A Recepção da Fanon no Brasil e a Identidade Negra

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/3/2019 A Recepo da Fanon no Brasil e a Identidade Negra

    1/16

    Frantz Fanon um nome central nos estudos cultu-rais,ps-coloniais e africano-americanos,seja nos Estados Unidos,nafrica ou na Europa.Falamos muitas vezes de estudos fanonianos, talo volume de estudos que tm a sua obra como objeto de reflexo.Meus

    colegas e alunos negros brasileiros devotam a ele a mesma admirao,respeito e devoo que seus irmos de cor africanos e do hemisfrionorte. No entanto,quando busquei material para escrever este artigo,deparei-me com um silncio impactante,em revistas culturais ou aca-dmicas,que perdurou at meados da dcada de 1960.

    A RECEPO DE FANON NO BRASILE A IDENTIDADE NEGRA 1

    Antonio Srgio Alfredo Guimares

    RESUMO

    Neste artigo, uso fontes bibliogrficas e testemunhos para

    analisar a recepo de Fanon pelo meio intelectual brasileiro, assim como sua influncia sobre a formao de identida-

    des negras. Enquanto observo uma recepo morna, argumento que isso se deveu a trs fatores: primeiro, a especifici-

    dade da esquerda latino-americana nos anos 1960; em segundo, uma constituio racial e nacional totalmente oposta

    a conflitos raciais; e, em terceiro, o nmero reduzido nas universidades brasileiras de professores e pesquisadores

    negros que abordem a formao da identidade negra ou a afirmao de sujeitos racialmente oprimidos.PALAVRAS-CHAVE:Frantz Fanon;identidade negra;sujeitos racialmente

    oprimidos; conflitos raciais.

    SUMMARY

    In this article, I use bibliographical sources and testimonies

    to analyse the reception of Fanon by the Brazilian intellectual milieu, as well as his influence upon the formation of

    black identities. As I observe a lukewarm reception I argue it was due to three factors: First, the specificity of the Latin

    American left in the 1960s;second,a national and racial makeup totally opposed to racial conflicts;and third the small

    number of black professors and researchers at Brazilian universities who focus on the formation of black identity or

    the affirmation of racially oppressed subjects.

    KEYWORDS:Frantz Fanon; black identity; racially oppressed subjects;

    racial conflicts.

    99NOVOS ESTUDOS 81 JULHO 2008

    [1] Verso anterior deste texto foi

    apresentada no colquio Penser

    aujourdhui partir de Frantz

    Fanon, Universits Paris 1, Paris 7,

    Paris 8, Unesco, Fondation Frantz

    Fanon;Paris,31 novembro e 1 dezem-

    bro de 2007. So muitas as pessoas

    que me ajudaram a colher informa-

    es sobre Fanon no Brasil; algumas

    delas esto citadas no texto, outras

    no.Entre estas,lembro-me de algu-

    mas e nomeio-as ao tempo em que

    peo desculpas a quem esqueci:

    Andrew Kirkendall, Carlos Nelson

    Coutinho, Helena Hirata, Ismail

    Xavier,Joelzito de Araujo, Jos Maria

    Nunes Pereira, Jlio Csar Tavares,

    Mariza Correa,Nadya Araujo Guima-

    res,Paulo Farias,Renato da Silveira.

  • 8/3/2019 A Recepo da Fanon no Brasil e a Identidade Negra

    2/16

    No Brasil, como em toda a parte, Fanon entrou na cena culturalquando a violncia revolucionria estava na ordem do dia, emboratenha sido lido timidamente,ombreado por guerrilheiros pensadorescomo Fidel Castro, Che Guevara, Camilo Torres; ou por lideranas

    negras como Stockley Carmichael, Malcom X e Eldridge Cleaver; ouAmlcar Cabral, Agostinho Neto, Kwame NKrumah. Mas, passadaessa fase,seu pensamento,ao contrrio do que ocorreu alhures,no foiobjeto da reflexo exegtica e crtica por parte de universitrios e aca-dmicos brasileiros,estabelecidos em centros de estudos.

    OS ANOS 1960 E A EPIDEMIA SARTRE

    O pensamento de Fanon chega ao Brasil como chegaram todas as

    idias novas em livros europeus e numa poca em que o mar-xismo e o existencialismo disputavam o proscnio da cena cultural epoltica brasileira.

    Uma leitura atenta das principais revistas culturais brasileiras dosanos 1950 no me rendeu nenhum conhecimento sobre a recepo deFanon. como se a publicao dePeau noir, masques blancs (1952)tivesse passado despercebida.AAnhembi, de So Paulo,publica,entre1953 e 1955,todos os estudos de relaes raciais entre brancos e negrosem So Paulo, frutos do projeto coordenado por Roger Bastide e Flo-restan Fernandes,alm de algumas reaes a estes estudos.O prprioBastide, depois de retornado a Paris, em 1954, escreve regularmentecrticas e comentrios a livros que esto sendo lanados na Europa,principalmente na Frana;mas no menciona Fanon em sua atividaderecensria.Nada encontramos tambm naRevista Brasiliense. ClvisMoura,Florestan Fernandes e Octvio Ianni escrevem na revista sobretemas negros (revolta dos mals, relaes raciais, poesia), mas semmencionar o autor martinicano.Srgio Milliet,em 1958,faz uma rese-

    nha abrangente da poesia negra e,como no podia deixar de ser,cita ospoetas da ngritude e Sartre.Apenas.O Brasil comea a se familiarizar com as idias de Fanon um pouco

    antes de sua morte, mais precisamente durante a estadia de Jean-PaulSartre e Simone de Beauvoir no pas,entre agosto e setembro de 1960.Sartre e Beauvoir chegam ao Rio de Janeiro, vindos de Havana, parapromover a solidariedade internacional necessria para sustentar arevoluo cubana e a guerra de libertao da Arglia. Certamente aintelectualidade brasileira, to prxima do que se passava em Paris,

    acompanhava,atravs deLes Temps Modernes,as posies anticolonia-listas do filsofo.A sua peregrinao China,a Cuba e ao Brasil tinhaclaramente um carter militante. O colonialismo um sistema quenos infecta com seu racismo,escrevera Sartre,em 1956.A sua militn-cia vai alm das palavras:durante sua estada no Brasil,Sartre passar a

    100 A RECEPO DE FANON NO BRASIL E A IDENTIDADE NEGRA Antonio Srgio Alfredo Guimares

  • 8/3/2019 A Recepo da Fanon no Brasil e a Identidade Negra

    3/16101

    [2] Beauvoir, Simone.La force des

    choses.Paris:Gallimard,1963,p.549.

    [3] Ibidem,p.561.

    responder a um processo criminal em Paris,junto com outros 121 inte-lectuais que assumiram abertamente a cooperao com a FrenteNacional de Libertao da Arglia.

    Na dcada anterior, o jornal negro Quilombo publicara trechos de

    seu Orfeu Negro, a mostrar que o racismo anti-racista dos negrosfrancfonos encerrava em si uma nova dialtica de libertao. Noentanto,no h registro de que Sartre tenha se encontrado com Abdiasdo Nascimento ou com qualquer outra liderana poltica negra brasi-leira.Sartre estava entre ns,defendendo as mesmas posies antiim-perialistas dos comunistas e da esquerda catlica com relao a Cubae Amrica Latina, sia e frica;e a luta anti-racista e anticolonialdos africanos comeava a ficar mais prxima.

