192
ESTUDOS URBANOS E REGIONAIS REVISTA BRASILEIRA DE publicação da associação nacional de pós-graduação e pesquisa em planejamento urbano e regional ISSN 1517-4115

A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

ESTUDOS URBANOSE REGIONAIS

REVISTA BRASILEIRA DE

publicação da associação nacional de pós-graduação

e pesquisa em planejamento urbano e regional

ISSN 1517-4115

Page 2: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS URBANOS E REGIONAISPublicação semestral da ANPUR

Volume 11, número 2, novembro de 2009

EDITORES RESPONSÁVEISGeraldo Magela Costa (UFMG), Sarah Feldman (EESC-USP)

EDITORA ASSISTENTEJupira Gomes de Mendonça (UFMG)

COMISSÃO EDITORIALAna Fernandes (UFBA), Carlos Antônio Brandão (Unicamp), Lilian Fessler Vaz (UFRJ), Luciana Corrêa do Lago (UFRJ)

CONSELHO EDITORIALAna Clara Torres Ribeiro (UFRJ), Ananya Roy (University of California, Berkeley), Ângela Lúcia de Araújo Ferreira (UFRN),

Brasilmar Ferreira Nunes (UnB), Carlos de Mattos (Pontificia Universidad Católica de Chile), Carlos Antonio Brandão (Unicamp), Clara Irazabal (Columbia University, Nova York), Emilio Pradilla Cobos (Universidad Autonoma

Metropolitana, Unidad Xochimilco, México), Ermínia Maricato (USP), Heloisa Soares de Moura Costa (UFMG), Henri Acselrad (UFRJ), João Rovati (UFRS), Lia Osorio Machado (UFRJ), Linda Maria de Pontes Gondim (UFC),

Marco Aurélio A. de F. Gomes (UFBA), Margareth Pereira (UFRJ), Maria Cristina da Silva Leme (USP), Nadia Somekh (Mackenzie), Norma Lacerda Gonçalves (UFPE), Paola Berenstein Jacques (UFBA), Paul Claval (Université Paris-IV,Sorbonne), Ricardo Cesar Pereira Lira (UERJ), Roberto Monte-Mór (UFMG), Rosa Acevedo (UFPA), Sandra Lencioni (USP),

Victor Ramiro Fernández (Universidad Nacional del Litoral, Argentina), Wrana Maria Panizzi (UFRS)COLABORADORES

Almir Reis (UFSC), Ana Fani Alessandri Carlos (USP), Angela Maria Gordilho Souza (UFBA), Carlos Antonio Brandão (Unicamp), Carlos Roberto M. de Andrade (EESC-USP), Cibele Saliba Rizek (EESC-USP),

Claudio Antonio Gonçalves Egler (UFRJ), Denise de Souza Elias (UECE), Flavio Villaça (FAU-USP), Jorge Dantas (FAU-USP),Jupira Gomes de Mendonça (UFMG), Lúcia Cony Faria Cidade (UnB), Luciana Correa do Lago (UFRJ),

Luciana Soares Lopez (FEA-USP), Nadia Somekh (UPM), Maria Ruth Amaral de Sampaio (FAU-USP), Olga Lucia Castreghini de Freitas Firkowski (UFPR), Raquel Rolnik (FAU-USP), Ricardo de Souza Moretti (UFABC), Rogerio Haesbaert

da Costa (UFF), Rosélia Perissé da Silva Piquet (UCAM), Silvio Mendes Zancheti (UFPE), Vera Rezende (UFF)SECRETARIARaquel Cerqueira

PROJETO GRÁFICOJoão Baptista da Costa Aguiar

CAPA, COORDENAÇÃO E EDITORAÇÃO Ana Basaglia REVISÃO

Fernanda SpinelliIMPRESSÃO CTP

Fabracor

Indexada na Library of Congress (EUA)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais – v.11, n.2,2009. – Associação Nacional de Pós-Graduação ePesquisa em Planejamento Urbano e Regional; editores responsáveis Geraldo Magela Costa e Sarah Feldman: A Associação, 2009.

Semestral.ISSN 1517-4115O nº 1 foi publicado em maio de 1999.

1. Estudos Urbanos e Regionais. I. ANPUR (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional). II. Costa, Geraldo Magela; Feldman, Sarah

711.4(05) CDU (2.Ed.) UFBA711.405 CDD (21.Ed.) BC-2001-098

Page 3: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

3R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

ARTIGOS

9 MONTANHAS EM UM MUNDO PLANO –PORQUE A PROXIMIDADE AINDA IMPORTA PARA A

LOCALIZAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA –Andrés Rodríguez-Pose e Riccardo Crescenzi

31 DEMOCRACIA NO FIO DA NAVALHA – LIMITES

E POSSIBILIDADES PARA A IMPLEMENTAÇÃO DE

UMA AGENDA DE REFORMA URBANA NO BRASIL

– Raquel Rolnik

51 A OUTORGA ONEROSA DO DIREITO DE

CONSTRUIR E O SOLO CRIADO – UMA

N E C E S S Á R I A AVA L I A Ç Ã O D A S M AT R I Z E S

CONCEITUAIS – Vera F. Rezende, Fernanda Furtado,M. Teresa C. Oliveira, Pedro Jorgensen Jr.

73 A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA NA

AMAZÔNIA LEGAL – Denise de Campos Gouvêa,Paulo Coelho Ávila, Sandra Bernardes Ribeiro

95 A ATUAÇÃO DO MONTEPIO NA PRODUÇÃO

ESTATAL DE HABITAÇÃO EM JOÃO PESSOA DE

1932 A 1963 – Angela Araujo Nunes

119 IDENTIDADES RELACIONADAS AO ESPAÇO

GEOGRÁFICO – A NAÇÃO BRASILEIRA E A

CIDADE DE NOVO HAMBURGO/RS (1927-1945)– Alessander Kerber e Cleber Cristiano Prodanov

139 E I X O M O N U M E N TA L D E B R A S Í L I A – AO B S E S S Ã O D A I N T E G R A Ç Ã O – Brasilmar FerreiraNunes

157 A FORMA URBANA COMO PROBLEMA DE

DESEMPENHO – O IMPACTO DE PROPRIEDADES

ESPACIAIS SOBRE O COMPORTAMENTO URBANO –Vinicius M. Netto e Romulo Krafta

RESENHAS

183 Philip Gunn – Debates e proposições em arquitetu-ra, urbanismo e território na era industrial, de Telma deBarros Correia (Org.) – por Celso Monteiro Lamparelli

185 Viver em risco – sobre a vulnerabilidade socioeco-nômica e civil, de Lúcio Kowarick – por Cibele SalibaRizek

ESTUDOS URBANOSE REGIONAIS

REVISTA BRASILEIRA DE

publicação da associação nacional de pós-graduação

e pesquisa em planejamento urbano e regional

S U M Á R I O

Page 4: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

EM PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL – ANPUR

GESTÃO 2009-2011PRESIDENTE

Leila Christina Dias (PPGG/UFSC)SECRETÁRIO EXECUTIVO

Elson Manoel Pereira (PPGG/UFSC)SECRETÁRIA ADJUNTA

Maria Inês Sugai (PGAU-Cidade/UFSC)DIRETORES

Ana Clara Torres Ribeiro (IPPUR/UFRJ)Lucia Cony Faria Cidade (POSGEA/UnB)

Maria Lucia Refinetti Martins (PPGAU-FAU/USP)Silvio José de Lima Figueiredo (NAEA/UFPA)

CONSELHO FISCAL (TITULARES)Eloisa Petti Pinheiro (PPGAU/UFBA)

Ester Limonad (POSGEO/UFF)Rodrigo Ferreira Simões (CEDEPLAR/UFMG)

CONSELHO FISCAL (SUPLENTES)Celia Ferraz de Souza (PROPUR/UFRGS)

Elis de Araújo Miranda (Mestrado em Planejamento Regional e Gestão de Cidades/UCAM-Campos)

Iná Elias de Castro (PPGG/UFRJ)

Page 5: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

5R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

E D I T O R I A L

Nesta edição da Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais são reunidos tex-tos de pesquisadores de múltiplos campos disciplinares. É a partir da geografia econô-mica, do urbanismo, da sociologia e da história que diferentes escalas territoriais e di-ferentes aspectos da questão urbana e regional são analisados e problematizados,expondo campos teóricos, métodos e fontes de pesquisa específicos.

Em “Montanhas em um mundo plano”, Andrés Rodríguez-Pose e Riccardo Cres-cenzi desafiam e dialogam com pesquisadores e autores que, por quase duas décadas,têm interpretado o processo de globalização como a possibilidade de um “mundo pla-no”, como um campo competitivo de condições homogêneas de poder e de condiçõesde vida. Os autores mostram que a geografia da economia mundial é muito mais com-plexa e repleta de montanhas. As montanhas em um suposto mundo plano estão rela-cionadas ao papel desempenhado não apenas pela proximidade física ou geográfica,mas também pela proximidade cognitiva, organizacional, social e institucional na loca-lização da atividade econômica. Nesta nova geografia, em que apenas as grandes aglo-merações urbanas respondem a estas condições, a maioria da população mundial, aocontrário de ter maior poder, permanece mal preparada para estes desafios.

