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A PRODUÇÃO DO MONSTRO: DA PRIMEIRA XILOGRAVURA AO
DOCUMENTÁRIO EXCERPT FROM 'FIGHTING THE AMAZON'S
ILLEGAL LOGGERS Ivânia dos Santos Neves
PPGL-PPGCOM-FALE
Josué Oliveira
FALE – PIBIC/ CNPq – UFPA
Resumo: Em muitas produções midiáticas, há um processo sistemático de inferiorização
dos saberes indígenas, bem como da caracterização destes povos como selvagens,
violentos. Essa posição mostra como os discursos que permeiam o cotidiano da
sociedade brasileira procuram silenciar as diferenças entre os Tembé-Tenethara, os
Xavantes, os Bororo, os Aikewára e os outros 281 povos indígenas brasileiros, tratando
a todos como uma generalização e que tudo se resume a “índio”. Como resultado do
projeto “A invenção do índio na mídia: discursos e identidades” o trabalho apresentado
toma como corpus de análise o documentário “”, (2015) produzido pelo site norte-
americano VICE NEWS (news.vice.com) e segunda imagem dos povos indígenas, a
xilogravura Novo Mundo, que circulou na Europa no início do século XVI. Nosso
objetivo é compreender como os discursos que circulam em torno dessas mídias estão
imbricados em diferentes relações de poder, para isso, tomamos como referência teórica
as formulações de vontade de verdade, enunciados e história descontínua formuladas
por Michel Foucault (2000) e discutidas por Gregolin (2007), para analisar como a
sociedade brasileira produz e formula sentidos sobre o indígena por meio da
materialidade das linguagens.
Palavras-Chave: Genealogia, Amazônia, Discurso
Este artigo surgiu a partir de pesquisas desenvolvidas no projeto intitulado “O
indígena Tembé-Tenetehara nas mídias sociais” e de trabalhos produzidos no GEDAI –
Grupo de Estudo Mediações, Discurso e Sociedades Amazônicas – orientado pela
professora Drª Ivânia dos Santos Neves, com o objetivo inicial de organizar um
levantamento de dados com links de dissertações, artigos em periódicos, trabalhos
publicados em anais de eventos acadêmicos relacionados aos Tembé e principalmente
reunir registros de páginas da internet (blogs, sites, redes sociais etc.) para uma análise
mais detalhada.
O objetivo deste artigo é mostrar, tomando por referencial a semiologia
histórica, fundamentada nas formulações de Michel Foucault e J.J. Courtine, lugares de
fala e seus atravessamentos no campo discursivo, constituindo sujeitos nos dias atuais, a
partir de materialidades (verbais e não-verbais) e suportes midiáticos, comuns ao
homem contemporâneo. Mais especificamente, propomos, então, uma investigação em
torno do discurso imposto ao sujeito indígena e sua cultura e formas de saberes/poderes,
instituídos, muitas vezes, como uma espécie de memória oficial sobre estes povos
Atualmente, destaca-se a internet como um grande meio de comunicação e
praticidade no cotidiano de homens e mulheres por maioria da sociedade urbana. Nesse
suporte, encontram-se vários tipos de discursos envolvendo indígenas a partir de um
estereótipo simbólico historicamente atribuído a eles. Por isso, em nossas análises, foi
necessário articular o linguístico e o histórico-social para explicar o intradiscurso e o
interdiscurso, pois, língua e história estão imbricadas e são inseparáveis (GREGOLIN,
2011).
Por isso a linguística pode estudar o discurso em suas diferentes formas. As
narrativas populares, os textos histórico-religiosos, imagens entre outros são
materialidades do discurso e a língua serve de matéria prima para todos eles. Através
desse recurso o autor constrói uma verdade ou uma “vontade de verdade” (Foucault,
1970). A ideia do monstruoso e a sua ligação com as noções do bárbaro selvagem,
inerentes ao diferente, experimentado pelo europeu em suas viagens para colonização
do “Novo Mundo”, insinua-se no realismo mágico, sintetizando uma reação à noção
ocidental do real e do cientificismo que tem como verdadeiro apenas um saber sobre
questões no mundo, concepção iluminista em relação aos saberes das sociedades das
américas pré-coloniais.
