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Criminologia
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A Psicologia e suas transições:
desconstruindo a “lente” psicológica na Perícia
Júlio César D. Hoenisch1
Pedro J. Pacheco2
O simples nunca é mais do que um simplificado.
Gaston Bachelard
Muito se tem falado a respeito das avaliações psicológicas que são realizadas no
campo da psicologia jurídica. Os ataques mais ferrenhos, as críticas mais contundentes, se
articulam muitas vezes à carência de uma fundamentação teórico-epistemológica
consistente acerca da relação sujeito-objeto, numa configuração determinada extremamente
complexa. Referimo-nos, neste momento, às materializações da aplicação da ciência
psicológica com um determinado fim, neste caso a avaliação criminológica.
Para que realizemos uma problematização fecunda e aprofundada desta questão,
faz-se necessário uma contextualização histórico-conceitual sobre o lento surgimento da
psicologia no campo jurídico-epistemológico, com a incumbência de dar conta de novas
problemáticas surgidas no início do século XIX, com a associação do conceito de loucura,
agora ressignificado, com a delinqüência, sendo o criminoso visto, nesta articulação,
fundamentalmente como um doente moral.
Ao fazer uma construção sobre a história da loucura desde a época do Renascimento
até o século XIX, Foucault 3, enfatiza a mudança na representação deste conceito quando
ele perde sua unidade originária que o situa como experiência cósmica e trágica,
1 Psicólogo, especialista em Saúde Pública, mestrando em Psicologia Social e da Personalidade PUC/RS. Pesquisador vinculado ao Núcleo de Perícia do Centro de Observação Criminológica da Superintendência dos Serviços Penitenciários do RS. E-mail: [email protected] Psicólogo-coordenador do Núcleo de Formação, Pesquisa e Extensão do Centro de Observação Criminológica da Superintendência dos Serviços Penitenciários do RS. Mestrando em Psicologia Social e Institucional - UFRGS. E-mail: [email protected]
3 Foucault, Michel. História da loucura na idade clássica. 5ª ed., São Paulo, Perspectiva, 1997.
principalmente nas expressões artísticas do século XVII, para se tornar uma experiência
trágica marcada pela reflexão puramente crítica e racional. Nesta nova visão do desvio, sob
uma perspectiva cartesiana do eu como sujeito todo poderoso e controlador das vontades e
ações, a loucura passa a ser uma forma relativa da razão, sua figura paradoxal ao lado do
sonho e do erro. Tal apropriação não se dá somente na ordem racional, mas também
geográfica, pois a internação torna-se a forma como o Estado reage ante o marginal. Sendo
o insensato/miserável visto como o efeito da desordem e obstáculo da ordem “pública”, se
reclui o louco, sem idéia médica alguma, em salvaguarda da razão e da moralidade.
No fim do século XVIII, se dá um segundo corte, quando se produz a patologização
da loucura. O médico ingressa no asilo não como sábio, mas como "homem prudente". A
loucura já não obriga a um enfrentamento absoluto entre razão e desrazão. Se trata agora de
um jogo sempre relativo, sempre móvel e subjetivo, entre a liberdade e seus limites: quando
se fere a razão, a liberdade deve ser cortada, sendo o médico o grande personagem que
surge, através do instrumental psiquiátrico, para avaliar o que fazer com o “doente da
mente” ou o insano da alma, numa perspectiva clássica de divisão mente-corpo.
Nesta época, momento de afirmação do saber/poder psiquiátrico nesta encruzilhada
entre o pensamento jurídico e o médico, se patologiza também o crime através da figura
representativa do “criminoso alienado” ou na entidade nosográfica, proposta pelo alienista
francês Esquirol (1772 - 1840), que estabelece a relação loucura-delito, criando o conceito
de loucura-moral, ou “monomania homicida”. Esta forma de loucura tem como único sinal
evidente uma “desordem moral” sustentadora da prática de crimes e atos infracionais. Por
isso, se confronta o louco com o criminoso, o que resulta numa substancial modificação da
responsabilidade penal, ocorrendo um progressivo deslocamento desta noção de
responsabilidade para a de periculosidade, até hoje tão em voga nos meios jurídicos e
psiquiátricos forenses.
Assim, é dentro de tais concepções filosóficas e epistemológicas da doença mental
que as ciências psiquiátricas e psicológicas irão surgir, a partir da segunda metade do
século XIX, como instrumentos de medição da periculosidade individual, utilizando-se do
diagnóstico e eventual prognóstico, para apelar à especificidade de um saber médico da
alienação que instaurará e reforçará novas relações de poder entre os insipiente e frágeis
domínios da área psi e o secular e rígido Direito Penal.