    No tenho informaes sobre se Sartre citou Fanon em suas con-

    ferncias, mas as idias do jovem martinicano causavam grandeimpresso sobre Sartre poca, como se pode inferir dos dirios deBeauvoir.Ao recordar-se de uma visita a um barraco em Ilhus,porexemplo, ela nota os homens de pele e cabelos escuros nos olhavam,machadinhas em mos, o dio nos olhos. A revoluo no TerceiroMundo, como pensava Fanon, deveria ser obra de camponeses e nodesses trabalhadores das docas que tambm eles viram em Ilhus,musculosos, saudveis, que sabiam rir e cantar. Comparado aoscamponeses, o proletariado se constitui no Brasil uma aristocracia,anotou Beauvoir2.Sartre tambm chamou ateno para a segregaoque os negros brasileiros sofriam, medida que percebia que seusinterlocutores eram todos brancos das classes mdia e alta:

    Jamais vimos nos sales,nas universidades, nem nos auditrios um rostochocolate ou caf com leite.Sartre fez essa observao em voz alta duranteuma conferncia em So Paulo,depois se corrigiu:havia um negro na sala um tcnico de televiso3.

    Evidentemente,Sartre e Beauvoir no encontraram no Brasil quempensasse que os negros brasileiros fossem vtimas de racismo;encon-traram, ao contrrio, o discurso unnime de que a segregao dosnegros era econmica e a luta libertadora deveria ser de classes. Nopareceram plenamente convencidos,pois,segundo Beauvoir,o fato que todos os descendentes dos escravos continuaram proletrios; eque,nas favelas, os brancos pobres se sentem superiores aos negros.Talvez.Mas o sucesso de Sartre no Brasil se deveu s suas conferncias

    sobre o colonialismo e a necessidade histrica das lutas de indepen-dncia dos povos do Terceiro Mundo.

    O anti-racismo e o anticolonialismo de Sartre conviveram,no Bra-sil, com o republicanismo de sua audincia a classe mdia letrada deestudantes,escritores e intelectuais.O Brasil,para Sartre,no era um

    NOVOS ESTUDOS 81 JULHO 2008

  • 8/3/2019 A Recepo da Fanon no Brasil e a Identidade Negra

    4/16

    [4] Ibidem.

    [5] Amado,Jorge.Cacao.Les Temps

    Modernes,n 104/105,juin-aot 1954.

    [6] Idem. Les trois morts de Quin-

    quin-la-flotte.Les Temps Modernes ,

    n 178,fev. 1961, pp.868-915.

    [7] Gordon, Lewis, Sharpley-Whi-

    ting, T. Denean e White, Rene T.

    (eds.).Fanon: a critical reader.Oxford:

    Blackwell,1996,p.4.

    simples transplante europeu como os Estados Unidos;afinal,todos os[brasileiros] que encontrei sofrem a influncia dos cultos nag4. Aassimilao e a integrao no pareciam aqui engenhosos discursos dedominao;ao contrrio,pareciam ter amulatado o pas,como queria

    Freyre e tambm pensava Jorge Amado,seu anfitrio.Alis,Sartre eBeauvoir j estavam de h muito familiarizados com as idias de ambos.Devemos lembrar que extratos de Cacauhaviam sido publicados emLesTemps Modernes5,assim como uma resenha elogiosa da edio francesadeCasa-grande e senzala (Pouillon,1953),e queQuincas Berro Dgua seriapublicado na mesma revista depois de seu retorno a Paris6.

    Para compreender a posio de Sartre preciso lembrar que omundo do ps-guerra polarizara-se rapidamente em dois eixos. Noprimeiro, a contraposio se dera em torno da descolonizao e do

    racismo, que opunham o Norte ao Sul. Sartre participara ativamenteda construo desse plo.Escrevera o prefcio da Anthologie de la nou-velle posie ngre et malgache de la langue franaise (1948,1949),em queabraara a negritude, o movimento de afirmao identitria e dereconstruo cultural, tnica e racial de africanos e afro-caribenhos,ainda que fazendo uso da velha concepo de racismo como doutrina a negritude, segundo ele, seria um racismo anti-racista. Desde osanos 1950, porm, passara a acolher nas pginas de sua revista umanova concepo do que era o racismo no ps-guerra:aquele,que ape-sar de negado doutrinariamente,era realizado e vivido nas prticassociais e polticas de colonizadores e colonizados.No segundo eixo,apolarizao se dera entre os intelectuais que defendiam a ordem bur-guesa e liberal, por um lado, e aqueles que se faziam porta-vozes dosinteresses operrios e camponeses,a partir do marxismo ou de outrasideologias. O primeiro eixo marcado pelas raas e pela descoloniza-o;o segundo,pela luta de classes e pelo antiimperialismo.Ora,Sar-tre e Fanon representavam a fuso do antiimperialismo, do anti-

    racismo,da descolonizao e das lutas de classes.No Brasil dos anos 1950 e 1960,entretanto,esses dois eixos no seencontravam: liberais e marxistas, brancos e negros, igualmente,tinham o mesmo projeto anti-racista de construo de uma naomestia, brasileira e ps-europia, que ultrapassasse a polaridadeentre brancos, de um lado, e negros e indgenas, de outro. O que osdividia era apenas a defesa da ordem burguesa ou a aposta na luta declasses.As raas desapareciam,assim,na superexposio conceitual epoltica das classes sociais. Passava-se o mesmo em toda a Amrica

    Latina, inclusive na Cuba socialista, que Fanon quis conhecer7 e queSartre conhecera em 1960.

    No fora Fanon fruto da convergncia entre essas duas polariza-es.Guerreiro Ramos,ativista negro e socilogo,o poderia ter intro-duzido aos brasileiros de 1960,pois tinha alguma afinidade com o seu

    102 A RECEPO DE FANON NO BRASIL E A IDENTIDADE NEGRA Antonio Srgio Alfredo Guimares

  • 8/3/2019 A Recepo da Fanon no Brasil e a Identidade Negra

    5/16

    [8] Ortiz,Renato. Cultura brasileira

    e identidade nacional.So Paulo:Brasi-

    liense,1998,p.51.

    [9] Fanon, Frantz. Racisme et cul-

    ture. Prsence Africaine, 2me srie,

    nos VIII-IX-X, juin-nov. 1956, pp.

    122-131; idem. Fondement rcipro-

    que de la culture nationale et des lut-

    tes de libration. Prsence Africaine,

    2me srie, nos XXIV-XXV, fev.-mai

    1959,pp.82-89.

    [10] Idem. LExprience vcu du

    noir.Esprit, n 179, mai. 1951, pp.

    657-679. Idem. Le syndrome nord-africain.Espritn 187, fv. 1952,pp.

    237-284. Idem. Antillais et Afri-

    cains.Esprit. n 223, fv. 1955,pp.

    261-299.

    [11] Idem. La minorit europenne

    dAlgrie en lAn V de la Rvolution.

