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A PRIMEIRA DECISÃO SOBRE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE: MARBURY vs. MADISON (1803) THE FIRST DECISION ON THE CONTROL OF CONSTITUTIONALITY: MARBURY vs. MADISON (1803) PAULO KLAUTAU FILHO Professor de Direito do Centro Universitário do Pará – CESUPA. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Master of Laws pela Law School da New York University. Recebido para publicação em agosto de 2003. “O fato de serem necessários tais mecanismos para controlar os abusos do governo talvez seja um reflexo da natureza humana. Mas o que é o governo em si senão o maior de todos os reflexos da natureza humana?” (James Madison, The Federalist, n. 51) 1. Introdução Marbury vs. Madison é certamente a decisão mais citada nos estudos de controle de constitucionalidade, mesmo na doutrina constitucional brasileira. Contudo, é talvez uma das menos lidas e, em geral, é apenas parcialmente citada, 1 sem maiores explica- ções quanto ao seu contexto histórico. Para o novel estudante de Direito (e quiçá para inúmeros profissionais experimentados), o controle judicial de constitucionalidade (o judicial review do Direito norte-americano) surge misteriosamente em uma decisão proferida há exatos duzentos anos por um enigmático e desconhecido Juiz Marshall, mais precisamente o Chief Justice John Marshall, Presidente da Suprema Corte dos Estados Unidos da América durante quase 35 anos (1801-1835). 2 O leitor dos manuais pátrios de Direito Constitucional passa a saber que a famosa decisão, brotada, como que por geração espontânea da mente de Marshall, inaugura o controle de constitucionalidade judicial, difuso e concreto, o qual esquematicamen- te será contraposto ao chamado controle de constitucionalidade político, concentrado e abstrato, de origem européia. O surpreso estudante é, então, informado de que o Brasil adota as duas modalidades de con- trole, conforme previsto na Constituição Federal de 1988 (para não irmos mais longe no passado, posto que desnecessário aos objetivos do presente trabalho). Da

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A PRIMEIRA DECISÃO SOBRE CONTROLE DECONSTITUCIONALIDADE: MARBURY vs.

MADISON (1803)

THE FIRST DECISION ON THE CONTROL OF CONSTITUTIONALITY:MARBURY vs. MADISON (1803)

PAULO KLAUTAU FILHOProfessor de Direito do Centro Universitário do Pará – CESUPA. Mestre em Direito pela

Universidade Federal do Pará (UFPA). Master of Laws pela Law School da New YorkUniversity.

Recebido para publicação em agosto de 2003.

“O fato de serem necessários tais mecanismos para controlar os

abusos do governo talvez seja um reflexo da natureza humana.

Mas o que é o governo em si senão o maior de todos os reflexos

da natureza humana?”

(James Madison, The Federalist, n. 51)

1. Intr odução

Marbury vs. Madison é certamente adecisão mais citada nos estudos de controlede constitucionalidade, mesmo na doutrinaconstitucional brasileira. Contudo, é talvezuma das menos lidas e, em geral, é apenasparcialmente citada,1 sem maiores explica-ções quanto ao seu contexto histórico. Parao novel estudante de Direito (e quiçá parainúmeros profissionais experimentados), ocontrole judicial de constitucionalidade (ojudicial review do Direito norte-americano)surge misteriosamente em uma decisãoproferida há exatos duzentos anos por umenigmático e desconhecido Juiz Marshall,mais precisamente o Chief Justice JohnMarshall, Presidente da Suprema Corte dos

Estados Unidos da América durante quase35 anos (1801-1835).2

O leitor dos manuais pátrios de DireitoConstitucional passa a saber que a famosadecisão, brotada, como que por geraçãoespontânea da mente de Marshall, inaugurao controle de constitucionalidade judicial,difuso e concreto, o qual esquematicamen-te será contraposto ao chamado controle deconstitucionalidade político, concentrado eabstrato, de origem européia. O surpresoestudante é, então, informado de que oBrasil adota as duas modalidades de con-trole, conforme previsto na ConstituiçãoFederal de 1988 (para não irmos maislonge no passado, posto que desnecessárioaos objetivos do presente trabalho). Da

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surpresa, passa à confusão, e da confusão,ao total desconhecimento das questõesmais relevantes no que tange ao controleda constitucionalidade e à interpretação daConstituição e do próprio Direito como umsistema normativo e produto político ecultural. Péssimo começo de sua relaçãocom o conhecimento jurídico.

Se a leitura e posterior discussão deMarbury vs. Madison ajudar a elucidarparte da mencionada confusão, ela já éválida por si própria. Mas a ambição dotrabalho é maior. Pareceu-nos pertinenteapresentar ao público brasileiro aquele quevem sendo historicamente considerado oprimeiro caso relevante do Direito Consti-tucional também a título de exemplo de umestudo do Direito por meio do “métodocaso”, predominante nas law schools norte-americanas.

Vale dizer que não se trata de merahomenagem ritualística a um marco histó-rico da jurisdição constitucional. Muitasdas questões ali tratadas permanecem im-portantes hoje em dia, não só para oDireito norte-americano, como para oDireito brasileiro. Por exemplo, é demo-craticamente legítimo que a decisão finalsobre a constitucionalidade das leis estejaa cargo de um órgão composto por onze“notáveis” (no caso do Supremo TribunalFederal brasileiro) não eleitos pelo voto dacidadania? (Trata-se da chamada “objeçãodemocrática” ao controle judicial de cons-titucionalidade.) Quanto ao controle difu-so, é também verdadeiramente democráti-co que um juiz singular possa, mediantedecisão monocrática, estancar o prossegui-mento de políticas públicas geradas pelosórgãos eleitos pelo voto popular? Até ondepode ir o controle judicial da constitucio-nalidade? Até onde ele é “meramente”técnico-jurídico e não explícita e subs-

tancialmente político? Pode o SupremoTribunal Federal intervir em toda e qual-quer questão constitucional ou existe umlimite para sua jurisdição (as chamadas“questões políticas”, tais como o impeach-ment de representantes eleitos pelo votopopular, devendo essas serem deixadaspara os órgãos da representação democrá-tica)?3

Essas e outras questões são tão antigasquanto difíceis e ainda desafiam juristas,cientistas políticos e todos os estudiosos dajurisdição constitucional. As respostas ofe-recidas por Marshall ainda ecoam nasmentes do presente. Pena que a maioriadelas não tenha consciência disso.

Por fim, a título introdutório, interessa-nos ler Marbury vs. Madison com os olhosvoltados para a construção de um métodode aprendizagem do Direito. Uma das viasdo método é a leitura de casos concretos,já julgados. Trata-se do encontro do estu-dante com o Direito vivo, com a interpre-tação e a construção jurisprudencial nua ecrua. Para tanto, pretende-se chamar aatenção para o pressuposto de que não épossível conhecer o Direito, sem conhecera História, a Filosofia moral e política, aHermenêutica... e até mesmo a Biologiaevolutiva e a Psicologia cognitiva.4 Poroutras palavras, trata-se de atentar que oDireito não se esgota em si próprio comofonte e objeto de conhecimento. Não sequer advogar por uma transdisciplinarieda-de meramente formal. Trata-se de umanecessidade real imposta pelo conhecimen-to que não aceita os compartimentos for-mais, sectários e segmentários criados peloburocratismo dos manuais acadêmicos.

Aos possíveis opositores da viabilidadedo “método caso” no Brasil – País deDireito ligado ao ramo romano-germânico(civil law), cuja fonte principal é a lei

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positivada, em contraposição (diz-nos maisuma vez o esquematismo dos manuais) aoramo anglo-saxão (common law), baseadosobretudo nos costumes (aos quais se in-corporam os precedentes judiciais) – valelembrar que é no caso concreto que seproduz a norma. Antes disso, o texto legalé mero escrito que tal como uma partituraprecisa do intérprete-musicista para se tor-nar música. É esse processo de transforma-ção do texto em norma, em Direito, pormeio das múltiplas possibilidades de inter-pretação-aplicação,5 que o estudo de casospretende desvelar e desmistificar.

Para tanto, o procedimento a ser segui-do, com os riscos inerentes ao texto escrito,é o de simular uma aula sobre o casoescolhido, pressupondo-se sua leitura pré-via, para posterior discussão e análise.Contudo, uma introdução do contexto his-tórico se fará necessária para um melhorentendimento das circunstâncias do caso.Tal contextualização pressupõe e procurasanar o desconhecimento do aluno dasfaculdades de Direito no Brasil em relaçãoaos primórdios da história dos EstadosUnidos da América, como nação indepen-dente. Mas vai aqui o alerta de que, noestudo dos casos nacionais, o conhecimen-to das circunstâncias históricas e políticasdeve ser considerado um pressuposto parao entendimento da questão jurídica. Não épossível, por exemplo, discutir qualquertema (ou decisão judicial) ligado à “refor-ma previdenciária”, sem entender as ori-gens do Direito à previdência social, seureconhecimento e surgimento no Brasil,assim como as circunstâncias políticas,sociais e econômicas de seu desenvolvi-mento ao longo de nossa história. Tal comoo judicial review não surgiu de uma menteiluminada e a-histórica, também a previ-dência social e seus avanços e problemassão um produto de seu tempo.