Nesta relação de saberes constituídos pelas práticas jurídicas e psicológicas, a
complexificação crescente das regras de convivência humana mostra-se como um fator
primordial para a abertura jurídica a novos campos de saberes. Dentro desta perspectiva, a
inserção da Psicologia no campo jurídico ocorreu historicamente para suprir esta primeira
demanda no campo da psicopatologia, sendo que o diagnóstico psicológico servia para
melhor classificar e controlar os indivíduos. Os psicólogos eram chamados a fornecerem
um parecer técnico (pericial), em que, através do uso não crítico dos instrumentos e
técnicas de avaliação psicológica, emitiam um laudo informando à instituição judiciária,
via seus representantes, um mapa subjetivo do sujeito diagnosticado. 4
A prática penal ao impor formas de pesquisar as verdades dos fatos no intuito de
buscar saber exatamente quem fez o quê, em que condições e em que momento, passou a
elaborar as complexas técnicas do inquérito que puderam, em seguida, ser utilizadas na
ordem científica e na ordem da reflexão filosófica.5 Com isso, a Psicologia serviu, na sua
origem, como mais uma das técnicas de exame, procedimento que substituiu
cientificamente o inquérito na produção da verdade jurídica.
Diante disso, é a partir da afirmação das ciências psi no meio jurídico, que
testemunhamos a emergência de uma nova tipologia criminal e terminológica, produzindo
um discurso que, na mesma medida que se sofistica, produz seu objeto de controle. Não,
pois, um objeto “natural” da também insipiente ciência criminológica, mas, mediante
formações discursivas complexas e redes de saber/poder, testemunha-se a emergência de
novas formações discursivas. Tais formações, sedimentadas em uma política “científica”,
inauguram um campo epistemológico específico e voltado para um determinado corpo e
determinada subjetividade. Para tanto, os aparatos legais existentes até aquele momento, ou
seja, início do século XIX, não dão conta desta nova demanda. Assim, a psicologia e a
psiquiatria, filhas diletas e dedicadas do positivismo cartesiano, vem sua chance de
legitimação iluminista no fechado e poderoso campo jurídico. Desse modo, é necessário
especialistas para discorrerem sobre a verdade última e oculta do sujeito criminoso. Indo
4 MIRANDA Jr, Hélio Cardoso. Psicologia e Justiça: A Psicologia e as Práticas Judiciárias na Construção do Ideal de Justiça. IN: Revista Psicologia Ciência e Profissão, Ano 18, nº 1, Conselho Federal de Psicologia, 1998, p. 28 –37. Citação da p. 29.
5 FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro, Cadernos da PUC – Rio, 1974. Citação da p. 9.
mais longe, é necessário garantir que a verdade última do sujeito emerja no discurso
criminal. Logo, a personalidade delinqüente deve ser cuidadosamente explorada, esmiuçada
e catalogada, para que através de uma lógica linear aconteça a apropriação da sociedade
punitiva e de controle sobre os desviados e marginalizados.
Paradoxalmente, a lógica criminal-psicológica deverá se ocupar de um conceito de
personalidade que não mais o proposto pelo positivismo. Verifica-se aqui, uma
descontinuidade e contradição exemplar: ao mesmo tempo que o positivismo cartesiano
busca a objetividade de uma realidade dada, joga-se em cima de um conceito
completamente abstrato e subjetivo, ou seja, a personalidade. Tal incompatibilidade faz
emergir, até os dias de hoje, uma busca pela objetivação e “cientificação” deste conceito
base das ciências psicológicas. Vide as históricas discussões nos meios acadêmicos entre
linhas psicológicas “mais” científicas e “menos” científicas. 6
Através destas e inúmeras outras produções discursivas, dentro do referencial psi-
criminal, a literatura floresce e abunda até os dias atuais, passando pelo autor mais
marcante da psiquiatria forense, que, na atualidade, ainda aparece freqüentemente
revisitado por diversos teóricos e operadores jurídicos: Cesare Lombroso.
