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A PROFISSIONALIDADE E OS SABERES DOCENTES COMO
PERSPECTIVAS DE CONSTITUIÇÃO DA DOCÊNCIA
O presente painel visa mobilizar reflexão e debate acerca da construção da identidade
profissional do professor. O conceito de profissionalidade docente é entendido como
parte do processo de desenvolvimento profissional em situações de formação e de
trabalho, nas quais são forjados e reproduzidos saberes específicos da atividade
pedagógica. Deste modo, articulamos a apresentação de três pesquisas que discutem a
interface entre formação, contextos de trabalho e o desenvolvimento de competências e
habilidades didático-pedagógicas para o exercício da função docente. Embora haja uma
preocupação com a formação dos professores e o trabalho desenvolvido por estes a
docência tem sido caracterizada pela falta de preocupação com a forma de
integração/inserção dos docentes nos sistemas de ensino. Iniciando uma discussão, o
primeiro estudo argumentará que as identidades docentes são construídas no espaço
formativo a partir do compromisso de pensar estratégias didáticas para os dilemas de
ensino-aprendizagem, o que ajuda a problematizar a construção do trabalho docente a
partir de saberes contextualizados, evidenciando a formação inicial e o saber da
experiência como importantes nessa construção; no segundo estudo argumentaremos as
implicações do trabalho de escolas privadas de rede que utilizam sistemas de ensino na
autonomia e na constituição da profissionalidade docente/desenvolvimento profissional
pensando no objetivo do professor que é fazer os alunos aprenderem; e por fim
abordaremos as representações de professores da educação básica em início de carreira
sobre a formação inicial e o exercício da profissão problematizando os conceitos de
profissionalização e profissionalidade docente para compreendermos se os chamados
saberes experienciais ou saberes da prática são sobredeterminados em detrimento de
uma articulação didática entre o conhecimento científico e o conhecimento escolar.
Palavras-Chave: Formação De Professores, Identidade Profissional, Didática
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
584ISSN 2177-336X
SABERES DOCENTES NA FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES: OS
QUATRO PILARES DA EDUCAÇÃO E ESTRATÉGIAS DIDÁTICAS
Marcella da Silva Estevez Pacheco Guedes (AVM Faculdade Integrada)
O presente trabalho teve por objetivo investigar as percepções de futuros professores
sobre estratégias didáticas relacionadas a dilemas de ensino-aprendizagem, que estão
em consonância com os quatro pilares da educação do século XXI, defendidos por
Delors (1998). Os pilares em destaque são: a) aprender a conhecer; b) aprender a fazer;
c) aprender a viver juntos; d) aprender a ser. O curso analisado é o de Pedagogia, que é
oferecido na modalidade a distância em uma faculdade privada, localizada na cidade do
Rio de Janeiro. A análise sobre as percepções dos futuros professores ocorreu através
das postagens reflexivas dos alunos em um fórum temático de discussão, realizado no
segundo semestre de 2013 e que teve duração de um mês. Sendo assim, foi possível
verificarmos as estratégias didáticas sugeridas pelos sujeitos em formação, com base no
pilar educacional escolhido. O nosso referencial teórico foi embasado pelos estudos de
Tardif (2002) e Tardif e Raymond (2000) sobre saberes docentes. Além disso, fizemos
uma reflexão sobre a importância da formação de professores no sentido de enfatizar
competências e habilidades necessárias aos processos de ensino e aprendizagem da era
contemporânea (IMBERNÓN, 2004; PÉREZ GÓMEZ, 2015; CANDAU, 2014;
CANDAU, 2009). Nossos resultados revelam dimensões identitárias da profissão
docente, que se delineiam na formação inicial e nos saberes engendrados nessa
formação. Argumentamos que pensar estratégias didáticas para os dilemas de ensino-
aprendizagem é produzir identidades docentes que são construídas no espaço formativo.
Desta forma, a formação inicial de professores configura-se como importante locus de
formação profissional, na qual são enfatizadas as competências e habilidades
necessárias para o trabalho docente no século XXI.
Palavras-chave: saberes docentes; formação inicial de professores; identidades
docentes.
Introdução
A formação inicial de professores deve ser vista como importante locus de
formação profissional, que possibilita ao futuro professor adquirir os conhecimentos
profissionais necessários para lidar com os desafios e dilemas do trabalho docente no
século XXI. Desta forma, investigamos as percepções de licenciandos do curso de
Pedagogia sobre estratégias didáticas relacionadas aos dilemas de ensino-aprendizagem,
representados pelos quatro pilares da educação do século XXI (DELORS, 1998): a)
aprender a conhecer; b) aprender a fazer; c) aprender a viver junto; d) aprender a ser.
Nossa investigação foi realizada em uma faculdade privada, localizada na cidade do Rio
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de Janeiro. Esta faculdade lida com a formação de professores para o ensino público, visto que o
perfil de estudantes da instituição é de profissionais que já atuam na educação pública e estão
buscando mais qualificação profissional. Além disso, a formação da faculdade privada também
possibilita aos egressos a atuação na educação pública. Desta foma, enfatizamos que o nosso
trabalho está relacionado ao eixo temático “Didática e Prática de Ensino: Desdobramentos em
Cenas na Educação Pública”, a partir do subeixo “Práticas Pedagógicas: Constituição da Docência
em Outros Olhares”.
Para que possamos redimensionar o trabalho docente no século XXI, é importante refletir
sobre o seguinte pensamento:
Certamente ser professor hoje supõe assumir um processo de desnaturalização da
profissão docente, do “ofício de professor” e ressignificar saberes, práticas,
atitudes e compromissos cotidianos orientados à promoção de uma educação de
qualidade social para todos. A crise da escola, na nossa perspectiva, é radical.
Não se trata simplesmente de introduzir modificações cosméticas na sua dinâmica
cotidiana. É a própria concepção da educação escolar que está em questão para
que possa responder aos desafios da contemporaneidade. (CANDAU, 2014, p. 41)
O magistério do século XXI está exigindo uma ressignificação constante da prática
pedagógica, o que influencia a forma como o trabalho docente é percebido pelos professores e
também a forma como esse trabalho é realizado. É preciso desnaturalizar as práticas pedagógicas. É
preciso romper com o caráter monocultural da escola. Sendo assim, é de fundamental importância
conceber a educação como prática intercultural, na qual diferentes manifestações culturais e
identitárias estão presentes no espaço escolar, fazendo com que os processos de ensino-
aprendizagem possam ser modificados pelo olhar atento do professor visto como agente
sociocultural (CANDAU, 2014). Por que esse professor deve ser visto como agente sociocultural?
De acordo com Candau (2014), essa identidade docente de agente sociocultural é
exemplificada pela necessidade do professor trabalhar com múltiplas realidades culturais e sociais a
partir da concepção de escola como espaço de crítica e produção cultural. Sendo assim, a escola é
concebida como um centro cultural em que diferentes linguagens e produtos culturais estão
presentes, de uma maneira direta ou indireta. Diante desse rico cenário, aos educadores cabe a
missão de não somente promover a análise das diferentes linguagens e produtos culturais, mas
também de favorecer experiências de produção cultural e de ampliação do horizonte cultural dos
alunos, aproveitando os recursos disponíveis na comunidade escolar e na sociedade (IDEM).
A partir dessa concepção sociocultural da profissão docente, enfatizamos a importância de
refletirmos sobre caminhos didático-pedagógicos de formação inicial que podem nos ajudar a
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sistematizar alguns importantes pensamentos sobre os saberes docentes envolvidos nesse processo
inicial de socialização doa saberes da docência.
A Contextualização do Objeto de Estudo
O nosso objeto de estudo foram as respostas que os estudantes do curso de Pedagogia
escreveram no fórum temático de discussão. É importante ressaltar que o curso é realizado na
modalidade a distância, sendo os fóruns temáticos espaços constantes de troca e interação entre
alunos e professores em todas as disciplinas do curso. Os fóruns acontecem no ambiente virtual de
aprendizagem e as discussões entre os participantes propiciam aprendizado significativo.
A proposta de discussão analisada foi proveniente do planejamento pedagógico da disciplina
Didática II, que teve por objetivo oferecer aos alunos uma visão contextualizada das relações de
ensino-aprendizagem. Sendo assim, consideramos que a disciplina é muito importante para a
construção de saberes pedagógicos necessários à docência.
As discussões realizadas ocorreram no segundo semestre de 2013 e tiveram a duração de um
mês. As reflexões ocorreram com a mediação pedagógica da professora da disciplina, autora deste
trabalho.
A proposta de discussão do fórum temático 2 teve o seguinte objetivo:
Assista ao vídeo “Os quatro pilares da Educação” (disponível na Biblioteca) e
reflita junto com os seus colegas sobre a importância dos quatro itens. Escolha um
pilar e dê exemplos de estratégias didáticas que os professores poderiam fazer
para que fosse enfatizado, na sala de aula, o pilar em questão.
Consideramos que as interações realizadas no fórum em questão foram interações que
possibilitaram significativa construção de conhecimento, pois os alunos, junto com outros alunos e
com a professora, puderam refletir juntos sobre algumas estratégias pedagógicas que poderiam ser
úteis aos pilares educacionais em destaque. Para que possamos compreender ainda mais esses
pilares, destacamos as suas principais características (DELORS, 1998, p. 31):
Aprender a conhecer: combinando uma cultura geral, suficientemente ampla, com a possibilidade
de estudar, em profundidade, um número reduzido de assuntos, ou seja: aprender a aprender, para
beneficiar-se das oportunidades oferecidas pela educação ao longo da vida.
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Aprender a fazer, a fim de adquirir não só uma qualificação profissional, mas, de uma maneira mais
abrangente, a competência que torna a pessoa apta a enfrentar numerosas situações e a trabalhar em
equipe. Além disso, aprender a fazer no âmbito das diversas experiências sociais ou de trabalho,
oferecidas aos jovens e adolescentes, seja espontaneamente na sequência do contexto local ou
nacional, seja formalmente, graças ao desenvolvimento do ensino alternado com o trabalho.
Aprender a conviver, desenvolvendo a compreensão do outro e a percepção das interdependências –
realizar projetos comuns e preparar-se para gerenciar conflitos – no respeito pelos valores do
pluralismo, da compreensão mútua e da paz.
Aprender a ser, para desenvolver, o melhor possível, a personalidade e estar em condições de agir
com uma capacidade cada vez maior de autonomia, discernimento e responsabilidade pessoal. Com
essa finalidade, a educação deve levar em consideração todas as potencialidades de cada indivíduo:
memória, raciocínio, sentido estético, capacidades físicas, aptidão para comunicar-se.
