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A Psicologia no Processo de Execução Penal Júlio César D. Hoenisch 1 Pedro J. Pacheco 2 A ciência psicológica, conhecida freqüentemente pelo senso comum como aquela área científica que detém o saber do oculto, possui a capacidade de desvelar os segredos mais íntimos do sujeito humano, beirando muitas vezes a vidência e o misticismo, traz consigo, além da possibilidade de servir como um meio de alívio ao sofrimento psíquico, a função de ser também um instrumento utilizado para submeter, regular e dominar o sujeito dito doente, no intuito muitas vezes de controlá-lo e/ou adequa-lo a uma determinada política de comportamento, uma certa normatividade hegemônica da ordem pública, com o forte argumento muitas vezes perverso de preservar o bem estar da coletividade. Sob este aspecto, não é por nada que dita ciência originou-se através de uma sombra bio-médica, tendo como importante figura paterna um neurologista, no caso Sigmund Freud, ansioso por dar ou receber o status de cientificidade 1 Psicólogo, especialista em Saúde Pública, mestrando em Psicologia Social e da Personalidade PUC/RS. Pesquisador vinculado ao Núcleo de Perícia do Centro de Observação Criminológica (COC) da Superintendência dos Serviços Penitenciários (SUSEPE) do RS. E-mail: [email protected] 2 Psicólogo-coordenador do Núcleo de Formação, Pesquisa e Extensão do Centro de Observação Criminológica (COC) da Superintendência dos Serviços Penitenciários (SUSEPE) do RS. Mestrando em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS. E-mail: [email protected]

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Psicologia jurídica

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A Psicologia no Processo de Execução Penal

Júlio César D. Hoenisch1

Pedro J. Pacheco2

A ciência psicológica, conhecida freqüentemente pelo senso comum como aquela

área científica que detém o saber do oculto, possui a capacidade de desvelar os segredos

mais íntimos do sujeito humano, beirando muitas vezes a vidência e o misticismo, traz

consigo, além da possibilidade de servir como um meio de alívio ao sofrimento psíquico, a

função de ser também um instrumento utilizado para submeter, regular e dominar o sujeito

dito doente, no intuito muitas vezes de controlá-lo e/ou adequa-lo a uma determinada

política de comportamento, uma certa normatividade hegemônica da ordem pública, com o

forte argumento muitas vezes perverso de preservar o bem estar da coletividade.

Sob este aspecto, não é por nada que dita ciência originou-se através de uma

sombra bio-médica, tendo como importante figura paterna um neurologista, no caso

Sigmund Freud, ansioso por dar ou receber o status de cientificidade que somente às

ciências naturais clássicas o tinham até o século XIX. Tal necessidade de legitimação trará

implicações críticas e severas a esta inclinação da ciência psicológica, tais como, por

exemplo, sua progressiva psiquiatrização, exemplarmente observável na obsessão de

comprovar a existência de seus postulados a partir de mecanismos positivistas e

quantitativistas de verificação.

Porém, tal origem traz heranças que até os dias atuais se mostram onipresentes,

sendo que a vinculação com as ciências jurídicas se dá também para suprir carências

científicas de regulação da barbárie quando a “ordem social” se sente ameaçada ao entrar

em cena a loucura como um conceito um tanto ambíguo e incerto, incapaz de ser

enquadrado em algo até então pré-estabelecido. Numa origem epistemológica lombrosiana,

a psiquiatria, saber sobre a loucura que se instaura a partir da prática clínica do século

1 Psicólogo, especialista em Saúde Pública, mestrando em Psicologia Social e da Personalidade PUC/RS. Pesquisador vinculado ao Núcleo de Perícia do Centro de Observação Criminológica (COC) da Superintendência dos Serviços Penitenciários (SUSEPE) do RS. E-mail: [email protected] Psicólogo-coordenador do Núcleo de Formação, Pesquisa e Extensão do Centro de Observação Criminológica (COC) da Superintendência dos Serviços Penitenciários (SUSEPE) do RS. Mestrando em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS. E-mail: [email protected]