Com isso, vê-se que, desde essa lenta e descontinua construção epistemológica até a
crise de paradigmas da ciência moderna, a psicologia contemporânea encontra-se em um
período de turbulência e incertezas. Se podemos concordar que o positivismo e o sujeito
centrado da ciência moderna não se mantém, destruindo a arrogância viril da tomada de
consciência como via de possibilidade de uma sociedade teleológica que “progride”, deve-
se indagar sobre as novas formas de expressões do trabalho da psicologia junto à questão
criminal.
Contemporaneamente, grosseiramente resumido, tem-se como diretrizes e
atribuições gerais dos psicólogos jurídicos que trabalham especificamente no meio
penitenciário atuar principalmente na determinação da responsabilidade legal por atos
criminosos, como perito judicial, elaborando laudos, pareceres e perícias, a fim de serem
anexados aos processos. Tal tarefa realizar-se-á através de avaliações das características de
personalidades, através de triagem psicológica, avaliação de periculosidade e outros exames
6 Medeiros, Roberto H. Amorim. A Psicanálise Não é uma Ciência. Mas, Quem se Importa?. IN: Revista Psicologia Ciência e Profissão. Ano 18, nº 3, Conselho Federal de Psicologia, 1998, p. 22 –27.
.
psicológicos no sistema penitenciário, para os casos de pedidos de benefícios, tais como
transferência para estabelecimento semi-aberto, livramento condicional e/ou outros
semelhantes. Num papel secundário, a tarefa se estende a: atendimentos e orientações aos
detentos e seus familiares, visando à preservação da saúde; orientação à administração e aos
colegiados do sistema penitenciário sob o ponto de vista psicológico, usando métodos e
técnicas adequados no intuito de estabelecer tarefas educativas e profissionais que os
internos possam exercer nos estabelecimentos penais; fazer acompanhamento de detento
em liberdade condicional, na internação em hospital penitenciário, bem como atuar no
apoio psicológico à sua família.7
Dentro da realidade histórica do meio penitenciário rio-grandense, os psicólogos
iniciaram sua legítima inserção através das equipes de observação e avaliação nas prisões,
principalmente após a implementação das Leis n 7.209 (Parte Geral do Código Penal) e
7.210 (Lei de Execução Penal – L.E.P.), ambas de 11 de julho de 1984, que são enfáticas ao
afirmarem a importância da avaliação das condições pessoais e capacidades subjetivas do
apenado. É no Capítulo I da L.E.P8, intitulado “Da Classificação”, que a função do
psicólogo jurídico faz-se inicialmente presente, através da exigência de desenvolver uma
prática de perícias, avaliações e elaboração de laudos e/ou pareceres técnicos que embasam
as decisões judiciais para a implantação da individualização da pena, bem como para os
demais benefícios a que o sujeito preso tem direito.
Estes momentos classificatórios poderiam ser subdivididos em duas vertentes, de
acordo com a orientação jurídica designada, configurando-se nos exames criminológicos e
nos exames de personalidade. Como a L.E.P. tem como uma de suas linhas básicas de
orientação a individualização da execução penal (artigo 5º: os condenados serão
classificados, segundo os seus antecedentes e personalidade, para orientar a
individualização da execução da pena), tal procedimento institui o exame de personalidade
que busca definir o perfil psicológico do preso, enquanto pessoa, que tem, na sua história,
características, tendências, desejos, aptidões, interesses, aspirações, devendo ser
7 FEDERAL NET. CBO – Catálogo Brasileiro de Ocupações do MT – Atribuições Profissionais do Psicólogo no Brasil. 30/07/00 – Mídia On Line: www.psicologia-online.org.br/atribuicoesprofissionais.html.
8 Lei de Execução Penal nº 7.210 de 11.07.1984. 12ª ed. São Paulo, Saraiva, 1999.
acompanhado e preparado para seu retorno ao “convívio social”. As Comissões Técnicas de
Classificação (C.T.C.), existentes em cada estabelecimento penal, composta pelo Diretor,
dois chefes de serviço, um psicólogo, um assistente social e um psiquiatra (artigo 7 da
L.E.P.), elaborará o programa individualizador e acompanhará a execução das penas
privativas de liberdade e restritivas de direitos (Artigo 6 da L.E.P.), sendo responsável
também por subsidiar decisões judiciais para a concessão das progressões e regressões de
regime prisional, conversões da pena em medidas de segurança, ou vice-versa, bem como
concessão do livramento condicional.