    Les Temps Modernes ,n 159-160,1959,

    pp.1841-1867;idem. De la violence.

    Les Temps Modernes, n 181, 1961, pp.

    1453-1493.

    [12] Paiva, Vanilda P.Paulo Freire e onacionalismo-desenvolvimentista.Rio

    de Janeiro/Fortaleza:Civilizao Bra-

    sileira/Edies UFC,1980.

    [13] EmA reduo sociolgica ,de 1958,

    Guerreiro cita explicitamente Aim

    Csaire (Discours sur le colonialisme,

    Paris:Prsence Africaine,1955),Cheik

    Anta Diop (Nations ngres et culture.

    Paris:Prsence Africaine,1954) e Sar-

    tre (Le colonialisme est um sys-

    tme.Les Temps Modernes, n 126,

    1956) em francs,mas no se refere aFanon. Na segunda edio, de 1965,

    Guerreiro acrescenta a essas leituras

    Balandier (Sociologie actuelle de l Afrique

    noire. Dynamique des changements

    sociaux en Afrique centrale. Paris: PUF,

    1955) e continua sem se referir a Fanon.

    [14] Ver a coleo do Niger, jornal

    dirigido por Jos Assis Barbosa e Jos

    Correia Leite, em So Paulo, 1960.

    Coleo Mirian Ferrara, IEB-USP.

    [15] Informao de Michel Lwy ao

    autor, em dezembro de 2007. Lwy

    sai do Brasil em agosto de 1961 e volta

    em dezembro do mesmo ano por dois

    ou trs meses, provavelmente tra-

    zendo uma cpia do Damns de la

    Terre,recm-lanado em Paris.

    pensamento.No s ele,mas todos os demais membros do Iseb,comoobservou Renato Ortiz:

    O que chama a ateno nos escritos de Fanon e do Iseb que ambos se

    estruturam a partir dos mesmos conceitos fundamentais:o de alienao e ode situao colonial. As fontes originrias so tambm,nos dois casos,idn-ticas:Hegel,o jovem Marx,Sartre e Balandier8.

    Se Guerreiro no o fez foi porque a desalienao e a descoloniza-o cultural que buscava no passavam pela luta de classes. Provavel-mente conhecia Fanon,pois era leitor dePrsence Africaine9,deEsprit10

    e deLes Temps Modernes11, alm de revistas acadmicas francesas. Ofato que,para articular o seu libelo contra a colonizao cultural dos

    brasileiros claros e escuros, Guerreiro bebera em algumas dasmesmas fontes que Fanon, mas no em todas. A mesma inclinaopor Hegel e pelo existencialismo,quando somadas a situaes nacio-nais e projetos pessoais diversos, levara Guerreiro a posies nacio-nalistas e populistas12,afastando-o de doutrinas revolucionrias quepregavam a violncia como modo de transformao social ou quedefendiam a manuteno de diferenas culturais entre colonizados ecolonizadores13.

    Tambm a imprensa negra paulistana dos anos 1960, formada porhomens e mulheres com situao de classe mais precria que Guer-reiro,parecia desconhecer Fanon em sua campanha de solidariedadeaos movimentos de libertao africana,continuando sintonizada como discurso da ngritude de Senghor e de Sartre dos anos 1948,a quemcitam diretamente14.

    FANON E A ESQUERDA REVOLUCIONRIA

    Certamente, a esquerda brasileira tomou conhecimento de Fanonatravs do extrato deDamns de la terre (1961),publicado emLes TempsModernes, e do prefcio de Sartre. Ou seja,o Fanon sartriano deDe laviolence. Michel Lwy, por exemplo,se lembra de ter discutido o pre-fcio de Sartre com seus companheiros em So Paulo,provavelmenteainda em dezembro de 196115. H que se notar dois fatos na informa-o:primeiro,foi o prefcio de Sartre e no o artigo ou o livro de Fanonque foi discutido;segundo,a esquerda brasileira discutia seriamentea violncia revolucionria,o que significava que os autores que escre-

    viam sobre a Amrica Latina,sobre tticas de guerra urbana ou guer-rilha, ou faziam a teoria geral da revoluo em sintonia com a filoso-fia europia,eram privilegiados na leitura.

    O silncio da esquerda brasileira sobre Fanon precisa ser enten-dido,ademais,como discordncia poltica,tantos so os sinais indire-

    103NOVOS ESTUDOS 81 JULHO 2008

  • 8/3/2019 A Recepo da Fanon no Brasil e a Identidade Negra

    6/16

    [16] Em entrevista a Verena Alberti e

    Amilcar Pereira (19/12/2006), Jos

    Maria Nunes Pereira, que dirigiu o

    Centro de Estudos Asiticos da Cn-

    dido Mendes, entre 1973 e 1986,

    comenta: Fanon era nome cortadona esquerda.

    [17] Chaliand, Grard. Problemas

    do nacionalismo angolano. Tempo

    Brasileiro, n 6,1966, pp.77-98.

    [18] Ver Nghe,Nguyen.Frantz Fanon

    et les problmes de lindpendance.

    La Pense.n 107,1963,pp. 23-36.

    [19] Arendt, Hannah. On violence.

    Nova York:Harcourt,Brace & World,

    1970.

    [20] Monthly Review, n 17, v. 1, June

    1965 (contracapa).

    tos de sua presena,a partir de meado dos anos 1960. O que acontecetanto no mundo negro quanto no branco16.Alguns fatos devem ser lis-tados para que se compreenda como se estabeleceu essa relao difcilentre Fanon e a esquerda no Brasil. O primeiro deles que pouco

    depois desse primeiro contato sobreveio o golpe militar de 1964, quelevou ao exlio um grande nmero de militantes. O segundo queaqueles que acreditavam na violncia revolucionria passaram clan-destinidade, tornando tnues os seus elos com o mundo cultural. Oque se l sobre Fanon, portanto, nos anos 1960, muito pouco. Asituao comea a mudar apenas quando as cidades norte-americanasso tomadas pelas chamas das riots negras,e se sabe que Fanon era lidoe discutido febrilmente pelos revolucionrios norte-americanos,como os Panteras Negras.

    A revista Tempo Brasileiro publica, em 1966, um artigo de GrardChaliand,em que o autor abre uma nota de p de pgina para registrar:apoiando-se nas anlises mais contestveis de Fanon aquelassobre os camponeses africanos. Ver sobre esse assunto a melhor e,alis, a nica anlise marxista consagrada ao pensamento de Fanon:Frantz Fanon et les problmes de lindpendance (La Pense, n107)17.Referia-se a Nghe18, um dos grandes adversrios de Fanon nomundo africano.