A perspectiva urbanística está presente em três textos que avaliam, problemati-zam e sinalizam para a necessidade de avanços nos instrumentos e políticas públicasem curso, no Brasil, a partir das mudanças nas condições institucionais, com a apro-vação do Estatuto da Cidade e criação do Ministério das Cidades.

Em “Democracia no fio da navalha”, Raquel Rolnik avalia os limites e possibili-dades de implementação da agenda da Reforma Urbana através da trajetória do Con-selho Nacional das Cidades e da campanha pelos Planos Diretores Participativos. Fo-cando a organização do Estado na área do desenvolvimento urbano e sua relação como sistema político e com as características da democracia brasileira, aponta a neces-sidade de fortalecimento de espaços de exercício da democracia direta e de controlesocial, e de um projeto de reforma do atual modelo federativo de gestão urbana.

Vera Rezende, Fernanda Furtado, Maria T. C. de Oliveira e Pedro Jorgensen Jr.recuperam, em “A outorga onerosa do direito de construir e o Solo Criado: uma ne-cessária avaliação das matrizes conceituais”, o longo caminho de formulação do ins-trumento definido no Estatuto da Cidade para integrar a política urbana municipaldas cidades brasileiras. A rica sistematização do material bibliográfico e documentalque abordam a outorga e o conceito de Solo Criado que lhe dá origem colabora parauma melhor compreensão de suas potencialidades e das questões que permeiam osatuais debates sobre sua implementação.

Em “A regularização fundiária urbana na Amazônia Legal”, Denise de C. Gou-vêa, Paulo C. Ávila e Sandra B. Ribeiro analisam as especificidades do quadro de ir-regularidades da Região Amazônica a partir da complexa estrutura fundiária. Mos-tram como o persistente descontrole sobre os registros imobiliários consolida umadesordem fundiária que, associada à prática de fraudes, potencializa o conflito pelaposse e domínio da terra. Baseados na análise do arcabouço legal que regulamenta adestinação das terras da União para os municípios, aprovado em 2009, apontam o

Page 6: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

6 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

descompasso entre avanço das normas e capacitação institucional dos responsáveis porsua aplicação.

Dois textos que se apoiam em fontes documentais, iluminam períodos específi-cos da história de duas cidades brasileiras. Em “A atuação do Montepio na produçãoestatal de habitação em João Pessoa de 1932 a 1963”, Angela Nunes recupera a atua-ção da Carteira Imobiliária do Montepio do Estado da Paraíba na produção de mo-radias para o funcionalismo público na capital. A autora mostra como a Paraíba seantecipa à ação federal do Banco Nacional de Habitação, os padrões de moradiasconstruídas e as repercussões destes empreendimentos no processo de desenvolvimen-to da cidade e na atuação da administração municipal.

Em “Identidades relacionadas ao espaço geográfico: a nação brasileira e a cidadede Novo Hamburgo/RS (1927-1945)”, Alessander Kerber e Cleber C. Prodanov ana-lisam as lutas de representações em torno da construção de identidades de NovoHamburgo, desde sua emancipação até o final da segunda guerra mundial e do Esta-do Novo. Os conflitos entre as representações da cidade através do arcabouço simbó-lico vinculados à imigração alemã e as representações de nação brasileira, através designos da mestiçagem, são discutidos pelos autores.

Numa perspectiva sociológica, Brasilmar Nunes analisa em “Eixo monumentalde Brasília: a obsessão da integração” as implicações da construção de um museu e deuma biblioteca pública no Eixo Monumental de Brasília, na vida cotidiana e no usode um setor do Plano Piloto. Através de um estudo etnográfico, mostra como, na me-dida em que se amplia e se diversifica o seu uso, o espaço torna-se acessível a um es-pectro mais amplo de grupos sociais.

Também voltados para as dinâmicas intraurbanas, em “A forma urbana comoproblema de desempenho: o impacto de propriedades espaciais sobre o comporta-mento urbano”, Vinicius M. Netto e Romulo Krafta lançam os fundamentos teóricose metodológicos para um novo sistema de indicadores que associa metaindicadores dedesempenho, como equidade, eficiência, qualidade espacial e sustentabilidade a di-mensões urbanas, como morfologia, dinâmica socioeconômica, limiares urbanos e re-lações cidade–ambiente.

Duas resenhas de publicações de grande importância para a área de estudos urba-nos e regionais completam esta edição. A primeira refere-se à coletânea de textos PhilipGunn –debates e proposições em arquitetura, urbanismo e território na era industrial, orga-nizada por Telma Correia de Barros. Elaborada pelo professor Celso Lamparelli, a re-senha situa de forma primorosa e sensível as preocupações, as linhas de pesquisa e ogrande legado do colega e ex-diretor da Anpur que tão prematuramente nos deixou.

A segunda resenha é elaborada pela professora Cibele Rizek, sobre o premiadolivro de Lucio Kowarick, Viver em risco. Sobre a vulnerabilidade socioeconômica e civil,que, através de novas proposições teórico-metodológicas no estudo das condições devida em cortiços, favelas e periferias, oferece um quadro muito preciso do que signi-fica viver em risco na São Paulo de nossos dias.

Por fim, cabe registrar aqui que esta edição da Revista Brasileira de Estudos Ur-banos e Regionais é fruto do trabalho conjunto de Geraldo Magela, que finaliza suagestão como editor responsável, e de Sarah Feldman, que assume esta função pelospróximos dois anos.

GERALDO MAGELA COSTA E SARAH FELDMAN

Editores responsáveis

Page 7: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

ARTIGOS

Page 8: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA
Page 9: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

MONTANHAS EM UM MUNDO PLANO

PORQUE A PROXIMIDADE AINDA IMPORTA PARA A

LOCALIZAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA*

A N D R É S R O D R Í G U E Z - P O S ER I C C A R D O C R E S C E N Z I

R E S U M O Thomas Friedman (2005) argumenta que a expansão do comércio, a in-ternacionalização das firmas, o crescimento acelerado do processo de outsourcing e a possibi-lidade de conexão em redes a custos cada vez mais baixos estão criando um “mundo plano”:um campo competitivo de condições homogêneas de concorrência no qual os indivíduos têmmaior poder e melhores condições de vida. Este artigo desafia essa visão do mundo, argumen-tando que embora a globalização traga mudanças, oportunidades e desafios, nem todos os ter-ritórios têm a mesma capacidade de maximizar os benefícios e as oportunidades e de minimi-zar as ameaças circundantes. Numerosas forças estão se fundindo no sentido de provocar aemergência de “montanhas” urbanas, onde a riqueza, a atividade econômica e a capacidadede inovação se aglomeram. Estas forças “tectônicas” incluem fatores como a inovação, os trans-bordamentos, os encadeamentos para trás e para frente nas cadeias produtivas, a dinâmica deespecialização versus diversificação, o capital social e comunitário e, por último, mas não me-nos importante, o “buzz” da cidade. As interações destas forças na proximidade geográfica dasgrandes áreas urbanas dão forma a uma geografia muito mais complexa da economia mun-dial e permitem a ascensão de novos players econômicos. Mas esta geografia, ao contrário deser plana, é repleta de montanhas, em que as grandes aglomerações urbanas representam os pi-cos mais altos. A maioria da população mundial, ao contrário de ter maior poder, permanecemal preparada para encarar estes desafios.

P A L A V R A S - C H A V E Progresso tecnológico; nova geografia econômica;vantagem competitiva.

INTRODUÇÃO

Às vezes o pensamento das pessoas num campo de golfe é peculiar. Enquanto amaioria aproveitaria a ocasião para tentar, um pouco desajeitadamente, imitar TigerWoods no famoso buraco 12 no Augusta National Golf Club, para criar vínculos comnossos chefes e parceiros de negócios ou simplesmente para aproveitar uma tarde relaxan-te de domingo com amigos e familiares, Thomas L. Friedman (2005) passou seu tempono campo de golfe de Bangalore (ou Bengaluru, como a cidade foi oficialmente reno-meada em 2006) para ponderar a respeito das implicações de ter que mirar sua bola naMicrosoft ou na IBM (p.3). E ao conseguir levar sua bola diretamente ao green hindusta-ni, ele chegou à conclusão de que o “mundo é plano”, isto é, “que o campo de competi-ção global está sendo aplainado” (Idem, p.8).

Infelizmente para ele, a eureca pessoal de Friedman não é particularmente nova.Uma linha de pesquisadores e autores têm argumentado por quase duas décadas que a ex-

9R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

* Este artigo foi publicadona Cambridge J RegionsEcon Soc (2008) 1 (3): 371-388. Tradução de Felipe Nu-nes Coelho Magalhães (eco-nomista e mestre emGeografia pela UFMG); revi-são de Rodrigo Simões(UFMG).