Segundo Delors (1998), os quatro pilares estão relacionados à educação ao longo da vida e
eles podem ser úteis para os sistemas educacionais formais e para reformas educacionais, seja na
elaboração dos programas ou na definição de novas políticas pedagógicas. Tais pilares são
necessários para os saberes docentes. A forma como os professores investigados relacionaram esses
pilares às estratégias didáticas pode nos oferecer importantes subsídios para a compreensão dos
saberes docentes na formação inicial de professores.
Os Quatro Pilares da Educação e Estratégias Didáticas: Algumas Reflexões
De acordo com Tardif (2002), os saberes docentes são construídos com base em um
conjunto de saberes, que são: a) Saberes da formação profissional – transmitidos pelas instituições
de formação de professores, pertencentes às Ciências da Educação e à ideologia pedagógica; b)
Saberes disciplinares – pertencentes às variadas áreas do conhecimento; c) Saberes curriculares –
correspondentes aos discursos, objetivos, conteúdos e métodos constantes dos programas escolares,
e que o professor precisa saber aplicar; d) Saberes experienciais – desenvolvidos pelos professores
na sua própria prática, no exercício das suas funções.
Para Tardif e Raymond (2000), os professores utilizam constantemente seus conhecimentos
pessoais e um saber-fazer personalizado, trabalham com programas e livros didáticos, baseiam-se
em saberes escolares relativos às matérias ensinadas, fiam-se em sua própria experiência e retêm
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certos elementos de sua formação profissional. Todos esses saberes ajudam o professor a resolver
problemas que ele enfrenta em seu cotidiano escolar. É importante que possamos perceber os
saberes docentes, suas diferentes fontes sociais de aquisição e os modos de integração no trabalho
docente, conforme expressa o quadro a seguir, elaborado por Tardif e Raymond (2000):
Quadro sobre os Saberes Docentes, com base em Tardif e Raymond (2000)
Saberes dos Professores Fontes Sociais de Aquisição Modos de Integração no
Trabalho Doente
Saberes Pessoais do Professor Família, ambiente de vida, a
educação no sentido lato
Pela história de vida e pela
socialização primária
Saberes provenientes da
Formação Escolar anterior
A escola primária e
secundária, os estudos pós-
secundários não
especializados etc
Pela formação e pela
socialização pré-profissionais
Saberes provenientes da
Formação Profissional para o
Magistério
Os estabelecimentos de
Formação de Professores, os
estágios, os cursos de
reciclagem etc
Pela formação e pela
socialização profissionais nas
instituições de formação de
professores
Saberes provenientes dos
Programas e Livros Didáticos
usados no trabalho
Na utilização das
“ferramentas” dos professores:
programas, livros didáticos,
cadernos de exercícios , fichas
etc
Pela utilização das
“ferramentas” de trabalho, sua
adaptação às tarefas
Saberes provenientes de sua
própria experiência na
profissão, na sala de aula e na
escola
A prática do ofício na escola e
na sala de aula, a experiência
dos pares etc
Pela prática do trabalho e pela
socialização profissional
Fonte: (TARDIF e RAYMOND, 2000).
São muitos os saberes que embasam o trabalho docente e a forma como o professor utiliza
esses saberes é crucial para a suas prática pedagógica e também para o repensar sobre essas próprias
práticas. Acreditamos que a formação inicial propicia um conjunto de saberes importantes e
necessários para a docência, mas também não podemos deixar de considerar outros saberes que
podem estar presentes nesse processo.
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Vejamos algumas reflexões dos licenciandos. Iremos começar a análise com as respostas
referentes ao aprender a conviver. Logo em seguida iremos analisar o pilar aprender e conhecer. Na
sequência, analisaremos o pilar aprender a fazer e por último fecharemos as análises com o pilar
aprender a ser.
Análises sobre o Pilar Aprender a Viver Junto
Como professora, acredito que o pilar APRENDER A VIVER JUNTO, prepara o aluno na busca da
descoberta do viver bem em sala de aula, as brincadeiras, os jogos, o trabalho em equipe, fomenta
a entender que no cotidiano da vida conviver com o outro harmonicamente tem a possibilidade de
transformar para melhor vida do ser humano. (Licencianda A)
Todos os pilares são aprendizagens essenciais para a formação do indivíduo, mas para mim uma
delas se destaca com ponto chave dentre as demais, o aprender a viver junto porque no mundo
atual, é importantíssimo e valorizado quem aprende conviver com os outros. Como estratégia de
ensino para desenvolver o conviver com os outro, devemos usar bastante o lúdico, principalmente
jogos, trabalhos em grupos e outros. (Licencianda E)
Não julgo que haja um pilar mais importante do que o outro, mas colocando-me na posição de
professora escolho o pilar “aprender a viver junto”. Como estratégia didática buscaria
desenvolver uma que considero muito válida, que é a dinâmica de grupo com questões problemas
apresentando várias soluções possíveis, e onde cada elemento do grupo é levado a debater,
internamente, seus posicionamentos com os posicionamentos contrários e talvez chegar a um
consenso. Acredito que desta forma é explorado e desenvolvido no ser humano o respeito e
aceitação ao ponto-de-vista diferente do seu. (Licencianda K)
O pilar aprender a viver junto chamou a atenção dos licenciandos à medida que enfatizou a
questão da convivência entre os diferentes, trazendo para o debate a importância do grupo. Como
estratégias didáticas foram citados jogos, trabalho em equipe, dinâmicas de grupo. Foi ressaltada
também a lógica lúdica, que viabiliza processos pedagógicos mais atrativos. A convivência perpassa
pela aceitação das diferenças e por sua utilização como ferramenta didática a fim de fazer com que
alunos possam conviver com diferentes pontos de vista. Existe a valorização de quem consegue
conviver no mundo atual e uma defesa de relações de convivência mais harmônicas. Para Candau
(2014), é necessário promover processos sistemáticos de interação com os outros, os diferentes,
sendo capazes de analisar nossos sentimentos e impressões. É preciso, nessa convivência
intercultural, enfrentar os desafios e conflitos e não romantizar tais convivências.
Análises sobre o Pilar Aprender a Conhecer
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Aprender a conhecer- Essa aprendizagem se refere à aquisição dos "instrumentos do
conhecimento", desenvolvendo nos alunos o raciocínio lógico, a capacidade de compreensão, o
pensamento dedutivo e intuitivo e a memória. O importante é não apenas despertar nos estudantes
esses instrumentos, como motivá-los a desenvolver sua vontade de aprender e querer saber mais e
melhor.(Licencianda D)
O aprender a conhecer significa libertação da ignorância para o conhecimento da verdade, é
preciso que se saiba aprender a aprender que quando erramos é que é mensurado o quanto nos
falta aprender, quando interagimos aprendemos a conviver , a ouvir, a respeitar as diferenças e a
valorizar todos os saberes, são os pilares para uma boa educação e formação cidadã. (Licencianda
S)
O pilar aprender a conhecer tem como pressuposto, para os licenciandos pesquisados, o
conceito de aprender a aprender, em nítida alusão ao fato de o aluno estar sempre em constante
processo de aprendizagem. As duas licenciandas trouxeram à tona a questão do conhecimento, visto
como importante. Mas para além desse conhecimento, se faz necessária a motivação para a
aprendizagem e para o desejo de conhecer. Conhecer seria uma libertação da ignorância. Ficou
clara também a questão da valorização de todos os saberes. No entanto, estratégias didáticas mais
específicas para lidar com esse pilar foram mais escassas. Essa dificuldade não surge à toa, como
bem prova Candau (2009), já que ára a autora o conhecimento escolar não é um "dado"
inquestionável e "neutro", a partir do qual os professores configuram o ensino. É uma construção
permeada por relações socias e culturais, processos complexos de transposição/recontextualização
didática e dinâmicas que têm de ser ressignificadas continuamente. Por isso que perguntas como "o
que ensinar?" e "como favorecer aprendizagens significativas", que antes eram óbvias e tranquilas,
hoje são questões desestabilizadoras e instigantes, que admitem respostas múltiplas, segundo as
concepções espistemológicas e educativas das práticas educativas.
Sendo assim, argumentamos que a dificuldade de os licenciados oferecerem respostas
específicas para o pilar aprender a conhecer perpassa pela dificuldade geral em torno de promover o
que de fato deve-se conhecer, evidenciando assim processos didáticos mais específicos e
contextualizados, que exigem o resgate de outros saberes docentes que possam dar conta desse
desafio. Talvez esse desafio fique mais fácil de ser vencido com professores que já tenham
experiência no trabalho docente. Os professores em início de carreira teriam mais dificuldade para
lidar com tais desafios pedagógicos mais contextualizados.
Análises sobre o Pilar Aprender a Fazer
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Aprender a fazer - indissociável do aprender a conhecer, que lhe confere as bases teóricas,o
aprender a fazer refere-se essencialmente à formação técnico-profissional do educando.Consiste
essencialmente em aplicar,na prática,os seus conhecimentos teóricos.Atualmente existe outro ponto
essencial a focar neste aprendizagem,referente à comunicação. É essencial que cada indivíduo
saiba comunicar. (Licencianda F)
Dou aula para uma turminha de Maternal 1, todos com 2 a 3 anos, vi como os 4 pilares estão
presentes no aprendizado de cada um, eles estão conhecendo a si mesmo, aprendendo a conviver
em grupo, a dividir a obedecer regras, estão mostrando as suas diferenças, a sua personalidade,
estão sendo lapidados e estão a cada momento aprendendo a fazer algo novo. Aprendem de forma
lúdica, com brincadeiras, músicas, histórias. Aprender a fazer, foi o que mais me chamou a
atenção, pois acredito que é este que registra a aprendizagem, primeiro vem o conhecimento, um
novo convívio , um novo ser que demonstra a sua mudança aprendendo a fazer, executando o seu
aprendizado. (Licencianda V)
O pilar aprender a fazer consiste no desenvolvimento de competências para enfrentar
numerosas situações e para trabalhar em equipe. Uma das licenciandas enfatizou a questão da
comunicação, sobre o saber comunicar-se. Tal competência é vista como importante para que os
alunos possam se dar bem em diferentes contextos e situações. No entanto, a licencianda não trouxe
uma estratégia específica para lidar com tal competência. Em consonância com o saber experiencial
(TARDIF, 2002), que significa o saber da própria experiência na profissão, na sala de aula e na
escola, essa experiência pode ser adquirida pela troca entre pares, através da socialização
profissional (TARDIF e RAYMOND, 2000).
Cabe destacar algo sobre o grupo pesquisado: existem licenciandos que já lecionam e são
professores na educação infantil ou nas séries iniciais devido à formação do magistério em nível
médio, que os habilitaram na docência nas redes públicas e também nas redes particulares. No
entanto, a procura do ensino superior como formação de professores é uma constante, o que implica
reconhecer que estamos diante de um conjunto de saberes docentes, que podem ser influenciados
pelo ganho progressivo de mais saberes e experiências. Reconhecemos que poderão ocorrer
conflitos entre saberes de diferentes espaços de formação – nível médio e nível superior – mas os
ganhos desse conflito devem superar esse inicial embate. Percebemos hoje a procura pela formação
inicial docente em nível superior como a formação que está em consonância com as prerrogativas
da LDB/1996 e das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Pedagogia (BRASIL, 2006),
que exige essa formação superior.
