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A regulação do pós-lavra no Direito Minerário brasileiro (p. 79-106) 79 Revista de Direito, Estado e Recursos Naturais, v. 1, n. 1, p. 79-106 (2011) A regulação do pós-lavra no Direito Minerário brasileiro The post-mining regulation in Brazil’s mining law Ricardo Barretto de Andrade * Resumo O artigo objetiva analisar a legislação brasileira que regula o setor de mineração, partindo da premissa de que a ausência de normas que regulamentem as atividades mineiras, nas fases posteriores à lavra, causa grandes prejuízos ao país, o que demandaria um papel mais relevante do Estado, no sentido de controlar, de modo mais adequado, a produção nacional de minérios. Prende-se, por distintas formas de interpretação do texto constitucional, demonstrar que a propriedade do produto da lavra, atribuída ao concessionário pelo caput do art. 176 da Constituição, não pode ser interpretada de modo absoluto, diferentemente do que propugna a doutrina majoritária a respeito. Para tanto, são avaliados os antecedentes legislativos do Direito Minerário brasileiro desde a Constituição de 1891, bem como a atuação do Estado no setor em diferentes períodos históricos. Por fim, analisa-se o ordenamento jurídico pátrio e as questões fáticas relativas ao desenvolvimento nacional, objetivando compreender o posicionamento atual da doutrina majoritária, dele discordando quanto à possibilidade jurídica de regulamentar as atividades mineiras nas fases posteriores à lavra. Abstract This article aims to analyze the Brazilian legislation that regulates the mining industry, on the premise that the absence of rules governing the mining activities in the later stages of mining cause great damage to the country, which would require a greater role of the state towards to control more adequately the domestic production of minerals. By different ways of interpreting the Constitution, the work intends to demonstrate that ownership of the mined product, assigned to the concessionaires under article 176 of the Constitution, cannot be construed as absolute, unlike the majority opinion of the doctrine about. To that end, the text evaluates the legislative history of Mining Law since the Brazilian Constitution of 1891, as well as state action in the sector in different historical periods. Finally, we analyze the legal order * Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestrando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Membro do Núcleo de Direito Setorial e Regulatório da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (NDSR) e pesquisador de seu Grupo de Estudos em Direito de Recursos Naturais (GERN). Submetido (submitted): 1 de fevereiro de 2011 Parecer (revised): 30 de abril de 2011 Aceito (accepted): 5 de maio de 2011

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A regulação do pós-lavra no Direito Minerário brasileiro (p. 79-106) 79

Revista de Direito, Estado e Recursos Naturais, v. 1, n. 1, p. 79-106 (2011)

A regulação do pós-lavra no Direito Minerário brasileiro

The post-mining regulation in Brazil’s mining law

Ricardo Barretto de Andrade*

Resumo

O artigo objetiva analisar a legislação brasileira que regula o setor de mineração,

partindo da premissa de que a ausência de normas que regulamentem as atividades

mineiras, nas fases posteriores à lavra, causa grandes prejuízos ao país, o que

demandaria um papel mais relevante do Estado, no sentido de controlar, de modo

mais adequado, a produção nacional de minérios. Prende-se, por distintas formas de

interpretação do texto constitucional, demonstrar que a propriedade do produto da

lavra, atribuída ao concessionário pelo caput do art. 176 da Constituição, não pode

ser interpretada de modo absoluto, diferentemente do que propugna a doutrina

majoritária a respeito. Para tanto, são avaliados os antecedentes legislativos do

Direito Minerário brasileiro desde a Constituição de 1891, bem como a atuação do

Estado no setor em diferentes períodos históricos. Por fim, analisa-se o ordenamento

jurídico pátrio e as questões fáticas relativas ao desenvolvimento nacional,

objetivando compreender o posicionamento atual da doutrina majoritária, dele

discordando quanto à possibilidade jurídica de regulamentar as atividades mineiras

nas fases posteriores à lavra.

Abstract

This article aims to analyze the Brazilian legislation that regulates the mining

industry, on the premise that the absence of rules governing the mining activities in

the later stages of mining cause great damage to the country, which would require a

greater role of the state towards to control more adequately the domestic production

of minerals. By different ways of interpreting the Constitution, the work intends to

demonstrate that ownership of the mined product, assigned to the concessionaires

under article 176 of the Constitution, cannot be construed as absolute, unlike the

majority opinion of the doctrine about. To that end, the text evaluates the legislative

history of Mining Law since the Brazilian Constitution of 1891, as well as state

action in the sector in different historical periods. Finally, we analyze the legal order

* Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestrando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Membro do Núcleo de Direito Setorial e Regulatório da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (NDSR) e pesquisador de seu Grupo de Estudos em Direito de Recursos Naturais (GERN).

Submetido (submitted): 1 de fevereiro de 2011 Parecer (revised): 30 de abril de 2011 Aceito (accepted): 5 de maio de 2011

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and the factual issues relating to national development in order to understand the

current position of the majority doctrine, disagreeing with it about the legal

possibility to regulate the mining activities in the later stages of mining.

Palavras-chave: mineração; regulação; pós-lavra.

Keywords: mining; regulation, post-mining.

Introdução

A legislação mineral brasileira em vigor é, praticamente toda ela, da

década de 1960, mas o seu conteúdo remete, essencialmente, à década de

1940. Essas defasagem e obsolescência são graves na medida em que o

Brasil, que ao longo dos anos se tornou um dos maiores exportadores de

minérios do mundo, não possuiu normas jurídicas capazes de regulamentar

adequadamente as atividades da indústria mineral; e o Departamento

Nacional de Produção Mineral (DNPM), autarquia vinculada ao Ministério

de Minas e Energia (MME) e responsável pela mineração no país, tem

atualmente cumprido funções bastante restritas e burocráticas, em geral

relacionadas à autorização de pesquisa, à concessão da lavra e à fiscalização

quanto à continuidade dos trabalhos de exploração.

A fiscalização e regulação das atividades mineiras posteriores à lavra,

por outro lado, têm sido ignoradas pela doutrina brasileira, sob o argumento

de que o art. 176 da Constituição Federal de 1988 (CF), ao atribuir aos

concessionários a propriedade do produto da lavra, excluiria a possibilidade

de regulamentação sobre, v.g., a comercialização, beneficiamento e

exportação dos recursos minerais.

Para tentar compreender se o atual entendimento doutrinário é

consentâneo com o ordenamento jurídico vigente, serão analisados os

antecedentes legislativos do Direito Minerário brasileiro, desde a

Constituição de 1891, buscando identificar o que dispunha a legislação, bem

como a respectiva atuação do Estado diante da questão; para, daí, buscar

parâmetros para entender o problema que ora se coloca.

Depois, serão analisados o ordenamento jurídico brasileiro atual e as

condições fáticas relativas ao desenvolvimento nacional, no que se refere à

regulação estatal do pós-lavra, objetivando compreender o posicionamento

da doutrina majoritária, eventualmente dele discordando quando à

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possibilidade jurídica de regulamentação das atividades mineiras nas fases

seguintes à lavra.

Antecedentes legislativos do Direito Minerário brasileiro

A primeira Constituição brasileira, outorgada em 1824, nada dispunha

sobre o tema da mineração. A Constituição republicana de 1891, por sua

vez, foi a primeira a tratar desta temática, contudo, de modo ainda

acanhado. O seu art. 34, 29º, atribuía ao Congresso Nacional competência

privativa para “legislar sobre terras e minas de propriedade da União”.