    Os marxistas brasileiros, portanto, seguiam as crticas marxistas e tambm liberais19 s concepes polticas de Fanon.No Brasil,a esquerda reverenciava Fanon, mas, se o lia em francs,no o citava;impondo-se um silncio obsequioso.O mesmo no se passava com osmarxistas da Monthly Review,cujos artigos eram regularmente tradu-zidos e publicados por revistas brasileiras.O motivo da reverncia e dosilncio sobre Fanon pode ser buscado, como j sugeri,na sua centra-lidade para as lutas que se desenvolviam nos Estados Unidos daqueletempo.Os rebeldes afro-americanos tambm se consideram africanos

    e sujeitos coloniais,atitude muito bem captada pelas palavras dos edi-tores daMonthly Review:

    Se voc ainda no conhece,grave bem o nome de Frantz Fanon que se tor-nou talvez o mais respeitado porta-voz dos oprimidos coloniais.Seu livro Lesdamns de la terre acaba de ser publicado sob o ttulo The wretched ofthe earth, e o recomendamos enfaticamente20.

    Em novembro de 1966,Goldman resenha em cinco pginasStudies

    in a dying colonialism, e cunha uma frase lapidar sobre o que significavaFanon para a rebelio negra daqueles anos:

    Fanon popular porque fala,sobretudo, da prpria luta e por dentro daRevoluo,como um participante.Os jovens radicais negros que o lem,que

    104 A RECEPO DE FANON NO BRASIL E A IDENTIDADE NEGRA Antonio Srgio Alfredo Guimares

  • 8/3/2019 A Recepo da Fanon no Brasil e a Identidade Negra

    7/16

    [21] Goldman,Lawrence.Fanon and

    black radicalism.Monthly Review , v.

    18, n 5,nov.1966,p. 58.

    [22] Buchanan,Thomas G. Revolta

    Colonial.Revista da Civilizao Bra-

    sileira, nos 19-20,1968,p.34.

    [23] Sodr, Nelson W.O momento

    literrio.Revista da Civilizao Brasi-

    leira, nos 21-22,1968,p.198.

    [24] Goldman,op.cit.,p.55.

    [25] Nascimento, Abdias. O teatro

    negro no Brasil: uma experincia s-

    cio-racial.Revista da Civilizao Brasi-

    leira,Caderno Especial 2,1968,p.206.

    internalizam sua viso e respondem com fervor s suas idias, so, ademais,pessoas que lutam intensamente contra um sistema que no tm certeza sepodem derrubar.Para Fanon,o importante a transformao,a mutaointerior que ocorre durante a luta,o modo como os condenados da terra se

    libertam durante a confrontao inevitvel entre opressores e oprimidos.Eh outra idia que o mdico negro da Martinica,que escreve sobre a Revolu-o argelina,sugere a esses jovens radicais: que o sistema contra o qual eleslutam o mesmo contra o qual ele, Fanon, luta, e que ambos se opem a umopressor comum em nome de um mesmo ideal21.

    Significaria Fanon o mesmo para os negros brasileiros? O certo que,finalmente,em 1968,aparece a edio brasileira deCondenados daterra, rapidamente retirada de circulao pelos rgos de represso

    poltica,mas no antes de cair nas mos de dezenas de militantes.Pen-samento explosivo tanto para a luta de classes quanto para o projeto dedemocracia racial.Buchanan,naRevista da Civilizao Brasileira ,escreve:Deve-se lembrar que Malcolm X que junto com Frantz Fanon, foia principal inspirao de Carmichael foi o nico lder negro ameri-cano que aplaudiu o assassinato de Kennedy22.

    Na mesma revista, o crtico literrio comunista Nelson WerneckSodr,num grande balano dos lanamentos do ano,registra:O colo-nialismo,em sua brutalidade,est espelhado na obra de Frantz Fanon,Os condenados da terra, que estuda os efeitos da tortura23.Nesta fraseouve-se o eco das torturas que a ditadura militar comea a rotinizar,assim como a simpatia por interpretaes semelhantes de Goldman:Uma das contribuies mais importantes para o pensamento social[] sua brilhante anlise das relaes entre desordem mental e colo-nialismo,entre desajustamento sexual e represso poltica24.

    Psicanalista brilhante e mau poltico,para uns;idelogo radical,para outros,Fanon ter de esperar por uma nova esquerda para ser lido

    com simpatia. At mesmo o lder negro Abdias do Nascimento que,em seus artigos dos anos 1960,traa influncias do movimento negro,analisa a conjuntura internacional,enfatiza a ngritude,a cultura negra,fala do estupro de origem da miscigenao brasileira, menciona aslutas de libertao na frica,o fermento do negro norte-americano,mas nada diz sobre Fanon:

    Parafraseando Toynbee,e em virtude de certas condies histricas,umdecisivo papel est destinado ao negro dos Estados Unidos num rumo novo

    poltico e cultural para os povos de cor de todo o mundo. Seria, porassim dizer,o recolhimento da herana legada pela atual gerao de grandesnegros Leopold Sdar Senghor,Kwame NKrumah,Langston Hughes,Jomo Keniata, Aim Cesaire,Sekou Tour,Nicols Guilln,Peter Abraham,Alioune Diop,Lumumba,James Baldwin,Mrio de Andrade 25.

    105NOVOS ESTUDOS 81 JULHO 2008

  • 8/3/2019 A Recepo da Fanon no Brasil e a Identidade Negra

    8/16

    [26] Alis,era comum entre os isebia-

    nos,influenciados pela leitura de Toyn-

    bee, a referncia aos pases subdesen-

    volvidos como proletariado externodo mundo ocidental. Paiva,Vanilda P.

    op.cit.,p.159.

    [27] Nascimento,Abdias. O Genoc-

    dio do negro brasileiro.So Paulo:Paz e

    Terra,1978.

    [28] Ianni, Octvio. Imperialismo y

    cultura de la violencia en Amrica Latina.

    Cidade doMxico:Siglo XXI,1970.

    [29] Moura, Clvis.Dialtica radical doBrasil.So Paulo,Editora Anita,1994.

    [30] Informao pessoal que me foi

    passada por Valter Silvrio, professor

    da UFSCar e ex-aluno de Ianni.

    [31] Alberti,Verena e Pereira,Amlcar

    Arajo. Entrevista com Jos Maria

    Nunes Pereira.Estudos Histricos , n

    39,2007.

    [32] Domergue, Raymond. Refle-

    xes sobre a violncia.Paz e Terra, n

    7,1968,p.51.

    Abdias era muito prximo ao Iseb e a Guerreiro Ramos e ambosnutriam imenso respeito por Toynbee, algo comum aos isebianos,como nos ensina Vanilda Paiva26. Frantz Fanon tornar-se- uma refe-rncia importante para Abdias s depois de 1968, quando provavel-

    mente o lder negro brasileiro introduzido obra de Fanon, larga-mente traduzida, discutida e comentada nos Estados Unidos, ondeest exilado.S a partir do Genocdio do negro brasileiro27 Fanon passa aser referido nos escritos de Abdias.

    O mesmo acontecer com Octvio Ianni e com muitos intelectuaisbrasileiros exilados.O seuImperialismo y cultura de la violencia en AmricaLatina28 j absorve a discusso de Fanon e dos marxistas da MontlyReview. O mesmo verdadeiro para Clvis Moura29.Ianni,de volta aoBrasil nos anos 1980,e reintegrado universidade,far de Fanon lei-

    tura obrigatria em suas classes e o indicar aos estudantes negros quedele se aproximam30.