2. As circunstâncias históricas do casoMarbury6

Sabe-se que a Constituição norte-ame-ricana de 1787 é a primeira Constituiçãoescrita de um Estado Nacional, tal comoentendido contemporaneamente. Por essarazão, costuma-se invocá-la como o marcoinicial do constitucionalismo. Seguindo-seesse viés, pode-se afirmar, sem maiorescontrovérsias, que foram três as grandesinovações do constitucionalismo norte-americano: o Federalismo, a separação dePoderes e controle judicial de constitucio-nalidade (judicial review).

O princípio federalista já era razoavel-mente conhecido no século XVIII. Veja-se,por exemplo, sua substanciosa defesa feitapor James Madison, no famoso n. 10 dosFederalist Papers.7 Para Madison, o Fede-ralismo, baseado na separação vertical decompetências entre União e Estados-Mem-bros e por meio da delegação de boaparcela das decisões políticas, tomadas naesfera nacional, aos representantes popula-res democraticamente eleitos, serviria comoum poderoso sistema para viabilizar ademocracia republicana em um País comum espaço territorial tão extenso como osEstados Unidos. Aqui é preciso lembrarque os “Pais Fundadores” (Founding Fa-thers) da pátria americana tinham precisaconsciência do caráter experimental e ino-vador do sistema político que a Constitui-ção de 1787 visava instalar. Eles tinhamconsciência de sua experiência pragmáticana administração política das Treze Colô-nias e, após a Independência, na adminis-tração dos entes da Confederação. Tambémtinham a consciência do desafio democrá-tico diante de si, como leitores que eramdos contratualistas iluministas europeus(nesse particular o desafio lhes era lançadopor Rousseau, para quem a democracia

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republicana somente seria viável em Esta-dos com a dimensão das cidades-estado daGrécia clássica). Os Fundadores sabiamque não estavam na Atenas de Péricles. Odesafio democrático republicano para elessignificava assegurar os direitos fundamen-tais do povo norte-americano e limitar opoder de um Estado com vasta extensãoterritorial e com um projeto (desde então)explicitamente expansionista, tanto do pontode vista territorial, quanto dos pontos devista político e econômico (comercial). OsPais da Pátria sabiam-se e reconheciam-secomo fundadores de uma nação de merca-dores e entendiam que as instituições ju-rídico-políticas deveriam ser adequadas eformatadas segundo um ávido projeto deexpansão e conquista de mercados internose externos. Esse o sentido muito claro daprocura da felicidade (pursuit of happi-ness) da famosa Declaração de Direitos deVirgínia, elaborada na Convenção de Fila-délfia de 1787.

Nesse contexto, Madison apresentava oFederalismo como uma solução ao proble-ma do que ele chamava de facções majo-ritárias (factions as majorities). Insista-seque os Fundadores não tinham uma visãoutópica da política. Eles não eram teóricosde um mundo ideal. Praticamente todostinham larga experiência política desde ostempos das colônias. Tinham, pois, umavisão absolutamente pragmática do caráterda política em uma democracia. A preocu-pação de Madison com as facções majori-tárias advinha da constatação de que numademocracia os interesses de grupos políti-cos se opunham e que havia nessa oposiçãoum grande risco de sectarismo. Os interes-ses de distintos grupos religiosos e raciais,para ficar nos exemplos mais marcantes deviolência sectária, não apenas na histórianorte-americana, mas do mundo inteiro,podem destruir uma democracia (e por

conseguinte o sonho americano da busca dafelicidade, ao seu modo). A perseguição deminorias políticas pela facção majoritária éum fato da vida política que marca atavi-camente a história dos Estados Unidos.Afinal, os colonos do Mayflower vierampara a América em virtude da dura discri-minação que lhes era incutida pela maioriade religião anglicana. A própria Indepen-dência dos Estados Unidos surge fortemen-te vinculada à idéia de desrespeito àsminorias – no caso, aos interesses doscolonos, os quais, na verdade, considera-vam-se súditos da Coroa Inglesa no ultra-mar e queriam, num ensaio de Federalismo,ter adequada representação no ParlamentoInglês, o que lhes era negado pela maioriaparlamentar da Corte. Na visão de Madi-son, o Federalismo na América poderiaquebrar o poderio das facções majoritáriasnos diferentes Estados que seriam repre-sentadas no Congresso Nacional por umaelite esclarecida, capaz de, pelo debate comos demais representantes dos diversosEstados-membros, pensar que o projetonacional da grande nação mercadora deve-ria sobrepujar as rivalidades entre facçõeslocais. O único problema não devidamenteenfrentado por Madison foi o da existênciade facções majoritárias em escala nacional.Veja-se o exemplo do escravismo, do ra-cismo, do sexismo, da perseguição aospacifistas, às feministas, aos gays, aoscomunistas na época do chamado terrorvermelho (Red Scare) e do Macartismo. Énesse espaço sem respostas deixado peloFederalismo madisoniano que se desenvol-veu e se consolidou o judicial review, cujadecisão precursora é justamente Marburyvs. Madison.

Em segundo lugar, o princípio da sepa-ração dos Poderes também era já bastanteconhecido no século XVIII. As obras deLocke e sobretudo de Montesquieu sem

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dúvida influenciaram o projeto político econstitucional dos Pais Fundadores ameri-canos. A idéia básica de que o governofederal deveria dividir seu poder em termosde um Poder Executivo, um Poder Legis-lativo e um Poder Judiciário também haviasido sugerida da própria leitura dos Fun-dadores sobre a experiência política ingle-sa, tanto louvada pelo francês Montesquieuno seu Espírito das leis. Acrescente-se, naseparação e distribuição de poderes geradaspela Constituição americana, a criação doPresidencialismo, com sua necessária alter-nância no poder, como mais um dos me-canismos visando assegurar direitos funda-mentais e evitar abusos autoritários perpe-trados pelo Estado contra seus cidadãos.Não é à toa que os três primeiros artigosda Constituição de 1787 tratam direta erespectivamente do Poder Legislativo, doPoder Executivo e do Poder Judiciário.

Por sua vez, o controle judicial daconstitucionalidade (judicial review) temuma originalidade histórica ímpar ante asduas inovações constitucionais anterior-mente consideradas. O poder exercido pormeio do judicial review não era uma idéiahistoricamente familiar. Muito mais do queum órgão judicial independente exercendosua função técnica de aplicação da lei,trata-se do Judiciário exercendo o poder deafirmar que o Legislativo (o órgão demo-craticamente representativo da tradiçãoParlamentar Britânica e da concepçãomadisoniana) desrespeitou a Constituiçãoao editar determinada lei, devendo, por talrazão, excluir-se do ordenamento jurídicoo diploma legal sob exame (under review).Trata-se, além do controle judicial de cons-titucionalidade, da supremacia judicial (ju-dicial supremacy) com relação aos demaispoderes na interpretação da Constituição.Em outros termos, a última palavra sobrea constitucionalidade de determinada lei

caberia ao Poder Judiciário. Tal idéia seriainconcebível, como ainda o é, no sistemaparlamentarista inglês, no qual a últimainstância recursal, quanto a violações dacommon law, está na Câmara dos Lordes(House of Lords) e não em qualquer órgãodo Poder Judiciário. Daí que as implicaçõespolíticas de tal inovação no Federalismo,no mecanismo de freios e contrapesos daseparação de Poderes e no significado dademocracia republicana são de elevadamonta, e não por outra razão estão presen-tes até hoje. Marshall sabia que estavamexendo em vespeiro, ainda que não de-monstrasse isso expressamente, como severá.

É importante ressaltar que o texto daConstituição americana não afirma emmomento algum o princípio do judicialreview. Trata-se de uma construção juris-prudencial iniciada na famosa decisão sobnosso foco. Aqui vale citar os dispositivosda Constituição de 1787 mais relevantespara a discussão, para que cada um possatirar suas conclusões. Tais dispositivos te-rão acentuado destaque em Marbury vs.Madison:

“Artigo III

Seção I. O Poder Judicial dosEstados Unidos será composto poruma Suprema Corte, e por tantasCortes inferiores quantas o Congressopossa de tempos em tempos dispor eestabelecer. Os Juízes, tanto da CorteSuprema como das Cortes inferiores,deverão manter seus Cargos enquantoatuarem com bom Comportamento, edeverão, periodicamente, receber porseus Serviços, uma Compensação, aqual não deverá ser reduzida durantesua permanência no cargo.