O indígena é mostrado como o selvagem exótico, assim como diz Courtine em
seu livro História do corpo (2009), como se multiplica a representação do monstro na
sociedade do século XIX até as primeiras décadas do século XX, sempre criando uma
ficção exótica que coloca em evidencia a estranheza anatômica ou diferença racial, para
uma comercialização do bizarro. E assim também o sujeito indígena foi acometido por
essa cultura de exposição e histórias ficcionais sobre o exótico.
Essas práticas formavam imagens que continham uma verdade absoluta, pois o
espectador via em sua frente o que antes era só verbalizado em histórias de terror, a
invenção do monstro, transforma-se em signo, e essa representação do indígena era
repassada em outras formas de materialidades discursivas, como em cartões postais,
cartões de visita ilustrados, revistas e a partir de 1860, com a popularização da
fotografia, esse discurso se tornou hegemônico.
[...] a apresentação da diferença racial, esta discriminação
fundamental na percepção dos corpos, à qual os “zôos humanos”
e as “aldeias indígenas” convidam os frequentadores dos jardins
de aclimatação e os visitantes das Exposições universais.
(COURTINE, 2009, P 257)
A prática de espetacularização pode ser encontrada em relação ao indígena de
várias formas, desde pintura e representações, até o próprio encarceramento desses
sujeitos como animais deixando inerente o ideal de monstros humanos. A percepção de
uma forma diferente ao do europeu torna-se objeto de preocupação, pois essas
irregularidades e singularidades tornavam os indígenas como algo desforme identificado
com a figura do monstro como feras selvagens.
Podemos assim fazer uma comparação, através do que diz Foucault sobre
história descontinua, que esse discurso sobre, a representação do índio/índia, faz-se
presente no cotidiano das produções de mídias sociais. No levantamento de dados na
internet, um nos chamou mais atenção, pelo conteúdo e forma de exposição do indígena,
especificamente o Tembé-Tenetehara, o documentário feito pelo Vice News, um site de
notícias francês, cuja definição se encontra na própria página com a seguinte descrição:
Um site de informação internacional criado pela e para a geração
jovem conectada. Nossos documentários e séries originais oferecem
uma nova perspectiva sobre os acontecimentos atuais mais
importantes do mundo e destacam histórias nunca antes contadas.
Sérias e às vezes irreverente, temos a missão de chegar ao coração das
questões que cobrem e dizer-lhes como nós vemos – (VICE NEWS
24/05/2016 https://news.vice.com/fr/about).
Diante do documentário em questão, com duração de 20 minutos e 48
segundos, intitulado Sur le sentier de la guerre: indiens et bûcherons clandestins en
Amazonie1, perguntamos; quais efeitos de sentidos essa produção audiovisual constrói
em relação ao povo Tenetehara? A que público se destina essa produção? Quais
memórias sociais podem ser operadas no momento da recepção desse documentário?
Formularemos possíveis respostas aos questionamentos feitos. Antes disso,
queremos frisar que falamos, aqui, ao mesmo tempo das condições de possibilidades
históricas do audiovisual, e de nossa posição como interlocutores desta mídia, o que
mostra nossa construção como sujeitos antropológicos e historicamente guiados.
“Temos que conhecer as condições históricas que motivam nossa conceituação.
Necessitamos de uma consciência histórica da situação presente” (FOUCAULT,1995),
2. Sobre o documentário
“Combate madeireiros ilegais da Amazônia”
Publicado em 18 de abril de 2015 às 13:20, o documentário mostra a reserva
Alto Rio Guamá, no Pará e seus entornos. Relata como os Tembé tem lutado por
décadas para salvar a sua terra de madeireiros ilegais e colonos. Enquanto a tensão
aumenta, o povo Tembé é agora forçado, a pegar em armas e enfrentar os madeireiros, o
que provoca vários confrontos e alguns deles são mostrados pelo documentário feito
pela Vice News.