À União cabiam somente os minérios existentes nas suas terras, ao passo

que aos Estados pertenciam as minas situadas nos seus respectivos

territórios, excetuando-se, por suposto, as minas em território estadual que

estivessem em terras de domínio da União (art. 64) 1, e aos particulares

pertenciam as minas presentes no subsolo das suas terras. Vigia, portanto, o

princípio da acessão, pelo que a propriedade do subsolo seguia a do solo,

ambos indissociáveis.

Nesse sentido, o art. 72, §17, da Constituição de 1891, ao tratar do

direito de propriedade, estabelecia: “As minas pertencem aos proprietários

do solo, salvas as limitações que forem estabelecidas por lei a bem da

exploração deste ramo de indústria”. Como se nota da simples leitura do

referido dispositivo, o direito de propriedade sobre a mina – que detinha o

proprietário do solo – poderia ser objeto de limitações legais, visando à

melhor exploração das jazidas minerais. Isso revela a percepção do

constituinte de então, quanto à importância estratégica do setor mineral para

o país, de modo a justificar a intervenção estatal no sacrossanto direito de

propriedade, então protegido de modo quase absoluto pela liberal

Constituição republicana.

Interessante consignar que o mesmo §17 do art. 72, antes de tratar da

propriedade das minas, refere-se ao direito de propriedade de modo amplo:

“O direito de propriedade mantém-se em toda a sua plenitude, salva a

1 Constituição brasileira de 1891, Art. 64: “Pertencem aos Estados as minas e terras

devolutas situadas nos seus respectivos territórios, cabendo à União somente a porção do território que for indispensável para a defesa das fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de ferro federais” .

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desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização

prévia”. Note-se que a única restrição vislumbrada a esse direito, em toda a

sua plenitude, residira num instituto bem específico e de contornos bastante

definidos, a desapropriação, cuja condição inescusável já era a prévia

indenização ao expropriado.

Diferentemente disso, o trecho do parágrafo que se refere às minas não

trata de uma limitação única e determinada ao direito de propriedade, já que

remete, de modo bastante genérico, abstrato e inespecífico, a “limitações”

que fossem estabelecidas por lei “a bem da exploração deste ramo de

indústria”. Ao lançar mão de expressão tão aberta e de conteúdo jurídico

indefinido, a Constituição deixava ao Estado, por meio do legislador

ordinário, a possibilidade de intervir na indústria mineira via ingerências no

direito de propriedade sobre a jazida, reconhecido ao proprietário do solo.

Com isso, evidencia-se o caráter especial do direito de propriedade do

particular sobre as minas, ainda quando não se falava em função social da

propriedade privada, justamente pela compreensão da necessidade de bem

explorar os recursos minerais, não sendo relevante, ao menos por ora,

questionar em que constituiria essa exploração “a bem” daquele ramo da

indústria. Assim não fosse, inexistiria razão para que o constituinte de 1891

tratasse da propriedade das minas em separado e de modo tão diverso.

Foi na vigência da Constituição republicana que o Brasil, pela primeira

vez, veio a ter algo semelhante a um código de minas. Conhecida como

“Lei Calógeras” em razão do seu patrono, o geólogo e político João Pandiá

Calógeras, foi editada em 1915 para regulamentar a propriedade das minas. 2

Uma curiosidade dessa lei é que o §1º do seu art. 1º expressamente não

considerava minas, entre outras, as jazidas de ferro. Por outro lado, do ponto

de vista da propriedade, o seu art. 2º rompeu com o princípio da acessão ao

dispor que a mina constituía propriedade imóvel distinta do solo, sendo,

portanto, alienável isoladamente. Ademais, a titularidade da mina, a teor do

art. 7º da Lei, ao menos originariamente, caberia ao proprietário do solo

(União, Estados ou particulares), podendo, entretanto, haver o

distanciamento desses domínios pela exploração ou negociação da mina

junto a terceiros.

2 Decreto nº 2.933, de 6 de janeiro de 1915.

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As minas privadas, consoante essa legislação, podiam ser arrendadas ou

concedidas e sobre elas poderiam, na forma do direito privado comum,

incidir, por exemplo, usufruto e enfiteuse. A presença do direito privado era

marcante, porém, o objetivo principal da lei era viabilizar a pesquisa e lavra

das minas e, se necessidade houvesse, poder-se-ia intervir até mesmo na

propriedade do solo.

O seu art. 17, por exemplo, determinava que, na hipótese de o

proprietário do solo dissentir da realização de pesquisas nas suas terras,

seria reconhecido ao pretendente à pesquisa o direito de desapropriar tais

terras. Do mesmo modo, poderia a mina ser desapropriada se o seu

proprietário, além de não lavrá-la, se recusasse à sua exploração por terceiro

interessado. Ainda, quando diferentes os proprietários do solo e da mina,

reconhecia-se a este último o direito de desapropriar a área do solo que

fosse imprescindível às instalações destinadas aos trabalhos de exploração

da mina.

A garantia ao terceiro de um direito de desapropriação do solo ou da

mina consistia, em verdade, não num direito meramente privado, mas em

verdadeira intervenção do Estado na propriedade privada, assegurada,

inclusive, por meio do Poder Judiciário, se necessário fosse. E os objetivos

da previsão legal de tal intervenção eram também públicos e estatais:

garantir a prospecção das minas e a sua devida e contínua exploração. A lei

Calógeras, todavia, nada regulamentava na fase posterior à lavra, ou seja,

após a extração do minério do seu repositório no subsolo, o proprietário da

mina poderia dar ao produto obtido o destino que lhe aprouvesse.

No que concerne às minas públicas federais, cabia à União, diretamente

ou por terceiro, pesquisar e lavrar as minas de sua propriedade, sendo livre

aos particulares a pesquisa nesses terrenos mediante licença prévia. Os

detentores da licença de pesquisa tinham preferência para obter a concessão

de exploração e a propriedade do produto da lavra era transmitida ao

concessionário. Nesse particular, em que pese a existência de poucos

elementos publicísticos naquela concessão, a Lei resguardava à União a

possibilidade de recusar a concessão se a exploração fosse “prejudicial ao

bem público” ou comprometesse “interesses de tal monta que as vantagens

derivadas do meneio da lavra não os compensem” (art. 46).

Mais uma vez, também de relação às minas públicas, verifica-se a

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possibilidade de intervenção genérica e abstrata do Estado no âmbito

privado, in casu, no direito de preferência do pesquisador à concessão, com

vistas a resguardar o que hoje se pode caracterizar como interesse público.

Pouco depois, em 1921, foi editado um novo “código” para

regulamentar a propriedade e exploração das minas 3. Conhecida como “Lei

Simões Lopes” em referência ao Ministro da Agricultura, Indústria e

Comércio de então, a sua regulamentação era mais ampla que a da

legislação anterior, abarcando, entre outros, o minério de ferro e os

combustíveis fósseis. Mais uma vez, o “interesse público”, nos diversos

institutos legais, se manifestava com o fito de garantir a contínua produção

e oferta de matérias primas minerais à indústria.

A lei Simões Lopes, por outro lado, de modo inédito, mas ainda

acanhado, esboçou a preocupação de utilizar a exploração das riquezas

minerais para o desenvolvimento nacional. Primeiro, dispunha-se que as

empresas de mineração que se organizassem sob o regime da nova Lei

gozariam de benefícios tributários na importação de equipamentos e de

vantagens nas tarifas de transporte via navegação e estradas de ferro (art.