Seção II. [1] O Poder judicialdeverá se estender a todos os casos,

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em Lei e Eqüidade, surgidos sob essaConstituição, as Leis dos EstadosUnidos da América, os Tratados feitosou que deverão ser feitos sob suaAutoridade; – a todos os Casos queafetem Embaixadores, outros Minis-tros públicos e Cônsules; a todos oscasos de Jurisdição de almirantado oumarítima; – a Controvérsias nas quaisos Estados Unidos deverão ser parte;– a Controvérsias entre dois ou maisEstados; – entre um Estado e Cida-dãos de outro Estado; – entre Cida-dãos de diferentes Estados; – entreCidadãos do mesmo Estado reclaman-do por doações de Terras conferidaspor diferentes Estados, e entre umEstado ou seus Cidadãos e Estados,Cidadãos e Súditos estrangeiros.

[2] Em todos os casos envolvendoEmbaixadores, outros Ministros pú-blicos e Cônsules, e naqueles nosquais um Estado deverá ser parte, aSuprema Corte deverá ter Jurisdiçãooriginária. Em todos os demais casosantes mencionados, a Suprema Cortedeverá ter Jurisdição recursal, tantopara questões de Fato como de Direi-to, com tantas Exceções, e sob aRegulamentação que deverá ser reali-zada pelo Congresso”.

(...)

“Artigo VI

(...)

[2] Essa Constituição, e as Leis dosEstados Unidos, as quais deverão serfeitas em Obediência àquela; e todosos Tratados feitos ou que deverão serfeitos sob a Autoridade dos EstadosUnidos, deverão ser a Lei supremadessa Terra; e os Juízes em todos osEstados deverão estar vinculados porela, não devendo prevalecer nada na

Constituição ou Leis de qualquerEstado que lhe seja contrário.

[3] Os Senadores e Deputadosdantes mencionados, e todos os Mem-bros das várias Legislaturas Estaduais,e todos os Oficiais de cargos execu-tivos e judiciais, tanto dos EstadosUnidos como dos diversos Estados,deverão estar vinculados por Jura-mento ou Afirmação, de defender essaConstituição; mas nenhum Teste reli-gioso jamais deverá ser requeridocomo Qualificação para qualquerCargo ou Concessão pública sob osEstados Unidos”.8

Assim, fica bem claro que no textoconstitucional norte-americano não háqualquer menção expressa ao termo con-trole jurisdicional de constitucionalidadeou judicial review. Mas esse é só o iníciodo debate.

Por essa razão, Marbury é absolutamen-te original. E, conseqüentemente, umadecisão muito controvertida à época. Nãohavia a aparente unanimidade transmitidapela superficialidade dos manuais contem-porâneos. O que não é nem um poucosurpreendente. Quando os Fundadoresentenderam o significado da decisão, fica-ram profundamente divididos a seu respei-to.

O princípio do judicial review já haviasido defendido, nos debates prévios à pro-mulgação da Constituição, por AlexanderHamilton, em seu famoso ensaio no n. 78dos Federalist Papers. Alguns Estadosamericanos, antes da Constituição de 1787,em especial Nova York, haviam tido Cons-tituições estaduais que admitiam o princí-pio do judicial supremacy. Tal experiênciapragmática (como já dito, os Fundadoreseram políticos empiristas; gostavam de vero instituto jurídico-político em funciona-

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mento antes de adotá-lo) foi discutida nosdebates da Convenção de Filadélfia (naqual foi elaborada e votada a Constituiçãonorte-americana). Ali, houve freqüentedefesa, particularmente por James Madi-son, da necessidade de existência de umPoder Constitucional que pudesse invalidarleis Estaduais inconsistentes com a Cons-tituição (sempre o temor das facções ma-joritárias). Em primeiro lugar, Madisonsugeriu a idéia da chamada Negativa Con-gressual (Congress Negative), segundo aqual o Congresso Nacional deveria ter opoder de invalidar leis estaduais inconsti-tucionais. Em segundo lugar, deveria haveralgum mecanismo que assegurasse a cons-titucionalidade dos atos normativos doCongresso. Para tanto, Madison propôs oConselho de Revisão (Council of Revision),o qual consistiria em um ramo independen-te do governo, formado por alguns juízese por alguns políticos. A aprovação de suaconstitucionalidade, por esse Conselho, seriacondição de validade para qualquer leicongressual.

Portanto, Madison concordava com anecessidade de um mecanismo de controlede constitucionalidade, mas para ele talmecanismo deveria ser eminentementepolítico. Contudo, nenhum dos dois meca-nismos sugeridos por Madison foi aceito naConvenção. Talvez essa tenha sido a pílulamais amarga que ele tenha tido que engolirao longo dos trabalhos constituintes. Váriosrepresentantes que compareceram à Con-venção Constituinte teriam entendido quetalvez fosse melhor deixar esse controle acargo do Judiciário (esse é um argumentohistórico em favor da decisão posterior deMarshall em Marbury).

Madison discordava radicalmente queum “corpo técnico” como o Judiciárioestivesse à altura de tarefa de tamanharelevância política. Ele pensava que um

pequeno órgão sem representatividadepopular (no caso, a Suprema Corte) nãopoderia jamais dizer ao povo democratados Estados Unidos que as leis feitas porseus representantes eram inválidas. Ele nãoacreditava que os cidadãos republicanosconcordariam algum dia em conceder talpoder para o Judiciário. Também não con-fiava no Judiciário. Ele queria um “órgãopolítico”.9

Portanto, além das questões históricas,desde sempre houve um arraigado debatepolítico acerca da legitimidade do judicialreview. Além disso, quando Marshall pro-feriu sua decisão em Marbury, o País viviauma crise política que deve ser considerada.

O sistema partidário norte-americanosurgiu na década de 1790. Inicialmente,logo após a Constituição de 1787, pratica-mente todos os Fundadores estavam noPartido Federalista, sob a liderança doPresidente George Washington, o qualgovernou de 1789 a 1797. Assim, estavamno gabinete do primeiro Presidente norte-americano políticos do porte de AlexanderHamilton, como Secretário do Tesouro(Secretary of Treasure); e de Thomas Je-fferson, como Secretário de Estado (Secre-tary of State), assessorado juridicamentepor James Madison.

Porém, após poucos anos, houve umracha político, supostamente motivado pordiscordâncias acerca de política econômicae de relações internacionais. Hamiltondefendia a criação de um Banco Nacionalcom a função de fomentar o desenvolvi-mento econômico e comercial nos diversosEstados e nos mais distantes rincões daFederação. Jefferson defendia um Libera-lismo mais extremado, sustentando que oEstado não deveria interferir nesse domí-nio, nem investir dinheiro público emquestões que deveriam ser deixadas ao livredesenvolvimento do mercado. Além disso,

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para Jefferson, a criação de um BancoNacional era inconstitucional por não cons-tar entre os poderes constituídos do Con-gresso Nacional e por ameaçar a autonomiados Estados Federados. Esses argumentosseriam enfrentados pela Suprema Corte nocaso Mclloch vs. Maryland (1819), tambémrelatado pelo Chief Justice John Marshallem outra decisão estrutural para o consti-tucionalismo norte-americano. Mas, para omomento, importa saber da controvérsiaentre os dois grupos liderados respectiva-mente por Hamilton e Jefferson. Apósouvir a posição de seus dois mais impor-tantes Ministros, George Washington to-mou a iniciativa de mandar ao Congressoprojeto de lei, o qual foi aprovado, criandoo First National Bank. Vitória de Hamilton.Em segundo lugar, como Secretário deEstado, cargo equivalente até hoje ao deMinistro de Relações Exteriores, Jeffersondefendia uma estreita aliança externa coma França, País, segundo ele, de pensamentoe visão mais afim com o espírito revolu-cionário e transformador da jovem naçãoamericana. Hamilton, um economista ta-lentoso e perspicaz, por sua vez defendiao alinhamento com o Império Britânico,tendo em vista as maiores possibilidadescomerciais de tal aliança. Notar que não setratava de escolher qual nação seria maisamiga, mas sim de optar por uma políticaeconômica internacional alinhada com umaou outra das duas grandes potências capi-talistas do final do século XVIII. A teseanglófila de Hamilton prevaleceu.

Essas, dentre outras discordâncias, leva-ram Jefferson a deixar o governo, levandoconsigo o brilhantismo jurídico de JamesMadison, fundando e liderando, logo após,o Partido Democrata Republicano (sementedo atual Partido Democrata). Surgia, assim,a estrutura bipartidária que marcaria ahistória dos Estados Unidos daí por diante.