O documentário começa com a fala dos indígenas com a legenda traduzida para
o inglês - o que já sugere para quem essa produção é feita. Os Tembé estão segurando
armas de grande poder de fogo em meio a floresta, pintados e trajando acessórios como
se estivessem a caminho de uma guerra. No momento em que falam, uma trilha sonora
ao fundo é sobreposta, com o objetivo de transmitir um momento tenso ou de perigo,
como Tavares diz:
1 “Em pé de guerra: indígenas e madeireiros ilegais na Amazônia”
Imagine uma cena em um filme de ficção científica de horror na qual
uma aranha monstruosa e mortal está se aproximando sorrateiramente
de uma criança inocente. Experimente tentar “ouvir” a música
sorrateira ao fundo. Não é muito difícil, não é? Mas por que os
produtores dos filmes usam música para acompanhar tais cenas? E
como os produtores decidem qual música encaixar na cena? Por que a
“música do monstro se aproximando” não se encaixa em uma cena de
filme de uma festa de aniversário ou de um berçário? Se palavras
como “nana nenê” fossem colocadas na “música do monstro se
aproximando”, isto seria uma canção de ninar? Cremos que não. E isto
acontece porque a música consegue passar uma mensagem complexa
e profunda, mesmo sem palavras. (TAVARES, 2012)
Podemos, com a primeira parte do documentário, rememorar outros
documentários, programas sensacionalistas ou filmes com a temática do horror que são
editados com recortes de fala e imagem, sempre com o intuito de mostrar e grifar o
terror, a violência e a monstruosidade, neste caso produzidos pela ação dos Tembé. A
edição das imagens e das trilhas obedecem ao que Foucault denomina como ordem
discursiva.
Suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo
tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo
número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e
perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e
temível materialidade (FOUCAULT, 1970)
O discurso deste documentário se constitui por meio de procedimentos de
controle que atravessam as conexões sociais e históricas. Diante do grande arquivo que
é a internet, é possível recuperar, com certa facilidade, outros documentários históricos
com a temática de conflitos, porém, as informações dos sites desaparecem ou são
modificadas com a mesma velocidade que são publicadas, configurando o caráter
líquido (BAUMAN, 2001) dos discursos, com rápido apagamento dos enunciados.
Para a análise, utilizaremos uma foto de mulheres Caiapó, uma pintura de
Albert Eckhout e um recorte de imagem do vídeo do documentário do Vice News que
constrói o imaginário do sujeito monstruoso e perigosos e como essas práticas são
atualizadas, que são justapostas abaixo.
Figura 01- Mulheres Armadas
http://oberrodaformiga.blogspot.com.br/2008/05/ndios-agridem-engenheiro-em-debate.html
O Discurso imagético mostra seres, anomalias monstruosas sob a estranheza
exótica, trazendo um sentimento de disforme e distante do “normal” e aceitável para um
ser se intitular humano. Essa imagem foi encontrada no site Terra com a seguinte
legenda: “TROPA VERMELHA - Armados e pintados para a guerra, será que eles não
estão a serviço das ONGs?” A matéria, veiculada dia 2 de maio de 2008 na página O
berro da formiga, tinha por objetivo mostrar a agressão dos índios ao funcionário da
Eletrobrás que era responsável pela construção da usina de Belo Monte.
A imagem conduz nosso olhar a se fixar nas armas, portanto, no caráter
violento e ameaçador das mulheres Caiapó. Também compõe a imagem os acessórios e
o corpo desnudo, que retomam a memória de um sujeito indígena perigoso e não
civilizado. O corpo como meio de saberes sociológicos, físicos e pedagógicos é
manipulado e organizado para que possa gerar sentidos específicos, “o corpo torna-se
útil e eficiente, mas ao mesmo tempo torna-se dócil e submisso: o corpo só se torna
força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso. (Foucault, 1987, p.
28) o corpo, também é um meio de controle, organização e redistribuição de discurso,
neste caso o discurso do sujeito monstruoso e agressivo. Assim como na pintura de
Albert Eckhout, a seguir:
O momento histórico de sua produção em 1643 feito por Albert Eckhout1,
produzindo desde aquela época o discurso do “índio selvagem”, torna amostra a
representação de uma sociedade vista com o olhar do outro e com a perspectiva de
mostrar um corpo nu, também, armado para uma exibição à multidões “civilizadas” da
Europa. A imagem ressalta o grotesco da aparência, a animalidade das funções
corporais, a barbárie e primitivos costumes dos povos indígenas.