89). Logo depois, consignava a norma que somente gozariam daqueles

favores os particulares que assumissem algumas obrigações, quais sejam:

admitir ao seu serviço o maior número possível de engenheiros nacionais;

ter o maior número possível de operários nacionais; manter escolas para os

operários e filhos destes; fundar hospitais e mantê-los.

Os incentivos concedidos à iniciativa privada tinham o propósito de

estimular o desenvolvimento brasileiro por meio da exploração das minas,

mas, apesar de ser a mineração considerada de “utilidade pública”, o pós-

lavra permanecia sem regulação, sendo tratado sob o regime jurídico do

direito privado.

A Constituição de 1934, em que pese também tenha deixado de regular a

indústria mineira no período pós-lavra, ampliou a regulação dessa atividade

com um viés bastante nacionalista. Dessa forma, ao passo que dispôs que o

aproveitamento industrial das minas e jazidas, ainda que de propriedade

privada, dependiam de autorização ou concessão federal, também restringiu

a possibilidade de outorga desses títulos aos brasileiros ou às empresas

organizadas no Brasil (art. 119, §1º).

3 Decreto nº 4.265, de 15 de janeiro de 1921.

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Nesse sentido nacionalista, o §4º do art. 119 ia além: determinava fosse,

por lei, regulamentada a nacionalização progressiva das minas e jazidas

minerais “julgadas básicas ou essenciais à defesa econômica ou militar do

País”. A Constituição, nesse particular, dá o primeiro passo rumo a tornar

propriedades da União todos os bens minerais, o que só viria a ocorrer com

a promulgação da Constituição Federal de 1988. Ao menos para o presente

estudo, todavia, o que há de mais relevante nessa norma, mais uma vez, é a

positivação no texto constitucional do objetivo do Estado brasileiro de

reconhecer o setor mineral como especial, diante da sua relevância para o

desenvolvimento do país, tratando-o, por essa razão, como estratégico.

Ainda em 1934, quando os trabalhos constituintes ainda se encerravam,

foi publicado o Decreto que sistematizou a legislação mineral, sendo o

primeiro no país a receber a denominação oficial de Código de Minas (CM) 4. Foi esse o instrumento jurídico que consolidou o direito minerário no

Brasil, e são os seus principais conceitos e institutos que, em substância,

ainda norteiam esse ramo do direito até os dias atuais. O Código de Minas

de 1934 realizou uma publicatio parcial das minas e jazidas. É dizer: todas

as minas e jazidas que até determinado prazo fossem manifestadas eram

reconhecidas como propriedade privada, ao passo que todas as demais, as

ainda não descobertas ou as não manifestadas, passaram ao domínio público

(art. 5º) 5.

O regime jurídico, contudo, foi unificado tanto para as minas privadas

quanto as públicas, passando ambas a serem regidas pelas disposições do

Código de Minas. A intervenção estatal na atividade se consubstanciava na

exigência do título (autorização para pesquisa e concessão para lavra) e na

regulação das atividades dos privados, esta última fundamentalmente

inserida no âmbito do próprio título (“regulação interna”), como permanece

4 Decreto nº 24.642, de 10 de julho de 1934.

5 Nas palavras de Santos (2008): “O manifesto de mina é um título que dá o direito

de propriedade do subsolo a seu titular. Foi instituído na Constituição Republicana [1891], com o regime de acessão, que assegurava ao superficiário a titularidade não só do solo, mas, também, das minas existentes em seu interior. A partir da Constituição de 1934, o solo foi separado do subsolo. Portanto, as minas que já tivessem sido manifestadas no tempo legal continuariam com a propriedade do subsolo, enquanto as novas, após 1934 – pertenceriam à União – seriam as minas concedidas, pois dependeriam da concessão do Governo Federal. Nesse caso, afastado o direito de propriedade do subsolo para as jazidas não manifestadas”.

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sendo até os dias de hoje.

Quanto ao alcance da regulação, nada mudou com o Código de Minas

de 1934, permanecendo ela desde a pesquisa, passando pela descoberta até a

exploração da mina, mas sem abranger as atividades posteriores à lavra,

como a comercialização e a destinação do produto da lavra. Quanto às

minas públicas, que passaram a ser a regra, a legislação inovou ao conferir

ao concessionário da lavra uma espécie de propriedade resolúvel,

condicionada ao cumprimento das disposições legais e do contrato de

concessão. Mais uma vez, evidenciava-se o interesse do Estado de garantir a

continuidade da atividade mineira.

Veio, então, com o seu viés nacionalista, a Constituição de 1937,

determinando que “O aproveitamento industrial das minas e das jazidas

minerais, das águas e da energia hidráulica, ainda que de propriedade

privada, depende de autorização federal” (art. 143). Essa autorização

somente podia ser concedida a brasileiros ou empresas constituídas por

acionistas brasileiros (§1º) 6.

Ante o ambiente político interno que favorecia o nacionalismo, mas

também em face do contexto internacional de tensões que indicavam a

aproximação de um grande conflito bélico, a Constituição do “Estado

Novo” varguista foi além ao dispor que a lei regularia “a nacionalização

progressiva das minas, jazidas minerais e quedas d'água ou outras fontes de

energia, assim como das indústrias consideradas básicas ou essenciais à

defesa econômica ou militar da Nação”.

Nesse sentido, a intervenção do Estado na atividade mineira, pela

primeira vez, dava um passo além. Embora não regulamentasse a atividade

privada na fase posterior à lavra, ao instituir a possibilidade de o Estado

assumir o controle das “indústrias consideradas básicas ou essenciais à

defesa econômica ou militar da Nação”, abria-se a possibilidade de atuação

direta do poder público no pós-lavra. E essa presença poderia dar-se de

modo bastante amplo, vista a generalidade do termo “defesa econômica ou

militar da Nação”.

6 Nesse sentido, logo se editou o Decreto-Lei nº 938, de 8 de dezembro de 1938, o

qual sujeitou à autorização do Governo o funcionamento das sociedades constituídas para fins de mineração ou de aproveitamento industrial das águas e da energia hidráulica, momento no qual seria verificada, entre outras coisas, a nacionalidade dos acionistas da companhia que pretendesse obter a autorização.

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Em 1940, o governo Vargas editou um novo Código de Minas7, que não

trouxe modificações significativas ao ordenamento estabelecido em 1934.

Para o objetivo deste estudo, impende salientar o disposto no art. 36, que

previu a possibilidade de recusa da autorização se a lavra fosse considerada

“prejudicial ao bem público” ou se ela comprometesse “interesses” que

superassem “a utilidade da exploração industrial, a juízo do Governo”,

garantindo-se, nessas hipóteses, o direito do pesquisador de receber do

governo indenização pelas despesas realizadas com a pesquisa. A

discricionariedade do governo quanto à concessão ou não da autorização

parecia ser absoluta, o que, mais uma vez, revela forte presença estatal no

setor mineiro.

Por outro lado, o art. 72 do Código de Minas de 1940 trouxe, de modo

concreto, inédita regulamentação na fase posterior à lavra, concernente à

possibilidade de se restringir a exportação de minérios. Conforme a norma,

sempre que julgasse oportuno, o Departamento Nacional da Produção

Mineral (DNPM) poderia sugerir ao governo “medidas tendentes a

incrementar ou restringir a exportação de minérios”. Com isso, dava-se

forma prática ao caráter especial e estratégico do setor mineral para o

desenvolvimento econômico e militar do país, tal como dispunha a

Constituição de 1937.