Diferentemente, numa outra perspectiva, esta mesma Lei institui o exame
criminológico como um estudo jurídico, social, psicológico e psiquiátrico que deve
realizar-se em todo condenado logo no início do cumprimento de sua sentença, com vistas
ao prognóstico criminal. De posse desses elementos, para fins de obtenção dos elementos
necessários a uma adequada classificação e com vistas à individualização da execução
(artigo 8º da L.E.P.), tais exames buscam analisar e focalizar o preso no seu aspecto
criminal, sob a ótica do binômio crime-criminoso, tendo como ênfase o delito praticado e as
causas da sua inserção na criminalidade. Sob a ótica psicológica e da criminologia clínica,
de cunho eminentemente etiológico, busca-se o estudo dos fatores que conduzem à
passagem ao ato delinqüente e a identificação dos traços psicológicas subjacentes a esta.
Quanto a tais exames psicológicos, é inevitavelmente que os psicólogos e
psiquiatras, quando investidos desta atribuição de avaliar condutas supostamente
desviantes, procurem um “discurso supostamente desejável” e condizente aos valores
morais e normas culturais vigentes. Tal discurso viria constituir no sujeito, uma posição de
culpabilização que, na realidade, não tem produzido nada além de um discurso automático
e apreendido, priorizando somente o ato criminoso ao buscar identificar uma “crítica sobre
o delito” e promovendo o discurso do regenerado, supostamente arrependido9. Percebe-se,
na prática, que a priorização legal e técnica deste enfoque avaliativo, punitivo e moralizante
ocasiona uma maior estigmatização criminal do condenado, tornando-se extremamente
difícil se vislumbrar possibilidades e estratégias para um retorno social menos
criminalizado deste sujeito.
9 RODRIGUES, Marieta L. Madeira. Observações sobre o Discurso Delinqüente. IN: Psicanálise em Tempos de Violência. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Porto Alegre, Artes e Ofícios, 1998. p. 71-75.
Foucault 10, ao estudar o poder e suas estratégias de normalização no Ocidente,
afirma que o preso, na cadeia, e o louco, no manicômio ou hospício, são vítimas da crença
social em ser a institucionalização a “atitude natural” de punição, sendo que o controle
exercido pela dominação e pelo olhar repressivo direcionado sobre estes indivíduos,
causam a alienação do não pensar, sendo a cadeia uma das formas mais violentas de
repressão social e política já existentes.
Infelizmente, porém inevitavelmente, a Psicologia insere-se neste contexto prisional
através de uma ambigüidade nas suas funções éticas: de um lado mostra-se servindo aos
preceitos de uma “nova tecnologia punitiva”, orientada para a produção de indivíduos
dóceis, produtivos e controláveis, em nome de uma visão centrada na psicopatologia, afim
de objetivar a manutenção da “inquestionável” ordem pública; porém, de outro, percebe-se
um direcionamento, ou talvez um ideal desejante, para uma possibilidade de ajudar o
sujeito preso através da abertura de uma escuta, que possa abrir uma possibilidade de
elaboração e de estabelecimento de um novo laço social 11, desta vez de acordo com a
demanda que o sujeito traz (grifo dos autores). Visto que tais funções denotam ser
totalmente incompatíveis dentro de uma mesma significação identitária profissional, fica
praticamente impossível um mesmo operador jurídico ocupar os dois lugares ao mesmo
tempo, ou seja, ser aquele que traz consigo a marca do controle estatal e colocar-se numa
posição de escuta diante da angústia e do conflito desejante a que o sujeito preso padece.
Diante disso, os conceitos de tratamento penal e ressocialização, ainda hoje tão
claramente em voga, denotam muitas vezes uma total incongruência entre os discursos
proferidos sobre o sistema penitenciário e as práticas a ele associadas. Analisando-se a
própria existência das prisões, estas instituições mostram-se contraditória e paradoxais ao
se pretender o tratamento penal, a readaptação, reinserção social, reeducação e/ou
ressocialização dos seus usuários, pois tais objetivos vão diretamente de encontro às suas
reais possibilidades de execução. Neste aspecto, questiona-se os acentuados efeitos
deteriorantes a que o sujeito encarcerado é submetido, e, sob a ótica psicológica, referenciar
10 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Vozes, 21ª ed., 1999.