Page 10: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

pansão do comércio, a internacionalização das firmas, o crescente processo de outsourcinge a possibilidade de se conectar em redes por custos cada vez mais baixos anunciam o“fim da geografia” (O’Brien, 1992), a “morte da distância” (Cairncross, 1997), a emer-gência de um “espaço de fluxos” (Castells, 1998) ou de uma “economia sem peso”(Quah, 1999). Como ressalta Ohmae, num “mundo plano” o verdadeiro mapa-múndinão é mais um mapa político, mas um mapa dos fluxos financeiros, industriais e de ca-pital, onde “em grande medida, desapareceram as fronteiras” políticas (Ohmae, 1991,p.28). Entretanto, apesar de não propugnar uma mensagem completamente nova, Fried-man merece crédito por dois aspectos. Em primeiro lugar, ele é capaz de transformaruma ideia já bem estabelecida na coluna vertebral de um livro divertido e bem escrito,contribuindo para popularizar um conceito que, apesar de bastante conhecido em círcu-los acadêmicos e de formuladores de políticas públicas, tem sido impreciso e em certamedida negligenciado ou manipulado por administradores, sindicalistas, servidores pú-blicos e pelo público em geral. Em segundo lugar, Friedman leva a ideia do “mundo pla-no” para além de seus predecessores, argumentando que a “Globalização 3.0”, em suaspróprias palavras, não somente aplaina o campo de competição e representa o fim dageografia que conhecemos, mas também dá maior poder aos indivíduos (Friedman,2005, p.11). “As pessoas em todo o mundo começaram a acordar e a se dar conta de queelas tinham um poder inédito para atuarem globalmente como indivíduos, e que precisa-vam mais do que nunca de pensar em si mesmos como indivíduos competindo contratodos os outros indivíduos em todo o planeta” (Idem).

Entretanto, as visões de Friedman acerca do mundo em aplainamento e do empo-deramento dos indivíduos pela Globalização 3.0 pode ser o simples resultado de sua de-cisão de jogar golfe com expatriados e indianos com muitos anos de estudo em camposperfeitamente decorados no planalto que circunda Bangalore. Se ele tivesse jogado críque-te com crianças descalças usando caixas de papelão como wickets na Província da Frontei-ra Noroeste do Paquistão ou, pelas mesmas razões, dominós com operários de meia ida-de num bar no Piemonte italiano ou boules ou petanque com seus equivalentes francesesem Grenoble, sua visão do impacto da globalização poderia ter sido muito diferente. Nes-tes locais, a visão do Hindu Kush ou dos Alpes lhe teria feito perceber que, apesar destaonda de globalização representar de fato uma mudança tectônica em escalas provavelmen-te sem precedentes, ela não necessariamente implica a erosão das montanhas anterior-mente existentes, conformando um mundo plano e uniforme. Pelo contrário – como é ocaso de qualquer colisão de placas tectônicas –, ela parece sinalizar a emergência de cadeiasde montanhas de altura semelhante, senão maiores, do que aquelas que já existiam, em-bora não necessariamente no mesmo lugar. A globalização traz mudanças, oportunidadese desafios, e nem todos os territórios ao redor do mundo têm a mesma capacidade ou asferramentas necessárias para fazer do mundo um campo competitivo de condições regu-lares. Desse modo, argumentaríamos que o mundo plano de Friedman é, na realidade, re-pleto de montanhas, e que algumas destas montanhas são tão altas quanto o Everest.

E se a ele se misturassem as crianças e seus pais em áreas não tão remotas do subcon-tinente asiático ou aos trabalhadores de fábrica de Novara ou Grenoble, ao invés do pre-sidente da Infosys ou de pós-graduados dos prestigiados Indian Institute of Technologyou do Indian Institute of Management, ou de expatriados estrangeiros e estagiários naInfosys e outras empresas semelhantes, ele teria se dado conta de que a grande maioria dapopulação do mundo, longe de estar capacitada para escalar e conquistar estas monta-nhas, está mal preparada para enfrentar os desafios que a mudança tectônica conhecida

M O N T A N H A S E M U M M U N D O P L A N O

10 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 11: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

como “Globalização 3.0” oferece. De fato, argumentaremos que quando Friedman afir-ma que a “Globalização 3.0” dá maior poder aos indivíduos, ele realmente quer dizer queela fortalece grandes empresas, independente do fato de serem grandes empresas norte-americanas, europeias, indianas ou chinesas.

Neste ensaio, desafiaremos o relato de Friedman (2005) acerca do impacto da glo-balização ao redor do mundo em relação a estes dois aspectos. Depois de uma breve apre-sentação dos principais argumentos de Friedman, observaremos as evidências de concen-tração e aglomeração econômica que tornam o mundo muito mais montanhoso do queFriedman gostaria de acreditar. Em seguida, trataremos das forças que estão dando formaao surgimento de montanhas no “mundo plano” de Friedman. As principais conclusõessão apresentadas ao final do artigo.

O MUNDO PLANO

Friedman (2005) elabora uma história envolvente a respeito da globalização e seuimpacto. Suas “dez forças que aplainaram o mundo” são assépticas o suficiente para tor-ná-las tentadoras virtualmente para todos. Em primeiro lugar, a globalização potencializatodos os tipos de liberdade: a liberdade de movimento de bens, capital, serviços e indiví-duos; a liberdade de adotar “boas práticas” (p.54) – seja lá o que isso signifique – inde-pendentemente de onde se está baseado; e a liberdade de a criatividade fluir. Os indiví-duos e territórios não somente se tornam mais inovadores e criativos ao se envolverem emmaiores intercâmbios, mas eles também alcançam saltos significativos com a adoção des-tas boas práticas. A globalização traz também maiores interações através da potencializa-ção da conectividade e da criação daquilo que Friedman denomina de “cadeia global defornecimento de software”, que permite a combinação de plataformas distintas, como oPC e o e-mail, assim como a geração crescente de softwares desenvolvidos por comunida-des (p.94). A globalização também envolve o outsourcing, “levar alguma função específi-ca, mas limitada, que sua empresa conduzia internamente (...) e ter exatamente a mesmafunção executada por outra empresa para você” (p.137), o offshoring, a recriação de umaempresa num lugar diferente (p.137), a criação de cadeias de fornecedores (supply-chaining) e o insourcing, algo semelhante à sincronização de cadeias de fornecedores glo-bais (aparentemente o que a UPS faz atualmente). Como um conjunto, o processo permi-te uma melhor in-formação, ou a “habilidade de se construir e implantar nossas cadeiasprodutivas pessoais” (p.137). E tudo isso é feito na velocidade da luz através do uso doque Friedman chama de “esteroides”, que permitem que os motores conversem com oscomputadores, que as pessoas conversem com as pessoas, computadores com computado-res, e pessoas com computadores “a maiores distâncias, de forma mais rápida, mais bara-ta, e mais facilmente do que nunca” (p.200).

O resultado líquido desta transformação é simplesmente um mundo melhor. Ummundo onde os indivíduos têm maior poder e vivem melhor. Como ressalta Friedman,“uma maior quantidade de pessoas num maior número de lugares agora têm o poder deacessar a plataforma do mundo plano” (p.206), mesmo que isso signifique somente aoportunidade de se questionar alguém proferindo uma conferência ao se acessar informa-ções mais coerentes em tempo real (p.189), ou de pagar a “Southwest Airlines para ser suacontratada” (p.202). Mas o empoderamento é somente a ponta do iceberg. Como conse-quência da globalização, os consumidores se beneficiam de bens mais baratos e mais efi-

A N D R É S R O D R Í G U E Z - P O S E , R I C C A R D O C R E S C E N Z I

11R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 12: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

cientes, de acesso mais barato e de melhor qualidade aos seus amigos e familiares viven-do em outros países, ou da possibilidade de se assimilar inovações “sem precisar se deslo-car” (p.217). O mundo plano implica o que Friedman chama de “horizontalização” euma “mudança de hábitos massiva e de escala mundial” (Idem).

De diversas maneiras, a tese de Friedman é reminiscente da literatura da morte dadistância (O’Brien, 1992; Ohmae, 1995; Castells, 1996; Cairncross, 1997). Nesta litera-tura é proclamado que o progresso tecnológico e a inovação estão rapidamente reduzin-do a importância da distância na localização das atividades econômicas. A grande realiza-ção da globalização foi a diminuição das barreiras que impediam a mobilidade de capital,bens, trabalho e, cada vez mais, dos serviços. Considerando que a localização será signifi-cativa “enquanto as barreiras físicas existirem, enquanto as viagens levarem tempo e en-quanto outras diferenças culturais e sociais persistirem” (O’Brien, 1992, p.2), a rápidaerosão dos obstáculos que impediam a troca de informações, conhecimento, bens e ou-tros fatores de produção traduziu-se numa convergência ainda mais veloz na direção deum espaço digital “sem espaço” e de modelos culturais globais mais homogêneos (Cas-tells, 1996; Cairncross 1997). Como no pensamento de Friedman, os principais motorespor trás da noção da “morte da distância” são a “revolução das comunicações”, o progres-so tecnológico e o fato de que o surgimento de telecomunicações e tecnologias de compu-tação avançadas permite uma maior mobilidade de fatores econômicos, assim como umahomogeneização dos hábitos e das atividades e a remoção de gargalos de recursos (Cas-tells, 1996). O progresso tecnológico, desse modo, desvincula a atividade econômica deseu contexto territorial e socioeconômico, permitindo que o crescimento e o desenvolvi-mento ocorram virtualmente em qualquer lugar, até em áreas onde pobres dotações de fa-tores impediam que o desenvolvimento criasse raízes. Portanto, graças aos computadorese à tecnologia de comunicações, a atividade econômica pode agora florescer praticamen-te em qualquer lugar do mundo, gerando “algo que, acima de tudo, beneficiará a huma-nidade: a difusão global do conhecimento. As informações que anteriormente eram dis-poníveis para poucos poderão se tornar disponíveis para muitos, de forma instantânea ebarata (em termos de custos de distribuição)” (Cairncross, 1997, p.4).