No que se refere à possibilidade de nacionalização das “indústrias

consideradas básicas ou essenciais à defesa econômica ou militar da Nação”

(Constituição de 1937), iniciada a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o

governo de Getúlio Vargas – percebendo o papel estratégico dos recursos

minerais, sobretudo do carvão8 e do minério de ferro, naquele período de

conflito bélico – negociou com a Grã-Bretanha, por intermédio dos Estados

7 Decreto-Lei nº 1.985, de 29 de janeiro de 1940.

8 Quanto ao carvão mineral, o Governo Vargas exerceu forte controle estatal na fase

posterior à lavra por meio do Decreto-Lei nº 3.605, de 10 de setembro de 1941, o qual considerou: “que a falta de carvão destinado a diversos misteres, principalmente no que concerne aos transportes ferroviários, acarretará sensíveis prejuízos à economia nacional” e “a conveniência de assegurar ao mercado interno o suprimento de tais necessidades, e tendo em vista, por outro lado, que a exportação desse produto, máxime do que provem do Estado de Santa Catarina, dificultaria esse objetivo”, determinou: “Art. 1º Enquanto não se normalizar a situação do mercado interno, fica reservada a produção do carvão extraído das minas situadas no Estado de Santa Catarina ao consumo do país”.

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Unidos, a nacionalização das companhias mineiras de capital inglês que

atuavam na extensa área ferrífera, situada na região de Itabira, Minas

Gerais.

O Brasil tinha em vista retomar as jazidas daquela região para criar uma

companhia estatal de mineração e canalizar parte da sua produção para uma

indústria siderúrgica estatal, que também seria constituída. Os Estados

Unidos da América, a seu turno, negociavam o apoio do Brasil na guerra.

O acordo celebrado entre as partes foi aprovado no Brasil por meio do

Decreto-Lei nº 4.324, de 21 de maio de 19429. Logo após, em 1 de junho de

1942, foi publicado o Decreto-Lei nº 4.352, que encampou as Companhias

Brasileira de Mineração e Siderurgia S.A. e Itabira de Mineração S.A., bem

como criou a Companhia Vale do Rio Doce S.A., estatal destinada, a teor do

art. 1º do seu estatuto (aprovado pelo Decreto-Lei em tela): “à exploração,

comércio, transporte e exportação do minério de ferro das minas de Itabira,

e exploração do tráfego da Estrada de Ferro Vitória-Minas (...)”.

De outro lado, o esforço do governo Vargas no campo da siderurgia se

evidenciava, ao menos desde 1940, com a criação da “Comissão Executiva

do Plano Siderúrgico Nacional” 10

, à qual se incumbiu a realização de

estudos técnicos para a construção de uma usina siderúrgica e a organização

de uma companhia nacional, de capital misto, que construiria e exploraria a

usina. Por fim, o Decreto-Lei nº 3.002, de 30 de janeiro de 1941, autorizou a

constituição da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN).

A Constituição seguinte, de 1946, fez o Estado retroceder em matéria de

regulação do setor mineral, não prevendo qualquer possibilidade de

regulamentação na fase posterior à lavra. Mantiveram-se as outorgas de

autorizações e concessões restritas a brasileiros, porém passou-se a permiti-

las a “sociedades organizadas no País”, retirando-se a exigência, constante

da Carta política de 1937, de que fossem as empresas constituídas por

“acionistas brasileiros”. Nesse esteio, excluiu-se também a previsão anterior

de “progressiva nacionalização” das minas e jazidas.

Depois, a Constituição de 1967 e a Emenda Constitucional nº 1 de 1969,

9 “Aprova o Acordo para cessão gratuita, por parte da Grã-Bretanha ao Brasil, das

propriedades da Companhia possuidora das Minas de ltabira, firmado em Washington, a 3 de março de 1942”. 10

Decreto-Lei nº 2.054, de 4 de março de 1940.

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os dois principais instrumentos jurídicos que pretendiam conferir ares de

legitimidade política e institucional ao regime autoritário instalado no país

em 1964, em praticamente nada alteraram a Carta de 1946, no que concerne

à mineração. Manteve-se a quase absoluta ausência de regulamentação da

sistemática imediatamente anterior, com certo distanciamento do Estado da

atividade mineira, que seria essencialmente “privada”, fato que demonstra a

contradição entre a prática liberal e o discurso de Estado nacional-

desenvolvimentista do qual se valiam os governantes militares de então.

As bases da legislação minerária em vigor

1. O Código de Minas de 1967

Em 1967, a pretexto de se reformar a legislação de minas de 1940, um

novo Código de Minas foi publicado11

, sendo essa, salvo modificações

cosméticas, a legislação em vigor nos dias atuais. Nos seus “considerandos”

– típicos do regime autoritário pós-1964 – esse novo Decreto-Lei

mencionava: que “a notória evolução da ciência e da tecnologia, nos anos

após a 2ª Guerra Mundial, introduziram alterações profundas na utilização

das substâncias minerais”; pelo que cumpriria atualizar as disposições legais

para a “salvaguarda dos superiores interesses nacionais, que evoluem com o

tempo”; “que ao Estado incumbe adaptar as normas que regulam atividades

especializadas à evolução da técnica, a fim de proteger a capacidade

competitiva do País nos mercados internacionais”; e que, “na colimação

desses objetivos”, seria “oportuno adaptar o direito de mineração à

conjuntura”.

Aqui, a primeira perplexidade decorre da explicitada necessidade de

constante atualização da legislação mineral, necessidade que foi

correspondida até a década de 1960, porém, desde então, o Brasil

permanece essencialmente vinculado ao mesmo modelo de mais de

quarenta anos atrás. Não se pretende dizer que seja o modelo atual

absolutamente imprestável e obsoleto, porém, parece ser indiscutível a

necessidade de colocá-lo sob avaliação técnica, bem como de levá-lo a

amplo debate junto à sociedade no Congresso Nacional; sendo certo que o

11

Decreto-Lei nº 227, de 28 de fevereiro de 1967.

90 A regulação do pós-lavra no Direito Minerário brasileiro (p. 79-106)

Revista de Direito, Estado e Recursos Naturais, v. 1, n. 1, p. 79-106 (2011)

tema da regulação na fase posterior à lavra é um dos debates que merece

imediato enfrentamento.

Quanto ao texto do Código de Minas de 1967, logo o seu art. 1º refere

que “compete à União administrar os recursos minerais, a indústria de

produção mineral e a distribuição, o comércio e o consumo de produtos

minerais”. Esse dispositivo é revelador e traz a abertura necessária para que

a União venha a regulamentar a produção mineral no pós-lavra, já que seria

da sua competência “administrar”, ou seja, gerir não apenas os recursos

minerais enquanto depositados no subsolo, mas também dispor sobre sua

industrialização, distribuição, comércio e consumo.

O art. 3º reforça esse entendimento, ao dispor sobre o âmbito de

regulação do próprio Código, consignando que as suas normas também

incidem sobre o regime de aproveitamento dos recursos minerais e sobre a

fiscalização, pelo Governo Federal, “da pesquisa, da lavra e de outros

aspectos da indústria mineral”.

O art. 13 traz norma mais específica sobre o tema. As pessoas naturais

ou jurídicas que exerçam atividades de “pesquisa, lavra, beneficiamento,

distribuição, consumo ou industrialização” de reservas minerais devem

submeter-se à fiscalização do Departamento Nacional da Produção Mineral

(DNPM), devendo-lhe fornecer informações sobre: “I - volume da produção

e características qualitativas dos produtos; II - condições técnicas e

econômicas da execução dos serviços ou da exploração das atividades

mencionadas no „caput‟ deste artigo; III - mercados e preços de venda; IV -

quantidade e condições técnicas e econômicas do consumo de produtos

minerais” 12

.