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XVIII – principalmente com Philippe Pinel, dentro de um espírito iluminista -, adere, ao

longo do século XX, aos novos tempos – assim como a frenologia fornece justificativa para

os tratamentos morais então empregados, as teorias da degenerescência procuram

estabelecer ligação entre a loucura individual e a degeneração racial. A degeneração é a

categoria médico-moral por excelência.3

No que tange aos primórdios da ciência psicológica, o caso Pierre Riviére,

apresentado por Foucault4, mostra-se como um dos marcos pioneiros no processo de

“psiquiatrização” do crime, servindo posteriormente para o surgimento de uma

criminologia clínico-etiológica, individualizante e reducionista do fenômeno criminal. A

lamentável coadunação do direito com esta criminologia etiológica terá como importante

aliada, no decorrer de sua genealogia, o conceito de inconsciente, concebido por Freud.

Porém, haverá aqui uma perversa reversão: não se trata de admitir que a existência do

inconsciente é na verdade um elemento complexificador do escrutínio psiquiátrico, mas sim

seu maior aliado. Produz um saber, uma especificidade que, a partir da premissa de que o

Eu não é uma totalidade, não é totalmente responsável por si, coloca a verdade sempre em

um outro lugar aquém ou além da consciência.

Neste momento, poderíamos esperar um embate entre o sujeito do direito iluminista

(o cidadão portador da razão, ser moral, independente, com livre arbítrio, enfim, uma

unidade) e o sujeito da psicanálise, que é um sujeito descentrado, não unitário, não tão livre

e responsável por si quanto se almeja e deseja. Mas isso não ocorre, estranhamente, pois há

uma junção pragmática entre estes saberes com um fim determinado de manter a já citada

acima ordem social vigente. Neste intuito, esta junção denota eficácia, porém, tal convívio

e hibridização teórica-epistemológica do direito e da psicologia talvez nunca encontre paz

definitiva, apesar das discussões acirradas que estão ocorrendo neste momento sobre a

prática da psicologia neste âmbito.

Contemporaneamente, a chamada Psicologia Jurídica, área ainda considerada

recente no seu reconhecimento dentro e fora da Psicologia, mostra-se como um campo

extremamente vinculado a diversas outras ciências e estudos, como por exemplo, a

Criminologia, o Direito, a Sociologia, a Medicina, mais especificamente a Psiquiatria, além

3 Brito, Leila Torraca de (org). Temas de Psicologia Jurídica. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999. p. 14.4 Foucault, Michel. Resumo dos Cursos do Collège de France (1970-1982). Rio de Janeiro: Jorge

Zahar. 1997.

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de tratar diretamente com questões relacionadas aos Direitos Humanos, Cidadania,

Sistemas Legais, Penais e Penitenciários, Instituição Forense, etc. Diante desta enorme

complexidade de interlocuções necessárias, o psicólogo jurídico seguidamente sofre pela

falta de diretriz profissional, ora totalmente subordinado às ciências jurídicas e às decisões

judiciárias, ora totalmente submisso às ciências médicas5, tendo também que dar conta de

respostas na área sociológica.

Até mesmo a definição deste do conceito de Psicologia Jurídica mostra-se por vezes

ampla e demasiadamente genérica. Pinçando uma das definições conhecidas, Clemente 6

coloca ser a Psicologia Jurídica el estudio del comportamento de las personas y de los

grupos en cuanto que tienen la necessidad de desenvolverse dentro de ambientes regulados

jurídicamente, así como de la evolución de dichas regulaciones jurídicas o leyes en cuanto

que los grupos sociales se desenvuelven en ellos. Dentro das suas especificidades, a

Psicologia Penitenciária, que surge no Brasil a partir da década de setenta e se cristaliza

após a implementação das Leis n 7.209 (Parte Geral do Código Penal) e 7.210 (Lei de