Percebemos que a licencianda V, que já possui o saber da experiência e que vem adquirindo
o saber da formação em nível superior, apresenta um grau de especificidade e contextualização
sobre seu ofício docente, que a deixa mais aberta a inovações e críticas sobre o seu próprio trabalho.
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Análises sobre o Pilar Aprender a Ser
Dentre os quatro gostaria de apontar o pilar que para mim, engloba os outros três, que é o "
APRENDER A SER" , definindo como função da Educação contribuir para o desenvolvimento total
do indivíduo na sociedade, ou seja, ele para SER. terá que conhecer, fazer e conviver. Diante deste
mundo onde pessoas que são detentoras do poder, apresentam-se totalmente sem ética e moral para
ocupar lugares tão importantes, a sociedade se mobiliza para que as mudanças aconteçam, dentro
das manifestações muitas crianças, adolescentes e órgãos de várias classes estão juntos,
defendendo o mesmo ponto de vista. Tendo em vista o exposto, acho que a educação, mesmo que
sem apoio das autoridades, está cumprindo seu papel na formação do caráter e cidadania dos
alunos. Acho que os debates de assuntos polêmicos dentro da escola é válido, dá voz ao aluno, faz
as pessoas refletirem e também leva os temas para abordagem fora da escola, na comunidade, nas
ruas, etc. (Licencianda M)
Dentre todos, o pilar escolhido por mim é o de 'Aprender a Ser', por ter como proposta formar
indivíduos autônomos. Algumas estratégias didáticas podem ser implementadas na sala de aula,
como por exemplo, a pesquisa e o debate de temas polêmicos como gravidez na adolescência, o uso
de drogas, a maioridade penal e a atual situação política do país, de forma individual ou em grupo.
Esta iniciativa também pode ser usada para elaboração de murais ou jornais na escola.
(Licencianda I)
Seleciono o pilar APRENDER A SER, pois é fundamental que a educação contribua para o
desenvolvimento global da pessoa. Cada um deverá ter pensamentos autônomos e críticos,
personalidade própria. Portanto a educação deve preparar as crianças e os jovens para possíveis
descobertas e de experimentação. Uma educação fundamentada no pilar APRENDER A SER
sugere alguns procedimentos didáticos que lhe seja condizente,como: Relacionar o tema com a
experiência do estudante e de outros personagens do contexto social;Proporcionar uma relação
dialógica com o estudante; Oferecer um processo de autoaprendizagem e co-responsabilidade no
processo de aprendizagem (Licencianda B).
O pilar aprender a ser baseia-se na maior capacidade de autonomia, discernimento e
responsabilidade pessoal. Desta forma, memória, raciocínio, sentido estético, capacidades físicas,
aptidão para comunicar-se são habilidades consideradas. De uma certa forma, percebemos nesse
pilar a construção de indivíduos autônomos. A questão da formação para a cidadania é percebida,
bem como estratégias didáticas contextualizadas, que ampliam a visão de mundo dos alunos,
possibilitando um ganho cultural por parte dos alunos. Críticas à sociedade de forma geral e menção
a temas que extrapolam o âmbito escolar são exemplos de como esse pilar é contextualizado com a
leitura de mundo dos cidadãos.
Um dos grandes desafios da escola é a formação para a cidadania. Como fazer isso na lógica
individualista e de consumo, que assola a sociedade contemporânea? Desta forma, Candau (2009)
faz as seguintes reflexões: De que cidadania falamos? Que cidadania queremos ajudar a construir?
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Como ressignificar este conceito que está relacionado com a dimensão pública, sociopolítica e
coletiva da vida? Sendo assim, é preciso se preocupar com uma cidadania diferenciada, que articule
igualdade e diferença. Para a referida autora, muitas são hoje as experiências de voluntariado,
projetos promovidos por organizações não-governamentais e outros da sociedade civil que apontam
nesta direção. Isso significa que a escola não pode se isentar dessa construção de rede de
solidariedade e compromisso social. Desta forma, argmentamos que o pilar aprender a ser oferece
subsídios para trabalhar com projetos educativos para a cidadania, promovendo nos educandos a
conscientização dos problemas sociais que aflingem os países, os estados e as cidades.
Considerações Finais
Tendo como base os resultados encontrados na socialização profissional possibilitada pela
formação inicial de professores, cabe refletirmos sobre essa formação a partir da argumentação de
Imbérnon (2004, p. 55):
É preciso analisar a fundo a formação inicial recebida pelo futuro professor
ou professora, uma vez que a construção de esquemas, imagens e metáforas
sobre educação começam no início dos estudos que os habilitarão à
profissão. A formação inicial é muito importante, já que o conjunto de
atitudes, valores e funções que os alunos de formação inicial conferem à
profissão será submetido a uma série de mudanças e transformações em
consonância com o processo socializador que ocorre nessa formação
inicial. É ali que se geram determinados hábitos que incidirão no exercício
da profissão.
Segundo Imbernón (2004), a formação inicial do professor deve propor um processo de
formação que confira ao docente conhecimentos, habilidade e atitudes para criar profissionais
reflexivos e investigadores. Sendo assim, o eixo fundamental do currículo de formação do professor
é o desenvolvimento de instrumentos intelectuais a fim de facilitar as capacidades reflexivas sobre a
própria prática docente, cuja meta principal é aprender a interpretar, compreender e refletir sobre a
educação e a realidade social de forma comunitária.
É por isso que defendemos a argumentação de Pérez Gómez (2015), que afirma que as
finalidades da escola devem se concentrar no propósito de ajudar cada indivíduo a construir o seu
próprio projeto de vida (pessoal, social, profissional), para percorrer o seu próprio caminho da
informação ao conhecimento e do conhecimento à sabedoria. Sendo assim, a escola e o currículo
devem oferecer oportunidades de experiências, para que os indivíduos se formem como autores de
suas próprias vidas, como aprendizes que se autodirigem ao longo da vida, pesquisadores rigorosos,
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comunicadores eficazes, cidadãos solidários e comprometidos com a construção das regras do jogo
comunitário, criadores singulares em suas respectivas áreas de especialização e interesse,
colaboradores efetivos nos grupos e na comunidade. Tais compromissos educacionais exigem uma
visão de educação respaldada no caráter holístico da natureza humana, em que o conhecimento, a
beleza e a bondade são componentes irrenunciáveis e interdependentes, ainda que tenham sido
considerados, de múltiplas formas, diferentes pelas diversas culturas e comunidades humanas.
Todas essas exigências éticas e comportamentais fazem com que sejam valorizadas competências
importantes, como as representadas na tabela abaixo:
Três Competências Básicas para a Era Contemporânea (PÉREZ GOMEZ, 2015, p. 77)
a) Capacidade de utilizar e comunicar de maneira disciplinada, crítica e criativa o conhecimento e as
ferramentas simbólicas que a humanidade foi construindo até os nossos dias;
b) Capacidade para viver e conviver democraticamente em grupos humanos cada vez mais heterogêneos,
na sociedade global;
c) Capacidade de viver e atuar autonomamente e construir o próprio projeto de vida
Fonte: (PÉREZ GÓMEZ, 2015).
Essas competências de Pérez Gómez (2015) podem ser integradas aos quatro pilares da
educação, de Delors (1998), propiciando a construção de projetos educativos que levem em
consideração a convivência com os diferentes (aprender a viver juntos), em uma ampla defesa sobre
a centralidade do conceito de aprender a aprender (aprender a conhecer), baseado na constante
indagação sobre o que ensinar e recorrendo às contextualizações pedagógicas para tal. Além disso,
tal integração das competências com os pilares da educação pode proporcionar o foco nas
competências, em especial na competência da boa comunicação (aprender a fazer), facilitando
projetos educativos que enfatizam a autonomia para a construção da cidadania, que amplia o olhar
cultural do aluno para além dos muros da escola, produzindo uma conscientização social dos
educandos (aprender a ser).
Os resultados do nosso estudo nos ajudaram na reflexão sobre saberes docentes e estratégias
didáticas e constatamos que o saber experiencial e o saber da formação, juntos, promovem um olhar
mais contextualizado para as práticas pedagógicas, possibilitando estratégias didáticas mais
específicas e focadas em determinadas situações. Sendo assim, consideramos que a formação
inicial do professor, juntamente com sua prática pedagógica vivenciada no cotidiano escolar,
oferecem subsídios didático-pedagógicos capazes de oferecer um embasamento contextualizado
sobre os processos de ensino-aprendizagem. Somente a partir dessa contextualização é que
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podemos vislumbrar identidades docentes sendo construídas e ressignificadas pela formação inicial
e também pelo saber da experiência, ajudando a construir o trabalho docente do século XXI.
Referências Bibliográficas
BRASIL/CNE. Resolução CNE/CP n. 1, de 15 de maio de 2006.
BRASIL, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Lei nº 9.394/96, de 20 de
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CANDAU, V. M. Ser professor/a hoje: novos confrontos entre saberes, culturas e práticas.Educação
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ONDE ESTÁ A DIDÁTICA COMO NÚCLEO ARTICULADOR DA FORMAÇÃO E DA
ATUAÇÃO PROFISSIONAL DOCENTE?
Rômulo Loureiro Casciano (PUC-Rio)
Agências Financiadoras: CNPq e FAPERJ
Este texto apresenta uma parte da pesquisa de mestrado que investigou as representações de
professores da educação básica em início de carreira sobre a formação inicial e o exercício da
profissão. Com a problematização dos conceitos de profissionalização e profissionalidade docente,
buscou-se compreender dos egressos de dois cursos de Pedagogia da cidade do Rio de Janeiro como
eles avaliam a licenciatura e os primeiros anos de trabalho. A sociologia das profissões possibilita
fundamentar as análises sobre a especificidade da atividade profissional do professor como o
especialista no ensino, um processo sistematizado que objetiva a aprendizagem. A partir do ponto
de vista desses professores iniciantes foi possível conhecer os elementos e as disposições
mobilizados para a construção de sua identidade profissional. Foram analisados 100 questionários,
respondidos por egressos de duas universidades, formados no período de 2009 a 2015. Além da
persistência das críticas e das dificuldades, questões postas na literatura sobre o início da docência,
foi possível articular a fragilidade do conceito de saberes docentes com a insuficiência da formação
didático-pedagógica. Os sentimentos de insegurança e despreparo são acompanhados pela vontade
de fazer o melhor. No entanto, os professores apontam a falta de domínio sobre os conteúdos e
métodos de ensino-aprendizagem, desde estágios e disciplinas pouco práticas na formação prévia,
até o isolamento nos contextos de trabalho. A ausência de experiências coletivo-colaborativas ou de
acolhimento e orientação para o desenvolvimento profissional são frequentes e tendem a
caracterizar um começo difícil e o abandono prematuro da carreira. Os chamados saberes
experienciais ou saberes da prática são sobredeterminados em detrimento de uma articulação
didática entre o conhecimento científico e o currículo escolar.