12

A teor do art. 50 do Código de Minas de 1967, essa fiscalização também é viabilizada por um relatório anual a ser apresentado pelo concessionário de relação às atividades realizadas no ano anterior, o qual deverá conter: “I - Método de lavra, transporte e distribuição no mercado consumidor, das substâncias minerais extraídas; II - Modificações verificadas nas reservas, características das substâncias minerais produzidas, inclusive o teor mínimo economicamente compensador e a relação observada entre a substância útil e o estéril; III - Quadro mensal, em que figurem, pelo menos, os elementos de: produção, estoque, preço médio de venda, destino do produto bruto e do beneficiado, recolhimento do Imposto Único e o pagamento do Dízimo do proprietário; IV - Número de trabalhadores da mina e do beneficiamento; V - Investimentos feitos na mina e nos trabalhos de pesquisa; VI - Balanço anual da Empresa”.

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Revista de Direito, Estado e Recursos Naturais, v. 1, n. 1, p. 79-106 (2011)

Pergunta-se: qual seria o sentido de o DNPM e o Ministério de Minas e

Energia terem acesso a todas essas informações se, mesmo que sirvam para

a elaboração de políticas públicas para o setor, não houver instrumentos de

intervenção ou regulação estatal quando se verificar quaisquer disfunções,

potencialmente causadoras de eventuais danos à economia do país? O

sentido dessa ampla fiscalização, inclusive no pós-lavra (industrialização,

comercialização e consumo), parece confirmar a especialidade do setor

mineral, mas a fiscalização sem os correspondentes meios de correção tende

a ser inócua.

Quanto a essa questão, o art. 88 sujeita à fiscalização direta do DNPM

“todas as atividades concernentes à mineração, comércio e à

industrialização de matérias-primas minerais”. E o seu parágrafo único

arremata: “Exercer-se-á fiscalização para o cumprimento integral das

disposições legais, regulamentares ou contratuais”. Do ponto de vista da

legislação, se a fiscalização da indústria e comércio mineiros objetiva o

cumprimento, entre outras, das disposições regulamentares, fica manifesta a

possibilidade legal de intervenção do Estado após a lavra do mineral.

Por outro lado, o art. 42 define a possibilidade de recusa da concessão

da mina se a sua lavra for considerada “prejudicial ao bem público” ou

“comprometer interesses que superem a utilidade da exploração industrial, a

juízo do Governo”. Como se nota, de tão estratégico que é o setor mineral,

acaso tenha êxito nas pesquisas empreendidas, o particular não possui

direito subjetivo à concessão de exploração, pois o interesse público pode

recomendar que apenas o poder público realize aquela exploração, ou

mesmo que ela não se realize (v.g. área onde se encontre grande manancial

de água).

Outro dispositivo do Código de Minas de 1967 que sinaliza a relevância

do setor mineral no longo prazo é o art. 54, o qual prevê a possibilidade de

se declarar determinada área como “Reserva Nacional de determinada

substância mineral” 13

, do que decorre a possibilidade de o Estado dispor

13

São alguns exemplos de áreas mineiras declaradas “Reserva Nacional”: Decreto nº 61.157, de 16 de agosto de 1967 constituiu a Reserva Nacional de sal-gema e sais de potássio, no Estado de Sergipe; o Decreto-Lei nº 9.858, de 13 de setembro de 1946, considerando “a importância das jazidas de minério de manganês descobertas recentemente no Território Federal do Amapá; Considerando a relativa escassez dos minérios desse metal no mundo e sua capital importância na indústria siderúrgica” ,

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Revista de Direito, Estado e Recursos Naturais, v. 1, n. 1, p. 79-106 (2011)

daqueles recursos da maneira que melhor aprouver à estratégia de

desenvolvimento nacional, inclusive, se necessário for, indenizando

eventuais concessionários que ali operem.

2. A mineração na Constituição Federal de 1988

A Constituição Federal de 1988 inovou ao incluir, entre os bens da

União, os recursos minerais, inclusive os do subsolo (art. 20, IX),

independentemente de quem seja o detentor do domínio do solo onde se

encontrem tais minérios.

O tratamento específico da matéria ficou por conta do art. 176, que

assim dispõe:

Art. 176. As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra (Constituição Federal de 1988).

Em primeiro plano, a Carta de 1988 seguiu a tradição inaugurada pela

Lei Calógeras (1915) e, desconsiderando o princípio da acessão, dispôs que

as jazidas e minerais constituem propriedade distinta da do solo. O art. 176,

ratificando o art. 20, IX, também estabelece que a propriedade de tais

recursos minerais seja da União. Na sua parte final, contudo, referido

dispositivo adere a uma espécie de ficção jurídica por meio da qual os

minérios, que são bens públicos quando estão no subsolo, ao serem

extraídos tornam-se propriedade privada.

Como se nota, a partir de 1988, a propriedade do concessionário sobre o

produto da lavra foi constitucionalizada, o que poderia, a priori, fazer crer

que a União, a partir do momento da extração do bem mineral, não mais

teria possibilidade de intervir nas fases posteriores, de industrialização e

comercialização, v.g., restringindo a exportação deste ou daquele minério.

constituiu reserva nacional aquelas jazidas; e os Decretos nº 89.404, de 24 de fevereiro de 1984 e nº 92.107, de 10 de dezembro de 1985, que constituíram Reserva Nacional de cobre, área compreendida no Estado do Pará e no então Território Federal do Amapá.

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Revista de Direito, Estado e Recursos Naturais, v. 1, n. 1, p. 79-106 (2011)

Há indícios na doutrina nacional de que essa interpretação seja pacífica,

tanto que sobre o tema impera o silêncio, entendendo-se que a União, em

tese, teria as suas competências regulatórias limitadas à pesquisa e à lavra.

Até aqueles que são contrários a essa limitação das competências

regulatórias do Estado, possivelmente, crêem que a atual texto

constitucional, de fato, impõe essa limitação. Nesse sentido, a Proposta de

Emenda à Constituição (PEC), de autoria do então Deputado Federal

Luciano Zica14

, que pretendia dar nova redação ao art. 176 da Constituição,

que passaria a vigorar com a seguinte redação:

Art. 176. As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União (PEC 410/2005).

Tal redação propunha como alteração apenas a eliminação da locução

“garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra”. Na sua

justificativa, a PEC ressaltava que a posse e o acesso aos recursos naturais,

especialmente os minerais e energéticos, constitui um dos aspectos mais

relevantes da soberania e independência das nações. Mencionava a

necessidade de o país ter reservas estratégicas desses recursos e salientava

que, na América Latina, diversos são os países – tais como Uruguai,

Bolívia, Venezuela, Argentina, etc. – que estão “revisando o marco

regulatório do seu setor energético, introduzindo normas que garantam ao

Estado o controle efetivo de suas fontes energéticas estratégicas”.

A PEC, que centrava a sua argumentação com maior ênfase em relação

ao petróleo, também mencionava que o mecanismo jurídico pelo qual o

produto da lavra passa à propriedade do concessionário tornaria letra morta

o monopólio constitucional da União sobre os recursos do subsolo. Com

isso, não haveria nenhuma certeza de que os produtores privados desses

recursos “estejam comprometidos com o atendimento às necessidades de

nosso abastecimento doméstico”.