Execução Penal – L.E.P.7), ambas de 11 de julho de 1984, se trata de un área muy

organizacional. Comprende la actuación del psicólogo dentro de las instituciones

penitenciarias: clasificación de los internos en módulos concretos, pregresiones y

regresiones de grado, estudio de la concesión de los permisos penitenciarios de salida, de

los indultos, etc. También se ocupan de la organización general del centro, estudiar el

clima social, realizar tratamientos grupales e individuales, etc (idem)

No que tange à realidade histórica no meio penitenciário rio-grandense, os

psicólogos iniciaram sua inserção através das equipes de observação e avaliação nas

prisões, principalmente após a implementação da L.E.P., que é enfática ao afirmar a

importância da avaliação das condições pessoais e capacidades subjetivas do apenado. Em

suas determinações, os preceitos legais prevêem momentos classificatórios que poderiam

5 Tal submissão traz efeitos nefastos para o trabalho do psicólogo, uma vez que tal referência à medicina se dá pela psiquiatria e criminologia clínica-etiológica, convocando a biologia e o individualismo como significantes analíticos da sua postura, principalmente na elaboração de pareceres e laudos, como já pontuamos no artigo ainda não publicado A psicologia e suas transições: desconstruindo a “lente” psicológica na perícia.6 Clemente, Miguel. Fundamentos de la Psicología Jurídica. Madrid, Pirámide, 1997, citações das p. 25

e 27. 7 Lei de Execução Penal nº 7.210 de 11.07.1984. 12ª ed. São Paulo, Saraiva, 1999.

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ser divididos em duas vertentes de acordo com a orientação jurídica designada,

configurando-se nos exames criminológicos e nos exames de personalidade.

Tendo a L.E.P. como uma de suas linhas básicas de orientação a individualização da

execução penal (artigo 5º: os condenados serão classificados, segundo os seus antecedentes

e personalidade, para orientar a individualização da execução da pena), tal procedimento

institui o exame de personalidade que procura definir o perfil do preso, enquanto pessoa,

que tem, na sua história, características, tendências, desejos, aptidões, interesses,

aspirações, devendo ser acompanhado e preparado para seu retorno ao convívio social. As

Comissões Técnicas de Classificação (C.T.C.), existentes em cada estabelecimento penal,

composta pelo Diretor, dois chefes de serviço, um psicólogo, um assistente social e um

psiquiatra (artigo 7), elaborará o programa individualizador e acompanhará a execução

das penas privativas de liberdade e restritivas de direitos, devendo propor, à autoridade

competente, as progressões e regressões dos regimes (Artigo 6 da L.E.P.), bem como as

conversões da pena em medidas de segurança, ou vice-versa, e a concessão do livramento

condicional.

Diferentemente, a mesma Lei institui, numa outra perspectiva, o exame

criminológico como um estudo jurídico, social, psicológico e psiquiátrico que deve

realizar-se em todo condenado logo no início do cumprimento de sua sentença, com vistas

ao prognóstico criminal. De posse desses elementos, para fins de obtenção dos elementos

necessários a uma adequada classificação e com vistas à individualização da execução

(artigo 8º), tal exame busca analisar e focalizar o preso no seu aspecto criminal, sob a ótica

do binômio crime-criminoso, tendo como ênfase o delito praticado e as causas da sua

inserção na criminalidade.

Concomitantemente, a L.E.P institui, num segundo plano de prioridades, a prática

do acompanhamento psicológico como um requisito básico de “tratamento” penal, tendo na

idéia da ressocialização a sua noção mais ampla. Sob este aspecto de prevenção específica,

o psicólogo jurídico abre uma diferenciada possibilidade de investimento profissional de

uma outra ordem totalmente diversa da anterior.

Apesar de a implementação da prática do acompanhamento psicológico criar

novamente duas vertentes aparentemente antagônicas e ambíguas quando se fala no

investimento psicológico dado ao preso, ou seja, há a demanda jurídica por procedimentos

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instrumentais que visam os exames psicológicos supra citado, e conjuntamente outorga-se a

prática do acompanhamento psicológico (“tratamento”) propiciado ao detento, percebe-se

que esta atividade tem por objetivo legal somente perpetuar as práticas normativas e

disciplinadoras da sociedade punitiva, buscando a correção e a reeducação destes

indivíduos que “desviaram-se” das normas e da ordem pré-estabelecida. Neste aspecto, o

psicólogo novamente é utilizado pelo sistema legal punitivo e regulatório, baseando sua

atuação na análise da psicopatologia e da conduta supostamente desviante do apenado.