Figura 02 – Tapuia de
Albert Eckhout
Fonte :
Vejamos agora a imagem retirado do documentário Sur le sentier de la guerre:
indiens et bûcherons clandestins en Amazonie:
A imagem gera um efeito de sentido que remete outra vez ao discurso do
horror e monstruosidade, remetido aos indígenas. Sendo que ao invés de flechas, como
no poema, temos agora armas de fogo, não temos mais um corpo nu devido as
condições de possibilidades históricas que não permitem esse tipo de representação,
mas, temos a marca indígena no cocar e pinturas no rosto, além de uma vestimenta
militarizada comum as selvas amazônicas. A posição dos personagens e a perspectiva
para colocar em evidencia a violência. Violência que é mostrada como um dos focos
principais no poema analisado.
Os efeitos de sentido, que as imagens produzem, sobre a memória cultural na
medida em que promovem um retorno de uma memória enraizada na cultura brasileira
e, ao mesmo tempo, fazem aparecer um novo sentido, que se torna contemporâneo.
Podemos dizer, que o efeito imagético também é uma releitura do imaginário, onde
transforma o cânone e ao mesmo tempo o atualiza em sua historicidade, em sua
remanência na memória longeva da sociedade.
[...] a história tem por função mostrar que aquilo que é nem sempre
foi, isto é, que é sempre na confluência de encontros, acasos, ao longo
de uma história frágil, precária, que se formaram as coisas que nos dão
a impressão de serem as mais evidentes. Aquilo que a razão
experimenta como sendo sua necessidade, ou aquilo que antes as
diferentes formas de racionalidade dão como sendo necessária, podem
ser historicizadas e mostradas as redes de contingências que as
fizeram emergir [...] (FOUCAULT, 1997).
Figura 03 – Vice News (Sur le sentier
de la guerre)
Foucault critica a história tradicional, a história das continuidades, a “história
propriamente dita, a história pura e simplesmente”, em favor do que denomina história
nova ou história descontínua. Ele mostra que os discursos estão sempre atualizados não
importa a época histórica, mas, cada sociedade, com suas transformações, aceita ou
exclui certos discursos. Por isso, podemos pensar que o discurso colonial, até hoje, é
propagado por pessoas que se identificam com esses ideais na sociedade. E essa
historicidade dos seres humanos é singular para cada sociedade e não apenas uma etapa
numa História universal das civilizações.
Podemos constatar que, as imagens acima são uma continuação ou atualização
na era contemporânea em várias imagens, como o horror é mostrado, como o indígena e
suas mazelas sempre ficam em evidência, deixando claro a não aceitação de nenhum
outro discurso que possa ir de encontro a esse, mostrando assim uma ordem discursiva.
O processo histórico forma os membros da sociedade, mudando assim seus
modos de pensar e agir no meio onde vivem o que modifica suas “identidades”, onde, a
mesma é um processo que se desenvolve e se transforma com a história, de acordo com
as concepções de sujeito. Gregolin (2002), por exemplo, sintetiza três dessas
concepções que se desenvolveram nas sociedades ocidentais: o sujeito do Iluminismo, o
sujeito da Modernidade, o sujeito da Pós-modernidade. Sendo assim, a "globalização"
tem um alto impacto sobre as identidades, transformando conceitos clássicos como de
Estado, Nação e o próprio tempo e espaço. Instalam-se as descontinuidades,
estabelecendo novas formas de interconexão social e alterando as características mais
íntimas e pessoais de nossa existência cotidiana.