O texto concluía afirmando que “a retomada da posse dos produtos da

lavra pela União é o instrumento por meio do qual se conseguirá, afinal,

14

Proposta de Emenda à Constituição nº 410, de 2005.

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Revista de Direito, Estado e Recursos Naturais, v. 1, n. 1, p. 79-106 (2011)

discutir com seriedade e aprovar as medidas necessárias ao atendimento das

necessidades nacionais e à garantia da soberania nacional brasileira,

assegurando, desta maneira, desenvolvimento para nosso país e

prosperidade e qualidade de vida para as atuais e futuras gerações de

brasileiros”.

A PEC teve parecer favorável na Comissão de Constituição e Justiça,

mas terminou sendo arquivada em 200715

. A proposta por ela veiculada,

contudo, não parece ser a mais adequada, até porque não nos parece que o

texto constitucional, tal como hoje redigido, impeça o Estado brasileiro de

dispor das suas riquezas naturais, ainda que a propriedade da lavra passe ao

concessionário. O problema, de fato, não parece ser do texto, mas da sua

interpretação.

Isso porque o caput do art. 176 deve ser interpretado de modo

sistemático, em harmonia, por exemplo, com o seu §1º, segundo o qual “A

pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais a

que se refere o „caput‟ deste artigo somente poderão ser efetuados mediante

autorização ou concessão da União, no interesse nacional (...)”.

Ora, se a autorização e a concessão devem ser feitas no “interesse

nacional”, até por tratar-se de bem da União, parece evidente que a

propriedade do produto da lavra, que decorre da concessão, também se

sujeita ao interesse nacional, razão pela qual a União não pode abdicar da

defesa desse interesse, pelo que a regulação pública das fases posteriores à

lavra não só é conforme à Constituição, como imprescindível à efetivação

dos próprios preceitos constitucionais.

Além disso, a propriedade do concessionário sobre o produto da lavra,

como qualquer direito de propriedade no ordenamento jurídico brasileiro,

encontra limites nos princípios constitucionais. Nesse caso, podem-se citar

como possíveis mitigadores desse direito de propriedade os princípios

constitucionais da soberania nacional (art. 170, I) e da função social da

propriedade (art. 170, III). Nesse particular, esclarece-se a discordância com

a PEC, que pretendia eliminar o direito de propriedade do concessionário: o

15

O arquivamento se deu de acordo com Art. 105 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, segundo o qual, “Finda a legislatura, arquivar-se-ão todas as proposições que no seu decurso tenham sido submetidas à deliberação da Câmara e ainda se encontrem em tramitação (...)”.

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Revista de Direito, Estado e Recursos Naturais, v. 1, n. 1, p. 79-106 (2011)

problema não reside essencialmente nesse direito, a priori, relevante ao

desenvolvimento da indústria mineira, mas na inexistência de

regulamentação quanto aos limites do seu exercício.

Com a regulação nas fases posteriores à lavra poder-se-ia, sem

necessariamente eliminar o direito de propriedade privada, garantir

observância aos princípios constitucionais da função social e da soberania

com vistas a realizar um dos objetivos fundamentais da República

Federativa do Brasil, qual seja, garantir o desenvolvimento nacional (art. 3º,

II) também por intermédio das riquezas do subsolo brasileiro.

3. O conceito de Soberania Permanente sobre os Recursos

Naturais aplicado ao Direito Minerário brasileiro

Conforme é sabido, o sistema internacional tem como principais sujeitos

de direito os Estados nacionais, cujo mais notável elemento peculiar, o da

soberania, foi consagrado no art. 2, 1, da Carta das Nações Unidas, in

verbis:

Artigo 2. A Organização e seus Membros, para a realização dos propósitos mencionados no Artigo 1, agirão de acordo com os seguintes Princípios:

1. A Organização é baseada no princípio da igualdade de todos os seus Membros (ONU, 2008a).

Desse modo, os Estados são tradicionalmente compreendidos pelo

direito internacional público como entes independentes – que não se

submetem a qualquer outro organismo – e que possuem exclusividade de

jurisdição em seu território. Assim, entende-se que “as características de

independência e autonomia dos Estados soberanos implicam o exercício de

competência sobre o seu território e sobre as pessoas e coisas nele situadas”

(COSTA, 2007, p.51).

Na década de 1960, em face do processo de descolonização que

culminou com a criação de inúmeros novos Estados, surgiram, no seio da

ONU, movimentos empreendidos com vistas a assegurar efetiva e

definitivamente a soberania desses países sobre os recursos naturais que,

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Revista de Direito, Estado e Recursos Naturais, v. 1, n. 1, p. 79-106 (2011)

durante décadas, foram explorados de forma unilateral pelos Estados

colonizadores.

Nessa época, portanto, ao lado do conceito tradicional de soberania,

surge a idéia de “soberania permanente sobre os recursos naturais”, oriunda,

em âmbito internacional, de mobilizações dos países em desenvolvimento

visando ao reconhecimento da sua soberania econômica, o que os levou a

propor diversas resoluções junto à Assembléia Geral da ONU, dentre as

quais se destacam as Resoluções n° 1.803 (XVII), de 196216

e a n° 3.281

(XXIX), de 1974 (DIAS, 2005, p.258).

Assim sendo, tal conceito de “soberania permanente sobre os recursos

naturais” consiste no direito que os Estados nacionais possuem de dispor

das suas riquezas naturais e de regulamentar a sua exploração, conforme o

que dispuser os seus ordenamentos jurídicos internos, portanto, de modo

autônomo e livre de qualquer ingerência externa, seja de outros Estados ou

de empresas privadas.

No particular, importante referir o que salienta Paula Christine Schlee:

A defesa da idéia de „soberania permanente sobre os recursos

naturais‟, nos moldes em que foi feita no âmbito da Assembléia Geral da

ONU (AGNU), guarda direta relação com as regras aplicáveis, segundo

o direito internacional consuetudinário, às relações entre Estados

receptores de investimentos estrangeiros e Estados de onde partem tais

investimentos, ou entre os primeiros e os próprios particulares,

investidores estrangeiros (2006, p.88).

Desse modo, a idéia da soberania permanente sobre os recursos naturais

apresenta-se como mais um argumento de grande valia para justificar a

legítima atuação do Estado brasileiro na regulamentação da

industrialização, comercialização, exportação e consumo dos recursos

minerais do país. Em última análise, poder-se-ia buscar nesse princípio

16

“2. A exploração, o desenvolvimento e a disposição de tais recursos [naturais], assim como a importação de capital estrangeiro para efetuá-los, deverão conformar-se às regras e disposições que esses povos e nações livremente considerem necessários e desejáveis para autorizar, limitar ou proibir ditas atividades.” (ONU, 2007).

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fundamento, até mesmo, para a nacionalização desses recursos naturais,

questionando-se, no particular caso da mineração, o direito de propriedade

do concessionário sobre o produto da lavra.

Esse caminho, todavia, conforme já salientado, não parece o mais

adequado, sendo suficiente à garantia da soberania brasileira e à busca do

desenvolvimento do país a efetiva regulamentação, pelo Estado, de todas as

etapas que compõem a utilização e aproveitamento dos minerais obtidos do

solo ou subsolo brasileiros.

4. As necessidades e possibilidades da regulação pós-lavra

Antes de se pretender obter qualquer tipo de conclusão quanto às

possibilidades jurídicas da intervenção estatal na fase posterior à lavra dos

recursos mineiras no Brasil, impende tecer algumas considerações a respeito

das necessidades dessa regulação e das suas possibilidades, por meio das

quais poderia ela ser efetivada.