Mas o Partido Federalista continuoudominando a política americana com aeleição de John Adams, federalista deMassachussets, para o mandato compreen-dido entre 1797 e 1801. Seu Secretário doTesouro continuaria sendo Hamilton e seuSecretário de Estado seria o futuro ChiefJustice John Marshall. Ao longo de seumandato, Adams sofreu forte oposição doPartido Democrata Republicano lideradopor Thomas Jefferson, o qual atacava du-ramente a política econômica e a políticade relações exteriores do segundo presiden-te americano, conforme os pontos de vistajá mencionados. Mas havia um terceiroponto de profunda discordância entre osdois grupos políticos, que acabaria porfazer a balança pender para o lado deJefferson. Em 1798, o governo Adamsconseguiu aprovar o famoso Alien andSediction Act. Tratava-se de uma lei que,em razão da expansão da divulgação dasidéias advindas da Revolução Francesa,visava proibir a publicação de “... escritosfalsos, escandalosos e maliciosos [contra]o governo dos Estados Unidos, ou o Con-gresso, ou o presidente, com o intuito dedifamá-los ou gerar desrespeito ou despre-zo contra eles; ou excitar contra eles o ódiodo bom povo dos Estados Unidos, ouinstigar a sedição dentro dos EstadosUnidos...”.

Tratava-se, em outros termos, de lei quepermitia a censura prévia de toda e qual-quer manifestação contrária ao governofederalista. A Suprema Corte nunca chegoua se manifestar sobre a constitucionalidadeda lei, a qual violava às escâncaras um dosmandamentos da famosa Primeira Emendaà Constituição Americana:

“O Congresso não editará lei ins-tituindo uma religião, ou proibindo oseu exercício; nem restringirá a liber-

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dade de palavra ou de imprensa;...”(destacamos).10

Apesar de não ter sido submetida aocontrole de constitucionalidade, a lei serviude munição preciosa em favor de Jeffersonna campanha à presidência, da qual sairiavitorioso em 1801, na primeira transição depoder democrático-partidária eleitoral dahistória. A gritante inconstitucionalidadeda lei, a inabilidade política de Adams e agrande habilidade política de Jefferson paraexplorar as fragilidades do seu opositor(Adams era candidato à reeleição) foramfundamentais para a primeira eleição pre-sidencial do Partido Democrata Republica-no. Adams, anedoticamente, tornou-se umícone, às avessas, da defesa da liberdade deexpressão nos Estados Unidos. Tratava-sede um homem obeso, que censurava até ascaricaturas e charges políticas que acentu-avam sua forma rotunda. Contra um animalpolítico como Jefferson, ele não teria amenor chance.

Ciente de sua iminente derrota na cam-panha presidencial e da iminente perdapelos Federalistas da maioria Congressual,Adams iniciou uma enxurrada de nomea-ções para o único Poder que restaria aosFederalistas – o Judiciário. Uma das maisdestacadas nomeações foi a do seu Secre-tário de Estado, John Marshall, para aSuprema Corte em janeiro de 1801. Mar-shall fez o seu “juramento do cargo” (oathof office)11 em 04 de fevereiro de 1801. Em17 de fevereiro, a House of Representatives(análoga à nossa Câmara dos Deputados)elegeu Jefferson Presidente. Marshal con-tinuou como Secretário de Estado até 03 demarço de 1801, último dia do mandato deAdams. A rigor, Marshall permaneceu porum pouco mais no cargo: em 04 de marçode 1801 – o dia no qual ele, já como ChiefJustice da Suprema Corte, ministrou o

“juramento do cargo” ao recém-eleito Je-fferson – ele concordou em atender aopedido do novo presidente para que “exer-cesse as funções de Secretário de Estadoaté que um sucessor fosse nomeado” (Ja-mes Madison, o demandado em Marbury,foi o sucessor de Marshall).

Logo após a eleição de Jefferson, oCongresso Federalista iniciou seus esfor-ços para manter o controle do Judiciáriofederal. A lei conhecida como CircuitCourt Act, de 13 de fevereiro de 1801,criou dezesseis cargos de juiz federal deapelação – os circuit court judges. Comoesperado, todos os novos cargos forampara Federalistas. Foram chamados “mid-night judges”, por terem sido nomeado noapagar das luzes da administração deAdams. William Marbury, o autor do casoque vamos ler, não estava entre os midnightjudges. Ele foi nomeado ainda mais tarde:o Organic Act of the District of Columbiafoi aprovado em 27 de fevereiro de 1801,menos de uma semana antes do fim domandato de Adams. Aquela lei autorizavao presidente a nomear juízes de paz parao Distrito de Columbia. Adams nomeou 42juízes em 02 de março de 1801 e o Senadoconfirmou as nomeações em 03 de março,o último dia de Adams no cargo. Asnomeações dos juízes de paz que ajuiza-ram a ação, incluindo William Marbury,foram assinadas de imediato por Adams –assim como assinadas e carimbadas (sea-led) por seu Secretário de Estado, Marshall– mas nem todos tomaram posse antes dofim do dia. Então, o novo Presidente,Jefferson, recusou-se a dar posse a eles,por considerar as nomeações nulas.12 Esseo contexto da decisão que passamos a ler.Leia com atenção e pondere sobre o(s)significado(s) do caso, inicialmente, combase nas questões que se seguirão aoacórdão.

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3. A decisão

Marbury vs. Madison13

Cranch14 (5 U. S.) 137, 2 L. Ed. 60 (1803)

[Wiliam Marbury foi um dos juízes depaz nomeado para o Distrito de Columbiano final da administração do Partido Fede-ralista do Presidente John Adams, duranteuma corrida desenfreada de nomeaçõespara cargos judiciais de última hora emmarço de 1801. A nova administração deJefferson decidiu desconsiderar as nomea-ções uma vez que as posses não haviamocorrido antes do final do governo deAdams. Marbury e alguns colegas, desa-pontados, decidiram ir diretamente à Su-prema Corte, durante o exercício de 1801,visando compelir o Secretário de Estado deJefferson, James Madison, a lhes dar posse.A Suprema Corte somente apreciou essepedido de 1801 em fevereiro de 1803.Antes de reportar o acórdão, a publicaçãooficial sintetizou os procedimentos iniciaisdo caso. Esse sumário também será trans-crito aqui para esclarecer alguns pontosenvolvendo a técnica processual e materialdo caso, assim como para dramatizar (so-mando-se entre parênteses alguns nomesde personagens) o envolvimento de JohnMarshall na causa.]

No último período de judicatura, ouseja, o termo de dezembro de 1801, Willi-am Marbury, Dennis Ramsay, Robert To-wnsend Hooe e William Harper, por seuadvogado, Charles Lee, o último AdvogadoGeral (Attorney General) dos EstadosUnidos, moveram ação perante a SupremaCorte contra o Secretário de Estado, JamesMadison, pleiteando fosse expedido man-dado judicial determinando ao Secretárioque lhes entregasse os termos de nomeação(commissions) para que pudessem tomarposse nos seus respectivos cargos de juiz

de paz do Distrito de Columbia. A açãotinha o suporte de relatórios e declaraçõesjuramentadas (affidavits) (incluindo umaescrita pelo irmão do Chief Justice Mar-shall, James Marshall) que apresentavamos seguintes fatos: que o Sr. Madison haviasido notificado da presente ação; que o Sr.Adams, o último Presidente, havia indicadoos nomes dos requerentes ao Senado e queo Senado havia devidamente aprovado asnomeações para os cargos de juiz de pazno Distrito de Columbia; que as nomeaçõeshaviam sido assinadas pelo Presidente apósa aprovação do Senado; e que o selo dosEstados Unidos foi, na forma devida, afi-xado aos termos de nomeação pelo Secre-tário de Estado (John Marshall); que osdemandantes haviam requerido ao Sr.Madison que lhes entregasse seus termosde nomeação, havendo a recusa e a respostade que não tinham direito ao cargo. Dessamaneira os demandantes se voltaram à(Suprema) Corte para que dirimisse aquestão.

Depois, em 24 de fevereiro de 1803, aseguinte decisão foi proferida pelo ChiefJustice (John Marshall):

Na última judicatura, conforme o rela-tório lido pelo oficial da Corte (clerk), umaordem foi concedida neste caso, requeren-do ao Secretário de Estado que mostrasseporque um mandado (mandamus) nãodeveria ser expedido obrigando-o a entre-gar a William Marbury seu termo de no-meação para o cargo de juiz de paz doCondado de Washington, no Distrito deColumbia.

Nenhuma razão foi apresentada, e apresente petição (motion) requer a expedi-ção de um mandamus. A sutileza peculiardeste caso, a novidade de algumas de suascircunstâncias, e a dificuldade real emabranger os diversos pontos que se fazempresentes exigem uma exposição completa

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dos princípios sobre os quais a decisão daCorte está fundada.