Palavras-chave: Profissão Docente, Ensino, Profissionalidade
Introdução
O momento de entrada na docência é entendido como espaço-tempo privilegiado na
construção da identidade profissional, somado à formação inicial e ao exercício do magistério em
seus múltiplos contextos de trabalho. A mobilização e o aprendizado de saberes próprios da
profissionalidade docente, ou aprendizagem da docência, são alvo dessa investigação a partir do
levantamento de elementos de socialização e imissão de características para tornar-se professor,
após a conclusão da graduação e nos primeiros anos de exercício da profissão.
Ao colocar em foco a profissionalidade docente (LÜDKE e BOING, 2010) na perspectiva do
professor iniciante, egresso do curso de Pedagogia, buscou-se compreender as características
requeridas e desenvolvidas pelos professores em início de carreira profissional. Já o conceito de
profissionalização docente (SHIROMA e EVANGELISTA, 2010), presente na literatura científica e
nos argumentos de legisladores e gestores públicos, é debatido de acordo com as impressões e
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ressignificações conferidas por aqueles que são os protagonistas desses discursos: os professores.
O entendimento do desenvolvimento profissional dos professores como um contínuo – que se
inicia com as experiências como aluno da educação básica, seguidas por aquelas da graduação e
pelas experiências e trocas ao longo do exercício profissional – parte da perspectiva do acúmulo,
reflexão e transformação de atitudes, estratégias e características que definem a profissão. A
construção de identidades profissionais e grupos profissionais acontece no âmbito da socialização
de vivências (DUBAR, 1997), confrontadas com os cotidianos de trabalho.
A perspectiva adotada na elaboração desse texto é argumentar com base em análises teóricas e
empíricas sobre a profissão docente acerca das fragilidades da formação do professor, das
dificuldades no momento de inserção profissional e da atribuição genérica de saberes docentes.
A pesquisa com egressos (MEIRA; KURCGANT, 2009) enfrenta grande dificuldade em
localizar seus informantes, mas oferece diversas e importantes informações sobre a escolha pelo
curso, avaliação da formação inicial (relação entre a ocupação e a formação profissional recebida) e
inserção profissional (atratividade da carreira, satisfação profissional, permanência e abandono).
Entretanto, a identificação das tensões, demandas e impressões oriundas de um curso de formação
de professores na visão dos seus egressos e frente às exigências do mercado de trabalho possibilita
adequação de propostas curriculares, monitoramento e implementação de políticas de formação de
professores e ainda a compreensão da identidade profissional forjada pelos professores em início de
carreira.
O desenvolvimento profissional da docência
As características que servem para definir uma profissão (autonomia, conhecimento técnico,
controle sobre as remunerações e ética) deveriam considerar as lutas políticas, os confrontos e os
compromissos envolvidos na constituição dos grupos profissionais Popkewitz (1995). O autor
apresenta a problemática sobre a profissionalização e a identidade profissional do professor diante
das reformas educacionais promovidas pelo Estado e do lugar e finalidade dessa ocupação, na
estrutura social:
O rótulo profissão é utilizado para identificar um grupo altamente formado, competente,
especializado e dedicado que corresponde efectiva e eficientemente à confiança pública.
(...) As profissões fizeram dos seus serviços um meio de troca para a obtenção de
prestígio, poder e estatuto económico. O serviço não era tão altruísta com parecia ser,
nem os interesses profissionais tão neutros quanto se proclamava ou quanto se pretendia
que os clientes acreditassem. (p. 40)
A origem do termo docência, tal como apresentado por Oliveira (2010, n.p.): “significa
ensinar, instruir, mostrar, indicar, dar a entender, podemos afirmar que o trabalho docente é o que se
realiza com a intenção de educar”. Para além de “uma aceitação tácita do magistério como
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profissão” (CUNHA, 1999, p.132), definições não devem ser tomadas de forma acrítica ou isentas
das ressignificações contextualizadas pela prática e pelas lutas simbólicas. A discussão feita por
Marin (1996), ao caracterizar o trabalho docente pelo conjunto de informações, questões, temas e
problemas referentes à atividade didática, apresenta a fragmentação dos estudos no campo da
Educação, que levaram, segundo a autora, a um tecnicismo crescente e caracterizado pela dispersão
dos esforços de pesquisa na área.
Corroborar com sua abordagem é tomar o trabalho do professor em função do conjunto de
rotinas e procedimentos dos contextos de exercício e pela perspectiva do ensino: “ensinar,
frequentemente, é atividade profissional e, como tal, supõe formação especializada para quem o
executa”, uma atividade exercida em unidades escolares, sob determinada organização do trabalho
“sujeito a limitações, exigências e possibilidades permitidas pelo sistema social mais amplo”
(MARIN, 1996, p. 28, grifos meus).
Mas, como bem alerta Oliverio (2014, p. 244) ser professor engloba muito mais do que a
função do ensino e inclui desafios que surgem simultaneamente quando na entrada dos iniciantes
nesse campo profissional:
envolve saber atuar em um contexto específico; lidar com normas e regras que
conformam a sua atuação e com políticas que afetam o seu trabalho e o seu modo de se
constituir como professor; conviver com um grupo de trabalho; compartilhar objetivos e
um projeto de escola; lidar com a diversidade dos alunos; saber se posicionar em seu
subcampo etc.
Ainda na década de 1990, a lei 9.394 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional –
LDB), determinava a formação em nível superior dos “Profissionais da Educação” enfatizando uma
maior qualificação formativa. A influência legal sobre a profissão e profissionalização docente,
levou à constatação de que a maior preocupação dos pesquisadores foi com a formação docente em
nível superior.
Brzezinski e Garrido (2001) relatam as preocupações com a fragmentação da formação
universitária dos professores em decorrência da estrutura departamental imposta pelas reformas do
nível superior feitas na década de 1960, que refletem diretamente sobre os relatos de contradições
entre disciplinas teóricas ou de conteúdos disciplinares e disciplinas metodológicas ou didático-
pedagógicas. A dicotomia entre teoria e prática na formação e na atuação dos professores da
educação básica é uma questão posta na literatura da área (GATTI, 2010; SAVIANI, 2009), que
permanece um desafio para ambas as instâncias e mobiliza pesquisadores, inclusive para fornecer
subsídios que venham a aumentar a atratividade do ensino para as novas gerações de alunos.
Saviani (2009) ao descrever a origem dos cursos de licenciatura (incluindo o curso de
Pedagogia) afirma a presença marcante dos conteúdos culturais-cognitivos (conhecimentos
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disciplinares atribuídos aos institutos ou faculdades específicos) e que mesmo as discussões de
caráter pedagógico-didático (a cargo das faculdades de educação) tenderam para uma abordagem
conteudista e não uma forma de problematizar e refletir sobre a prática docente. O autor ainda
oferece uma crítica aos modelos de formação aligeirados e de baixo custo que, mesmo após a
promulgação da LDB em 1996 e a homologação das diretrizes curriculares para o curso de
Pedagogia em 2006, não se desvencilharam de um “nivelamento por baixo” e a precariedade das
políticas formativas: “cujas sucessivas mudanças não lograram estabelecer um padrão minimamente
consistente de preparação docente para fazer face aos problemas enfrentados pela educação escolar
em nosso país” (SAVIANI, 2009, p. 148)
Mello (2000) vai além na crítica ao afirmar que tal modelo de formação inicial imprime uma
“identidade pedagógica esvaziada de conteúdo”, à medida que coexiste uma não apropriação do
conteúdo a ser ensinado pelos professores e que o contexto institucional dos cursos de graduação
estão deveras distanciados das preocupações e dificuldades da educação básica.
Lüdke (2005) já apontava na década de 1980i a indefinição dos termos profissão e educador,
aplicados simultaneamente à ocupação dos professores, marcada pela multiplicidade de
especialistas que definem o específico da formação profissional do grupo e suas divisões internas
que estabelecem fatores de distinção que não favorecem a consolidação de uma profissão.
Acrescenta que o caráter individualista entre os pares ao longo da iniciação na carreira e a falta de
um compromisso entre o profissional e a profissão, no sentido de sua organização por associações
profissionais, são pontos de vulnerabilidade e enfraquecimento do magistério como uma
semiprofissão.
As pesquisas sobre formação de professores com destaque para os primeiros anos de carreira
é tema de poucas investigações no Brasil. Lima (2004), Papi e Martins (2010) e Corrêa e Portella
(2012) reuniram os esparsos trabalhos e seus principais resultados, permitindo ainda a localização
de publicações mais recentes. No entanto, as autoras destacam a importância desses estudos para a
compreensão da formação inicial e a própria constituição da identidade profissional do professor e
sinalizam que tais estudos podem subsidiar a criação de políticas e programas de incentivo e apoio
aos docentes que ingressam na profissão, tal como se observa em alguns países e de forma muito
incipiente no Brasil.
O entendimento das fases do ciclo de vida profissional está de acordo com o estudo de
Huberman (1992) que aponta os dois a três primeiros anos da carreira como fase de exploração
(com sentimentos de “sobrevivência” e “descoberta”) e os três a seis primeiros anos como fase de
estabilização (“comprometimento” e “tomada de responsabilidades”) de uma identidade
profissional. E a profissionalidade é debatida de acordo com os descritores propostos por Roldão
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(2005): o reconhecimento social da especificidade da função, a existência de um saber específico, o
poder de decisão sobre o trabalho desenvolvido e a pertença a um corpo coletivo.
Análise e Discussão dos dados produzidos
Optou-se por convidar todos os ex-alunos que concluíram o curso de Pedagogia no período
entre 2009 e 2015, a fim de cobrir aqueles que se encaixam na categoria de professores iniciantes,
isto é, possuam até seis anos de trabalho. Os participantes da pesquisa se formaram em duas
universidades renomadas no oferecimento desse curso na cidade do Rio de Janeiro: uma
universidade pública federal e uma universidade particular sem fins lucrativos. O questionário foi
encaminhado pela internet e foram obtidos 67 respondentes egressos da universidade pública e 33
respondentes da universidade privada. Não se pretendeu comparar os dois grupos de licenciados,
mas identificar as homologias sobre a constituição da profissão.
Acerca da formação inicial, em caráter avaliativo-reflexivo, foi solicitado que os licenciados
desses dois cursos ponderassem a relevância de grupos de disciplinas e itens curriculares da
graduação frente a atuação do professor nos contextos de trabalho na educação básica. Todas as
opções foram apontadas como relevantes ou muito relevantes, para ambos os grupos de egressos
(universidades pública e privada) e menos de 10% acharam pouco ou nada relevantes.