11 MIRANDA Jr, Hélio Cardoso. Psicologia e Justiça: A Psicologia e as Práticas Judiciárias na Construção do Ideal de Justiça. IN: Revista Psicologia Ciência e Profissão, Ano 18, nº 1, Conselho Federal de Psicologia, 1998, p. 28 –37. Citação da p. 35.
a degradação da pessoa do preso, decorrente da vida carcerária (efeitos de sua
prisionização). Além disso, a ênfase controvertida nos processos de ressocialização e
tratamento penal mostram-se como sistemas representativos de uma ilusão de transparência
que tem na base o reforço e a perpetuação dos instrumentos de racionalização da vida
coletiva moderna, ou seja, a ciência moderna e o direito estatal moderno.
Dentro desta lógica avaliativa, analisando-se as diversas formas de lidar com os
sujeitos encarcerados, percebe-se que, de um modo geral, as práticas de atendimento
mostram-se contaminadas, estando amiúde compreendidas dentro da função social somente
da vigilância, na sua forma exclusiva, repressora e condenatória. Esta prática acentua a
problemática da responsabilidade que se liga à significação do castigo, este considerado a
partir da própria genealogia da instituição jurídica, e traduz a essência de toda idéia de
homem que prevalece na sociedade e vai somente confirmar o modelo punitivo da solução
de conflitos que permeiam a visão social que se tem hoje dos indivíduos infratores.
Mediante a crença num novo espírito científico, procura-se combinar
primordialmente uma maior eficiência técnica com o respeito aos direitos humanos, civis e
legais, implementando uma função humanizadora na busca da construção de uma ordem
mais democrática e civilizada do trabalho do técnico. Para isso, diante das incertezas
globais, jurídico, político e científicos, busca-se a indicação de pontos, no nosso
entendimento, nevrálgicos às ciências em geral e à psicologia em particular.
Assim, a atual coordenação técnica do sistema penitenciário rio-grandense, chamada
Centro de Observação Criminológica (C.O.C.)12, por nós, neste momento representada,
procura explicitar as condições de possibilidade para a produção deste novo discurso
científico, mediante uma análise das relações de poder/saber que aí se estabelecem,
constituindo para o profissional da psicologia a desafiadora tarefa de: a) construir novas
ações efetivas de acompanhamento técnico, combinadas com a busca de critérios
diferenciados para elaboração de laudos periciais; b) abandonar os referenciais psiquiátrico-
positivistas clássicos, hegemônicos até o momento.
Com isso, a proposição da busca de uma nova abordagem mais complexa por parte
da psicologia passa, necessariamente, pelo abandono da referida categorização nosográfica,
12 Órgão da Superintendência dos Serviços Penitenciários do RS (SUSEPE) responsável pela coordenação técnica dos psicólogos, assistentes sociais e advogados que trabalham na rede penitenciária gaúcha.
que tem como sua tradução contemporânea, os manuais DSM IV e CID 10, que ainda
mantém o fenômeno da criminalidade em um corte individualista e linear, propugnado pelo
positivismo, numa visão extremamente racionalizada e cartesiana do sujeito. O problema
maior destas abordagens de causa e efeito lineares é a manutenção de um falsa dicotomia
entre “interno” e “externo”, como se houvesse um “algo” que é da ordem do “fora” ou do
“dentro”, onde o sujeito vai buscar e alterar sua “essência” mais profunda.
Além disso, na prática pericial atual decide-se também pelo abandono da
categorização nosográfica intitulada funções do ego, ou funções mentais de nível superior.
Esta decisão vem ao encontro de uma política de recusa à chamada psicologia do ego, linha
eminentemente norte-americana que contradiz as novas concepções epistemológicas que se
almeja implantar, marcada pela complexificação crescente das avaliações psicológicas,
numa análise das relações, onde múltiplos fatores se interpenetram entre si.
As problemáticas básicas e complexas, nestes dois pontos, partem do fato de que
constituir uma nova “lente epistemológica”, tanto para a ação pericial, quanto para as
diretrizes de política de trabalho da psicologia, passam por uma descontinuidade e ruptura
extremamente instigantes. Como estabelecer que existem outras formas de
acompanhamento penal e avaliação, que complexifiquem o ato criminal, descaracterizando-
o de um ato individual? Como desarticular o discurso da ressocialização e clarificar que a
criminalidade e a violência advém da própria configuração social?
Por em movimento estas reflexões esbarram com a poderosa história institucional da
psiquiatria e com o, geralmente, constrangedor papel do psicólogo como um agente
mantenedor da ordem e da “sociedade”. As constituições dos saberes e poderes da trama
“científica” do século XIX se mostram sólidas e ainda enraizadas no fazer técnico e na
crença de fenômenos positivistas abstratos, tratados, muitas vezes, de maneira leviana pelos
profissionais encarregados de refletir sobre o comportamento humano vinculado a questões
de saúde, ética e cidadania.