Na ordem respectiva pela qual a Corteexaminou a matéria, as seguintes questõesforam consideradas e decididas:

1. O peticionário tem direito a tomarposse como juiz de paz?

2. Se ele tem o direito, e o direito foiviolado, as leis desse País garantem a eleum remédio?

3. Se as leis garantem o remédio, seráele um mandamus proferido por essa Corte?

O primeiro objeto de investigação é: 1.O peticionário tem direito a tomar possecomo juiz de paz?

É decididamente a opinião da Corte deque quando a nomeação é assinada peloPresidente, a indicação é feita; e a nome-ação está completa quando o selo dosEstados Unidos foi afixado a ela peloSecretário de Estado.

Negar a entrega do termo de nomeaçãoe, conseqüentemente, a posse a Marbury é,portanto, um ato considerado pela Cortenão garantido pelo direito, uma violação deum direito legal consolidado (a vested legalright).

Isso nos leva à segunda indagação, qualseja: Se ele tem o direito, e o direito foiviolado, as leis desse País garantem a eleum remédio?

A essência da liberdade civil (civilliberty) certamente consiste no direito decada cidadão em reclamar pela proteçãodas leis toda vez que ele sofrer um dano.Uma das primeiras obrigações do governoé assegurar tal proteção. O governo dosEstados Unidos tem sido enfaticamente umgoverno de leis, não um governo de ho-mens. Ele certamente deixará de servir atal fundamento, se as leis não ofereceremum remédio para a violação de um direitolegal consolidado. Se tal infâmia deve ser

imputada à jurisprudência de nosso País,ela somente deverá se justificar pela pecu-liar natureza do caso.

É, portanto, necessário que averiguemosse há na composição do presente casoalgum ingrediente que justifique sua exclu-são da investigação legal, ou que exclua aparte que sofreu o dano da compensaçãolegal (legal redress).

Tal ingrediente estaria na natureza dacompensação? O ato de dar ou não darposse de um cargo é considerado um atomeramente político, pertencendo exclusi-vamente ao Poder Executivo, para a reali-zação do qual inteira confiança lhe éconcedida por nossa constituição; e paraqualquer erro referente a tal ato, o indiví-duo prejudicado não tem remédio? Quetalvez haja casos assim não há dúvidas;mas não se pode admitir que todo ato deofício, a ser praticado por qualquer dosramos governamentais, caracterize tal situ-ação.

Portanto, a questão a respeito da lega-lidade de um ato de um oficial de elevadoposto do Executivo ser passível de reexamepor uma Corte de Justiça deverá sempredepender da natureza do respectivo ato.

Pela Constituição dos Estados Unidos,o presidente é investido de certos poderespolíticos importantes, no exercício dosquais ele deverá usar de discricionariedade,devendo prestar contas somente ao seuPaís, politicamente, e à sua própria cons-ciência. Para auxiliá-lo no exercício de suasobrigações, ele é autorizado a apontarcertos oficiais de governo, os quais agempor sua autoridade e de conformidade comsuas ordens. Nesses casos, os atos deles(auxiliares) serão seus atos; e qualqueropinião poderá ser manifestada acerca domodo como a discrição executiva foi exer-cida, mas nenhum poder poderá controlartal discrição. As matérias objeto de discri-

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cionariedade são políticas. Dizem respeitoà Nação, e não a direitos individuais, esendo tais questões políticas confiadas aoExecutivo, a decisão do Executivo é con-clusiva. Pode-se exemplificar tal observa-ção com a lei do Congresso que estabeleceo departamento de relações exteriores (de-partment of foreign affairs). Os atos dotitular desse departamento, tal como defi-nido pela lei que o criou, deverão se darde conformidade com a vontade do presi-dente. Ele (o ministro de relações exterio-res) é um mero órgão pelo qual a vontadepresidencial é expressa. Os atos de talservidor, no exercício de funções relativasao cargo, não podem nunca ser examinadospelas Cortes. Mas quando a legislaturaimpõe sobre o mesmo oficial outras obri-gações; quando ele é dirigido peremptori-amente pela lei para praticar determinadosatos; quando os direitos de indivíduosdependem destes atos; ele torna-se então ooficial da lei; ele é responsável perante asleis por sua conduta; e não pode discricio-nariamente desconsiderar direitos consoli-dados de outros.

A conclusão desse raciocínio é de que,quando os ministros (heads of depart-ments) são agentes políticos ou de confi-ança do Executivo, simplesmente paraexecutar a vontade do presidente, ou me-lhor, para atuar em casos nos quais oExecutivo possui discricionariedade cons-titucional ou legal, nada pode ser maisclaro do que seus atos poderem apenas serpoliticamente avaliados. Mas quando umaobrigação específica é determinada por lei,e direitos individuais dependem do cumpri-mento de tal obrigação, parece igualmenteclaro que o indivíduo que se consideraprejudicado tem o direito de socorrer-se deum remédio previsto pelas leis de seu País.

Assim, é opinião da Corte de queMarbury tem o direito a tomar posse; a

recusa a lhe conferir tal posse, a qual é umaclara violação de seu direito, deverá encon-trar remédio nas leis de seu País.

Resta investigar se ele tem direito aoespecífico remédio que pleiteia. Isso de-pende: 1. Da natureza do mandado (writ)pleiteado; e 2. Do poder dessa Corte.

1. A natureza do writ. Esse writ, seconcedido, seria dirigido a um oficial dogoverno, e a ordem a ele seria, para usaras palavras de Blackstone, “fazer uma coisaparticular ali especificada, a qual diz res-peito ao seu cargo e função, a qual a Cortepreviamente havia determinado, ou pelomenos supõe seja consonante ao direito eà justiça”. Ou nas palavras de Lord Mans-field, o peticionário, nesse caso, tem odireito de exercer um cargo público e émantido afastado do gozo de tal direito.Tais circunstâncias, certamente, estão pre-sentes nesse caso.

Ainda assim, para admitir que o man-damus é o remédio adequado, a autoridadea quem ele deve se dirigir, deve ser umaa qual, dentro dos princípios legais, essemandamus possa ser dirigido; e a pessoapleiteando o writ não deve ter qualqueroutro remédio legal específico.

Primeiramente, quanto à autoridade aquem o mandado deve ser dirigido. A íntimarelação política, existente entre o Presidentedos Estados Unidos e os ministros (headsof departments), necessariamente tornaqualquer investigação legal dos atos de umdesses altos oficiais peculiarmente incômo-da, assim como delicada; além de provocaralguma hesitação com respeito à proprieda-de de entrar em tal investigação. As impres-sões são freqüentemente recebidas sem muitareflexão ou exame, e não é bom, que em umcaso como o presente, a assertiva, por umindivíduo, de suas demandas legais em umaCorte de Justiça, clamando que é obrigaçãoda Corte atendê-las, possa à primeira vista

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ser considerada por alguns, como uma ten-tativa (da Corte) de invadir o gabineteministerial, imiscuindo-se nas prerrogativasdo Executivo.

A Suprema Corte raramente necessitanegar as pretensões relativas à sua jurisdi-ção. Uma extravagância, tão absurda eexcessiva, não poderia ser considerada porum momento sequer. O âmbito de atuaçãoda Corte é tão-somente decidir a respeitodos direitos individuais, e não indagarsobre como o Executivo, ou os oficiais doExecutivo, cumprem suas obrigações naesfera do que lhes é discricionário. Asquestões de natureza política, ou submeti-das pela constituição e pelas leis ao Exe-cutivo, não podem ser trazidas a esta Corte.

Mas, se a questão não é esta; se longede implicar numa intrusão nos segredos dogabinete, ela diz respeito a um documento,o qual, na forma legal, encontra-se nosarquivos públicos, e a lei assegura o direitoa uma cópia do referido documento, me-diante o pagamento de dez centavos; se nãohá interferência em matéria discricionária;o que pode haver no elevado cargo dooficial, que justifique negar a um cidadãoa busca de seus direitos perante uma Cortede Justiça, ou que justifique a negativa daCorte em ouvir a sua reclamação; ou aindade deixar de emitir uma ordem judicial,determinando o cumprimento de uma obri-gação, a qual independe de discricionari-edade do Executivo, mas que está baseadaem leis específicas do Congresso e nosprincípios gerais do direito?

Quando um ministro é obrigado pela leia praticar um determinado ato que afetedireitos individuais absolutos, não há fun-damentos para justificar que as Cortes doPaís não devam exercer sua obrigação dejulgar a causa.

Este é, portanto, um claro caso decabimento do mandamus para garantir a

posse do demandante; e só resta saber seesta Corte é o órgão competente paraexpedir o writ.