    Se Fanon era nome cortado na esquerda brasileira,nos meadosde 1960, como disse Jos Maria Pereira, que, vindo dos grupos lis-boetas ligados ao MPLA angolano31, certamente conhecia Fanon em1962,no o era certamente em toda esquerda,sobretudo a de inspira-o catlica.Estes ganhavam influncia medida que os partidoscomunistas eram dizimados pela represso poltica e no repudiavamtotalmente a violncia revolucionria dos colonizados e o anti-racismo,aos quais o nome de Fanon estava indissoluvelmente ligado.A revistaPaz e Terra,rgo muito prximo da esquerda catlica,publi-cou,no seu nmero 7,a traduo de um artigo de Raymond Domergue,que toma justamente Os condenados da terra como parmetro para tra-ar um guia da ao poltica catlica em face da emergncia de lutasrevolucionrias no Terceiro Mundo:

    Esta longa seqncia de citaes [de Fanon] nos parecia necessria para

    demonstrar como a violncia que se torna uma situao pode de repente fazeruma irrupo sob forma de violncia armada. A violncia revolucionria no seno uma transposio de uma violncia precedente que tem suas razesem uma explorao de tipo econmico32.

    No exlio chileno desde 1964,foi o pedagogo revolucionrio PauloFreire, tambm muito influenciado pelo pensamento existencialistacatlico e pelo nacionalismo anticolonialista do Iseb,quem fez a lei-tura de Fanon mais absorvedora.Em suaPedagogia do oprimido, Freire

    foi,talvez,o primeiro brasileiro a abraar as idias de Fanon.Pelas indi-caes do prprio Freire,ele tomou conhecimento do revolucionriomartinicano entre 1965 e 1968. o que ele insinua em duas passagensdePedagogia da esperana:

    106 A RECEPO DE FANON NO BRASIL E A IDENTIDADE NEGRA Antonio Srgio Alfredo Guimares

  • 8/3/2019 A Recepo da Fanon no Brasil e a Identidade Negra

    9/16

    [33] Freire, Paulo.Pedagogia da espe-

    rana.So Paulo:Paz e Terra,1992,p.19.

    [34] Ibidem,p. 141.

    [35] Paiva,Vanilda P. op.cit., p.141.

    [] mais tarde,muito mais tarde, li em Sartre (prefcio aOs condena-dos da terra, de Frantz Fanon ) como sendo uma das expresses da coni-vncia dos oprimidos com os opressores33.

    []

    Tudo isso os estimulava [os camponeses espanhis] como a mim me esti-mulara a leitura de Fanon e de Memmi,feita quando de minhas releiturasdos originais da Pedagogia.Possivelmente,ao estabelecerem sua convivn-cia com a Pedagogia do oprimido, em referncia prtica educativa quevinham tendo,devem ter sentido a mesma emoo que me tomou ao me aden-trar nos Condenados da terra e no The colonizer and the colonized.Essa sensao gostosa que nos assalta quando confirmamos a razo de ser dasegurana em que nos achamos 34.

    A ltima passagem sugere que a leitura de Condenados se deu quandoo manuscrito dePedagogia j estava pronto,pois Freire fala em minhasreleituras dos originais.Como o manuscrito de 1968 e a primeira edi-o de 1970,essa uma interpretao plausvel.Mas,ao mesmo tempo,Freire d indicaes de que leu Fanon na edio mexicana de 1965. Ocerto, portanto, que ele toma conhecimento de Fanon entre 1965 e1970,um perodo de radical mudana na sua teorizao:

    Absorvido pelo trabalho prtico desde a criao do seu mtodo,restara aFreire pouco tempo para o trabalho terico, e quando a queda do governoGoulart o obriga a parar,ele precisa recuperar o seu ponto de partida em1959.Estamos,efetivamente,diante de um atraso relativo da teoria.Freireno pudera ainda digerir as novas influncias e incorporar teoricamentenovas posies;por isso,sua conscincia terica j no dava conta de toda asua prtica e ele carecia,naquele momento,de instrumentos tericos e meto-dolgicos que possibilitassem uma reinterpretao da realidade e uma revi-so profunda do seu discurso pedaggico.Um esforo mais conseqente nesta

    direo ele o far mais tarde e Pedagogia do oprimido o seu resultado35

    .

    Seja como for,os intelectuais brasileiros disponveis para receber ainfluncia revolucionria e radical de Fanon se encontram,depois de1964,livres de fidelidades partidrias e descolados de correntes filo-sficas bem estabelecidas.

    Outro receptor notvel foi Glauber Rocha. Alguns, como IsmailXavier,chegaram mesmo a ver influncia direta de Fanon nos escritosdo jovem Glauber:

    notvel,em Glauber,o sentimento da geopoltica (de que o cinema umdos vetores) como eixo de um confronto no qual o oprimido s se torna visvel(e eventual sujeito no processo) pela violncia. Apoiado em Frantz Fanon,eleexplcita tal sentimento em Por uma esttica da fome, acentuando a

    107NOVOS ESTUDOS 81 JULHO 2008

  • 8/3/2019 A Recepo da Fanon no Brasil e a Identidade Negra

    10/16

    [36] Xavier,Ismail. Prefcio.In: Ro-

    cha,Glauber.Revoluo do Cinema Novo .

    So Paulo:CosacNaify,2004,p.21.

    [37] Rocha, Glauber. Uma esttica

    da fome.Revista da Civilizao Brasi-leira,n 3,1965,p.169.

    [38] Rocha, Glauber. Revoluo do

    cinema novo. So Paulo: CosacNaify,

    2004,p.455.

    [39] Mendona,Mary E.Ramalho de.

    Histria e cinema: cinemanovismo e vio-

    lncia na Amrica Latina (dcadas de

    1960 e 1970). 2 vol. So Paulo: livre-

    docncia,ECA-USP,1995.

    demarcao dos lugares e o conflito estrutural que deriva da barreira econ-mico-social,cultural e psicolgica que separa o universo da fome do mundodesenvolvido36.

    Xavier faz a conexo entre Fanon e Glauber a partir do seguintetrecho:

    Do cinema novo:uma esttica da violncia antes de ser primitiva revolu-cionria,eis a o ponto inicial para que o colonizador compreenda a existnciado colonizado;somente conscientizando sua possibilidade nica, a violncia,o colonizador pode compreender,pelo horror,a fora da cultura que eleexplora.Enquanto no ergue as armas,o colonizado um escravo:foi precisoum primeiro policial morto para que o francs percebesse um argelino37.

    Mas Glauber, ele mesmo, no se lembra de ter lido Fanon poressa poca. O mais provvel que tenha lido Sartre, pois ele diz emoutro texto:

    Foi na poca de JK , inda na Bahia, que ouvi falar em nacionalismoanti/Ufnico.Entrando jovem no ltamaraty,Arnaldo Carrilho levou a Pai-xo do cinema novo pros Festivais Internacionais /era o que Brazyl precisavapra se descolonizar culturalmente no mundo. Dialeticamente uma priori-dade era o desenvolvimento dos mercados internos (economia /cultura) masantes de chegar s minhas mos por indicao do teatrlogo Antnio PedroOs condenados da terra, de Frantz Fanon, j o sopro de Jorjamado noslanava, antes do Modernismo pra romper as cadeias da submisso ideol-gica, ncleo do complexo de inferioridade colonial, nostro cncer, principalarma dos invasores38.