Didáticas/Metodologias de Ensino apareceram em primeiro lugar, seguido por Estágios/Práticas de
Ensino como muito relevantes, à frente de Fundamentos da Educação (História, Psicologia,
Filosofia e Sociologia da Educação) e Demais disciplinas de formação específica.
Isso evidencia que disciplinas com discussões e abordagens práticas, do tipo “como fazer” ou
“como ensinar” são mais valorizadas pelos professores recém-formados. Os professores indicam a
defasagem da formação sobre a finalidade da profissão: ensino implica em aprendizagem (núcleo da
especificidade da ocupação, que exige articulação com o conhecimento científico sistematizado).
Tanto as disciplinas de fundamentos como as de formação específica tiveram a relevância
minimizada possivelmente em função do excesso de teorizações seja dos conteúdos pedagógicos,
seja dos conteúdos disciplinares próprios da formação em Pedagogia. Alguns comentáriosii à
pergunta trazem críticas:
“O curso foi extremamente teórico. Dar aulas diariamente também ensina muito sobre a
prática docente e acho necessário ter essa experiência na faculdade até para poder
refletir sobre ela usando a teoria da faculdade. O curso ganharia muito se tivesse um
maior diálogo entre teoria e prática.” [Q12], “Didática e metodologias não ensinaram as
práticas e nem o conteúdo, apenas a filosofia por trás das visões de escola, escolha do
currículo, PCN's. Enquanto os estágios colocaram em contato com as práticas, mas não
de forma reflexiva, já que não discutíamos o que víamos nas aulas.” [Q24] “As práticas
de Ensino deveriam iniciar no primeiro período e a carga horária deveria ser a maior de
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todas. Acredito que acompanhar a mesma turma durante um ciclo/ano completo e
compreender melhor o funcionamento da escola seria vital para a formação dos futuros
profissionais da educação.” [Q168]
Ainda na proposta de avaliação do curso de licenciatura, foi solicitado o grau de concordância
ou discordância para uma sequência de frases sobre a formação inicial. A vontade de trabalhar como
professor apresentou concordância total de 43,8% para aqueles formados na universidade privada e
49,2% na pública ao entrar no curso e subiu para 78,1% e 59,0% ao final do curso. Em geral, a
maioria concorda que o conteúdo das disciplinas de graduação contribuiu para a prática docente
(81,3% de concordância na particular e 77,1% na pública) e abrangia o conteúdo dos conhecimentos
curriculares escolares (59,4% e 67,3%). Sobre a formação pedagógica ela facilitou a atuação
profissional para 75,0% e 75,4%, mas foi suficiente apenas para 50,0% e 44,2%. Sobre a existência
de um equilíbrio entre discussões teóricas e abordagens práticas, 59,4% dos egressos da
universidade privada discordam e apenas 55,7% dos egressos da universidade pública concordam.
Gatti (2012, n.p.) em balanço sobre o início da carreira docente no Brasil, indica que a “falta
de política clara, nos diversos níveis de gestão da educação básica, sobre o que se espera, como
condição inicial, dos professores, nas respectivas redes” está associada à recorrência, nas
investigações conduzidas no período de 1965 a 2011, da inadequação, ou insuficiência, da formação
inicial para atender: à realidade das escolas e dos alunos, dificuldades didático-pedagógicas e de
informação em relação aos componentes curriculares, problemas para a seleção de atividades
relacionadas aos objetivos de ensino, ao desenvolvimento da avaliação e ao comportamento dos
alunos.
Marcelo (2009, p13) afirma que é grande a insatisfação dos professores sobre a formação
inicial recebida e com a capacidade de respostas das instituições formadoras frente as necessidades
da profissão. O autor enumera as principais críticas relatadas sobre o tema: “a organização
burocratizada, em que se assiste um divórcio entre a teoria e prática, uma excessiva fragmentação
do conhecimento ensinado, um vínculo tênue com as escolas”.
Frequentemente são relatados na literatura sentimentos de abandono, por parte dos iniciantes,
e a expectativa de que os recém-formados cheguem nos contextos de trabalho “prontos”, por parte
dos gestores, administradores educacionais e da própria equipe escolar. Da mesma forma, são
comuns os relatos de insatisfação com a formação inicial, que não deu conta de preparar para as
demandas do cotidiano de trabalho, levando ao chamado choque de realidade.
A suposta facilidade do trabalho de ensinar minimiza a complexidade da mediação e interação
pedagógicas, que perpassam diferenças geracionais e motivacionais, além das expectativas de
entrada numa carreira profissional e a imissão numa ocupação marcada por acumular o desejo e a
responsabilidade de promover a transformação social. Quem está pronto ou acha fácil ser professor,
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especialmente no início da carreira?
A construção da identidade como professor passa pela vivência de sentimentos conflituosos e
contraditórios, não raro impossíveis de serem explicadas por um modelo ou hipótese teórica. As
tentativas de compreender a função docente moderna e os caminhos da profissão e da
profissionalidade do professor exigem um complexo esforço teórico-analítico como demonstram
Dubar (1997) e Marcelo (2009). Além de complexo, faz-se necessário enfatizar as mudanças
culturais e a dinâmica com que são percebidos e valorados características e requisitos formativos,
aqueles relativos ao desenvolvimento e à regulação das atividades profissionais.
Os sentimentos mais intensos nos primeiros meses ou anos de trabalho como professor foram:
a vontade de fazer o melhor (40,9% dentre as respostas daqueles formados na particular e 30,5%
das respostas dos formados na pública) e insegurança acerca dos conteúdos/métodos (31,0% e
29,6%) e em terceiro lugar não fui preparado para isso (26,2% na particular) e choque de realidade
(25,4% na pública). Apesar das inseguranças relativas aos saberes curriculares e aos saberes
didáticos e do embate de expectativas com as condições reais de trabalho, os professores iniciantes
participantes dessa pesquisa vivenciam a crença nas finalidades do seu trabalho através do otimismo
e a da busca em realizar o melhor. Ao choque de realidade e à insegurança do início da carreira,
muitas vezes associados ao isolamento e à desmotivação, é possível vincular a perda de autonomia e
a intensificação do trabalho dos professores. De acordo com a revisão de Huberman (1992, p. 39):
O aspecto da “sobrevivência” traduz o que se chama vulgarmente o “choque do real”, a
confrontação inicial com a complexidade da situação profissional, (...)a distância entre
os ideais e as realidades quotidianas da sala de aula, a fragmentação do trabalho, a
dificuldade em fazer face, simultaneamente, à relação pedagógica e à transmissão de
conhecimentos, a oscilação entre relações demasiado íntimas e demasiado distantes,
dificuldades com alunos que criam problemas, com material didático inadequado, etc.
Diante de características geralmente atribuídas ao magistério como atividade profissional
(autonomia pedagógica, conjunto de saberes específicos, definição das atribuições/tarefas do cargo,
exigência do curso de licenciatura, gostar de crianças/adolescentes, prestação de serviço e
representação por órgão de classe ou pertencimento a outro coletivo) as que tiveram maiores valores
de concordância total (acima de 65% cada) foram a exigência do curso de licenciatura e um
conjunto de saberes específicos. Isso nos leva a pensar que a atividade é reconhecida como uma
carreira universitária igual a qualquer outra, no sentido de que para o seu exercício é obrigatória a
formação em nível superior. No entanto, a posição da ocupação docente na divisão social do
trabalho se aproxima de um “seguro desemprego” como alternativa caso outras aspirações ou
projetos de emprego e carreira não se realizam. Isso não diminui o compromisso ético com a
docência: esses professores demonstram engajamento profissional (para o desenvolvimento de
competências e habilidades) e comprometimento com as finalidades educacionais.
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Solicitados a avaliar, em função de suas experiências, a importância de situações pertinentes
ao envolvimento do professor com o seu trabalho, uma lista de 20 itens foi apresentada. Por
envolvimento entende-se as relações entre o conhecimento, engajamento e a prática profissionais
com as ações do professor (SILVA; ALMEIDA, 2015): a demonstração de espírito de cooperação e
de parceria, a consciência das responsabilidades individuais e coletivas para com a aprendizagem e
o desenvolvimento dos alunos, o sentido ético e social da função, a busca por profissionalização e
qualificação, a contextualização e consideração da comunidade escolar como membro do processo
educativo e o compromisso em planejar e desenvolver situações de ensino, utilizando-se de
procedimentos e suportes variados com a finalidade de apoiar e estimular as aprendizagens dos
alunos.
A amplitude, reflete o senso comum e a falta de especificidades dos saberes docentes. A lista
abrange questões relativas aos alunos, ao local e a colegas de trabalho, à questões pessoais, à
formação contínua e à didática. Dos 20 itens, 17 (buscar formação continuada e qualificação
profissional, diagnosticar as necessidades dos alunos, diálogo e parceria com a coordenação
pedagógica, diálogo e parceria com a direção escolar, diálogo e parceria com outros professores da
escola, diálogo e parceria com outros professores de sua área, discutir o currículo das disciplinas,
fornecimento de materiais e acesso a recursos de ensino pela escola, saber lidar com as diferenças
individuais dos alunos, saber lidar com o estresse, motivar os alunos, perceber e lutar pelos direitos
do profissional professor, preparar as aulas, preparar as avaliações, refletir sobre a prática docente,
refletir sobre as finalidades do processo de ensino-aprendizagem, utilizar metodologias
diversificadas de ensino) foram considerados muito importantes com mais de 70% das respostas, à
exceção os itens saber lidar com o estresse, que para os egressos da universidade pública teve 10%
de respostas como pouco importante, e diálogo e parceria com outros professores de sua área, que
para os egressos da universidade privada teve 60,9% de respostas como muito importante. Os outros
3 itens (relação com os responsáveis pelos alunos, manter a disciplina dos alunos e saber lidar com
as tarefas burocrático-administrativas) foram em geral classificadas como importantes.
Considerações finais
Ao verificar que, para os professores participantes dessa pesquisa, tudo é importante para o
trabalho, há que se ponderar sobre a fluidez do conceito saberes docentes em relação aos
conhecimentos profissionais, os quais deveriam ser fundamentados em pesquisas científicas e
controlados por um grupo social fechado, de acordo com a sociologia das profissões. Segundo
Tardif (2002, p. 33), o saber docente é constituído por “vários saberes provenientes de diferentes
fontes. Esses saberes são os saberes disciplinares, curriculares, profissionais (incluindo os das
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ciências da educação e da pedagogia) e experienciais”.