A lei (act) que estabelece as Cortesjudiciais dos Estados Unidos autorizam aSuprema Corte “a expedir ordens manda-mentais (writs of mandamus) em casosgarantidos pelos princípios e costumes deDireito, a qualquer Corte oficial, ou apessoas no exercício de cargos, sob aautoridade dos Estados Unidos”.15

Sendo o Secretário de Estado (Secretaryof State) uma pessoa exercendo um cargosob a autoridade dos Estados Unidos, eleestá precisamente dentro da descrição dotexto legal; a se esta Corte não estiverautorizada a emitir um mandado contra taloficial, só poderá ser por que a lei (Judi-ciary Act) é inconstitucional e, portanto,absolutamente incapaz de conferir a auto-ridade e as obrigações que seus termosbuscam conferir e determinar.

A Constituição atribui o poder judicialdos Estados Unidos a uma Suprema Cortee a tantas Cortes inferiores quantas oCongresso, de tempos em tempos, decidirestabelecer. Esse poder é expressamenteestendido a todos os casos surgidos sob asleis dos Estados Unidos;16 e, conseqüente-mente, de alguma forma, talvez seja exer-cido no presente caso; porque o direitopleiteado é dado por uma lei dos EstadosUnidos.

Na distribuição desse poder, é declaradoque “a Suprema Corte deverá ter jurisdiçãooriginária em todos os casos envolvendoembaixadores, outros ministros públicos ecônsules, e naqueles nos quais um Estadodeverá ser parte. Em todos os demais casosantes mencionados, a Suprema Corte deve-rá ter jurisdição recursal (appellate juris-diction)”.17

Foi sustentado oralmente que, como aatribuição original de jurisdição, à Supre-

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ma Corte e às Cortes inferiores, é geral, ea cláusula não contendo palavras negativasou restritivas, a legislatura continua com opoder de atribuir jurisdição originária àCorte em outros casos que não os especi-ficados no artigo constitucional citado,assegurado que esses casos sejam da com-petência do poder judicial dos EstadosUnidos.

Se houvesse a intenção de deixar paraa discricionariedade da legislatura a repar-tição do poder judicial entre a Corte Su-prema e as inferiores, segundo a vontadedaquele órgão, teria sido inútil haver defi-nido na Constituição alguma coisa além doque é o poder judicial e quais as Cortes queo compõem. A parte subsequente da seçãoseria meramente supérflua, sem qualquersignificado, se essa for a interpretação queprevalecer. Se o Congresso mantém a liber-dade de atribuir à Corte jurisdição recursal,onde a Constituição declarou que sua ju-risdição deve ser original; e atribuir juris-dição originária onde a Constituição decla-rou que deveria ser jurisdição recursal;então, a distribuição de jurisdição feita naConstituição é forma sem substância.

Palavras afirmativas, em sua operacio-nalidade, são freqüentemente negativas deobjetos outros e distintos dos que foramafirmados; e, nesse caso, um sentido nega-tivo ou exclusivo deve ser dado a elas, sobpena de não terem operacionalidade algu-ma.

Não se pode presumir que uma cláusulaconstitucional é destinada a não ter qual-quer efeito; e, portanto, tal interpretação éinadmissível, a não ser que as palavrasadmitam-na.

Quando um instrumento organizador deum sistema judicial divide-o entre umaCorte Suprema e tantas inferiores quantoa legislatura decidir estabelecer; enumeran-do, então, seus poderes, e procedendo

além, para distribuí-los, ao definir a juris-dição da Suprema Corte, pela declaraçãodos casos nos quais ela deverá ter jurisdi-ção originária, e pela afirmação de que nosdemais casos ela deverá ter jurisdiçãorecursal; o significado claro das palavrasparece ser que em um determinada classede casos sua jurisdição é originária e nãorecursal; enquanto nos outros casos a ju-risdição é recursal, e não originária. Qual-quer outra interpretação tornaria a cláusulainoperante. Esta é uma razão adicional pararejeitar tal interpretação, e para aderir aosignificado óbvio da cláusula.

Para esta Corte poder emitir um man-dado, deve ser demonstrado que se trata dejurisdição recursal, ou deve ser necessáriodotá-la de competência para exercer juris-dição recursal no caso.

Foi afirmado em sustentação oral que ajurisdição recursal pode ser exercida devárias formas, e que se é vontade dalegislatura de que um mandamus seja uti-lizado para tal propósito, tal vontade deveser obedecida. Isso é verdade, mas aindaassim a jurisdição é recursal e não origi-nária.

O critério essencial da jurisdição recur-sal é o de que ela revê e corrige osprocedimentos numa causa já instalada, enão que ela crie a causa. Ainda que ummandamus seja dirigido às Cortes, paraobrigar um oficial a entregar determinadodocumento, trata-se da mesma coisa quemover uma ação originária para obter odocumento, e, portanto parece pertencernão à jurisdição recursal, mas à originária.Nem é necessário em tal caso conferircompetência à Corte para exercer jurisdi-ção recursal.

A autoridade, portanto, conferida àSuprema Corte, pelo Judiciary Act de 1789,para expedir ordens mandamentais contraoficiais públicos, não parece ter respaldo na

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Constituição; e se torna necessário inves-tigar se uma jurisdição assim conferidapode ser exercida.

A questão de saber se uma lei emchoque com a Constituição pode tornar-selei do País é profundamente interessantepara os Estados Unidos; mas, felizmente,não é intrincada à proporção de seu inte-resse. Para decidi-la, parece apenas neces-sário reconhecer certos princípios conside-rados há muito como bem estabelecidos.

A base sobre a qual toda a estruturaamericana se erigiu é ter o povo o direitooriginário de estabelecer, para seu futurogoverno, princípios tais, que, a seu ver,conduzirão à sua própria felicidade. Oexercício deste direito original demandaum enorme esforço; não pode nem deve serfreqüentemente repetido. Os princípios,portanto, assim estabelecidos, são conside-rados fundamentais. E como a autoridadeda qual promanam é suprema e raramentepode agir, são designados para serem per-manentes.

Esta vontade original e suprema orga-niza o governo e determina aos diversosdepartamentos seus respectivos poderes.Pode parar por aqui ou estabelecer certoslimites que não devem ser transcendidospor aqueles departamentos. O governo dosEstados Unidos segue a última idéia. Ospoderes do Legislativo são definidos elimitados e seus limites não podem sercontrovertidos ou enfraquecidos; a Consti-tuição é escrita. Qual o propósito de seremos poderes limitados e seus limites consig-nados por escrito, se aqueles limites pude-rem, a qualquer tempo, ser ultrapassadospelos poderes que (os limites) visam res-tringir? A distinção entre um governo compoderes limitados ou ilimitados é abolida,se aqueles limites não contiverem as pes-soas sobre as quais são impostos, e seforem igualmente obrigatórios atos proibi-

dos e atos permitidos. É uma proposiçãodemasiadamente clara para ser contestada,a de que a Constituição controla qualquerato legislativo em choque consigo, ou queo Legislativo possa alterar a Constituiçãopor lei ordinária (ordinary act).

Entre essas alternativas, não há meiotermo. Ou a Constituição é uma lei supe-rior, direito supremo, imutável por meiosordinários, ou estará no mesmo nível deleis ordinárias e, como tais, poderá seralterada segundo a vontade do Legislativo.

Se a primeira parte da alternativa éverdadeira, então a lei legislativa contráriaà Constituição não é direito; se a últimaparte é certa, então as Constituições escri-tas são tentativas absurdas, por parte dopovo, de limitar um poder, por sua próprianatureza ilimitável.

Certamente, todos os que têm fizeramConstituições escritas as contemplam comoa lei fundamental e suprema da nação, e,conseqüentemente, a teoria de todos osgovernos desse tipo deve ser a de que umato da legislatura, contrário à Constituição,é nulo.

Essa teoria se liga essencialmente à umaConstituição escrita e deve, portanto, serconsiderada por esta Corte, como um dosprincípios fundamentais de nossa socieda-de. Não devendo, portanto, perdê-lo devista na ulterior consideração deste assun-to.

Se um ato da legislatura, contrário àConstituição, é nulo, ele, apesar de suanulidade, deve vincular as Cortes, e obrigá-las a lhe dar efeito? Ou, em outras palavras,embora não constitua Direito, será umanorma tão operativa quanto se fosse Direi-to? Isso seria anular, de fato, o que foiestabelecido na teoria; pareceria, à primeiravista, um absurdo demasiadamente grossei-ro para que se insista nele. Receberá,entretanto, uma consideração mais atenta.

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É enfaticamente a competência, bemcomo o dever do Poder Judiciário dizer oque é o Direito. Aqueles que aplicam aregra a casos particulares devem, necessa-riamente, expor e interpretar aquela regra.Se duas leis entram em conflito, os tribu-nais devem decidir sobre a aplicação decada uma.