O conceito do Estado-nação como barreira e como uma irrelevância crescente neste“mundo dos fluxos”, também está presente em argumentos anteriores baseados na “morteda distância”. Ninguém dá mais ênfase a este ponto do que Kenichi Ohmae (1991;1995), que defende que os atores econômicos tomaram as oportunidades que lhe foramdadas por esta onda de globalização e se tornaram extremamente móveis, cada vez me-nos sujeitos a fronteiras nacionais ou legais. Muito frequentemente, o até então todo po-deroso Estado-nação westfaliano vai perdendo o poder necessário para contrapor estastendências. Na medida em que a atividade econômica e a propriedade se tornam cada vezmais internacionais e globais, os agentes econômicos se tornam cada vez mais “divor-ciados de definições nacionais” (O’Brien, 1992, p.100). Como define Friedman (2005),“quanto mais as forças aplainadoras reduzirem a fricção e as barreiras, mais agudo será odesafio que elas colocarão ao Estado-nação e às culturas, valores, identidades nacionais,tradições democráticas e laços de restrição que historicamente protegeram e amorteceramtrabalhadores e comunidades” (p.237-8). Consequentemente, os poderes do Estado es-tão sendo declaradamente esvaziados pelo surgimento de outros atores, como regiões eorganizações internacionais, por um lado, e empresas multinacionais, do outro (Jessop,1995), limitando a capacidade do Estado de influenciar processos econômicos que ocor-rem em seus territórios.

M O N T A N H A S E M U M M U N D O P L A N O

12 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 13: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

O melhor aspecto do mundo plano proposto por Friedman (2005) é que todos osseus benefícios têm custo muito baixo. É fato que os norte-americanos e os países domundo em desenvolvimento teriam que se exercitar na academia para entrar em forma eassim enfrentar os desafios trazidos pelo mundo plano. Mas não seria nada difícil. A re-ceita para os norte-americanos não é nada que eles não tenham experimentado antes: maiseducação, especialmente nas ciências e engenharias (p.300), e melhor parentalidade atra-vés do “amor rigoroso”, para que as crianças norte-americanas sejam tão dedicadas quan-to seus equivalentes imigrantes nos EUA e seus correspondentes na China e na Índia. Comestes ingredientes, os EUA serão capazes de superar o hiato de ambições com as economiasemergentes, que se encontra na raiz dos atuais problemas estadunidenses em se adaptar àeconomia globalizada. Para o mundo em desenvolvimento a receita não é mais desalenta-dora: mais acessibilidade à Internet, mais educação e melhor governança (p.398).

Desse modo, levado aos seus limites, o argumento do mundo plano implica que “alocalização não mais importa” (O’Brien, 1992, p.73), que a atividade pode florescer vir-tualmente em qualquer lugar do mundo a baixos custos – na medida em que os avançosna tecnologia e nas telecomunicações teriam permitido uma mobilidade de informação econhecimento muito maior –, progressivamente erodindo os benefícios tradicionais daseconomias de escala, escopo e comunicações. Dessa perspectiva, graças aos avanços na co-nectividade, nos softwares de cadeias de fornecedores globais, assim como nos processosde outsourcing, insourcing, na exteriorização das atividades (offshoring), e no fornecimentoem cadeia (supply-chaining), todos os territórios, não importa quão remotos, têm o po-tencial de se tornar players globais. Corretores da bolsa de Londres podem se mudar paraSeychelles e trabalhar de lá enquanto bebem coquetéis deitados em suas redes numa praiaidílica, e enquanto economizam milhares que seriam gastos em aluguéis como resultadode não mais precisarem se preocupar em ter um escritório na cidade. Esta mudança pro-vavelmente permitirá que eles sejam mais produtivos, embora possam passar mais tempodeitados, pois os corretores em Seychelles perderão menos tempo com deslocamentos econgestionamentos e serão mais felizes, e a felicidade está associada a maior produtivida-de (Layard, 2005). A conectividade de baixo custo e em tempo real é o que possibilitaráisso. De forma semelhante, cadeias produtivas globais gerariam milhões de empregos in-dustriais e nos serviços por todo o mundo, não importando se os trabalhadores estão lo-calizados em Bangalore, Xangai, Jacarta ou São Paulo. Estes empregos não somente ele-variam o padrão de vida daqueles que os ocupam – devido ao fato de que geralmentepagam salários muito mais elevados do que os empregos locais –, mas também gerariamefeitos multiplicadores que melhorariam a qualidade de vida de indivíduos em todo omundo sem nenhum custo para o mundo desenvolvido. Como Friedman enfatiza em seucaso da Índia versus Indiana, se uma empresa do estado americano de Indiana inicia suasoperações na Índia, empregando tanto funcionários indianos como aqueles contratadoslocalmente em Indiana, “o negócio beneficiaria enormemente o ramo norte-americano daconsultoria na Índia; beneficiaria alguns trabalhadores de alta tecnologia de Indiana; e fa-ria com que os residentes do estado de Indiana economizassem preciosos dólares gastoscom impostos que poderiam ser disponibilizados para a contratação de um número maiorde funcionários públicos em outras localidades ou construir novas escolas que diminui-riam permanentemente sua condição de desempregados” (p.241). A globalização, dessemodo, não envolve ganhadores e perdedores, a partir de uma perspectiva territorial. Elacria as condições para uma situação em que todos vencem: tanto o Norte global quantoo Sul global saem ganhando.

A N D R É S R O D R Í G U E Z - P O S E , R I C C A R D O C R E S C E N Z I

13R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 14: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

MONTANHAS EM UM MUNDO PLANO

Entretanto, infelizmente a evidência de que o mundo está sendo aplainado pelas for-ças erosivas da globalização e que isso está dando poder às pessoas ao redor do mundo es-tá menos próxima de se tornar realidade do que Friedman anuncia. Para cada Bangalore,Hyderabad ou Chandigarh, existem diversas outras cidades de tamanho semelhante naÍndia – para não mencionar toda uma faixa de áreas rurais – que permanecem virtual-mente intocadas, senão negativamente afetadas por todo o processo de globalização. Ban-galores são notadamente exceções em relação à maioria dos estados do Leste indiano, in-cluindo Assam, Bihar, Chhattisgarh, Jharkhand, Orissa e até mesmo o maior estado daÍndia, Uttar Pradesh. De forma semelhante, na China, para cada Xangai, Guandong,Wenzhou ou Costa de Bohai, existem grandes territórios no interior que foram incapazesde diminuir sua dependência de antigas indústrias pesadas comunistas, em declínio e fre-quentemente decrépitas, de atrair investimento estrangeiro direto ou de melhorar deforma significativa o padrão de vida de seus cidadãos. Bangalores também estão normal-mente ausentes da maior parte da África, do mundo árabe – com a possível exceção deDubai – e da maior parte da América Latina. E para cada engenheiro indiano, chinês,brasileiro, malaio ou árabe jogando golfe em Bangalore, assistindo à Copa do Mundo derugby em Hong Kong ou comparecendo ao GP de Fórmula 1 em São Paulo, Kuala Lum-pur ou Bahrein, existem milhares, senão milhões de indivíduos tendo que jogar críqueteem campos de rua improvisados com wickets de papelão na Índia, no Paquistão ou emBangladesh, ou jogando futebol descalços nas ruas da maioria das cidades africanas e dediversas cidades sul-americanas. Nem todos no mundo, e mais especificamente, nem to-dos os indianos têm o que Friedman (2005) chama de “a grande vantagem de se ter umcontingente de pessoas que falam inglês, que são bem treinadas e obtêm baixa remunera-ção, com uma forte inclinação para os serviços no seu DNA e um espírito empreendedor”(p.221) ou mesmo “as ferramentas, habilidades ou a infraestrutura para participar dequalquer forma significativa ou sustentada” (p.470) na “Globalização 3.0”.

De fato, as evidências a respeito das implicações econômicas da globalização são bas-tante ambíguas. Se existe ou não convergência entre os países é uma questão muito dis-cutida.1 A maioria das análises baseadas em países de todo o mundo ou tendem a en-contrar divergência ou aceleração de uma evolução da distribuição da renda mundial emdois picos (Quah, 1997; Jones, 1997), ou seja, a emergência de espaços de convergênciaem níveis de renda altos e baixos, levando a uma polarização crescente ao redor domundo. Entretanto, esse nem é sempre o caso (por exemplo, Dollar & Kraay, 2002) e,quando dados populacionais são introduzidos na equação, a figura muda radicalmente, etanto a divergência quanto as distribuições em dois picos desaparecem, levando à conver-gência (Shultz, 1998; Sala-i-Martín, 2002). Finalmente, quando dados referentes aos in-divíduos são utilizados, os resultados indicam que a desigualdade é muito elevada, e queou existe incerteza – principalmente como consequência de uma falta de séries temporaisadequadas de dados – a respeito da direção da mudança (Milanovic, 2005), ou a desi-gualdade realmente aumentou (Dowrick & Ackmal, 2001; Wade, 2004). Em âmbito na-cional, as evidências tendem a ser menos controversas. O consenso geral é que dentro dospaíses as desigualdades de renda tenderam a crescer, a despeito de a análise incluir dadosreferentes às regiões ou aos indivíduos (UNDP, 2001; 2003; Milanovic, 2005). Dispa-ridades regionais na Índia, por exemplo, cresceram mais de 23% nos anos 90 (Rodríguez-Pose & Gill, 2006, p.1209). Na China, o aumento foi superior a 20%, enquanto no

M O N T A N H A S E M U M M U N D O P L A N O

14 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

1 Ver Milanovic (2005) parauma discussão útil a respei-to da evolução da desigual-dade nas últimas décadas.

Page 15: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

México as disparidades cresceram mais de 11% no mesmo período (Rodríguez-Pose &Gill, 2006).