Nesse sentido, Machado (1998) elenca alguns problemas que costumam

surgir aos países produtores e exportadores de minérios. Primeiro, segundo

o referido autor, as commodities minerais tendem a sofrer flutuações de

preços individualizadas e cíclicas, em função das variações da economia

internacional. Além disso, os preços de algumas dessas commodities seriam

administrados, em verdade, pelos grandes consumidores: “exemplo típico, o

minério de ferro produzido pelo Brasil e pela Austrália, em que a

rentabilidade da CVRD e da BHP [empresas produtoras] no segmento de

minério de ferro é ditada pelos cálculos econométricos das grandes

siderúrgicas japonesas e alemãs” e, mais recentemente, pelos grandes

consumidores chineses. Por outro lado, a possibilidade de o produtor ditar o

preço, o que outrora existiu para alguns minerais metálicos, foi superada

pelo fortalecimento do poder dos consumidores dos grandes mercados,

sendo hoje os preços desses minérios cotados em bolsas de mercadorias ao

redor do mundo (MACHADO, 1998).

Sob outro viés, a automação das operações de exploração, lavra e

tratamento dos minérios tenderia a deixar cada vez menos empregos na

indústria mineral dos países produtores e, sendo maiores as exigências na

contratação de pessoal, torna-se recorrente a contratação de profissionais no

exterior para atender à demanda do setor. Além disso, as recorrentes crises

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Revista de Direito, Estado e Recursos Naturais, v. 1, n. 1, p. 79-106 (2011)

econômicas vividas pelos países em desenvolvimento nos anos 1990, que

tiveram forte impacto no nível mundial de investimentos externos diretos ou

produtivos, levaram ao “desenho de uma nova legislação – mineral e fiscal

– mais atrativa para os investimentos estrangeiros, avidamente disputados

por aqueles países” (MACHADO, 1998).

Parece premente e fundamental que o Brasil, de fato, utilize os seus

recursos naturais, entre os quais os bens minerais, para promover o seu

desenvolvimento econômico, industrial e social. Como se sabe, a história

brasileira em relação às riquezas minerais, desde o período colonial, em

muito se aproxima da experiência latino-americana.

Isso porque o modelo de colonização de exploração adotado pelas

metrópoles européias, porque imbricado com o sistema de acumulação

mercantilista, promoveu verdadeira sangria dos recursos minerais da região.

Dos Impérios Inca e Asteca, da civilização Maia, das Minas Gerais

brasileiras, entre outros, saíram minérios para alimentar o desenvolvimento

industrial europeu. Nesse sentido, Eduardo Galeano, na sua sempre atual

obra As Veias Abertas da América Latina, afirma:

A história do subdesenvolvimento da América Latina integra a

história do desenvolvimento do capitalismo Mundial (...) o

subdesenvolvimento não é uma etapa do desenvolvimento. É a sua

conseqüência. O subdesenvolvimento da América Latina provém do

desenvolvimento alheio (...) (2009, p.364).

Não se está aqui a atribuir todos os problemas brasileiros e latino-

americanos aos nossos perversos antecedentes históricos. Justamente por

isso, é fundamental que os países da região, entre eles o Brasil, efetivamente

assumam o controle, ao menos no âmbito regulatório, dos seus recursos

naturais, notadamente os minerais. Isso porque o processo de exportação de

rendas e riquezas para a acumulação capitalista alheia, tal como denunciado

por Galeano, não deixou de existir. Pelo contrário. Esse processo se

institucionalizou sob as vestes dos mercados internacionais de commodities,

sob a guarda das organizações internacionais de comércio e capitaneado

pelo capital transnacional.

Explica-se: conforme é de conhecimento público, o Brasil tem, nos

A regulação do pós-lavra no Direito Minerário brasileiro (p. 79-106) 99

Revista de Direito, Estado e Recursos Naturais, v. 1, n. 1, p. 79-106 (2011)

últimos anos, descoberto grandes reservas de recursos naturais e ampliado a

sua produção agrícola. Com isso, a pauta de exportações do país tem

passado por um lento, porém seguro, processo de reprimarização, ou seja, o

país caminha para, tal como historicamente foi, voltar a ter a suas

exportações dominadas por produtos primários ou básicos, cujo valor

agregado e potencial de geração de empregos e desenvolvimento são

bastante inferiores aos dos produtos industrializados.

Analisando-se os dados fornecidos pela Secretaria de Comércio Exterior

do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior tem-se o

seguinte quadro: desde 2001, tem crescido a participação dos produtos

primários na pauta de exportações brasileira para o resto do mundo,

enquanto tem decrescido a participação dos produtos manufaturados e

semimanufaturados. Em 2001, 26,3% eram produtos primários; 14,1%

produtos semimanufaturados e 56,5% manufaturados. Em 2010, com os

dados colhidos até setembro, 44,7% das exportações correspondiam a

produtos primários; 13,7% a produtos semimanufaturados e apenas 39,5%

eram produtos manufaturados (SECEX/MDIC, 2010).

Isso demonstra a crescente dependência do Brasil às commodities nos

últimos anos, o que torna o país mais vulnerável às flutuações desses

mercados de produtos primários que, como já se salientou, tendem a uma

maior volatilidade que os mercados de produtos industrializados. Ademais,

para demonstrar o papel que o setor mineral tem desempenhado nesse

processo, adota-se, apenas a título exemplificativo, a balança comercial

bilateral Brasil-China.

No que se refere à exportação brasileira para a China, os produtos

primários, que em 1989 correspondiam a aproximadamente 11,5%,

representaram, em 2010, quase 85% do total de bens exportados. E os

minérios, em 2010, ocuparam o topo dessa pauta exportadora, com

participação de 14,2%, em relação a todas as exportações brasileiras para a

China, totalizando mais de 20,5 bilhões de dólares, ou quase quarenta

bilhões de reais17

. Se somadas as exportações da rubrica “metais e pedras

17

Além do protagonismo dos minérios, ocupavam as cinco primeiras posições da pauta exportadora do Brasil para a China: Petróleo e combustíveis (US$ 16,4 bilhões); Material de transporte (US$ 15,1 bilhões); Complexo de soja (US$ 14,9 bilhões); e Carnes (US$ 9,9 bilhões) (SECEX/MDIC, 2010).

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Revista de Direito, Estado e Recursos Naturais, v. 1, n. 1, p. 79-106 (2011)

preciosas”, esse montante ainda se acresce em US$ 1,6 bilhão ou 1,1% das

exportações. No mesmo ano, as exportações chinesas para o Brasil

compreenderam, sobretudo, produtos industrializados: combustíveis e

lubrificantes (US$ 22,5 bilhões), equipamentos mecânicos (US$ 20,7

bilhões), equipamentos elétricos e eletrônicos (US$ 16,6 bilhões) e

automóveis e partes (US$ 12,4 bilhões) (SECEX/MDIC, 2010).

Esses dados revelam, entre outras coisas, o caráter estratégico conferido

por muitos países, inclusive a China, ao setor mineral. Esses países –

grandes consumidores de commodities minerais – importam grandes

volumes de matérias-primas e, como já ressaltado, por vezes fazem estoques

para influenciar no preço futuro do minério. Além disso, a excessiva

exportação de minérios in natura, aliada à ausência de uma política

industrial adequada, podem tornar o país, mais uma vez, dependente dos

produtos primários, pouco intensivos em tecnologia e trabalho.