As sociedades atravessadas pela diferença, produzem uma variedade
de diversas posições de sujeito (identidades) e a estrutura identitária
permanece aberta. Isso, no entanto, tem aspectos positivos, pois
desarticulam-se as identidades estáveis do passado e abrem-se novas
possibilidades de articulações, com a criação de novas identidades e a
produção de novos sujeitos. (GREGOLIN. 2006. p103)
Gregolin considera que sociedade atual, em que a imagem se impõe com sua
densidade radical, pensa sobre a sua força enquanto operadora da memória social,
formulando a seguinte questão: qual o papel da imagem no estabelecimento da memória
coletiva nessa sociedade em que a visualidade tem prominência cada vez maior?
Essa questão pode ser formulada desta maneira: que tipo de operação com a
memória social, coletiva, cultural é feita pelas imagens na atualidade, em uma sociedade
em que os textos e discursos circulam em escala planetária?
Esse mercado de maravilhas, curiosidades, uma pletora de tudo o que é
estranho e esquisito, atrai milhões de olhares mundo a fora. As produções de
audiovisual feitas pela Vice News chegam na casa dos milhões em visualizações.
Vendem o bizarro e o inusitado. O show mais assustador é o show mais assistido.
Colocando o modo de vida do sujeito indígena como anormalidade a partir do olhar
colonizador, como indivíduos oriundos das matas selvagens e florestas encantadas e que
são erros espantosos da natureza que atormentará as almas que se deparam com
produções como a do site citado, que situa os Tembé entre o aterrorizante e o trágico.
Não será mais simplesmente nessa figura excepcional do
monstro que o distúrbio da natureza vai perturbar e questionar o
Jogo da lei. Será em toda parte, o tempo todo, até nas condutas
mais ínfimas, mais comuns, mais cotidianas, no objeto mais
familiar da psiquiatria, que esta encarará algo que terá, de um
lado, estatuto de irregularidade em relação a uma norma e que
deverá ter, ao mesmo tempo, estatuto de disfunção patológica
em relação ao normal. (Foucault, 2001 p206) os anormais
A história assim é feita, através de diversos discursos que a sociedade faz emergir
e construir diversos saberes/poderes as entidades do mundo. Pensar sobre as questões
discursivas sobre os povos indígenas é se deter nas práticas sociais e tentar desvendar
como são estruturadas em uma linha descontinua de memória.
Entre armas e a selvageria: processos de intericonicidade
A noção de intericonicidade é imprescindível para a compreensão da análise
feita, pois o conceito coloca em questão a relação entre as imagens interiores e
exteriores aos sujeitos: “[...] as imagens de lembrança, as imagens de memória, as
imagens de impressão visual armazenadas pelo indivíduo. Imagens que nos façam
ressurgir outras imagens” (COURTINE, 2008), assim, podemos encontrar a memória
discursiva resgatadas no interior das práticas verbais e não-verbais, de modo a
compreender o que Courtine diz em seus livros, que imagem é um modelo de língua e
discurso, e mantém uma relação com a memória assim como a língua na modalidade
oral e escrita. Então, “não há texto, não há discurso que não sejam interpretáveis,
compreensíveis, sem referência a uma tal memória. Diria a mesma coisa de uma
imagem, toda imagem se inscreve em uma cultura visual” (COURTINE, 2008)
[...] a intericonicidade supõe as relações das imagens exteriores ao
sujeito como quando uma imagem pode ser inscrita em uma série de
imagens, uma genealogia como o enunciado em uma rede de
formulação, segundo Foucault. Mas isso supõe também levar em
consideração todos os catálogos de memória da imagem do indivíduo.
De todas as memórias. (COURTINE, 2008)
Courtine afirma que há uma história das imagens, e essas produções são
delimitadas por sujeitos históricos e constituem um saber/poder na sociedade em que
circula esses discursos. Através das imagens mostradas, podemos investigar a história
da construção do ser indígena e como esses efeitos de sentido configuram o modo como
as sociedades indígenas são tratadas pelos não-índios.
Os primeiros registros sobre índios foram feitos na colonização, através de
cartas, desenhos, pinturas e peças teatrais, oferecendo excentricidade ao mundo,
explorando as aberrações selvagens, o indígena deveria ser alegórico, deveria ser algo
nunca visto pela humanidade, seres exóticos, oriundos dos mais remotos lugares.