Desse modo, a atividade econômica e a riqueza parecem estar crescentemente con-centradas, se não em países específicos no mundo, em espaços específicos nestes países.Grandes metrópoles e aglomerações urbanas parecem ser, em geral, as principais benefi-ciárias desta tendência. Como Scott et al. (2001, p.15) argumentam, embora seja verdadeque a combinação de progresso técnico e desregulamentação aumentou em grandemedida a mobilidade de bens, trabalho, capital e conhecimento, isso não causou a ubi-quidade da atividade econômica, nem diminuiu a necessidade de concentração urbana.Existem evidências claras ao redor do mundo de que as grandes áreas urbanas estão atrain-do porções crescentes de renda, atividade econômica e trabalhadores bem treinados. Esseé certamente o caso do mundo desenvolvido, onde o protagonismo de cidades comoNova York, Londres, Tóquio ou Paris numa escala global foi significativamente intensi-ficado (Sassen, 2001; Taylor et al., 2001), ou de Mumbai na Índia, Xangai na China,Cidade do México no México ou São Paulo no Brasil. As funções de comando e contro-le econômico cresceram de forma significativa nestas cidades chamadas “alfa” (Taylor &Hoyler, 2000; Taylor & Walker, 2001; Taylor et al., 2001).

Mas abaixo deste nível mais elevado, diversas cidades “beta” de segundo nível e “ga-ma” de terceiro nível também estão particularmente bem. Na Europa, cidades como Bru-xelas, Amsterdã e o Randstad, Madri, Copenhague, Helsinki, Estocolmo ou Roma pre-senciaram níveis de crescimento muito acima de suas médias nacionais. Cidades comoSydney, Singapura, Kuala Lumpur, Bangkok, Jacarta, Santiago do Chile, Cidade doCabo, ou até mesmo, em países mais pobres, Acra ou Maputo, também tiveram bons de-sempenhos. A concentração – no lugar de um espraiamento territorial mais igualitário –da riqueza e da atividade econômica nestas cidades conta uma história muito diferentedaquela do mundo plano. Outros fatores determinando a criação de riqueza também es-tão crescentemente concentrados dentro e no entorno das grandes metrópoles. Esse é, porexemplo, o caso dos transbordamentos de inovação e pesquisa que se tornaram concen-trados em grandes áreas urbanas nas últimas décadas. Isso é evidente na Europa, onde, se-gundo os cálculos, os transbordamentos de conhecimento não ultrapassam um raio de200 quilômetros das cidades maiores e mais dinâmicas (Moreno et al, 2005; Crescenzi etal., 2007; Rodríguez-Pose & Crescenzi, 2008), mas mais ainda nos EUA, onde os trans-bordamentos de conhecimento raramente ultrapassam os limites das áreas metropolitanas(Anselin et al., 1997; Varga, 2000; Sonn & Storper, 2008). Estas cidades globais, subglo-bais e de menor nível hierárquico, que estão se tornando interconectadas numa “redemundial de cidades” emergentes (Taylor, 2001) e onde as ligações funcionais entre as ci-dades são fortalecidas para além da contiguidade física (Castells, 1996), são as montanhas(ou, se quiser, as ilhas) deste mundo plano. De fato, o mundo hoje se parece muito maiscom o que Veltz (1996; 2000) chamou de “economia-arquipélago”, isto é, um mundo on-de as conexões entre as cidades com funções e poderes relativamente semelhantes numaeconomia mundial são altamente desenvolvidas, independente da distância, na medidaem que elas se tornam cada vez mais desligadas de seus contextos regionais e nacionais.Como Castells (1996) indica, neste “espaço de fluxos” gerado pela globalização, as gran-des áreas metropolitanas se tornam os nós na rede global de finanças e negócios. Dessemodo, embora os avanços na tecnologia e na desregulamentação possam permitir que aatividade econômica ocorra virtualmente em todos os lugares, a realidade é que esta no-ção de “todos os lugares” é representada por um número relativamente limitado de luga-

A N D R É S R O D R Í G U E Z - P O S E , R I C C A R D O C R E S C E N Z I

15R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 16: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

res em áreas diferentes do mundo, onde as corporações globais se localizam, gerando umaconcentração urbana do capital e das estruturas de tomada de decisões ainda maiores (Sas-sen, 1990; O’Brien, 1992; Hall, 1993; Castells, 1998), assim como uma maior concen-tração das sedes das empresas (Bosman & De Schmidt, 1993), e uma relação ainda maispróxima entre o poder econômico e o poder político (Rodríguez-Pose, 1998, p.81).

TECTÔNICA DE MONTANHAS EM UM MUNDOPLANO

Quais são as razões por trás do fato de que num mundo onde o progresso tecnoló-gico permite o deslocamento da atividade econômica num custo relativamente baixo, aatividade econômica e a riqueza permanecem tão obstinadamente concentradas nas gran-des áreas urbanas? Por que a importância econômica e o papel das grandes metrópoles aoredor do mundo estão crescendo ao invés de minguar? Quais são as forças tectônicas queexplicam o reforço destas montanhas em um mundo plano?

O aparecimento de montanhas em um mundo plano está relacionado ao papel pro-tagonizado pela proximidade na determinação da localização da atividade econômica.Como apontam O’Brien (1992), Cairncross (1997) e Friedman (2005), há poucas dúvi-das de que, teoricamente, o progresso nas telecomunicações e na capacidade de armaze-nar e difundir quantias volumosas de informações on-line reduziu muito o papel da pro-ximidade física no desenvolvimento da atividade econômica. Porém, a proximidade físicaou geográfica é apenas uma dimensão da proximidade. Boschma (2005, p.62) identificaoutras quatro dimensões: a cognitiva, a organizacional, a social e a institucional. A proxi-midade cognitiva está relacionada ao fato de que “o conhecimento e as inovações são re-sultados frequentemente cumulativos e localizados dos processos de busca internos às fir-mas com um alto grau de conhecimento tácito” (p.63). A proximidade organizacional serefere às práticas organizacionais e interdependências que facilitam o aprendizado intera-tivo, enquanto a proximidade social destaca o fato de que a atividade econômica é cir-cunscrita a um contexto social (Granovetter, 1985; Grabher, 1993). Por último, a proxi-midade institucional se refere à presença de instituições semelhantes, como “um idiomacomum, hábitos compartilhados, um sistema jurídico assegurando direitos de proprieda-de (inclusive intelectual) etc.” (Boschma, 2005, p.68) que proveem o suporte para a coor-denação econômica. Enquanto Boschma é cuidadoso ao afirmar que estes diferentes tiposde proximidade não necessariamente se relacionam à proximidade geográfica, argumen-taremos que a razão por trás do aparecimento de montanhas em um mundo plano é jus-tamente a interdependência de todos os tipos diferentes de proximidade e como estas di-ferentes proximidades se fundem em grandes áreas metropolitanas (e consequentementeem escala geográfica relativamente reduzida, de uma perspectiva mundial). Nosso princí-pio é que as grandes aglomerações urbanas oferecem o cenário onde os atores econômi-cos e sociais se beneficiam da proximidade de outros atores econômicos e sociais comquem eles podem se relacionar a partir de uma dimensão cognitiva, organizacional, sociale institucional, criando o ambiente adequado para a troca de ideias e para o florescimen-to de externalidades jacobianas, de inovações, e em última instância, de atividades econô-micas e crescimento (Duranton & Puga, 2001). Num mundo globalizado, grandes aglo-merações urbanas fornecem a âncora para que os fluxos gerados pela sociedade dainformação e do conhecimento se firmem, fazendo com que a ideia da “morte da distân-

M O N T A N H A S E M U M M U N D O P L A N O

16 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 17: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

cia” ou da emergência de um mundo plano se torne, na melhor das hipóteses, somenteuma meia verdade: é fato que a atividade econômica avançada pode agora ocorrer em uma maior quantidade de regiões do mundo do que outrora, mas, até nestes lugares,ela tenderá a se concentrar de forma crescente em uma série de nós urbanos relacionais,que se tornarão as montanhas em um mundo plano. As forças tectônicas por trás do apa-recimento destas montanhas urbanas são variadas, mas incluem fatores como inovação,transbordamentos, encadeamentos para trás e para frente nas cadeias produtivas, forças deespecialização versus forças de diversificação, capital social e comunitário, e, por último,mas não menos importante, o burburinho da cidade. Vamos agora rever brevemente al-guns destes fatores a fim de discutir como sua interação dá forma a uma geografia da eco-nomia mundial que é muito mais complexa do que aquela subjacente à metáfora do mun-do plano de Friedman.