Não se diminui a importância de tais aprendizados que tratam da pluralidade de aspectos
ligados à epistemologia da prática e ao processo de constituição identitária do professor. O que se
observa nas pesquisas empíricas com professores iniciantes é uma crítica persistente ao excesso de
teorias na formação prévia e a reprodução não sistematizada de práticas educativas do cotidiano
escolar. O próprio autor alerta que “os saberes dos professores não são uma soma de
„conhecimentos‟ ou de „competências‟ que poderíamos descrever e aprisionar num livro” e que “são
amplamente sobredeterminados por questões normativas e até mesmo éticas e políticas” (TARDIF,
2010, n.p.). Portanto, se torna inexato associar os saberes docentes experienciais a saberes
profissionais, produzidos e subsidiados cientificamente.
Um dos riscos da supervalorização de aspectos práticos é diminuir a importância da formação
e fundamentação teórico-científica e, assim, reduzir o estatuto da atividade pedagógica a um ofício,
rompendo, portanto, com os princípios que permitem enxergar e reconhecer o trabalho docente
como categoria profissional. Atribui-se a pertinência e persistência da crítica dos professores em
início de carreira sobre: o excesso de teorizações na formação inicial, os sentimentos de abandono e
despreparo apontados quando em exercício docente, o distanciamento entre teoria e prática e a falta
de estímulos para que se utilize os referenciais teóricos na discussão e elaboração de estratégias
para as situações práticas dos contextos de trabalho.
As tentativas de valorização dos saberes docentes sobre o se tornar professor não tem
encontrado respostas às dificuldades da prática pedagógica devido à carência de elementos que
suportem o núcleo da profissão. Os saberes profissionais, são aqueles oferecidos e discutidos na
formação inicial e as didáticas fornecem o instrumental de trabalho necessário para elaborar e
adaptar as estratégias de aprendizagem às necessidades dos alunos.
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A PROFISSIONALIDADE DOCENTE E OS SISTEMAS DE ENSINO
Ana Luísa Antunes (PUC-Rio/INES)
Neste texto o objetivo é problematizar quais as possibilidades para a constituição da
profissionalidade docente no contexto da delegação da gestão escolar e pedagógica à empresas
privadas por meio de sistemas de ensino que caracterizam-se pelo material didático apostilado,
projetos e provas padronizadas para toda a rede e a utilização de manuais para instrumentalização
do trabalho docente. O conceito de profissionalidade docente é entendido como um conjunto de
comportamentos, conhecimentos, destrezas, atitudes e valores que constituem a especificidade de
ser professor compondo a identidade profissional. Neste sentido, serão apresentados alguns
resultados emergentes da pesquisa “Profissionalidade docente em uma escola de rede” que foi
realizada através de entrevistas semiestruturadas com 10 professoras dos anos iniciais do ensino
fundamental de uma unidade escolar filantrópica, localizada em uma favela do Rio de Janeiro,
pertencente a uma rede composta de 16 escolas privadas. O relato das professoras mostrou
diferentes formas de lidar com o trabalho e a profissionalidade diante das adversidades e pressões
da rede refletindo negativamente no desenvolvimento profissional docente. As conclusões da
pesquisa realizada na escola privada converge seus resultados com outros estudos mencionados
durante o trabalho assinalando para a necessidade de incutir cada vez mais o compromisso
profissional nos professores de fazer o aluno aprender para não se deterem apenas ao cumprimento
de cronogramas de tarefas e metas que desconsideram as especificidades de cada sala de aula e cada
aluno. O estudo permite verificar que as circunstâncias do ambiente de trabalho trazem implicações
para o desenvolvimento da profissionalidade docente acarretando sentimentos variados que vão da
desmotivação à tecnização do trabalho docente provocando, em geral, o isolamento dos professores
e dificultando a construção de uma cultura profissional colaborativa.
Palavras-chave: Profissionalidade – Sistema de Ensino Apostilado – Didática
A PROFISSIONALIDADE DOCENTE E OS SISTEMAS DE ENSINO
A docência enquanto profissão é construída no trabalho. A profissionalidade docente enquanto um
conjunto de comportamentos, conhecimentos, destrezas, atitudes e valores que constituem a
especificidade de ser professor é construída com os pares na medida em que emergem situações
singulares com as quais os jovens professores são confrontados e obrigados a agir e refletir na
construção de suas próprias práticas que vão revelando uma identidade docente (NÓVOA, 2009;
MARCELO, 2009).
De fato, a heterogeneidade formativa e a diversidade de instituições, públicas e privadas, que
inserem os professores na profissão afetam a construção da identidade e da profissionalidade
docente. Embora haja uma preocupação com a formação dos professores e o trabalho desenvolvido
por estes “um aspecto que caracteriza a docência é a sua falta de preocupação pela forma como os
docentes se integram no ensino.” (MARCELO, 2009 p.127).
A formação inicial não basta para revelar todo o resto da profissão, o qual não é possível conhecer sob
o ponto de vista do aluno. A socialização profissional, dessa forma, continua no estabelecimento de
ensino em que o professor vier a trabalhar. Somente a prática dará consistência ao repertório
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pedagógico que os professores foram assimilando ao longo de sua formação. Assim, não se pode falar
em profissionalização docente sem se referir ao estabelecimento de ensino. (LÜDKE e BOING, 2004
p.1174).
Neste sentido, serão apresentados neste texto alguns resultados emergentes da pesquisa
“Profissionalidade docente em uma escola de rede” buscando problematizar quais as possibilidades
para a constituição da profissionalidade docente no contexto da delegação da gestão escolar e
pedagógica à empresas por meio de sistemas de ensino que implementam a lógica de mercado nas
escolas. Trata-se de uma pesquisa que foi realizada através de entrevistas semiestruturadas com 10
professoras dos anos iniciais do ensino fundamental de uma unidade escolar filantrópica, localizada
em uma favela do Rio de Janeiro, pertencente a uma rede composta de 16 escolas privadas que
adotam sistemas de ensino apostilado que caracteriza-se pelo material didático apostilado, projetos
e provas padronizadas e a utilização de manuais para instrumentalização do trabalho docente de
toda a rede.
Os sistemas apostilados de ensino surgidos no Brasil a partir da década de 1950, adotados
inicialmente em cursos preparatórios e algumas escolas, vendiam a ideia de serem mais práticos,
dinâmicos e mais coerentes com a nova “realidade” da educação brasileira (MOTTA, 2012). Com o
passar do tempo, a ideia vendida foi fundamental para que algumas instituições escolares
conquistassem fama e reconhecimento e aperfeiçoassem seus materiais didáticos e seus sistemas
apostilados para vendê-los a outras instituições que, além do material, levavam o nome e a
credibilidade da instituição de origem. Entrando na lógica da competitividade por recursos através
das boas classificações nos “ranqueamentos” que demonstram o “sucesso” educacional, as escolas
tentaram buscar “a colaboração de quem “sabe” fazer isso e, como um empreendimento que deu
certo e se expandiu por todo o país, os sistemas apostilados substituíram quase totalmente o livro
didático e foram sendo (re)elaborados de forma que, hoje em dia, não são vendidos sistemas
apostilados, mas sim “pacotes” educacionais, sistemas de ensino (ARELALO, 2007 p. 913).
No ensino básico, cresceu a venda de materiais pedagógicos e “pacotes” educacionais, que
incluem aluguel da marca pelo mecanismo de franquias, avaliação e formação em serviço do
professor. Tais atividades são desenvolvidas por algumas grandes redes de escolas privadas,
como os Cursos Oswaldo Cruz (COC), Objetivo, Positivo e Pitágoras. (OLIVEIRA, 2009
p.741)
A venda de sistemas de ensino, e não mais de sistemas apostilados, é explicada pelo fato dessa
compra representar mais do que a simples aquisição de materiais didáticos, pois quando vendem seu
material, vendem, imbuído neste material (e nos serviços prestados), uma série de valores sobre a
educação. Vende-se também uma concepção de educação, uma espécie de ideologia educacional.
Para Dermeval Saviani, a implicação do termo sistema, quando de sua adoção no campo
educacional, pressupõe opção coordenada e integrada de partes em “um todo que articula uma
variedade de elementos que, ao se integrarem ao todo, nem por isso perdem a própria
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identidade. (SAVIANI, 1997 p.206 apud ADRIÃO et al, 2009 p.801).
Nas escolas, o sistema de ensino contratado torna-se responsável por boa parte da gestão e da
organização pedagógica, pois tudo faz parte do “pacote” comprado. De fato, “A educação tem se
transformado, crescentemente, em mercadoria. (...) A educação é hoje uma mercadoria negociável.
Tornou-se exportável, portável e negociável.” (OLIVEIRA, 2009 p. 740).
O sistema de ensino dá a escola um suporte político e pedagógico para o atendimento educacional,
na medida em que fornece/introjeta uma ideologia educacional à escola que compra seu material.
Ele é responsável por administrar tempos de trabalho, as rotinas e a metodologia de ensino. Assim,
as empresas ao vender os chamados “sistemas de ensino” passam a interferir na gestão do próprio
sistema escolar.
As escolas que adquirem sistemas de ensino têm se tornado objeto de estudo de pesquisadores
(BEGO e TERRAZZAN, 2015; MOTTA, 2012; CUNHA, 2011; ADRIÃO et al. 2009; OLIVEIRA,
2009) que temem um retrocesso ao tecnicismo da década de 1970 no que diz respeito a democracia
e equidade educacional em prol da lucratividade, pois o grande domínio desses sistemas de ensino
têm deixado pouco espaço para autonomia da escola e em alguns estados, como o de São Paulo, os
sistemas de ensino já penetraram com grande força em escolas públicas municipais, como nos
mostra o estudo de ADRIÃO et al. (2009), sem os bônus prometidos e almejados pelos diversos
municípios que oneraram seus orçamentos com a contratação/compra dos sistemas de ensino.
É possível inferir com base nos estudos mencionados que, tempos depois, com o uso permanente de
material pedagógico idêntico, com conteúdos semelhantes, sem nenhuma adaptação aos diferentes
grupos de alunos e com atividades e exercícios “padrão sucesso” já testados, os professores acabam
se “acomodando” na situação, pois se, de um lado, sabem que esse sistema não levará a qualquer
processo emancipador de nenhum dos grupos sociais com que trabalha, por outro, ele se poupa, pois
não precisará ouvir, com freqüência ensurdecedora, sobre sua incompetência profissional e sua
incapacidade de obter resultados significativamente melhores, em curto prazo, com todos os alunos,
sem alteração de suas condições de trabalho.
Considero válido, antes de passarmos às considerações de nosso estudo, esclarecer aspectos do
funcionamento da rede quanto a alguns materiais que subsidiam o trabalho diário dos professores
dentro da rede. Esses materiais são: o manual do professor e o manual de instruções pedagógicas.
O manual do professor é basicamente um calendário com o planejamento diário para todo o ano
letivo, incluindo projetos a serem realizados durante o ano. Neste manual, há a indicação da data e
uma listagem dos conteúdos que devem ser ministrados e/ou revisados no dia. Com este suporte
fixado no início do ano, cabe ao docente apenas elaborar as estratégias para ministrar os conteúdos
prescritos para o dia, conforme o disposto no manual, que será revisto e avaliado quanto à
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pertinência ao manual pedagógico pela coordenadora operacional, que autorizará a execução do
planejamento ou indicará a necessidade de modificações pelo docente.