    Ao que parece,Glauber toma conhecimento de Fanon apenas em

    1968,pela edio brasileira deOs condenados da terra.Mas Ismail Xaviertem razo:em Glauber,Fanon parece viver inteiro e no pela metade,ser um pensamento e no apenas um nome.A tese de Xavier corrobo-rada por Mendona39.

    No deixa de ser revelador que os intelectuais inicialmente recep-tivos s idias de Fanon nem mesmo citem oPele negra,mscaras bran-cas. Freire e Glauber so iconoclastas procura de uma nova lingua-gem,de um modo novo e terceiro-mundista de fazer cinema ou educar.

    QuandoPele negra,mscaras brancas publicado no Brasil j esta-

    mos em 1983. a editora Fator, especialista em obras psicanalticas,quem o faz. Ademais, apesar de a edio ter sido impressa no Rio deJaneiro, a Fator estava sediada em Salvador, onde tambm o Movi-mento Negro Unificado editava o seu jornal de circulao nacional.Haver a,certamente,alguma confluncia entre o interesse editorial

    108 A RECEPO DE FANON NO BRASIL E A IDENTIDADE NEGRA Antonio Srgio Alfredo Guimares

  • 8/3/2019 A Recepo da Fanon no Brasil e a Identidade Negra

    11/16

    [40] Souza, F. Afro-descendncia em

    Cadernos Negros eJornal do MNU.

    Belo Horizonte: Autntica, 2005, p.

    163.

    [41] Faerman, Marcos.Histrias.

    Versus,n 23,jul.-ago.1978,p.1.

    [42] Nascimento,A.Carta a Dakar.

    Tempo Brasileiro, nos 9-10, 1996,pp.

    97-106.

    por uma obra muito influenciada pela psicanlise e o interesse comer-cial em abastecer o novo mercado criado por um segmento de classemdia com conscincia racial,j que Fanon passara a ser leitura de for-mao.Diz-nos Florentina Souza:

    o peridico Nego,boletim do MNU-Ba,no seu nmero 1,publica sugestesde leitura que passam por Obras escolhidas de Amlcar Cabral, frica literatura, arte e cultura, organizado por Manoel Ferreira e,no nmero 3, olivro Pele negra,mscaras brancas,de Fanon []40.

    OS JOVENS ESTUDANTES NEGROS DOS ANOS 1970 E 1980

    A influncia de Sartre,e da sua leitura de Fanon,foi duradoura entre

    negros e brancos. Ainda em 1978, o editor-chefe do jornal Versus, daConvergncia Socialista, cujos militantes negros foram muito ativosna fundao do Movimento Unificado Contra a Discriminao Racial,que precedeu o MNU, ainda buscava em Sartre, no seu prefcio a Oscondenados da terra, a imagem para expressar o que se viveu naquelanoite,nas escadarias do Teatro Municipal de So Paulo:

    Certa vez Sartre escreveu sobre a questo negra.Ali,ele falava umacoisa inesquecvel,e que eu vou citar de memria O que vocs espera-vam ouvir quando estas bocas negras se vissem livres das mordaas? Quegritassem frases doces,amenas? Ser que estas mordaas esto sendoarrancadas no Brasil? Sim,ento.Foi o que vimos em So Paulo,numanoite histrica. Bocas negras gritando contra a injustia e a opresso.Punhos erguidos,no lusco-fusco daquele momento em que,numa grandecidade, os homens cansados vo para casa. No se ouviram frases amenas e bom que tenha sido assim. humilhao de sculos,s o duro est-mago do povo poderia resistir41.

    Do mesmo modo, a seo Afro-latino-Amrica do Versus lan-ada, em 1978, com a manchete Nem almas brancas, nem mscarasnegras,que faz trocadilho com o ttulo de Fanon,mas busca refern-cias cognitivas outras,comezinhas, como o preto de alma branca;outradicionais,como a observao de Nelson Rodrigues branco pin-tado, eis o negro do teatro nacional algumas vezes lembrada porAbdias do Nascimento42.

    Mais ainda. A Afro-Latino-Amrica desconhecer Os condenados da

    terra, publicado em 1968,no Brasil,ou aPele negra,mscaras brancas que circulava entre alguns militantes negros desde meados dos anos1970 em fotocpia da edio portuguesa da editora Paisagem, doPorto para republicar,em seu nmero 18,de 1978,extratos do Orfeunegro, antecedido da seguinte advertncia:

    109NOVOS ESTUDOS 81 JULHO 2008

  • 8/3/2019 A Recepo da Fanon no Brasil e a Identidade Negra

    12/16

    [43] Alberti e Pereira,op.cit.

    [44] Contins, Mrcia.Lideranas ne-

    gras.Rio de Janeiro:Aeroplano, 2005.

    [45] Hanchard,Michael.Orpheus and

    power: The movimento negro of Rio deJaneiro and So Paulo, Brazil, 1945-

    1988. Princeton: Princeton Univer-

    sity Press,1994,p. 116.

    [46] Dossi 50-Z-130- 3773.Deops/

    SP, Daesp, apud Kosling, Karin.As

    lutas anti-racistas de afro-descendentes

    sob vigilncia do Deops/SP (1964-

    1983).So Paulo:dissertao de mes-

    trado, Histria Social, FFLCH-USP,

    2007,p.161.

    [47] Flix,J. Chic Show e Zimbabwe e a

    construo da identidade nos bailes

    black paulistanos. So Paulo: disserta-

    o de mestrado,FFLCH-USP,2000,

    pp.40-41.

    [48] Kosling, op.cit., p.161.

    Dentro do atual contexto poltico,onde o Partido Socialista apresenta-se como alternativa mais conseqente para a atuao das camadas margina-lizadas da sociedade brasileira, Jean-Paul Sartre pensa a atuao do negrosocialista.Discute a necessidade de no perder de vista as suas condies

    objetivas de negro e trabalhador.

    No entanto, foram os jovens estudantes negros dos anos 1970 e1980 que,no Brasil,leram e viveram Fanon,de corpo e alma,fazendo deleum instrumento de conscincia de raa e de resistncia opresso,ide-logo da completa revoluo na democracia racial brasileira.As refern-cias a esse fato pululam na literatura.Vou seguir apenas algumas pistas.

    Na pesquisa que Alberti e Pereira43 coordenam no Cpdoc sobre omovimento negro brasileiro contemporneo, oito militantes citam

    espontaneamente Fanon, ao falar de sua formao: Amauri MendesPereira, Gilberto Roque Nunes Leal, Hdio Silva Jnior, Jos MariaNunes Pereira, Luiz Silva (Cuti), Mlton Barbosa, Regina Lucia dosSantos e Yedo Ferreira.Em pesquisa semelhante, conduzida por Mr-cia Contins44, seis militantes citam tambm Fanon.