MOVIMENTOS DE PLACA TECTÔNICA 1: INOVAÇÃO E DESEMPENHO ECONÔMICO

Quando, contrastando com suposições neoclássicas, a acumulação de tecnologia ecapital humano é completamente reconhecida como o resultado de decisões explícitas deagentes econômicos, o crescimento econômico se torna “um resultado endógeno de umsistema econômico, (e) não o resultado de forças que se colidem a partir do lado de fora”(Romer, 1994, p.3). A tecnologia, o progresso tecnológico e os recursos humanos – con-siderados como as principais forças “por trás de padrões de vida perpetuamente crescen-tes” (Grossman & Helpman, 1994, p.24) – se tornam endógenos, e mudam diferente-mente em territórios distintos de acordo com a qualidade dos recursos humanos e daquantia de capital humano e físico dedicado à pesquisa e ao desenvolvimento (Romer,1986; Lucas, 1988; Rebelo, 1991). A inovação ocorre onde as dotações adequadas de ca-pital humano e físico estão localizadas e, vice-versa, a inovação gera o dinamismo econô-mico que atrai mais recursos humanos e mais capital. Consequentemente, sob um qua-dro de crescimento endógeno, a inovação e o capital humano tenderão a se co-localizarem áreas geográficas relativamente compactas.

O potencial de concentração da atividade econômica e de divergência se torna maisevidente quando questões como os limites mínimos de Pesquisa e Desenvolvimento(P&D) e de possibilidade de apropriação de tecnologias – destacadas pela linha neo-schumpeteriana da abordagem de crescimento endógeno – são consideradas. Para que oinvestimento em P&D seja efetivo, um limite mínimo de investimento será necessário,tornando não linear a relação entre investimento em P&D e crescimento econômico. Alémdisso, existem fortes efeitos de limite e benefícios externos associados ao investimento emP&D, e seus retornos dependem fortemente da qualidade da força de trabalho que con-duz as pesquisas, da concentração de centros de P&D em espaços limitados, da qualidadedo capital humano local (Audretsch & Feldman, 1996; De Bondt, 1996; Engelbrecht,1997) e, sobretudo, da quantia de investimento envolvida (Scherer, 1983; Dosi, 1988).Assim, um investimento limitado e/ou disperso em P&D em regiões atrasadas pode nãorender os retornos esperados, já que a maioria dos projetos de P&D pode não ter a dimen-são adequada para gerar pesquisas competitivas, e cientistas e pesquisadores locais prova-velmente estarão mais isolados do que em centros tecnológicos avançados. Além disso, co-mo será discutido mais detalhadamente adiante, o tecido econômico local pode não ter a capacidade de atingir com sucesso a passagem do progresso tecnológico à inovação e aocrescimento econômico (Rodríguez-Pose, 1999). Desse modo, a maioria dos espaços no

A N D R É S R O D R Í G U E Z - P O S E , R I C C A R D O C R E S C E N Z I

17R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 18: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

mundo plano será incapaz de inovar e o resultado final será a aglomeração de forças ino-vadoras em “montanhas” urbanas, estando a inovação geralmente relacionada ao tamanhoda aglomeração urbana.

O IMPACTO DOS TRANSBORDAMENTOS DE CONHECIMENTO

Os novos conhecimentos, que são a principal engrenagem de crescimento nas teo-rias esboçadas aqui, não são nem completamente apropriáveis por seus produtores, nemexauridos após seu uso. Eles são cumulativos e podem ser difundidos. Consequentemen-te, o processo de acumulação de conhecimento gera transbordamentos que podem be-neficiar todo um conjunto de agentes (intencionais ou involuntários) em potencial. Ograu e a extensão da difusão dos transbordamentos de conhecimento têm, assim, impli-cações importantes para a possibilidade de se considerar a inovação como uma força “ni-veladora”. Se os transbordamentos fossem difundidos globalmente sem custos ou fric-ções – tornando a inovação instantaneamente disponível para todo o mundo como manácaído do céu –, a inovação e a mudança tecnológica poderiam beneficiar todos os paí-ses, regiões e indivíduos, não importando a sua localização efetiva [como a luz solar emuma paisagem plana ou, usando os termos de Friedman (2005), como um poderoso es-teroide abastecendo a globalização]. Entretanto, uma quantia crescente de evidênciasempíricas parece apontar numa direção diferente, destacando o fato de que há frontei-ras, na escala do lugar, para os transbordamentos. De acordo com Audretsch & Feldman(1996, p.256), “os transbordamentos de conhecimento não (...) se transmitem sem cus-to no que diz respeito à distância geográfica”. Diversos estudos empíricos mostraram queos retornos relacionados à transmissão de conhecimento são geograficamente contidos esofrem importantes efeitos de declínio de acordo com a distância (Jaffe, Trajtenberg,Henderson, 1993; Narin, Hamilton, Olivastro, 1997; Howells, 2002). O conhecimen-to e a inovação tendem a se aglomerar geograficamente, com transbordamentos de pes-quisa levando à criação de ciclos virtuosos autorreforçados de acumulação e à gênese debens multiplicadores significativos em áreas tecnologicamente adiantadas (Verspagen,1997). Melhorias tecnológicas na infraestrutura de comunicações não afetaram todos ostipos de informação do mesmo modo, enquanto “informações codificadas” podem sertransmitidas por distâncias cada vez maiores, o conhecimento “tácito” é geograficamen-te limitado – ou nas palavras de Morgan (2004), “locacionalmente aderente” – e é tam-bém relacionado ao contexto e à cultura (Gertler, 2003), contribuindo para a crescenteconcentração da inovação (Audretsch & Feldman, 2004; Cantwell & Iammarino,2003). “As informações codificáveis (…) são baratas de se transferir porque seus sistemassimbólicos subjacentes podem ser extensamente disseminados através da infraestruturade informações” (Leamer & Storper, 2001, p.650). Entretanto, as informações não sãocompletamente codificáveis devido a algumas características específicas que, em algunscasos, tornam a codificação impossível ou muito cara. “Se as informações não são codi-ficáveis, simplesmente adquirir o sistema simbólico ou possuir a infraestrutura física nãoé suficiente para a transmissão bem-sucedida de uma mensagem” (Storper & Venables,2004, p.354). Desse modo, neste último caso, as informações são transmitidas atravésde contatos face a face, uma tecnologia de comunicação intrinsecamente espacial. Alémdisso, ainda que a transmissão de conhecimentos formalmente codificados seja menossensível às relações de proximidade em razão de sua difusão, e mais dependente da capa-cidade local de absorção devido a seu impacto (Cohen & Levinthal, 1990), pesquisas

M O N T A N H A S E M U M M U N D O P L A N O

18 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 19: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

acerca de citações de patentes indicam que a proximidade facilita uma difusão mais ágiltambém deste tipo de conhecimento (Sonn & Storper, 2008). Pelo menos três mecanis-mos tornam o conhecimento e sua transmissão forças poderosas para a gênese de mon-tanhas e vales na paisagem da economia mundial: 1 As atividades locais de inovação são cruciais para a produção de novos conhecimentos

e a exploração econômica de conhecimento existente, dada a presença de um limitemínimo. Tais atividades não são distribuídas geograficamente de maneira uniforme etornam-se deste modo uma fonte localizada de vantagens competitivas para algumasáreas, em detrimento de outras.

2 As informações não são automaticamente equivalentes ao conhecimento economica-mente útil (Sonn & Storper, 2008). Um processo bem-sucedido de inovação dependede “fatores estruturais e institucionais localizados, que não somente dão forma à capa-cidade inovadora de contextos geográficos específicos” (Iammarino, 2005, p.499) –,como destacado pela abordagem dos sistemas de inovação (Lundvall, 2001), dos siste-mas regionais de inovação (Cooke et al., 1997) e das regiões de aprendizado (Greger-sen & Johnson, 1996; Morgan, 1997) –, mas que também influenciam a capacidadede cada território em absorver e empregar de forma produtiva os transbordamentosexógenos de conhecimento.

3 A evidência da limitação espacial dos transbordamentos de conhecimento não só con-tradiz a ideia do conhecimento ubíquo uniformemente disponível em todos os luga-res, mas também ajuda a explicar como a condição periférica pode dificultar persisten-temente a capacidade regional de inovação após controlar esforços inovadores locais:quanto menor a extensão espacial dos transbordamentos de conhecimento, menor aexposição de áreas periféricas ao conhecimento externamente produzido. Enquanto re-giões centrais altamente acessíveis podem se beneficiar de atividades inovadoras con-duzidas em suas proximidades, a delimitação espacial dos transbordamentos impedeque eles alcancem regiões remotas e periféricas. Portanto, quanto mais fortemente ostransbordamentos declinarem de acordo com a distância, mais acentuada sua tendên-cia a desenvolver concentrações de conhecimento em localizações centrais.

As proximidades cognitivas, organizacionais e sociais necessárias para gerar estescírculos virtuosos de inovação ocorrem consequentemente em espaços geográficos limi-tados, contribuindo adicionalmente para o surgimento de montanhas no mundo planode Friedman.