A história colonial começou a ser registrada desde a chegada das
primeiras embarcações, nas cartas dos cronistas que eram endereçadas
aos reis de Portugal e de Castela e pelos textos produzidos pelos
primeiros religiosos que junto com eles chegaram. Na América inteira,
do século XV ao século XIX também houve uma série de pesquisas de
naturalistas, que documentaram com livros e imagens as relações
sociais entre os índios. Todas estas representações contribuíram para
inventar uma tradição notadamente ocidental sobre o índio no “novo”
continente. (NEVES, 2009)
O índio é uma invenção do colonizador, onde, a sociedade construída pelos
europeus é atravessada por esse discurso que reverbera na sociedade até os dias atuais.
Essa invenção do índio é atualizada na produção do documentário do Vice News, ao
dizer para os espectadores que presenciarão cenas de tenção e guerra ao logo do vídeo, é
alegorizar a pessoa nativa com o objetivo de chamar a atenção através do
sensacionalismo, um artifício discursivo utilizado desde a colonização, conduzindo um
olhar e um pensar manipulados como no show buseness. Atribuem a eles características
de pessoas que não contribuem à sociedade brasileira como um todo, limitando-se a
conflitos de terras.
Pensar o discurso através de uma maneira descontínua, proposta por Foucault
(2014) é saber que as formas de materialização do discurso mudam, mas o discurso em
si não, sabemos que os discursos não acabam, porém, sofrem apagamentos e a partir das
condições de possibilidades históricas, o discurso pode emergir ou submergir na
sociedade, em suportes diferentes. Atualmente, o discurso colonial, em relação ao
indígena, é atualizado nas produções midiáticas, e publicados em escala mundial.
A produção da verdade na linguagem audiovisual
Formaram a grande maioria, as produções como o discurso que atravessam
essa memória colonial, mas encontramos exemplos de produções onde destaca-se um
outro sujeito. Como na matéria do Portal Cultura, nome relacionado ao canal de
televisão, muito conhecido na região norte.
O trabalho audiovisual feito pela Portal Cultura, intitulado de especial Tembé
Tenetehara, com duração de 7 minutos e 49 segundos. O vídeo mostra os Tenetehara,
onde vivem, o que praticam e sobre o que lutam, a mesma pauta do documentário feito
pela Vice News, porém, o discurso empregado pela produção é totalmente diferente.
Netas produções, disponíveis na internet, as regularidades, teoria formulada
por Foucault, que busca explicar a ligação dos enunciados através de uma rede de
memórias, onde as materialidades não podem ser independentes e sim sempre
associadas a essas memórias discursivas:
Outra direção de pesquisa: as hierarquias internas às regularidades
enunciativas. Vimos que todo enunciado se relacionava a uma certa
regularidade - que nada, por conseguinte, podia ser considerado como
pura e simples criação, ou maravilhosa desordem do gênio. Mas
vimos, também, que nenhum enunciado podia ser considerado como
inativo e valer como sombra ou decalque pouco reais de um
enunciado inicial. Todo o campo enunciativo é, ao mesmo tempo,
regular e vigilante: é insone; o menor enunciado - o mais discreto ou
banal - coloca em prática todo o jogo das regras segundo as quais são
formados seu objeto, sua modalidade, os conceitos que utiliza e a
estratégia de que faz parte. (FOUCAULT, 2008, P165)
Ao começar o vídeo do Portal Cultura, nos é apresentada a imagem da floresta
e objetos da cultura indígena, com uma narração feita por uma mulher que fala em
português e ouvimos uma trilha sonora ao fundo – trilha que nos propõem tranquilidade
–, assim como os indivíduos que são entrevistados, sempre com uma fala serena e a
imagem capturada pela câmera mostra sempre o rosto e não apenas uma parte do corpo
não identificado.