Em caso de dúvidas quanto às estratégias e às atividades para lecionar algum determinado
conteúdo, encontra-se também à disposição dos professores um manual de instruções pedagógicas.
Trata-se de um grande caderno de sugestões de atividades, dividido por tópicos
(ano/matéria/conteúdo) que auxiliarão os docentes a encontrar a atividade e a estratégia mais
adequada para determinado conteúdo e grupo discente.
Considerando os objetivos da pesquisa de apreender a dinâmica organizacional, a autonomia e o
relacionamento dos professores com o trabalho e seu desenvolvimento, utilizei como estratégia
metodológica a realização de entrevistas semiestruturadas 10 professoras e a diretora da unidade
buscando compreender qual sentido atribuem ao trabalho que fazem. Segundo Lüdke e André
(1986), a entrevista possui vantagem sobre outras técnicas por permitir a captação imediata da
informação desejada.
Realizei entrevistas com cada um dos professores objetivando apreender as suas experiências
profissionais, as relações que estes estabelecem com os agentes no atual ambiente de trabalho, as
concepções a respeito de suas práticas e como concebem a situação vivida - os constrangimentos, as
dificuldades, as obrigações, as ambições/desejos profissionais, etc (DUBAR, 1997).
Estas “representações activas” estruturam os discursos dos indivíduos na suas práticas sociais
“especializadas” graças ao domínio de um vocabulário, à interiorização das “receitas”, à incorporação
de um “programa”. Em resumo, graças à aquisição de um saber legítimo que permite, ao mesmo
tempo, a elaboração de “estratégias práticas” e a afirmação de uma “identidade reconhecida”.
(DUBAR, 1997 p.100)
O corpo docente, exclusivamente feminino, possui idades entre 21 e 50 anos, sendo que dentre as
10 entrevistadas, 8 docentes estão na faixa etária de 40 a 50 anos. Das 10 entrevistadasiii
, apenas
duas professoras não possuem o Curso Normal. Todas as professoras possuem curso superior, mas
nem todas possuem graduação em Pedagogia. Há formadas em Letras, Jornalismo, Direito e
Enfermagem. Do corpo de professoras entrevistadas cinco possuem pós-graduação lato-sensu.
Em geral, o corpo docente da escola é novo, seis professoras possuem de 1 a 2 anos na instituição e
quatro possuem de 4 a 9 anos. O pouco tempo de trabalho da maior parte dos professores na escola
revela uma grande rotatividade.
As peculiaridades da organização da rede me conduziram a pensar na organização escolar, no
sistema de ensino comprado pela rede, na percepção e no uso dos suportes pedagógicos como
fatores que possuem grande influência na relação que as professoras estabelecem com o trabalho, na
autonomia docente e na relação entre pares que, de certo modo, tem implicações nos modos de
viver a docência.
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A rede de escolas pesquisada compra seu material didático (e seu sistema de ensino) da terceira
maior rede privada de ensino do país. Embora a rede do Rio de Janeiro tenha construído, ao longo
das mais de três décadas de existência, uma grande tradição nos bairros onde estão situadas suas
unidades, o fato de passar a contar com o suporte do sistema de ensino tem fortalecido seu nome e
sua credibilidade no mercado carioca. O sistema de ensino é responsável por boa parte da gestão e
da organização pedagógica da escola, pois tudo faz parte do “pacote” comprado pela rede.
Segundo Morgado (2011 p.797), o professor é o profissional de ensino, o sujeito “capaz de fazer a
mediação entre o saber e o aluno, sendo esta uma característica que o distingue de outros actores,
que embora possam possuir saberes conteudinais não são detentores dessa capacidade, que constitui
a profissionalidade docente”.
A relação dos professores com o conhecimento e com o ensino revela uma dialética do ensino
transmissivo versus o ensino ativo (ROLDÃO, 2007). Segundo Roldão (2005 p.115) coexistem na
representação sobre o ensinar dois tipos de leitura: uma é “ensinar como professar um saber”, que
demonstra uma ação largamente intransitiva no que se refere ao aluno na medida em que a
aprendizagem do conhecimento é de exclusiva responsabilidade do mesmo; e a outra é “ensinar
como fazer com que o outro seja conduzido a aprender/apreender o saber que alguém
disponibiliza”, na qual o professor assume um papel de mediador pondo em prática seus
conhecimentos específicos sobre o processo de ensino-aprendizagem e mobilizando o “conjunto de
geradores de especificidade do conhecimento docente”, que nada mais são do que agregadores e
fatores de distinção do conhecimento profissional docente possibilitados pela análise, ação e
transformação dos docentes sobre seus saberes técnicos e artísticos emergentes nas situações
singulares de ensino (ROLDÃO, 2009).
Os geradores de especificidade do conhecimento profissional docente são: a natureza compósita dos
conhecimentos construídos, representada pela “integração transformativa e não justaposta de vários
tipos de saber que se traduzem em acções”; a capacidade analítica representada pelo “uso constante
de dispositivos de análise e reorientação do seu agir”; a natureza mobilizadora e interrogativa
representada, em suma, pela interrogação inteligente e produtiva sobre a ação; a meta-análise
representada pela capacidade de questionamento e postura de distanciamento e autocrítica e,
finalmente, a comunicabilidade e a circulação que “são os garantes da regulação, do uso e da
reconstrução de um saber susceptível de se sistematizar, acumular e inovar” (ROLDÃO, 2009
p.144).
Sendo as situações de ensino imprevisíveis e singulares é possível afirmar que o professor é muito
mais um profissional de um saber do que de uma função. Para além dos conhecimentos
especializados da área, é necessário o professor saber mobilizar os conhecimentos que detém em
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função de situações de ensino que implicam a mobilização dos geradores de especificidade do
conhecimento profissional na produção dos saberes profissionais, um dos pilares da
identidade/profissionalidade docente.
A profissionalidade docente é, portanto, um dos elementos fundamentais para a (re) valorização da
profissão docente e para a construção de uma efetiva autonomia curricular nas escolas
(MORGADO, 2011). Deste modo, entendendo que a profissionalidade é construída de forma
progressiva e contínua, num processo de desenvolvimento que se inicia ainda na formação inicial e
prolonga-se por toda a carreira, trago este suporte teórico para interagir com alguns dados
produzidos no campo, pensando como e que tipo de profissionalidade é desenvolvida pelos
docentes diante das tantas prescrições no trabalho, percebendo assim quais práticas, cultura(s) e
valores da profissão docente estão sendo apropriados pelos professores no seu processo de
desenvolvimento profissional e de profissionalidade, núcleos da profissão docente.
A pesquisa realizada demonstrou que o modelo de gestão da rede de ensino privada em estudo deixa
pouca oportunidade para os docentes exercerem o ofício de forma autônoma, mobilizando a
especificidade do conhecimento docente para dar conta de sua função de ensinar. Apesar de grande
parte dos docentes não se dar conta desta regulação pela rede, os professores têm se rendido à uma
redução, ou mesmo, ressignificação de seu papel como professor para dar conta das circunstâncias
de ensino e do cumprimento das prescrições, prazos e regras da instituição.
A diretora da unidade escolar pesquisada, durante sua entrevista, marcada por uma exacerbada
valorização da fama e da organização da grande rede, ressalta como algo muito positivo trabalhar
com um sistema de ensino.
Nós temos uma diretoria que faz esse manual, manual do professor do ano. Quando nós
recebemos, nós já recebemos o material todo pronto. Quando nós chegamos no início do ano
essa diretoria de ensino já entrega o calendário com todas as atividades que nós vamos fazer
durante o ano inteiro. Aqui vem tudo mastigado. Sempre, sempre veio preparado. O (colégio)
nesse sentido é muito organizado, muito organizado, porque são muitas unidades. É igual ao
Mc Donald’s, o sanduíche que você come aqui você tem que comer lá na Barra, você tem que
comer lá em Jacarepaguá e você tem que comer lá em Caxias. Porque senão perde a qualidade.
Nós temos um planejamento único. O planejamento que é usado aqui é usado na Barra, é usado
na, é um planejamento único. (Bianca)iv
Algumas professoras, em consonância com o relato da diretora, consideram ter um manual do
professor como uma ferramenta muito interessante para facilitar e otimizar o tempo de trabalho em
função da realidade do aluno, como é possível perceber nos relatos.
Eu achei bem fácil, porque eles dão toda uma estrutura que você tem que seguir. E aí a
supervisora, ela confere todo o planejamento, se tá de acordo com o que a rede exige. (Camila)
Vem tudo pronto. Eles mandam o manual, o conteúdo que a gente tem que dar, datas, tudo já é
feito por eles. (Laura)
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Nós temos o planejamento, o nosso planejamento já vem, ele já vem por semana pra gente.
Detalhando tudo que você tem que dar, inclusive matérias que tão, é semana de tal a tal aí ele
te dá o que tem que fazer naquela semana, por quê? Porque todas as unidades têm que
trabalhar exatamente aquilo naquele período. Porque senão vai bater com matéria na data de
prova, com data de teste (...). Então, quer dizer, na verdade pra fazer o seu planejamento, você
não sofre, porque você já tem tudo esmiuçado. É só passar pro papel, porque ali você coloca
livro página tal e o que for revisão você vai criar, não é tão complicado. (Paula)
Apesar das professoras reconhecerem que o material didático apresenta falhas e que é necessário
buscar alternativas para dar conta delas, quando falam sobre o manual do professor não reconhecem
que este também apresenta falhas como o material didático e que não lhes poupa o tempo que
acreditam estar poupando.
A professora Paula é enfática quanto às facilidades de trabalhar seguindo o manual do professor
numa segunda parte de seu relato sobre o assunto afirmando que “só não trabalha quem não quer”.
Vera também relatou que nem todos os docentes se adaptam facilmente a esse modo de trabalho e,
nesse sentido, ela auxilia os colegas a entenderem que neste sistema de ensino, não há muito o que
inventar em termos de planejamento, há que se seguir o prescrito.
De certo, ser “igual ao Mcdonald’s”, “esmiuçar” e “já dá tudo pronto” são expressões que
marcam um jeito de trabalhar regulado por um sistema de ensino onde tudo precisa ser igual, seguir
um padrão. Este modo de trabalho revela uma grande tecnicização do trabalho do professor o que,
de certa forma, provoca um esvaziamento da mobilização do conhecimento específico docente,
assim como compromete o significado da profissão docente que é “fazer aprender”. Como nos
alerta Nóvoa (2009 p.39), no caso do trabalho docente, a compreensão do ensino como profissão do
humano e do relacional nos mostra que “a necessária tecnicidade e cientificidade do trabalho
docente não esgotam todo o ser professor”.
