim como qualquer espcie de poltica, ser um campo em que contradies, vises conflitantes e disputas de interesses se conjugam no perfilPara ilustrar essa mudana de concepo prpria do pas, podem-se citar dois livros de geopolticos brasileiros. O primeiro, escrito em 1931, por Mario Travassos, chama-se Aspectos geogrficos Sul-Americanos e, a partir da segunda edio de 1935, seu ttulo muda para Projeo continental do Brasil. Em 1960 o general Carlos de Meira Mattos escreve Projeo Mundial do Brasil, e explica no prefcio que a conjuntura permite passar da ambio de projeo continental para uma mundial. consensual que a Amrica Latina passa a ser apresentada (desde o governo Mdici, na verdade) como prioridade das relaes internacionais do Brasil. Vizentini (1998: 226), entretanto, considera que a prioridade regio limita-se ao discurso. J Cervo (BUENO &CERVO, 2002: 419) destaca o significado poltico e comercial de tal aproximao. Outro fato a se destacar que os grandes esquemas de integrao latino americana (ALALC e SELA) j mostravam suas dificuldades, o que explica a tendncia a acordos sub regionais, menos pretensiosos, de que so exemplos o Tratado da Bacia do Prata, o Pacto Andino e o prprio TCA.32 31

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final. Ou seja, pragmatismo responsvel, poltica externa independente, prioridade Amrica Latina so concepes genricas e elucidativas, mas sob as quais se escondem diversas nuances. Com relao aproximao da Amrica Latina e dos pases menos desenvolvidos, o prprio Geisel quem esclarece que a idia deve ser relativizada:Mas creio que o problema do Brasil , principalmente, econmico. Dele derivam os demais, inclusive o social. A fome do povo, o desemprego do povo, os assaltos, os roubos, o trfico de entorpecentes tem a sua raiz na nossa deficincia econmica. Seremos uma nao de maior expresso se conseguirmos desenvolver a nossa economia. E no Heminsfrio Norte que h mercados, tecnologia, cincia, tudo que nos interessa e nos necessrio para o nosso desenvolvimento. Isso no quer dizer que se ignore o resto, mas numa escala de valores dou preponderncia ao Hemisfrio Norte, independente de consideraes geopolticas (GEISEL, 1998:354-355).

Tambm a postura de maior autonomia frente aos EUA no era um consenso no governo. A disputa de concepes era personificada nas figuras do chanceler Azeredo da Silveira, que defendia um maior distanciamento dos EUA, e do ministro da fazenda Mario Henrique Simonsen, que pretendia uma colaborao mais intensa com os norte- americanos33. H ainda que se levar em considerao uma diferena de concepes do Itamaraty para setores militares do governo, expresso principalmente pelo Conselho de Segurana Nacional34. Essa ltima diferena especialmente importante, pois h autores que consideram o TCA fruto de uma inspirao geopoltica, tpica dos setores militares (notadamente no Brasil, onde o pensamento geopoltico quase um monoplio dos militares, com raras excees). Mas o pacto amaznico foi concebido e gerido pelo Itamaraty, e responde a preocupaes em sua maioria alheias ao carter militar do governo.

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Ver Geisel (1998:359-360) Ver GONALVES & MIYAMOTO (1993:211-246)

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importante notar essas nuances, para que se compreenda o TCA como o resultado de uma complexa rede poltica de atuao e tomada de decises, e ento se possa aprimorar a compreenso do acordo, sem generalizaes que talvez satisfaam o intelecto, mas com o custo de afast-lo da realidade. At a dcada de 1970, a Amaznia no apareceu significativamente na agenda da poltica externa brasileira, apenas esporadicamente em alguns momentos. Mas estes momentos evidenciam algumas preocupaes recorrentes: 1) garantir a integridade territorial e atentar a conflitos fronteirios que possam levar a uma instabilidade nas fronteiras 2) afastar as pretenses de participao de potncias nas questes amaznicas 3) contrabalanar a influncia argentina na regio (norte da Amrica do Sul) 4) consolidar a influncia do Brasil na regio, ou pelo menos evitar sua ausncia 5) tratar de forma distinta as duas bacias (p