Isso, evidentemente, está também presente na formação do psicólogo e, inclusive,
em vários programas de pós-graduação em psicologia. Também, neste caso, há uma clara
diferenciação entre o modelo conceitual anterior (positivista, cartesiano e linear) e o
proposto. Apesar disso, há, aqui, o cuidado para que não se esteja novamente falando de
uma simples transposição de significados. A crítica quanto à formatação dos laudos no
sistema antigo (a-histórica, a-crítica e a-temporal) permanece constante, na medida em que
tais modelos, vistos como ultrapassados, circulam e se materializam nas dificuldades de se
implementar políticas alternativas dentro das instituições públicas e da sociedade
dominante, estas cada vez mais rígidas nos seus valores, ameaçando qualquer mudança
através da manutenção da crença em “naturezas” humanas e criminosas.
Concomitantemente, a perigosa generalização (outro elemento herdado do ideal viril
da ciência positiva) aqui é posta em cheque. Não trataria do olhar do psicólogo se
estabelecer no que os apenados teriam de diferentes entre si, e não de semelhante? Tal
hipótese aguardará uma resposta, fruto do aprofundamento do desenvolvimento das novas
diretrizes e pesquisas tanto bibliográficas, quanto experienciais.
Mostra-se como alternativa aos profissionais, mergulhar nesta trama epistemológica
que constitui, para os técnicos, diagnósticos ao invés de pessoas, fenômenos a-históricos, ao
invés de contextualização clínica.
É preciso salientar ainda, como curiosidade crítica, que uma ciência como a
psicologia, pelo menos em sua vertente psicanalítica, que tanto valoriza a história, a deixe
de lado na prática da perícia. A figura do preso, e principalmente, sua representação,
obnubila toda uma gama de outras matizes que constituem o sujeito da psicologia, de tal
forma que, em alguns laudos, cremos estar diante de casos clínicos puros, de uma
individualidade pura, muitas vezes totalmente desvinculado de qualquer aspecto cultural e
social relevante.
Não cabe aqui discutir a validade de manter-se ou não um campo psicanalítico, ou
uma matriz epistemológica psicanalítica na construção da forma de olhar da perícia, ainda
que, num primeiro e rápido momento, possamos facilmente reconhece-lo como presente.
Tal análise não será realizada neste espaço dado que, ao nos referirmos à psicanálise,
estamos nos atentando a um campo complexo e contraditório de bases epistêmicas, éticas e
clínicas.
Diante das mudanças de política de trabalho propostas, outro movimento realizado
pela atual gestão do C.O.C. foi o levantamento das incoerências e contradições que os
psicólogos que estavam chegando para compor a nova equipe de perícia percebiam nos
moldes antigos. O resultado deste levantamento, mais uma vez, revelou-se complexo e de
difícil apreensão. Os elementos descritos pelos profissionais anteriores trazem matizes
leves, mas com desdobramentos epistemológicos profundos.
Um dos primeiros aspectos propostos de mudança dão conta da forma de
organização do laudo no que tange à etnia, por exemplo. Por que a presença da cor do
entrevistado nos dados de identificação do periciado? Qual sua finalidade? Identificar o
preso? Não parece muito pertinente esta argumentação, na medida que o juiz, que é um dos
maiores interessados no conteúdo da avaliação, pode saber disso, se assim o desejar, através
de outras documentações. Portanto, fica excluído este item de qualquer avaliação
psicológica, na medida em que, a nosso ver, não há o que relativizar nesta questão: a
descrição de uma imagem física pode (e fatalmente evoca) as representações do “criminoso
típico” da cadeia brasileira: de preto a pardo e pobre, sugerindo um certo fenótipo do qual
nós, a classe média branca e escolarizada, deveria ser protegida. Mas, não está presente
nesta pontuação justamente este fato: há um perfil de preso que não revela quem é o
“marginal”, mas que este é o indivíduo que está na cadeia. Tem-se a pretensiosa ilusão de
que mantendo determinados indivíduos presos, os mais “perigosos”, aquela sociedade,
branca e escolarizada, estará mais segura e tranqüila.