    Michael Hanchard registra, a partir de entrevistas com esses mili-tantes,que

    Membros do Black Soul do Rio de Janeiro e So Paulo cujas ativi-dades,entre outras, incluam distribuir cpias do Poder negro,de StokelyCarmichael,e de Os condenados da terra,de Frantz Fanon,para discus-so em grupo eram (mal)identificados pelas elites civis e militares comoparticipantes de uma conspirao.Dada a natureza do regime ditatorial,avigilncia policial exercida sobre o Black Soul e o movimento negro em geraldurante esse perodo no est documentada.Entretanto,um alto oficial doServio Nacional de Informaes, o poderoso brao da inteligncia doEstado,confirmou-me em entrevista pessoal que vrios ativistas negros

    foram monitorados de perto nos anos 1970 porque se acreditava que faziamparte da engrenagem da conspirao comunista45.

    Treze anos depois de publicado o livro de Hanchard,quando osarquivos da polcia poltica (Deops) j estavam abertos aos pesquisa-dores,Karin Kosling pde documentar a represso ao MNU:Em rela-trio da Diviso de Informaes do Deops sobre ato pblico organi-zado pelo MNU,em 7/7/1980, Milton Barbosa,importante militantedo MNU, citou Fanon para criticar o imperialismo46. Analisando a

    documentao policial e depoimento de militantes da poca47,Kos-ling no tem dvidas em listar as principais influncias intelectuaisdos jovens rebeldes negros: Autores como Fernandes, ao lado deEldridge Cleaver e Frantz Fanon, entre outros,introduziam a questoda luta de classes nos debates do MNU48.

    110 A RECEPO DE FANON NO BRASIL E A IDENTIDADE NEGRA Antonio Srgio Alfredo Guimares

  • 8/3/2019 A Recepo da Fanon no Brasil e a Identidade Negra

    13/16

    [49]Souza,op.cit.,p.162.

    [50] Entrevista. In: Alberti e Pe-

    reira, op.cit., fita 2 lados A e B.

    Florentina de Souza,olhando dois importante jornais negros,con-corda no que diz respeito a Fanon:

    marcante a influncia que os escritores negros no Brasil receberam das

    literaturas africanas escritas em lngua portuguesa que chegavam ao Brasilpor meio de jornais,revistas e livros,ou ainda a influncia das tradues deFanon e de textos de Garvey e DuBois que circulavam no movimento negrono Brasil desde a dcada de trinta49.

    Lendo alguns depoimentos de militantes negros dos anos 1970,tenho a impresso de que a recepo de Fanon no foi diferente no Bra-sil daquela que Goldman registrou nos Estados Unidos. Amauri deSouza, importante quadro do MNU no Rio de Janeiro,nos diz:

    Quando eu comecei a lerAlma no exlio, que foi a experincia doCleaver,que era uma das principais lideranas dos Panteras Negras,e logodepois entrei no Fanon, li os dois ao mesmo tempo Foi uma loucura!Aquilo era demais! Fanon era a crucialidade,a violncia como a parteira daHistria.Preconizava a violncia do colonizador,o dio O Fanon era umpouco mais para mim do que era Che Guevara, porque o Che era um revo-lucionrio que tinha morrido,portanto perdeu,e foi aqui na Amrica e noera negro. O Fanon era negro. Foi uma proximidade maior que eu tive comele.E era terrvel O Fanon no foi morto na luta, eles ganharam, fizerama revoluo E na minha cabea, aquilo me apaixonou50.

    Mas a primeira reflexo mais sistemtica (e talvez nica) sobre opensamento de Fanon feita por intelectuais negros numa revista aca-dmica brasileira aconteceu apenas em 1981 e foi assinada por umcoletivo, Grupo de Estudos sobre o Pensamento Poltico Africano(GEPPF),o que denota tratar-se de um meio caminho entre reflexo

    acadmica e reflexo poltica.O grupo era formado por ativistas,estu-dantes e professores do Centro de Estudos Afro-Asiticos, da Uni-versidade Cndido Mendes, dirigido por Jos Maria Nunes Pereira.Esse artigo demonstra a consolidao da preocupao com o racis-mo, como questo importante e autnoma, na nova esquerda mar-xista em formao:

    Fica claro [com a leitura de Fanon] que o racismo conseqncia de umasituao de dominao socioeconmica,mas que possui mecanismos pr-

    prios,de ordem psicolgica,que concedem a ele certa autonomia.Contudo,areferida situao continua alimentando e alimentando-se do racismo.Istono se aplica apenas ao fato colonial,mas tambm ao neocolonial e s socie-dades capitalistas com aprecivel contingente de mo-de-obra de antigascolnias.No primeiro caso,como vimos,a funo fundamental do racismo

    111NOVOS ESTUDOS 81 JULHO 2008

  • 8/3/2019 A Recepo da Fanon no Brasil e a Identidade Negra

    14/16

    [51] Grupo de Estudos sobre o Pen-

    samento Poltico Africano. Notas

    sobre o pensamento de FrantzFanon.Estudos Afro-Asiticos, Rio de

    Janeiro,n 5, 1981, p.22.

    [52] Ibidem,p. 15.

    [53] Ibidem,p.25.

    [54] Gordon, Sharpley-Whiting eWhite,op.cit.

    [55] Ortiz, Renato. Frantz Fanon:

    Um itinerrio poltico e intelectual.

    Revista Idias, Campinas, v. 2, n 1,

    1995;Cabao, Jos Lus e Chaves,Rita

    de Cssia Natal.Frantz Fanon :colo-

    nialismo, violncia e identidade cul-

    tural. In: Abdala Jnior,Benjamin.

    Margens da cultura: mestiagem, hibri-

    dismo & outras misturas. So Paulo:

    Boitempo,2004,pp.67-86.

    [56] Zahar, Renate. Frantz Fanon:

    colonialism and alienation.Monthly

    Review Press, Nova York,1974.

    a legitimao da ocupao e explorao diretas.Na situao neocolonial,opreconceito racial utilizado com os mesmos objetivos, com as necessriasadaptaes decorrentes de nova realidade.Ele um auxiliar dos mecanismosde subordinao neocolonial51.

    Parece claro que continua havendo restries a Fanon como estra-tegista poltico,principalmente sua crena na potencialidade revolu-cionria do campesinato:

    Ele [Fanon] no faz uma verdadeira anlise de classe da sociedade colo-nial.Existem referncias a classes ou camadas.O proletariado,o lmpen-pro-letariado e o campesinato merecem-lhe certa ateno e uma caracterizaodeficiente. Referncias existem burguesia e s elites locais,possivelmente

    integradas por elementos da burguesia. A sua anlise privilegia a polarizaocidade-campo52.

    Se o grupo critica a posio excessivamente classista e economi-cista da esquerda tradicional, para quem o movimento negro aindarepresentava um perigo srio de diviso das camadas exploradas,tam-bm se pe distncia daqueles,no movimento negro,que se afastamda matriz marxista:

    Cremos que a posio dos que procuram minimizar a questo racialdiluindo-a pura e simplesmente na social,assim como os que postulam aindependncia absoluta das organizaes anti-racistas (e sua partidariza-o) relativamente ao resto da sociedade,dificultam,ainda que involunta-riamente,a morte da ideologia da democracia racial53.