Nos vídeos, tanto do site Vice News quanto do Portal Cultura, há presença de
mulheres, porém, as mulheres escolhidas traduzem comportamentos diferentes, no caso
do Vice News, a entrevistada é Puyr Tembé, uma líder na luta pelos direitos dos
Tenetehara, mostrada distribuindo munição para as armas e ameaçando atear fogo no
maquinário dos madeireiros. Uma “índia” perigosa, que em sua fala se percebe algo
sinistro. Ela deixa claro que ser indígena é lutar pela terra, como diz no vídeo:
Você também tem que tirar essa máquina daqui, ainda quando presta,
porque daqui a pouco nós vamos queimar essa coisa aí! Tu vais viver
de que? Não tenho medo de vocês. Sou Tenetehara, sou índia. Não
tenho medo de vocês! (VICE NEWS -19:27 / 19:44)
A mulher entrevistada no documentário do Portal Cultura é Kudã’i Tembé,
professora e uma líder na luta pela não extinção da língua e cultura Tenetehara, é
mostrada quando canta, quando faz grafismo, segurando uma criança e ao falar mostra a
preocupação em relação à cultura indígena que fica esquecida por muitos.
Duas formas de representar o sujeito mulher indígena, evidenciando os jogos
de sentido e quais os efeitos que cada materialidade quer produzir. O poder funciona de
forma múltipla, tanto para excluir e puni, como para evidenciar de uma forma positiva
dos sujeitos, como diz Foucault (1986, p. 148-149):
Pois, se o poder só tivesse a função de reprimir, se agisse apenas por
meio da censura, da exclusão, do impedimento, do recalcamento, à
maneira de um grande superego, se apenas se exercesse de um modo
negativo, ele seria muito frágil. Se ele é forte, é porque produz efeitos
positivos no nível do desejo (...) e também no nível do saber. O poder,
longe de impedir o saber, o produz.
Duas mulheres Tenetehara, com condutas diferentes, pois o que se quer
mostrar é a vontade de verdade em torno da discursividade do que é uma mulher
indígena e o que não pode ser silenciado em torno do simbólico histórico na sociedade
atual, pois “não nos encontramos no verdadeiro senão obedecendo às regras de uma
‘política’ discursiva que devemos reativar em cada um de nossos discursos”
(FOUCAUL, 1970. P35) e é essa “politica” ou ordem discursiva que permite uma
mulher no vídeo furiosa e agressiva (no caso do Vice News) o no outro não.
Sobre Bêwãre Tembé e o sujeito fragmentado
Muitos podem colocar em cheque esse tipo de relação, mas, essa ordem
discursiva é mais explicita, quando comparamos não apenas um gênero, e sim um
indivíduo que é mostrado em ambos os documentários com perspectivas diferentes.
Trata-se do indígena Bêwãre Tembé, mostrado nas seguintes imagens:
Essas imagens constroem verdades diferentes em torno de um mesmo sujeito, o
que deixa a mostra como os discursos são controlados e manipulados dependendo de
quem, onde e quando são produzidos na sociedade, e reforçam ou não, formas de
existências juntas no movimento de concepção e análise do discurso, “para o qual não
há uma fonte original dos discursos, mas uma gravitação de posições e posicionamentos
dos sujeitos ao longo do tempo e na história” (MILANEZ, 2012. P84).
Mostra-se nas figuras 4,5 e 6 um indígena pintado e armado para guerra, onde
o anormal e monstruoso ser indígena detém uma vida de degradação e vexame. Não
caberia neste discurso a imagem de uma pessoa de rosto limpo e descaracterizado e sem
armas como é mostrado nas imagens 7 e 8, mesmo quando se trata da mesma pessoa.
Há uma quebra discursiva muito evidente entre as imagens destacadas e este conflito
das imagens, revela a ordem do olhar (GREGOLIN, 2009) que é cada vez mais forte na
Figuras 4, 5 e 6 – Bêwãre Tembé documentário Vice news
Figuras 7 e 8 – Bêwãre Tembé documentário Portal Cultura
contemporaneidade, e faz parte da ordem do olhar mostrar determinadas imagens e
outras não.
Os agenciamentos das materialidades pesquisadas constroem efeitos de
sentido para o futuro, pois sempre haverá a possibilidade de ser retomado, revisto ou
relido por diversas gerações, pois as plataformas midiáticas são como grandes arquivos,
podendo ser acessado por qualquer pessoa. Sabemos que, a imagem é uma grande
operadora de simbolização e a partir dessas imagens teremos pré-julgamentos em
relação, não apenas aos Tembé, e sim de todos os povos indígenas.