O perigo reside em o técnico incorporar (ou fortalecer) as representações de que o
crime e a violência advém de classes e etnias menos favorecidas educacional e
economicamente. Também o perigo de apontar a discriminação racial implícita nos laudos
está em o técnico negar que quando ele realiza esta avaliação, isto não pese. A relação de
violência e pobreza aparentemente não é contemplada, e como sabemos, trata-se de uma
relação perigosa, tanto quanto propor práticas que contenham discriminação racial. Porém,
a presença de tais dados pode desencadear o retorno do recalcado, neste caso, a perversa
relação acima mencionada.
Outra preocupação premente das avaliações e críticas realizadas pelos profissionais
é no que tange aos instrumentos e a “cientificidade” da avaliação, que deveria ser
preservada. Ou seja, uma busca absurda da “verdade”, instância última de uma espécie de
“interioridade fundamental” do sujeito continua a ser ambicionada. Não se trata de
perguntar: as avaliações de personalidade tem força epistemológica? Ou: como podemos
constituir um fazer avaliativo clínico fora do que está legitimado pela academia? Não.
Trata-se de uma preocupação em desvelar o oculto, trazer a luz a verdade, como tão bem
Foucault aponta em várias de suas obras referentes ao nascimento da medicina e às
“condições de possibilidade” para a emergência de saberes. Ocorre um desejo em trazer
para a superfície os significados e sentidos que a psicologia simples e reducionista acredita
existir em um “interior” do sujeito.
A crítica não tratou-se de sair do campo epistemológico estabelecido, da rede de
saber/poder constituída; tratou-se de, do interior oriundo deste mesmo sistema, procurar um
“método” mais adequado de aprofundar um desvelar da “natureza” do criminoso, ou de sua
“verdadeira” personalidade. Os problemas, aqui, são muitos. Primeiramente, dentro da
própria psicologia, corre um debate acirrado sobre a questão da existência ou não de
essências e identidades imutáveis, constituindo um verdadeiro labirinto epistemológico de
pesquisas e buscas, que, neste momento, apenas começam. Segundo, isso nada mais traduz
que a velha obsessão positivista em relação ao método, partindo de um ideal de
imutabilidade do objeto, que pode facilmente ser conhecido, apreendido e reconhecido
mediante uma metodologia adequada. Tal perspectiva carrega, ainda, a arrogante pretensão
viril de uma ciência que propõe a verdade como dada fora do sujeito que investiga, neste
caso em outro sujeito, que deve ser descoberto, tal como nas ciências naturais, mas, que
também não sabe de sua verdade. O perito é quem sabe da verdade do sujeito, mais que o
próprio sujeito, e é isso que o poder judiciário espera ouvir do técnico.
De acordo com esta questão, surge um ponto obscuro que é a preocupação quase
incontrolável com o instrumento de coleta de dados, aqui no caso, a testagem, que também
demonstra ser um artifício usual e corriqueiro na busca de cientificidade para organizar o
trabalho de elaboração do laudo, sendo através de meios científicos sólidos que o formato
final do parecer do perito se constituiria. Nos discursos que embasam tal procedimento, tais
ferramentas forneceriam uma certa isenção e neutralidade científica embasante do parecer.
O primeiro equívoco fundamental já está posto no que concerne à ciência e seus
pressupostos de condições de possibilidade para que um determinado saber se constitua
(como propõe Foucault, Derrida e dentre outros teóricos) e se legitime.
Trata-se de pontuar que a ciência, assim como toda invenção humana, obedece uma
política, uma negociação de significados e assertivas, que, em determinado momento
histórico, não são questionadas. Como bem coloca Fonseca13, se à ciência cabe inventar
mundos e fundar realidades, mais que nomea-las, que se faça isso de maneira decente.
Outro ponto nevrálgico no uso da testagem, e, neste caso, nem é preciso uma crítica
radical da ciência e dos saberes, é que, dentro da própria ciência positiva, um instrumento é
adequado a uma mostra quando este é adaptado para o lugar e população onde será
aplicado, o que ainda não ocorreu junto à população carcerária. O logro do uso da testagem
reside em sua origem, de suprir a carência e a falta de um procedimento totalmente
confiável e “científico” que dê conta e legitime o saber psicológico acerca do sujeito
psíquico que se está avaliando. Pensa-se que há diversos outros meios menos generalistas e
mais eficazes e suficientes, porém talvez não tão “científicos”, para se chegar aos aspectos
subjetivos relevantes de uma avaliação psicológica, tais como entrevistas e análise
documental.