ENCADEAMENTOS PARA TRÁS E PARA FRENTE E A “NOVA GEOGRAFIA ECONÔMICA”

Uma terceira força tectônica são os encadeamentos para trás e para frente da “NovaGeografia Econômica” (NGE). A NGE tendeu a enfatizar a concentração crescente de ati-vidade econômica baseada em fatores como a interação de economias de aglomeração,encadeamentos para trás e para frente nas cadeias produtivas, limite crítico e tamanho demercado, e, acima de tudo, custos de transporte declinantes (Krugman, 1991). O equilí-brio depende das interações entre forças de aglomeração (economias de escala, efeitos demercado interno, encadeamentos para trás e para frente, contingente de mão-de-obra) ede dispersão (preços de bens intermediários, salários, concorrência) e as mudanças noscustos de transação e de transportes (devido à integração econômica e à globalização) mo-dificam o equilíbrio entre estas forças, eventualmente gerando novos padrões de centro e periferia.

A N D R É S R O D R Í G U E Z - P O S E , R I C C A R D O C R E S C E N Z I

19R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 20: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

Sob um novo quadro de geografia econômica, assumindo um modelo de duas re-giões e dois setores – com cidades especializadas em indústrias e serviços, e áreas rurais emagricultura –, na medida em que cresce o comércio na indústria e nos serviços, as cidadescrescerão, frequentemente às custas de suas áreas de influência rurais (Paluzie, 2001), re-forçando uma dimensão centro–periferia. Desse modo, quando um país se abre para o co-mércio exterior, as importações advindas das áreas centrais e as exportações destinadas aelas contribuem para expandir as áreas de influência destes centros, em detrimento dasáreas menos desenvolvidas. As firmas e indústrias deixam de se sujeitar às restrições de ta-manho máximo impostas pela demanda limitada de mercados rurais domésticos – elaspodem sustentar o crescimento e a aglomeração por atenderem à demanda estrangeira, efazerem uso de insumos estrangeiros mais baratos. O incentivo à aglomeração, portanto,aumenta de forma concomitante à elevação do potencial de mercado que as cidades, co-mo as montanhas no mundo plano, têm acesso através da abertura aos mercados de ex-portação e importação (Puga, 1999; Paluzie, 2001). Como resultado, a abertura para ocomércio de bens industrializados tende a aumentar os incentivos para que firmas e tra-balhadores se concentrem em áreas centrais, e em cidades maiores em detrimento das me-nores, nutrindo assim maiores disparidades internas nos países.

ESPECIALIZAÇÃO VERSUS DIVERSIFICAÇÃO

A análise do impacto da especialização versus diversificação na inovação e no desem-penho econômico lança nova luz sobre o sucesso crescente das cidades e das aglomeraçõesna era da “Globalização 3.0”. Enquanto a especialização crescente tende a nutrir externa-lidades do tipo Marshall-Arrow-Romer (MAR) dentro da mesma indústria, a diversidadede atividades econômicas buscada localmente permite que atores locais se beneficiem decomplementaridades entre bases de conhecimento e de trocas de ideias entre os setores (ex-ternalidades jacobianas). A literatura empírica sugere que tanto as externalidades MAR

(Glaeser et al., 1992; Henderson, 1999) como as jacobianas (Andersson et al., 2005; Car-lino et al., 2001; Feldman & Audretsch, 1999) podem desempenhar um papel importan-te em incentivar a inovação seja em contextos industriais diferentes2 ou em diferentes fa-ses do ciclo de vida de um produto.3 Uma questão crucial para a prosperidade e o sucessodas cidades origina-se na capacidade de explorar eficientemente as externalidades MAR ejacobianas. Quando outras forças (históricas, institucionais, políticas) impedem que a evo-lução da aglomeração produtiva atinja seu equilíbrio mais eficiente em qualquer momen-to no tempo entre os dois tipos de economias externas, o desempenho econômico geralpode ser dificultado. As cidades diversificadas tendem a ser maiores, enquanto cidades es-pecializadas são geralmente menores. Considerando que tanto as cidades diversificadas co-mo as especializadas podem, a priori, apresentar desempenhos igualmente positivos, os ris-cos em potencial para as cidades especializadas são maiores. Estes riscos estão relacionadosà sua capacidade inovadora mais baixa e à sua maior exposição a padrões de ascensão e de-clínio específicos de cidades especializadas (Duranton & Puga, 2000). No longo prazo, in-tervenções sob a forma de políticas que encorajem a mobilidade do trabalho (principal-mente para cidades maiores e diversificadas) de modo a enfrentar o declínio de cidadesespecializadas podem ser necessárias. Desse modo, é fundamentalmente a mistura únicade proximidades sociais, institucionais, cognitivas e organizacionais encontradas em gran-des áreas metropolitanas, que uma vez mais permite que os encadeamentos adequados se-jam desenvolvidos e que surjam as misturas corretas de especialização versus diversificação.

M O N T A N H A S E M U M M U N D O P L A N O

20 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

2 Henderson et al. (1995)declaram que as externalida-des do tipo Jacobs prevale-cem em setores de alta tec-nologia e as do tipo MAR emsetores de bens de capital.

3 Duranton & Puga (2001)sugerem que as firmas de-senvolvem novos produtosem contextos urbanos ecriativos diversificados, sub-sequentemente realocando-se para cidades especializa-das na fase de produção emmassa, para explorar vanta-gens de custo.

Page 21: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

COMUNIDADE, CAPITAL SOCIAL E CLASSE CRIATIVA

Instituições formais e informais também desempenham um papel importante naformação de montanhas no mundo desigual que estamos criando. Muitos dos efeitos deaglomeração das teorias de crescimento endógeno e da Nova Geografia Econômica são re-forçadas pelas previsões de inúmeras teorias institucionais que traçam o papel de institui-ções e de fatores institucionais na atividade econômica. Estas teorias, apesar de suas dife-rentes origens, coincidem no papel de nutrir a concentração econômica protagonizadopelas instituições.

Muitos estudos revelaram uma conexão íntima entre “boas” condições institucionaise a presença de comunidades fortes e a aglomeração de atividades econômicas. Estudosqualitativos a respeito de clusters e distritos industriais (por exemplo Piore & Sabel, 1984;Kristensen, 1992; Semlinger, 1993; Burroni, 2001), “regiões de aprendizado” (Gertler,Wolfe, Garkut, 2000; Henry & Beliscão, 2000; Bathelt, 2001), e sistemas regionais deinovação (Cooke & Morgan, 1998) enfatizam a forma com que acordos institucionais egovernamentais complexos criam condições para que a atividade econômica prospere e,em última instância, aglomere, já que boas condições institucionais são difíceis de se re-produzir. Fatores como a interação íntima entre atores políticos locais e a presença de umasociedade civil ativa, de administrações regionais, de organizações de empregadores e desindicatos – o que Trigilia (1992) chama de “mercado institucionalizado” – favorecem odesenvolvimento e a aglomeração econômica. Tradições bem desenvolvidas, sindicatosfortes co-operando com empregadores e instituições de âmbito nacional caminham numadireção semelhante. Reciprocamente, a ausência de polos de ação coletiva frequentemen-te leva à formação de círculos viciosos de baixo crescimento. A falta ou a importância re-lativamente pequena de vida social nas organizações coletivas, a presença de práticas declientelismo ou a governança de atividades sociais por simples estruturas sociais (frequen-temente característica de espaços relativamente remotos e subdesenvolvidos) facilitam amigração e o desestímulo da atividade econômica.

Muitas análises quantitativas chegam a resultados semelhantes. O trabalho de Put-nam (1993) a respeito do capital social italiano mostra como diferenças nos níveis dasinstituições comunitárias no norte e no sul da Itália são a base de sua considerável desi-gualdade de renda. Outra pesquisa descobriu que diferentes agentes institucionais da co-munidade, como a participação de grupos, ajuda a explicar um desempenho econômicomais alto (Knack & Keefer, 1997; Zak & Knack, 1998; Beugelsdijk et al., 2004; Guiso,Sapienza, Zingales, 2004), ou que, reciprocamente, divisões excessivas dentro da socie-dade limitam seu crescimento potencial (Easterly & Levine, 1997; Rodríguez-Pose &Storper, 2006).

Alguns analistas indicam como, no limite, a presença de uma alta densidade de re-des de instituições geograficamente próximas – chamada de “espessura institucional” porAmin e Thrift (1995) e de “capital institucional” por Healey (1998) – é uma condição-chave para o desenvolvimento econômico. Combinações de “capital intelectual” (isto é,recursos de conhecimento), “capital social” (confiança, reciprocidade, espírito cooperati-vo e outras relações sociais) e “capital político” (capacidade de ação coletiva) dentro des-tas redes institucionais determinam o potencial para o seu desenvolvimento. Quantomaior a densidade de redes institucionais complexas dentro de um determinado territó-rio, maior o potencial para mais crescimento e desenvolvimento (Amin & Thomas 1996;Morgan 1997; Cooke & Morgan 1998).