A imagem é uma operadora de simbolização. Podemos ampliar essa
ideia e pensar que as imagens nunca aparecem isoladas, estão sempre
rodeadas de elementos verbais e, portanto, devemos pensar que a
relação entre materialidades (verbais e não-verbais) é operadora de
memória (GREGOLIN, 2009)
As práticas discursivas não podem ser separadas do corpo e do gesto, “de modo
que não podemos mais separar linguagem e imagem” (COURTINE, 2009. P150). No
caso dos documentários analisados, leva-se em consideração tudo que pode ser visto ou
ouvido durante a exibição, e através dessas capacidades do sentido podemos julgar,
aquilo que foi produzido, com os próprios olhos. Por exemplo, nos dois vídeos, os
repórteres que narram os documentários – os não-indígenas que se colocam como
visitantes da aldeia e relatam parte do cotidiano dos Tenetehara – em determinado
momento são pintados pelos indígenas, porém, o repórter da Vice News é pintado para a
guerra, enquanto, que a repórter da Portal Cultura é pintada para festa. Mais uma vez,
dois atos semelhantes, mas com finalidades diferentes, entram em conflito ao
relacionarmos essas formas de discursos que divulgam saberes atribuídos às sociedades
indígenas.
Considerações finais
A internet em geral, é um espaço ou ciberespaço de grande influência nos dias
atuais, deve-se atentar para essa forma de representação dos sujeitos e atualização de
discursos coloniais, que buscam colocar o indígena em um patamar inferior,
desumanizando seus costumes e saberes, onde afirmam serem sujeitos primitivos que
não querem evoluir. As mídias, recorrem a memórias de representações que foram
atribuídas as primeiras sociedades na Amazônia. O resultado disto é a classificação de
todas as sociedades indígenas como se fossem uma só (o índio selvagem e monstruoso),
sem singularidades e que sempre aparecem em conflitos de terra com o branco.
No entanto, se nossa verdade estiver associada às crises geradas pela
reforma agrária ou discussão sobre as demarcações de terra, passamos
a encarar os povos indígenas com o olhar de “Caminha”, onde
veremos somente selvagens sem educação que hoje são um povo
ambicioso que só quer possuir terras. (OLIVEIRA, 2015)
A criação do sujeito indígena parte de enunciados estabelecidos e de práticas
discursivas com condições de possibilidades histórias e que, também, estabelecem casos
de controle. A vontade de verdade, assenta-se em quem tem o direito de falar, e a
legitimidade desta fala (mídia, escola, formas jurídicas) produz enunciados quase
inquestionáveis em nossa sociedade, que colocam em evidência o poder sobre a outras
versões da história dos povos indígenas, e, em vários momentos, exploram aspectos de
cunho sensacionalista para mostrar um sujeito selvagem, como foi feito desde a
colonização.
Os saberes constituem a identidade de um povo, a diversidade cultural é um
conjunto de experiências e inteligências em diferentes áreas da vida, com o seu
desenvolvimento histórico e sua singularidade. Por isso, é preciso verificar as
materialidades midiáticas a fim de saber quais saberes colocam em circulação em
relação a diversos povos. Pensar em linguagem na Amazônia é também saber como
diferentes contextos comunicativos representam as sociedades locais e quais seus
objetivos.
Procuramos pluralizar a verdade nos discursos analisados, e não eleger uma,
compreender as múltiplas posições sociais assumidas pelo povo Tembé e desconstruir
os discursos dos povos da Amazônia como animais amestrados. Por isso, procuramos
legitimar esses conhecimentos em publicações acadêmicas e produções midiáticas, no
intuito de divulgar e estabelecer uma outra forma de pensar sobre o mundo não apenas
pela nossa “ótica cultural”. Nosso objetivo é facilitar que uma outra versão sobre as
histórias das sociedades indígenas circule por novos espaços, seja na mídia ou nas
universidades.
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