Além disso, cabe perguntar se é possível (e necessário) fazer uso de ferramentas
indicativas de determinados aspectos da personalidade para progressão de regime, por
exemplo. A orientação sexual, do apenado, é relevante para o caso de progressão de regime
ou de trabalho externo? Não vemos muito por onde esta informação possa ter utilidade.
Permanecendo ainda neste exemplo, devemos levar em conta que freqüentemente nos
processos, a orientação homossexual é descrita como fator indicativo de uma
“personalidade distorcida”, e, por conseguinte, já com predisposições à criminalidade.
Assim, voltamos novamente à violenta pré-determinação que tanto nutri as ciências que
detém o poder/saber de classificar os ditos desvios sociais e justificar suas punições, na
maioria das vezes, aviltantes.
Um outro ponto relevante é a possibilidade de abertura de um espaço de discussão
entre a psicologia e o serviço social, para troca de informações. Tal iniciativa é sumamente
importante, mas, sozinha, é preciso lembrar, não constitui um locus para mudança de
paradigmas ou olhares. Basta observar que nos casos de laudos no sistema antigo, havia
uma interlocução com o serviço social, mas isso não bastava para constituir flexibilização e
contextualização do decorrer do laudo.
Outro fenômeno importantíssimo, é o caráter de julgamento moral, e, muitas vezes,
jurídico do laudo. É perceptível, e vários autores defendem esta idéia, que o judiciário acata
13 Fonseca, Tânia M. G. Epistemologia. IN: Psicologia Social Contemporânea. Petrópolis, Vozes, 1996.
com fé cega o parecer do perito, sendo dele a responsabilidade de estabelecer se é
pertinente ou “justo” que o sujeito avaliado progrida de regime ou obtenha qualquer outro
benefício. A primeira complicação, dá-se com relação ao julgamento moral
contratransferencial que visibiliza-se de maneira clara, por exemplo, nos crimes de natureza
extremamente perversa, ou seja, que causam enorme dano à vítima, fazendo com que as
identificações ocorram e as perversões do próprio técnico se materializem. Nestes casos, os
psicólogos geralmente se questionam: “Como que eu vou largar um cara desses para rua?
Um estuprador? Abusador da filha? Eu tenho um compromisso com a sociedade!”. Esta
afirmação, lamentavelmente, não rara, é recente, e remonta à questão transferencial do
técnico aceitar o papel de juiz. Mais do que isso, aceitar e ter como sua incumbência
relativamente natural, realizar tal procedimento de defensor da ordem e da “paz social”. O
que é defendido, veementemente, nesta nova gestão do Centro de Observação
Criminológica é que ao psicólogo lhe seja dado o que lhe é de direito: um trabalho
consonante com o estatuto que regulamenta a profissão de psicólogo, bem como esteja, da
mesma forma, atrelado a uma função humanizadora, crítica e clínica, e, principalmente,
longe de positivismos, moralismos e determinismos evolucionistas de personalidade.
Mais, ainda, prega-se a constituição de uma prática de perícia e acompanhamento
técnico onde o sujeito da psicologia não contrarie o sujeito do direito, construindo um fazer
transversal, não ingênuo e original. Tal não contradição é da ordem de que o sujeito da
psicologia, pelo menos a de inspiração psicanalítica, é um sujeito descentrado, com um
mais além, uma barra que remete a uma falta de unidade fundamental, que é o inconsciente.
Portanto, não há uma centralidade objetiva que a psicologia possa apreender em sua
totalidade. Já o sujeito do direito é o, digamos, sujeito da consciência, capaz de uma certa
emancipação, centralidade e responsabilidade. Mais do que tratar da diferença entre um e
outro, é fundamental lembrar também da diferença da natureza do trabalho da psicologia e
do direito. Não é, ou não deveria ser, ocupação da psicologia determinar se o sujeito
avaliado ficará ou não mais tempo em determinado regime, ou progrida para a liberdade.
Esta incumbência é do direito, o judiciário. Cabe a ele, e somente a ele, realizar esta
determinação. Se o direito é uma área “dura”, positiva, calcada em fatos, não deve ser esta a
atuação da psicologia, como desejamos ter ficado claro neste ensaio.
Por fim, resta-nos, enquanto técnicos, trabalhadores da justiça, pesquisadores,
movimentos sociais e comunidade, produzir novas formas de fundar uma prática ética e
madura, sabedores de que, como já foi dito, a criminalidade e a violência são fenômenos
complexos na trama do tecido social. E assim devem ser tratados.