Resulta disso, que o profissional psicólogo produz, muitas vezes sem desejar e até mesmo

sem perceber, um discurso totalitário e repressivo, sendo utilizado como mais um

instrumento legitimador deste sistema autoritário, postura esta que, muitas vezes, não

condiz com sua formação pessoal e profissional e com uma observação eficaz sobre a

complexidade do fenômeno penitenciário com um todo.

Concomitantemente, diante da enorme complexidade que é ocupar lugares

totalmente antagônicos, ou seja, de avaliador e de terapeuta penal, o psicólogo jurídico

desenvolve atividades diversas, muitas vezes variando sua intervenção em função das

peculiaridades das relações de poder que se estabelece em cada sociedade, cada

estabelecimento penal e da sua condição pessoal e profissional para aplicar determinada

técnica terapêutica ou avaliativa.

Simbolicamente, os psicólogos através de uma prática histórica marcada pela

imposição de um saber sobre a insanidade e a marginalidade, ou sobre a dualidade

saúde/doença, sobre o normal e o patológico, construiu um lugar muito mais relacionado a

este sistema repressivo e segregador, do que a um espaço humanizador de escuta continente

e aliviante da angústia a que o sujeito preso padece. Com conseqüência, tem-se uma

prática profissional muitas vezes estranha aos preceitos legais, e eminentemente

reducionista e individualista. Um exemplo disso seria a obsessão por diagnosticar, rotular e

classificar o indivíduo preso, numa espécie de ode ao método: dividir em tantas partes

quanto preciso para melhor conhece-lo.

Dentro do sistema penitenciário gaúcho, tal atuação não se dá de forma

diferenciada, apesar dos esforços de alguns psicólogos que procuram efetivar práticas

alternativas. Primeiramente, desde sua origem no Estado do RS, tratava-se de determinar

uma interpretação muito circunscrita do trabalho deste profissional, voltada para

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interpretações e intervenções partidárias de uma criminologia clínica-etiológica incentivada

pelas diretrizes do órgão gerencial que era responsável pela atuação dos psicólogos até

meados de novembro de 2000.

Por fim, como ocorreu com a área do Serviço Social em épocas anteriores8, a

psicologia penitenciária, por pertencer a este sistema fechado e extremamente violento,

com o passar dos anos e influenciada pela origem marcada pela busca de reconhecimento

científico através da vinculação direta com a medicina, através da psiquiatria e do direito,

tornou-se uma prática fomentadora e estimuladora desta mesma política repressiva e

punitiva que permeia todos os referenciais de controle social existente desde séculos.

Conseqüentemente, percebe-se na prática que a priorização deste enfoque ocasiona uma

maior estigmatização do condenado, tornando-se extremamente difícil se vislumbrar

possibilidades e estratégias para o retorno benéfico deste sujeito ao convívio social.

Diante disso, é perceptível a necessidade dos profissionais da psicologia no âmbito

jurídico efetuarem rupturas epistemológicas e teóricas, sem as quais uma prática embasada

não é possível. Os impedimentos são muitos para a modificação de uma prática menos

positivisto-funcionalista. Resta-nos como pesquisadores e profissionais, em uma época de

profundas modificações na ciência e nas fronteiras das disciplinas, buscar a construção de

uma prática da psicologia consonante com suas assertivas humanizadoras, crítica e

comprometida com a vida, quer seja do sujeito preso ou em liberdade, sem julgar, vigiar ou

punir, fazendo apenas a sua função de respeito à dignidade e integridade do ser humano9.

8 Ver Guindani, Miriam. Tratamento Penal: a Dialética do Instituído e do Instituinte. No prelo.9 Código de Ética Profissional do Psicólogo, Princípios Fundamentais, I.