Assim, se uma lei opuser-se à Consti-tuição e se ambas, a lei e a Constituiçãoaplicam-se a um caso particular, de modoque a Corte deva decidir aquele caso; ouconforme a lei, desconsiderando a Consti-tuição; ou de acordo com a Constituição,desconsiderando a lei; a Corte deve deter-minar qual destas regras em conflito gover-na o caso; isto é da própria essência dodever judiciário.

Se, então, os tribunais devem considerara Constituição, e esta é superior a qualquerlei ordinária da legislatura, a Constituição,e não a lei ordinária, deve governar o casoao qual ambas se aplicam.

Aqueles, portanto, que controvertem oprincípio de que a Constituição deve serconsiderada nas Cortes como um Direitosupremo, são levados à necessidade desustentar que os tribunais devem fecharseus olhos à Constituição e ver apenas a lei.

Esta doutrina subverteria o próprio fun-damento de todas as Constituições escritas.Ela declararia que uma lei que, segundo osprincípios e a teoria de nosso governo,fosse inteiramente nula, seria ainda, naprática, totalmente obrigatória. Declarariaque se o Legislativo fizer o que é expres-samente proibido, tal ato, apesar da proi-bição expressa, será na realidade válido.Estaria dando ao Legislativo uma onipotên-cia prática e real, com o mesmo alento comque professa a restrição de seus poderesdentro de limites estreitos. É prescreverlimites e declarar que aqueles limites po-dem ser ultrapassados à vontade.

Que ela, pois, reduz ao nada o quetemos considerado o maior aperfeiçoamen-to em instituições políticas, uma constitui-ção escrita, seria por si só suficiente, naAmérica, onde as constituições escritas têmsido olhadas com tanta reverência, pararejeitar a interpretação. Mas as expressõespeculiares da Constituição dos EstadosUnidos fornecem argumentos adicionaisem favor de sua rejeição.

O Poder Judiciário dos Estados Unidosestende-se a todos os casos sob a Consti-tuição. Poderia ser a intenção daqueles quederam este poder dizer que, ao usá-lo, aConstituição não deveria ser levada emconta? Que um caso surgido sob a Cons-tituição devesse ser decidido sem examinaro instrumento sob o qual surgiu? É coisademasiadamente extravagante para quealguém a sustente (This is too extravagantto be maintained).

Em alguns casos, então, a Constituiçãodeve ser examinada pelos juízes. E se elespodem examiná-la inteiramente, que partedela estão eles proibidos de ler ou deobedecer?

Há muitas outras partes da Constituiçãoque servem para ilustrar esse assunto. Estádeclarando que “nenhum imposto ou deverincidirá sobre artigos exportados de qual-quer Estado”. Suponhamos um tributocobrado sobre a exportação do algodão, dotabaco, ou de farinha; e uma ação movidapara obter sua restituição. Deveria haverjulgamento em tal caso? Deveriam os ju-ízes fechar seus olhos à Constituição e verapenas a lei?

A Constituição declara “que não serãopromulgados decretos de proscrição, nemleis retroativas” (no bill of attainder18 orex post facto law shall be passed). Se,entretanto, tal lei devesse passar e umapessoa devesse ser processada sob ela,deveriam os tribunais condenar à morte

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aquelas vítimas a quem a Constituiçãotenta preservar?

“Nenhuma pessoa”, diz a Constituição,“será condenada por traição à pátria, salvomediante o depoimento de duas testemu-nhas com relação a esse ato notório, oumediante sua confissão em sessão aberta notribunal”. Aqui, a linguagem da Constitui-ção é endereçada especialmente às Cortes.Prescreve diretamente para elas uma regrade evidência que não deve ser ultrapassada.Se o Legislativo pudesse mudar esta norma,e declarar uma testemunha ou confissãofora do tribunal, suficientes para convicção,deve o princípio constitucional ceder ao atolegislativo?

Desta e de muitas outras seleções quepodiam ser feitas, é evidente que os autoresda Constituição contemplaram aquele ins-trumento como uma norma para o governodas Cortes, assim como da legislatura.

Por que, por outro lado, devem os juízesjurar defendê-la? Esse juramento certamen-te aplica-se, de certo modo, à sua condutaem seu caráter oficial. Quão imoral impor-lhes o juramento, se fossem usados comoinstrumentos, e instrumentos conscientes,da violação do que eles juraram defender!

O juramento do cargo, também impostopela legislatura, demonstra completamentea opinião legislativa sobre o assunto. Ei-lo:“Juro solenemente que administrarei ajustiça igualmente entre as pessoas, e fareijustiça igual ao pobre e ao rico; e quecumprirei, fiel e imparcialmente, todos osdeveres a mim atribuídos..., conforme omelhor de minha capacidade e compreen-são, de acordo com a Constituição e as leisdos Estados Unidos”.

Para que um juiz jura cumprir suasobrigações conforme a Constituição dosEstados Unidos, se essa Constituição nãocaracteriza regra alguma para seu governo?Se está fechada sobre ele, e não pode ser

por ele inspecionada? Se esse for o realestado das coisas, será nada mais do queuma pilhéria solene. Prescrever esse jura-mento, ou prestá-lo, será em ambos oscasos um crime.

Não é, também, inteiramente indigno deobservação, que, ao declarar qual será a leisuprema do País, a própria Constituição émencionada em primeiro lugar; e não asleis dos Estados Unidos, em geral, massomente aquelas apenas que forem feitasem obediência à Constituição, gozarãodaquele status. Portanto, a fraseologiaparticular da Constituição dos EstadosUnidos confirma e fortalece o princípio,considerado essencial a todas as Constitui-ções escritas, de que uma lei em choquecom a Constituição é nula e que os tribu-nais, assim como outros departamentos,são limitados por aquele instrumento.

A norma deve ser anulada (The rulemust be discharged).

4. Interpr etando o caso

Reiteramos que a interpretação do Di-reito deve levar em conta pelo menos textolegal, a história, as regras de hermenêuticae a teoria política e moral.

No caso em questão procure consideraresses aspectos ao responder as questõessugeridas. A tarefa de interpretar é sua.Pode ser realizada individualmente, ou emgrupo ou na sala de aula sob a orientaçãodo professor, mas o importante é que oexercício seja realizado pelo aluno. Porisso, optamos por não apresentar nesseartigo nossa própria interpretação sobre ocaso. É certo que as questões sugeridas dãoalgumas “dicas” sobre nossa visão, mas otrabalho interpretativo agora é do leitor.

1. O que Marshall decidiu sobre opedido de Marbury? Sua decisão

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quanto a esse pedido foi favorável àposição defendida pela administraçãode Jefferson?

2. Como advogado de Madison,que argumento preliminar você utili-zaria para impugnar a decisão deMarshall?

3. Marshall, logo de início, afirmaa necessidade de “uma exposiçãocompleta dos princípios sobre os quaisa decisão da Corte está fundada”.Quais princípios você entende queforam expostos e aplicados por Mar-shall?

4. Quais as questões que Marshalllevanta para examinar o pedido deMarbury? Como ele as responde?

5. Para Marshall, qual a essênciada liberdade civil e qual o papel doJudiciário em sua defesa?

6. Marshall afirma que o governodos Estados Unidos é um governo deleis e não um governo de homens. Háalguma contradição entre sua afirma-ção e sua atuação no caso?

7. Qual a visão exposta por Mar-shall sobre o princípio da separaçãodos poderes?

8. Marshall se declara muito res-peitoso dos atos do Legislativo eespecialmente do Executivo com rela-ção ao âmbito de sua discricionarie-dade – as chamadas “questões políti-cas”. Por outro lado ele afirma clara-mente que “o Poder Judiciário dosEstados Unidos estende-se a todos oscasos sob a constituição”. Como eleconcilia essas duas posturas? Conse-gue? Como diferenciar uma questãopolítica de uma questão de direitosfundamentais (o âmbito de atuaçãodas Cortes, segundo Marshall)?

9. A decisão de Marshall é mera-mente “técnica”? Pode-se afirmar queno controle judicial de constituciona-lidade o caráter técnico prevalece sobreo jurídico?

10. Marshall poderia ter decididoa causa sem entrar na questão daconstitucionalidade do Judiciary Act?Você entende que o dispositivo legalcitado viola a constituição?

11. Que argumentos Marshall elen-ca para fazer a defesa do controlejudicial de constitucionalidade? Ele éconvincente?

12. Para ele, de onde vem a “von-tade suprema” que organiza o governoe estabelece os poderes e seus limites?

13. Qual o significado e a relevân-cia da Constituição ser escrita?

14. Como Marshall vê a Constitui-ção? Como “carta política” ou como“lei maior”? Por quê?

15. Qual a essência da obrigaçãodo poder judiciário?

16. Como Marshall usa o argumen-to da defesa dos direitos fundamen-tais?

17. Que argumentos textuais eleusa?

18. Existe “algo de podre no reinodo judicial review”?

Há inúmeras perguntas que podem serfeitas e vários ângulos sobre os quais adecisão, dada sua força histórica, políticae argumentativa, pode ser lida. Mas oprimeiro passo para essas várias possíveisanálises é reconhecer que não basta citaro caso parcialmente e fora de seu contextopara entendê-lo. É preciso lê-lo. E isso vocêacabou de fazer. Agora, é refletir e formarfundamentadamente sua posição.