    A RECEPO ACADMICA

    Gordon, Sharpley-Whiting e White54

    caracterizam o desenvolvi-mento dos estudos sobre Fanon em quatro fases. A primeira fase foimarcada pela literatura revolucionria dos anos 1960, que no Brasil,como vimos, encontrou acolhida nas idias de Glauber, sobre ocinema-novo,e de Paulo Freire,sobre a pedagogia dos oprimidos.Asegunda fase,que eles chamam de biogrfica,no teve representantesno Brasil e passou praticamente em branco.No apenas no h biogra-fia de Fanon escrita por autor brasileiro como,at hoje,no h uma sbiografia de Fanon editada no Brasil. Temos apenas breves notas bio-

    grficas55. A terceira fase, que marca o interesse da teoria poltica porFanon passaria tambm quase em branco no fosse o fato de RenateZahar56 ter sido leitura de referncia do Grupo de Estudos do Pensa-mento Poltico Africano.Cabe mencionar tambm o j citado livro deIanni sobre o imperialismo.Mas Fanon continua apenas uma refe-

    112 A RECEPO DE FANON NO BRASIL E A IDENTIDADE NEGRA Antonio Srgio Alfredo Guimares

  • 8/3/2019 A Recepo da Fanon no Brasil e a Identidade Negra

    15/16

    [57] Costa,Srgio.Dois atlnticos: teo-

    ria social, anti-racismo, cosmopolitismo.

    Belo Horizonte: EdUFMG,2006; e

    Cunha, Olivia M. G. da. Reflexes

    sobre biopoder e ps-colonialismo:

    relendo Fanon e Foucault. Mana,

    vol.8, n 1,2002,pp. 149-163.

    [58] Ortiz, Renato.Frantz Fanon:

    Um Itinerrio Poltico e Intelectual,

    op.cit;idem,Cultura brasileira e identi-

    dade nacional.

    [59] Idem,Cultura brasileira e identi-

    dade nacional,op.cit.

    rncia,sem que tais estudos tivessem gerado reflexes brasileiras demaior originalidade ou envergadura sobre seu pensamento poltico.A quarta e ltima fase, a dos estudos ps-coloniais, praticamenteainda nova no Brasil, e chega apenas atravs dos comentrios de

    Bahba,Gilroy,Gates Jr.ou de comentaristas brasileiros aos ps-colo-nialistas,como Srgio Costa e Olvia da Cunha57.No Brasil, ao contrrio dos Estados Unidos, a mobilizao negra

    dos anos 1970 no gerou a entrada massiva de negros nas universida-des,e a criao dos Neab (Ncleos de Estudos Afro-Brasileiros) rela-tivamente recente no pas. A Associao Brasileira de PesquisadoresNegros data apenas do ano 2000.

    Os estudos fanonianos no Brasil no se constituram realmenteem campo com alguma autonomia, e as referncias a Fanon, alm

    de esparsas, parecem seguir diferentes linhas. Uma rpida buscaem bancos de dados sobre dissertaes e teses universitrias mos-tra que Fanon lido nas universidades brasileiras principalmentenos cursos de ps-graduao em literatura, em comunicao eartes,em psicologia social,e em cincias sociais.Quando os deba-tes que animaram os anos 1960 e 1970 so revisitados, sua obravolta a despertar interesse.

    No entanto, apenas trs autores brasileiros dedicaram artigos ouparte de captulos de livros discusso de Fanon. Renato Ortiz tem,sem dvida,a reflexo mais profunda e refinada de Fanon58.Estudiosodo mundo intelectual francs do ps-guerra,Ortiz preparou para aeditora Abril, que publicava,ento,uma coleo de divulgao cient-fica chamada Grandes Cientistas Sociais, um volume sobre Fanon.Esse volume nunca chegou a ser publicado, mas Ortiz retoma, anosdepois,os originais da sua Apresentao para public-la como artigona revistaIdias,do Departamento de Sociologia da Unicamp. Ortizquem retraa a formao do pensamento de Fanon de acordo com trs

    movimentos intelectuais centrais ao mundo intelectual do ps-guerrana Frana a releitura de Hegel,o debate entre marxistas e existen-cialistas,e,finalmente,a ngritude.Silencia,contudo,sobre a formaopsicanaltica de Fanon.A preocupao explcita de Ortiz com a teori-zao fanoniana do racismo e da nao. Tempos depois, Ortiz59 revi-sita Fanon,agora em conexo com seu estudo sobre o pensamento doIseb, e descobre as razes semelhantes do anticolonialismo culturaldos pensadores isebianos Hegel, Sartre e Balandier.Deixa escapar,todavia, a grande influncia da fenomenologia de origem catlica

    sobre os principais membros do Iseb.Cabao e Chaves,na esteira do 11 de setembro,relem Fanon para

    retomarem os pontos-chave de seu anticolonialismo e da sua justifi-cativa da violncia revolucionria.Relembrando os debates dos anos1960,escrevem:

    113NOVOS ESTUDOS 81 JULHO 2008

  • 8/3/2019 A Recepo da Fanon no Brasil e a Identidade Negra

    16/16

    [60] Cabao e Chaves,op.cit,p. 69.

    [Fanon] abalou a boa conscincia das metrpoles ocidentais afir-mando que um pas colonial um pas racista e assustou os crculos colo-nialistas denunciando a violncia do sistema e explicando que o homemcolonizado liberta-se em e pela violncia;escandalizou uma certa esquerda

    intelectual pondo em causa instrumentos tericos da ortodoxia marxista;provocou a indignao dos partidos operrios ocidentais ao afirmar que ahistria das guerras de libertao a histria da no verificao da tese dacomunidade de interesses entres classe operria da metrpole e o povo colo-nizado;coerente com sua convico,acusou a no-violncia e o neutralismode serem formas de cumplicidade passiva com a explorao dos colonizadosou de desorientao das elites dos povos subjugados60.

    Mais recentemente,o pensamento de Fanon passa a ser discutido

    nas universidades brasileiras na confluncia entre os estudos degnero e de raa;e uma cuidadosa traduo dePele negra,mscaras bran-cas,com prefcio de Lewis Gordon,acaba de ser lanada pela Editorada UFBA.Em resumo,Fanon entrou definitivamente no rol de autoresclssicos,aqueles que servem de referncia obrigatria para o estudode alguns fenmenos do mundo moderno,entre eles,principalmente,o racismo e a violncia poltica. Consolidou-se, do mesmo modo, nopanteo dos heris africano-americanos,tornando-se leitura obriga-tria para ativistas ou cidados negros brasileiros.O fato,no entanto, que ainda estamos engatinhando nas investigaes sobre Fanon.Minha sugesto de que isso se deve, mesmo que parcialmente, pouca presena de negros nas universidades brasileiras e conse-qente escassez de reflexo terica sobre as identidades raciais.Se euestiver certo,portanto,a entrada gradual,mas constante,de negros nasnossas universidades de pesquisa poder abrir, quem sabe,uma largaavenida para os estudos fanonianos.

    Antonio Srgio Alfredo Guimares professor titular do Departamento de Sociologiada USP.

    Recebido para publicao

    em 19 de junho de 2008.

    NOVOS ESTUDOSCEBRAP

    81,julho 2008pp. 99-114