Diante do seu ofício, marcado pela imprevisibilidade de cotidianos e realidades diversas, o
professor, com sua profissionalidade, seu compromisso e seu conhecimento pedagógico, deve ser o
responsável por organizar e desenvolver o ensino adequado a cada grupo de alunos, a cada
realidade. Assim, essa visão do professor como um consumidor de fast-food pedagógico pode
revelar-se como bastante prejudicial ao desenvolvimento da atividade de ensino e da
profissionalidade docente.
Deixo claro na presente análise que não tenho o objetivo de qualificar nem de desqualificar o
manual do professor como um dispositivo pedagógico para a organização e a realização do trabalho
docente. Porém, considero que o modo como a gestão exige o funcionamento do mesmo, assim
como o modo como este é apropriado pelos docentes superdimensiona este dispositivo pedagógico,
enquanto ferramenta didática, com impacto em um ensino que não é precedido pelo compromisso
com a aprendizagem.
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Para boa parte das professoras da escola pesquisada não dar conta da aprendizagem do aluno pode
ser justificada pela grande quantidade de tarefas a cumprir dentro de prazos que, por vezes, são
muito curtos. Assim, os professores se protegem, de um lado, afirmando muitas atribuições para um
curto intervalo de tempo e a escola, de outro, alegando dar tudo pronto. Porém, ambos estão
deixando algo para trás: o professor o seu poder de decisão sobre o processo de ensino-
aprendizagem e a escola a cooperação e o diálogo com o docente para que ele participe no processo
de construção dos objetivos e meios para alcançá-los.
De fato, apesar das qualidades ressaltadas pelos docentes quanto ao uso do manual do professor
para a orientação e organização do planejamento, alguns docentes ressentem-se da dificuldade de
dar conta das necessidades de adaptação contextual e dos diferentes ritmos de aprendizagem que
interferem no ritmo da aula, por conta do planejamento “engessado”, “amarrado”. As professoras
encontram-se constantemente desafiadas, pois além de precisarem dar conta das especificidades dos
alunos no contexto em que trabalham - favela -, bem diversas em relação às outras unidades da
rede, ainda precisam realizar tudo o que as outras unidades realizam, contando com uma
infraestrutura bastante precária, se comparada a outras unidades.
Os relatos de Júlia e Maria mostram que, apesar das dificuldades, das dúvidas e das incertezas sobre
a efetividade do trabalho nos moldes estabelecidos, os professores procuram fazer seu trabalho
obedecendo às regras da rede, muitas vezes, renunciando às suas concepções e crenças quanto à
efetividade do trabalho pedagógico.
Mas aqui é assim, eles te dão o plano de curso já todo feitinho e não tem nem o que fazer. (...)
Por um lado é bom, porque facilita bastante, por outro eu acho que fica muito amarrado assim,
por exemplo, eu dou matéria que eu não concordo que teria que dar. (...) Eu acho que eu fico
engessada em coisas que eu não concordo. (Júlia)
Às vezes não dá pra dar Ética, porque o tempo é curto e o planejamento é muito extenso. (...)
Eu faço o planejamento mesmo baseado no que eles mandam, que a gente tem que seguir aquilo
ali. (Maria)
“Isso significa renunciar ao ideal de ofício aceitando as condições práticas nas quais trabalha, mas
também, em muitos casos, “fazer como se” até a negação do problema, ou na expectativa de que
haja uma saída mais favorável.” (LANTHEAUME, 2012 p.375). Apesar de acharem fácil trabalhar
no esquema proposto, ou melhor, imposto pela rede por só ter que, a partir do planejamento pronto,
elaborar a aula tendo como suporte também o manual de instruções pedagógicas, alguns docentes
encontram-se incomodados e até mesmo desmotivados, com a profissão e o trabalho, por conta do
sentimento de fazer um trabalho incompleto e não conseguirem suprir as demandas dos alunos pela
falta de tempo, pela quantidade de conteúdos e pela necessidade de cumprir um planejamento que,
em função do extenso currículo, deixa pouco espaço para exercícios e atividades de revisão e
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avaliação realizadas pelo professor para conhecer o que os alunos alcançaram em termos de
aprendizagem.
Por isso dizemos que a ideia do docente consumidor de “fast-food” fracassa quando se pretende,
usando meios rápidos, modificar elementos estruturais de sua identidade profissional. Em um trabalho
publicado há onze anos, chamava a atenção acerca da progressiva burocratização e intensificação da
docência (C. Marcelo, 1996). O avanço dos processos de controle sobre a docência, externos ao
controle profissional - controle de mercado, controle político e administrativo - vem tornar pública
uma imagem profissional débil. (MARCELO, 2009 p.125)
O consumo de suportes pedagógicos traz implicações ao trabalho docente e, também, à identidade e
ao reconhecimento profissional dos professores, pois estes acabam se abstendo, algumas vezes, do
seu trabalho docente em função do planejamento e do cumprimento formal de regras.
Se eu fosse escrever um livro eu escreveria “A culpa é do planejamento”, é sério. (...) Aí,
conclusão, eu acho que a culpa é do planejamento pelo seguinte, porque você tem que dar 4
matérias novas naquele periodozinho curto e a criança ainda não aprender a segunda, mas
você tem que dar a quarta, você tem que dar porque vai ter a prova, vai ter aquela lista de
matérias. Então, às vezes, eu tenho certeza absoluta que eu to dando o quarto conteúdo e eles
ainda estão entendendo o segundo. Mas eu tenho que dar, fazer o quê? Eu tenho que dar.
(Roberta)
Esse relato traz uma preocupação no que se refere à dificuldade de articulação entre o acelerado
ritmo do planejamento imposto (manual do professor/planejamento prescrito) e o ritmo de
aprendizagem dos alunos frente aos diversos conteúdos, que impossibilitam que os docentes
mobilizem recursos para realizar a sua função de fazer o aluno aprender, deixando, muitas vezes, de
exercer o seu papel de mediador, de facilitador, para o ofício de mero transmissor, sem se preocupar
se o aluno está conseguindo acompanhar e se apropriar do conteúdo que está sendo ensinado.
Os professores prezam por seguir religiosamente o manual do professor em função das provas
padronizadas da rede.
Ah, eu sou muito certinha. Consigo cumprir tudo. Gosto de seguir tudo direitinho pra não ter
problemas com a direção e também pra não me enrolar. Isso aí eu não tenho problemas quanto
a seguir regras e normas da escola. (Roberta)
Eu deixo, às vezes, de cuidar de mim, porque eu coloco o meu trabalho, a minha
responsabilidade, que eu assumi acima de qualquer coisa. Se eu não tiver de almoçar, eu não
vou, se eu não tiver que sair, eu não saio, mas tudo, pra fazer todo o planejamento de forma
tranquila, pra que não vá prejudicar nada. (Ana)
A realização de provas unificadas para toda a rede revela que a elaboração do manual do professor
tem uma função maior do que apenas auxiliar o trabalho do professor. Ele está a serviço da gestão
escolar e do sistema de ensino. As provas padronizadas, a avaliação organizada para toda a rede,
além de ser um modo de “avaliar a qualidade de ensino” nas instituições da rede - tema bastante
discutido e polêmico -, tem se configurado como uma forma de fiscalização, de regulação, de tutela
sobre o trabalho dos professores. Quando os professores afirmam “até pra não fugir muito do que é
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pedido em prova”, “a prova é em cima do livro”, fica claro que a principal avaliação não está
sendo sobre as conquistas de ensino, mas sim sobre os docentes.
Embora reconheça que a avaliação poderia ser uma aliada para conhecer as potencialidades e os
entraves de toda a equipe escolar, a verdade é que, nesse contexto, a avaliação
padronizada/unificada tem sido utilizada muito mais na perspectiva de controle dos professores do
que no desenvolvimento de suas potencialidades em termos de crescimento profissional e de
aprendizagem dos alunos.
Os relatos evidenciam que, ao mesmo tempo em que as professoras reconhecem a importância do
planejamento, muitas vezes abrem mão, numa postura defensiva, de sua profissionalidade, de seus
conhecimentos construídos e das possibilidades de construção de conhecimentos para responder ao
formato exigido pela escola, para não correrem riscos diante da “fiscalização” e da regulação. As
professoras expõem o medo de perder o trabalho. Algumas consideram estar nessa rede o seu ápice
profissional e alegam que as falhas que encontram em termos de infraestrutura e de organização não
podem ser publicizadas sob pena de perderem o emprego.
Então, eu queria assim, ter mais oportunidades sem correr riscos. Eu preciso do meu trabalho
hoje, hoje eu não posso ser mandada embora. Amanhã, quem sabe, talvez eu falaria, mas hoje
eu não posso. (Vera)
Nesses moldes, os docentes se sentem pressionados como técnicos pela própria equipe gestora da
unidade escolar em que trabalham, pois esta preza sempre pelo ensino dos conteúdos
cronologicamente estabelecidos no manual, deixando pouco espaço para que o trabalho, singular e
contextualizado, realizado pelo professor aconteça.
Algumas professoras consideram que ensinar é seu papel, mas fazer aprender não. É neste dilema,
entre fazer os alunos aprenderem ou professar a matéria, que encontra-se o cerne da
profissionalidade docente e o compromisso político e pedagógico dos docentes. Sendo assim, é
possível inferirmos que essas professoras, ao terem que atender a tantos comandos, não estejam
podendo construir a profissionalidade desejada, seja na luta por melhores condições de trabalho,
seja pela busca de legitimação de seus conhecimentos específicos e pela sua autonomia profissional.
Nesse sentido, é possível inferir que o modelo de organização institucional instaurado pelo sistema
de ensino pode causar implicações negativas ao ensino e à profissionalidade dos docentes ao
priorizar o cumprimento técnico das atividades em detrimento de outros compromissos
fundamentais da atividade de ensino e aprendizagem. É necessário tomar cuidado com a crescente
“terceirização pedagógica” (ADRIÃO et al. 2009) para que a educação e o trabalho pedagógico
docente não se tornem uma mercadoria e para que a ideologia educacional não esteja voltada
exclusivamente para os interesses da sociedade capitalista.
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O estudo nos mostra que a gestão pedagógica realizada em boa parte pelo sistema de ensino
comprado incide sobre a autonomia da unidade escolar e os docentes prejudicando a organização do
trabalho pedagógico e o desenvolvimento profissional.
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i Chama-se a atenção para a publicação original do livro em 1988 e desse texto em 1983.
ii A identificação das falas dos respondentes foi feita usando um código formado pela letra Q, de questionário, seguido
pelo número do mesmo no banco de dados.
iii Não será descrito o perfil da diretora com a finalidade de não identificá-la.
iv Os nomes apresentados são fictícios para garantir o anonimato dos docentes participantes do estudo.
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