Essas questões sinalizam a necessidade de que o Brasil, enquanto país

produtor e exportador de diversos minérios, exerça, plenamente, a sua

soberania sobre tais recursos por intermédio do seu poder regulatório, o que

pode ser feito por meio de uma reforma na legislação infraconstitucional,

pois – conforme o entendimento já explicitado – nenhuma alteração

constitucional seria necessária para viabilizar o exercício de tais

competências legislativas e regulamentares.

Ademais disso, enquanto a regulação dos demais setores estratégicos –

como energia elétrica, petróleo e combustíveis – avançou nas últimas

décadas, o setor de mineração permanece regido por uma legislação

imprópria e obsoleta, inclusive, no que concerne às atribuições do

Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), entre as quais não

se encontra a ampla regulação do setor a abranger as fases posteriores à

lavra18

.

Nesse sentido, são interessantes algumas propostas existentes no

Congresso Nacional. A Proposta de Emenda à Constituição nº 442/2009, por

exemplo, pretende inserir um §5º ao art. 176 da Carta política, para dispor a

respeito de agência reguladora que seria “responsável pela análise de

concessão e autorização para a exploração dos recursos minerários”. Uma

18

Quanto às atuais atribuições do DNPM, vide a Lei nº 8.876, de 2 de maio de 1994, que transformou o Departamento em Autarquia.

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Revista de Direito, Estado e Recursos Naturais, v. 1, n. 1, p. 79-106 (2011)

proposta mais abrangente, contudo, foi apresentada por meio do Projeto de

Lei nº 903, de 2007, o qual dispunha sobre a política mineral nacional e

instituía o Conselho Nacional de Política Mineral e a Agência Nacional de

Recursos Minerais.

Esclarecedora a justificativa desse Projeto de Lei, apresentado pelo,

então, Deputado José Fernando Aparecido de Oliveira:

Nas últimas décadas, o aparato administrativo de vários importantes

setores da economia nacional, à exceção da área mineral, passou por

profundas transformações. (...) A principal meta foi substituir o estado

produtor pelo estado regulador. Considerou-se necessário não somente

reorganizar o aparelho estatal, mas substituir o modelo de gestão

burocrático por outro mais dinâmico, onde a intervenção do estado fosse

mais efetiva, de modo a trazer benefícios para toda a sociedade. Com

relação ao setor mineral, os fundamentos do atual Código de Mineração,

em termos de princípios e diretrizes econômicas, foram estabelecidos em

1967 pelo Decreto-Lei nº 227. Em 1996, por meio da Lei nº 9.314, foram

feitas alterações nesse Código. (...) No entanto, essas alterações foram

muito tímidas quando comparadas com as modificações feitas no setor

petróleo e no setor elétrico. De fato, desde o final da década de 70, a

indústria de mineração brasileira está carente de um efetivo

planejamento estratégico institucional que, a partir de novos paradigmas

da ação do estado, seja capaz de induzir a consecução de objetivos e

metas, estabelecer diretrizes, ordenar e fomentar ações e programas

públicos e privados para o setor, além de viabilizar os meios e os

recursos necessários. Os sinais de que o setor mineral não está sendo

priorizado são evidentes. Entre esses sinais, pode-se destacar a

eliminação da função de fomento e de gestão do setor mineral por parte

do Departamento Nacional da Produção Mineral (DNPM). O DNPM

vem se tornando um simples cartório de registros, concessões de alvarás

e de decretos de minas e sua fiscalização. O que se propõe, por meio

deste Projeto de Lei, a exemplo do que ocorreu no setor petróleo e no

setor elétrico, é um novo modelo institucional para o setor mineral (CN,

PL 903/2007).

Em suma, a relevância do setor mineral contrasta com o seu relativo

esquecimento pela doutrina jurídica e com o quase absoluto esquecimento

dos Poderes Legislativo e Executivo, razão pela qual é passado o momento

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Revista de Direito, Estado e Recursos Naturais, v. 1, n. 1, p. 79-106 (2011)

de o Brasil colocar a mineração na ordem do dia, priorizando a formulação

de uma política mineral consistente e a reformulação da estrutura estatal

responsável pela fiscalização e regulação do setor, no bojo da qual se

incluiria a necessidade de ampliação das competências regulatórias estatais

sobre os concessionários.

Considerações finais

Conforme restou demonstrado nas linhas acima, parece inequívoco que

a regulação do setor mineral precisa avançar, não apenas em termos

qualitativos, mas também no que se refere à extensão das competências

regulatórias estatais.

Por outro lado, a suposição, de boa parte da doutrina brasileira, de que o

art. 176 da Constituição de 1988, ao conferir ao concessionário a

propriedade do produto da lavra, impede que o Estado exerça funções

regulatórias a partir desse momento, apenas encontra guarida numa

interpretação equivocada do texto constitucional. Essa interpretação literal

desconsidera, v.g., que no ordenamento jurídico pátrio nenhum direito de

propriedade é absoluto, podendo ser mitigado, entre outros, pelos princípios

constitucionais da função social da propriedade e da soberania, este último

que, no âmbito internacional, foi especializado na ideia de “soberania

permanente dos recursos naturais”, para garantir aos Estados a livre

disposição dos seus recursos naturais, em benefício do seu próprio

desenvolvimento.

De igual modo, uma interpretação sistemática do texto constitucional

conduzirá ao cotejo, como já alhures feito, do art. 176 com o seu §1º e com

o art. 20, IX, revelando, sim, a possibilidade de intervenção do Estado sobre

o produto da lavra, ainda que este, após a exploração, passe a ser

propriedade privada.

Sob o viés de uma interpretação histórica – o argumento de que o Estado

não poderia regular as atividades no pós-lavra, por se tratar de propriedade

particular – como demonstrado no primeiro capítulo, não encontra amparo

sequer nos períodos e ordenamentos jurídicos mais liberais.

Além disso, o caráter pretensamente absoluto – que muitos pretendem

conferir ao direito de propriedade do concessionário sobre o produto da

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lavra – sequer é um impositivo histórico, porque são diversos os exemplos

históricos de intervenção do Estado brasileiro na fase posterior à lavra,

inclusive quando havia o regime de mina privada, cuja propriedade era do

dono do solo. Se por aquele regime ainda mais privatista se entendia

possível, ainda que episodicamente, a intervenção regulatória do Estado,

tanto mais é ela possível com fundamento na atual ordem constitucional,

que atribui os bens minerais à União.

Por fim, conforme se demonstrou nas linhas acima, as Constituições de

1934 e 1937 já propugnavam a “progressiva nacionalização” das minas e

jazidas. Com a Constituição de 1988, essa nacionalização foi finalmente

completada pela norma contida no seu art. 20, IX. Ao que parece, se a

própria Constituição vedasse a regulação pós-lavra – na qual se incluem

atividades de beneficiamento, comercialização e exportação, das mais

estratégicas para o país – não haveria sentido nessa nacionalização; e a

razão de ser da destinação constitucional dos recursos minerais à União

ficaria praticamente esvaziada.

Conclui-se, portanto, que, do ponto de vista constitucional, nada obsta à

ampliação das competências regulatórias estatais para abranger as

atividades posteriores à lavra dos minérios extraídos do solo ou subsolo

brasileiros, podendo a legislação infraconstitucional dispor nesse sentido.

Para tanto, visando incrementar a contribuição dos recursos minerais ao

desenvolvimento nacional, também são necessárias a formulação e

execução de uma política nacional de minérios, bem como reformulação ou

criação da estrutura governamental que assumiria essas atividades

planejadoras e reguladoras mais amplas.

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