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VELOSO, Zeno. Controle jurisdicional deconstitucionalidade. 2. ed. Belo Horizonte:Del Rey, 2000.

NOTAS

1. Veja-se, a título de exemplo, os importan-tes manuais de Direito Constitucional dos Pro-fessores Paulo Bonavides, José Afonso da Silva,Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Alexandre deMoraes e Michel Temer. Vale, também exem-plificativamente, referir as doutas monografiasdos Professores Clèmerson Merlin Clève (Afiscalização abstrata da constitucionalidade nodireito brasileiro), Orlando Chicre Miguel Bitar(A lei e a Constituição: alguns aspectos docontrole jurisdicional de constitucionalidade) eZeno Veloso (Controle jurisdicional de consti-tucionalidade). Ver Referências Bibliográficaspara dados completos.

2. Conforme relação atualizada de todos osmembros da Suprema Corte dos Estados Uni-dos, apresentada em apêndice do “casebook”Constitutional Law, de Katheleen M. Sullivane Gerald Gunther (2001).

3. Para uma precisa e acurada análise dotema da distribuição dos recursos de poder naConstituição de 1988, veja-se o trabalho doProfessor Antônio Gomes Moreira Maués, daUniversidade Federal do Pará, denominado Podere democracia: o pluralismo político na Cons-tituição Federal de 1988.

4. A esse respeito, leia-se o seminal trabalhodo Professor Atahualpa Fernandez, da Universi-dade da Amazônia (UNAMA) e do Centro Uni-versitário do Pará (CESUPA), chamado Direito,evolução racionalidade e discurso jurídico.

5. Para uma iniciação, em língua portuguesa,no tema da interpretação-aplicação do Direitovale referir os trabalhos dos Professores Luís

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Roberto Barroso, da Universidade do Estado doRio de Janeiro (UERJ) (Interpretação e aplica-ção da Constituição) e Eros Roberto Grau, daUniversidade de São Paulo (USP) (Direito,conceitos e normas jurídicas e O direito postoe o direito pressuposto).

6. Cabe esclarecer que para a elaboração dohistórico aqui apresentado utilizamo-nos sobre-tudo das seguintes obras: o casebook Constitu-tional Law, dos Professores da Stanford LawSchool, Katheleen M. Sullivan e Gerald Gunther(2001); o clássico manual de Direito Constitu-cional americano American constitutional law,doPprofessor da Harverd Law School, Lawren-ce Tribe; de uma compilação de artigos sobreDireito americano, Fundamentals of Americanlaw, escrita por professores da Law School daNew York University e organizada pelo Profes-sor Alan Morrison; e do esclarecedor livroFoundations of American constitutionalism, doProfessor de Direito Constitucional da LawSchool da New York University, David Richards.As indicações completas encontram-se nasReferências Bibliográficas. Por não se tratarexatamente de um artigo sobre história dosEstados dispensamos o rigor da consulta afontes primárias e apresentamos uma interpre-tação pessoal daquele momento, fundamentadanos respeitados trabalhos já referidos. Esseesclarecimento visa também evitar o excesso denotas explicativas, uma vez que nosso principalobjetivo é chegar na leitura da decisão deMarshall.

7. Os Federalist Papers são a compilação deuma série de artigos escritos por James Madi-son, Alexander Hamilton e John Jay e publica-dos em jornais do Estado de Nova York, nosdebates públicos que antecederam à Convençãode Filadélfia, reunida para elaborar a Constitui-ção Americana.

8. Tradução do autor. Segue o texto original:“Ar ticle III Section I. The judicial Power of theUnited States, shall be vested in one supremeCourt, and in such inferior Courts as theCongress may from time to time ordain andestablish. The Judges, both of the supreme andinferior Courts, shall hold their Offices duringgood Behavior, and shall, at stated Times,receive for their services, Compensation, whichshall not be diminished during their Continu-ance in Office.

Section 2.[1] The judicial Power shall extendto all Cases, in Law and Equity, arising under thisConstitution, the Laws of the United States, andTreaties made, which shall be made, under theirAuthority; – to all Cases affecting Ambassadors,other public Ministers and Consuls; – to all Casesof admiralty and maritime Jurisdiction;-to Con-troversies to which the United States shall be aParty; – to Controversies between two or moreStates; – between a State and Citizens of anotherState; – between Citizens of different States; –between Citizens of the same State claimingLands under Grants of different States, and be-tween a State, or the citizens thereof, and foreignStates, Citizens or Subjects.

[2] In all Cases affecting Ambassadors, otherpublic Ministers and Consuls, and those inwhich a State shall be Party, the supreme Courtshall have original Jurisdiction. In all the otherCases before mentioned, the supreme Courtshall have appellate Jurisdiction, both as to Lawand Fact, with such Exceptions, and under suchregulations as the Congress shall make”.

(...)“Artigo VI(...)[2] This Constitution, and all the Laws of

the United States which shall be made inPursuance thereof; and all Treaties made, orwhich shall be made, under the Authority of theUnited States, shall be bound thereby, anyThing in the Constitution or Laws of any Stateto the contrary notwithstanding.

[3] The Senators and Representatives beforementioned, and the Members of several StateLegislatures, and all executive and judicialOfficers, both of the United States and of theseveral States, shall be bound by Oath orAffirmation, to support this Constitution; but noreligious Test shall ever be required as aQualification to any Office or public Trust underthe United States.”

9. Cf. Richards (1989), p. 105-130.10. Tradução do autor. Segue o texto original:

“Amendment I (1791). Congress shall make nolaw respecting an establishment of religion orprohibiting the free exercise thereof; or abrid-ging the freedom of speech, or of de press;...”

11. Segundo o Black’s Law Dictionary, ooath of office é: “Um juramento feito por uma

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pessoa prestes a assumir os deveres de um cargopúblico, pelo qual a pessoa promete cumprirobrigações do cargo de boa fé” (Tradução doautor).

12. Baseamos a reconstituição do contextodas nomeações judiciais nas notas de Sullivane Gunther (2001), p. 3-13.

13. A tradução do julgado é do autor dopresente artigo, com base no texto integralmentereproduzido no casebook: SULLIVAN, Kathle-en M. e GUNTHER, Gerald. ConstitutionalLaw. New York: Foundation Press, 14ª ed.,2001.

14. Cranch foi o primeiro volume dedicadointegralmente a registrar e publicar as decisões daSuprema Corte Americana (à esquerda ia indica-do o volume e à direita, a página). Contudo, sófoi publicado em 1804. Os casos da década de1790 foram reunidos e publicados pela iniciativade A. J. Dallas em volumes que também incluíamdecisões da Corte Estadual da Pennsylvania.Somente em 1816, o Congresso decidiu criaruma publicação oficial reunindo as decisões daSuprema Corte. Em 1884, a Corte decidiu quesuas decisões seriam citadas somente pelo núme-ro da publicação oficial. Daí, a forma entre parên-tesis: (5 U. S.). (Nota do Tradutor).

15. Conforme dispositivo da Seção 13 doJudiciary Act de 1789, no original: “The Supre-me Court shall also have appellate jurisdictionfrom de circuit courts and courts of the several

states, in the cases herein after specially provi-ded for; and shall have power to issue writs ofprohibition to the district courts, when proce-eding as courts of admiralty and maritimejurisdiction, and writs of mandamus, in caseswarranted by the principles and usages of law,to any courts appointed, or persons holdingoffice, under the authority of the United States”(destacamos o trecho traduzido – Nota doTradutor).

16. Ver Artigo III, Seções I e II, previamentecitado e traduzido (Nota do Tradutor).

17. Artigo III, Seção II [2] (Nota do Tradu-tor).

18. Bill of Attainder era uma espécie de atolegislativo, usada pelo Parlamento britânico,através do qual a pena de morte era imposta aalguém sem julgamento. Eram usados tambémpara punir, sempre sem julgamento, determina-da pessoa ou grupo, privando-lhes de seusdireitos civis e, muitas vezes, estendendo apunição para os descendentes dos condenados(daí a tradução, sugerida por alguns autores,pelo termo “decreto de proscrição”). A Cons-tituição americana proíbe expressamente que oCongresso edite bills of attainder (Art. I,Parágrafo 9.º, Cláusula 3; Art. I, Parágrafo 10.º,Cláusula 1), desde então considerados comogravemente violadores dos direitos fundamen-tais. Na Grã-Bretanha, há muito também que jáforam excluídos do ordenamento jurídico.