A N D R É S R O D R Í G U E Z - P O S E , R I C C A R D O C R E S C E N Z I

21R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 22: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

Estas fontes estruturais de vantagem competitiva estão longe de desaparecer em res-posta ao processo de globalização (muito menos os dez “niveladores mundiais” destaca-dos por Friedman). Pelo contrário, elas são ainda mais reforçadas pelo papel crescente-mente importante das pessoas “criativas” no mundo de hoje. Para Florida (2002), aseconomias locais futuras apoiam-se na atração e retenção de membros da “classe criativa”,incluindo aqueles que trabalham em setores como finanças, tecnologia, mídia e entrete-nimento, e cujas atividades aglomeram criatividade, individualidade e diferença. E nãoexiste lugar melhor para alcançar isso do que em cidades cosmopolitas que oferecem tu-do o que a “classe criativa” está procurando em termos de estilos de vida alternativos, có-digos relaxados de vestimenta, acordos de trabalho flexíveis e atividades de lazer focadasem exercício e esportes radicais, e sua preferência pelos “aspectos da cultura local relacio-nados à urbanidade”. A interação entre a enorme capacidade dos membros desta “classecriativa” de gerar valor econômico e sua mobilidade sem precedentes dá às cidades capa-zes de desenvolver condições adequadas (graças às suas capacidades socioinstitucionais en-dógenas) uma grande vantagem sobre outras áreas e territórios.

BURBURINHO: A FORÇA TECTÔNICA MÁXIMA

Discutimos até este ponto as origens e a mecânica das forças responsáveis pelo apa-recimento de “montanhas” urbanas na paisagem econômica mundial atual. Agora, preci-samos dar uma olhada mais de perto no maior driver por trás de todos estes movimentostectônicos: o “burburinho” das cidades. Ao combinar de forma inovadora as abordagenseconômicas e institucionais para a aglomeração econômica, Storper & Venables (2004)propuseram a teoria do “burburinho”, ou das “buzz cities”: o “burburinho” se trata, emi-nentemente, do contato face a face. Eles argumentam que os encadeamentos para trás epara frente, o acesso aos mercados, a aglomeração de trabalhadores e as interações tecno-lógicas não são os únicos fatores determinando a concentração. Qualquer explicação domotivo pelo qual a atividade econômica está se aglomerando cada vez mais é incompletasem aquilo que eles consideram “o aspecto mais fundamental” da proximidade: o conta-to face a face (Stoper & Venables, 2004, p.352). Nesta abordagem, a interação face a fa-ce é economicamente eficiente, já que ela ajuda a resolver problemas de incentivo, facili-ta a socialização e o saber e promove motivações psicológicas. E em nenhum lugar ocontato face a face é mais provável de ocorrer do que em cidades grandes e diversificadas.Estas cidades – que Storper & Venables definem como “buzz cities” (ou “cidades-burbu-rinho”) – põem indivíduos altamente qualificados e motivados em contato uns com osoutros, contribuindo para fazer com que as pessoas em um ambiente de “burburinho” se-jam altamente produtivas e incentivando a fecundação cruzada entre redes especializadasnos diferentes setores. Desse modo, é mais provável que novas atividades surjam nos cen-tros de “burburinho”, onde as forças de aglomeração não são dependentes apenas de eco-nomias de aglomeração econômica clássicas, mas considera-se que fatores institucionais erelacionados ao “burburinho” têm um papel crescente e proeminente nesta direção. O“burburinho” é o conjunto de proximidades de ordem cognitiva, organizacional, social einstitucional agrupadas num ambiente geográfico reduzido, e age como a maior força tec-tônica no aparecimento de montanhas no mundo plano de Friedman.

O que pode nos enganar em um primeiro olhar é que as “cidades-burburinho” maisimportantes (por exemplo, Londres, Nova York, Los Angeles) também são as mais globa-lizadas: elas são centros de negócios internacionais, financeiros e de redes culturais, loca-

M O N T A N H A S E M U M M U N D O P L A N O

22 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 23: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

lizações das sedes de muitas corporações multinacionais; elas estão no epicentro das ativi-dades “globais” de viagens e de reuniões de negócios. Contudo, “os níveis mais altos dosnegócios internacionais exigem a inserção em governos locais e redes políticas para fun-cionarem eficazmente” e, embora “a mistura mais precisa de atividades envolvendo con-tatos face a face e a co-localização mudarão, ela (…) continuará a gerar a aglomeração deindivíduos altamente qualificados, firmas e burocracias em centros urbanos de alto cus-to” (Storper & Venables, 2004, p.366-8).

Ao permitir contatos face a face e a transmissão de conhecimento não codificado/tá-cito (ou não codificável), as “cidades-burburinho” se beneficiam de uma vantagem com-petitiva duradoura sobre outros territórios, o que reforça outras forças de aglomeraçãonum processo de causação cumulativa. As atividades inovadoras locais permitem um me-lhor desempenho econômico local, mas também produzem transbordamentos localizadosde conhecimento cujos efeitos benéficos não só dependem das relações de proximidade,mas também da presença de instituições locais (ou filtros sociais), que permitem sua ab-sorção e tradução em crescimento econômico adicional. Mas o aparecimento de novasmontanhas na paisagem econômica ou o surto das já existentes também depende de ou-tros fatores localizados, como um saldo favorável entre a especialização e a diversificaçãoe um equilíbrio eficiente entre forças de aglomeração e dispersão. O ritmo sem preceden-tes do deslocamento da fronteira tecnológica num grande número de setores também sa-lientou o papel da classe de “pessoas criativas” continuamente envolvidas na geração denovas ideias. A inovação e as ideias são permutadas, difundidas, e interfecundadas emáreas urbanas capazes de desenvolver o ambiente adequado em termos de sua capacidadepara atrair e reter pessoas criativas e, finalmente, mas não menos importante, maximizaro contato face a face. Uma vez ativado, este processo tem um enorme potencial cumula-tivo: a produtividade de atividades locais inovadoras é significativamente destacada quan-do as condições mencionadas são encontradas, gerando incentivo econômico para inves-timentos adicionais. Novos investimentos em inovação, por sua vez, não só produzemefeitos indiretos localizados, mas também aumentam diretamente e indiretamente acapacidade local de absorção e estimulam a atualização contínua do ambiente socioinsti-tucional local.

Este processo cria montanhas progressivamente mais altas na geografia do mundoeconômico. Entretanto, o sistema inteiro é altamente dinâmico, e grandes deslocamentosradicais na fronteira tecnológica podem permitir que – como em qualquer período tectô-nico ativo – novas janelas de oportunidades sejam abertas (e outras sejam fechadas), fa-zendo assim com que novas cidades e aglomerações surjam na paisagem global, mas, aomesmo tempo, condenando outras áreas ao declínio econômico.

CONCLUSÕES

Friedman criou uma metáfora poderosa para descrever os efeitos da mudança contí-nua da economia mundial. De acordo com ele, a mudança tecnológica, em geral, e as me-lhorias nas Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), em particular, têm, nas úl-timas três décadas, aplainado radicalmente nosso mundo. A mudança tecnológica nãotem sido apenas a força mais importante por trás do processo de crescimento econômico,mas tem também habilitado o alargamento, o aprofundamento e a velocidade da interco-nectividade mundial em todos os aspectos de vida social contemporânea, do cultural ao

A N D R É S R O D R Í G U E Z - P O S E , R I C C A R D O C R E S C E N Z I

23R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 24: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

criminoso, do financeiro ao espiritual” (Held et al., 1999, p.2), o que pode ser chamadode globalização. A liberalização progressiva dos movimentos de capital e trabalho, a redu-ção aguda nos custos de viagens internacionais e intercontinentais e também a convergên-cia proposital e progressiva de “modelos culturais globais”, e, acima de tudo, a disponibi-lidade sem atrito de informações e conhecimento, determinam uma influência cada vezmenor da distância física e de condições contextuais subjacentes sobre as interações eco-nômicas. O acesso mais rápido e mais barato às informações e à tecnologia também le-vam a uma reestruturação de como nós fazemos negócios por todo o mundo, e contri-buiu para desmantelar as barreiras que ancoraram a atividade econômica em locaisespecíficos. A consequência de todas estas mudanças é um mundo melhor: um mundoonde nem a distância entre os atores econômicos nem a condição contextual em que suasinterações acontecem importaria mais; um mundo onde as informações “antes disponí-veis só para poucos, estaria disponível para muitos, imediatamente e (em termos de cus-tos de distribuição) de forma barata” (Cairncross, 1997, p.4); um mundo onde todas aseconomias têm uma chance semelhante de explorar e maximizar oportunidades de inte-ração global, não importando sua posição geográfica e suas condições locais. Em resumo,um mundo onde cada vez mais pessoas estão autorizadas a este acesso às informações etêm maior consciência da necessidade de se empenhar e competir como indivíduos nummundo integrado. Para Friedman o mundo é plano e, como resultado, estamos todos me-lhores assim.

Como o próprio Friedman reconhece, nem toda a evidência empírica disponível sus-tenta sua visão do mundo. “As más notícias na África de hoje, como também na Índia ru-ral, na China, na América Latina e em vários cantos obscuros do mundo desenvolvido,mostram que existem centenas de milhões de pessoas que não têm esperança e nenhumachance de se tornar parte da classe média” (Friedman, 2005, p.462). Ainda assim, apesarde reconhecê-lo em seu capítulo “O mundo não plano” (um capítulo em quinze), Fried-man se torna uma vítima de sua própria metáfora.

Entretanto, a simples evidência de que nem todas as pessoas e territórios podem sebeneficiar igualmente das mudanças que a Globalização 3.0 provoca o força a descrever ageografia do mundo de uma maneira mais detalhada e talvez mais realista: “não existe ape-nas o mundo plano e o não plano. Muitas pessoas vivem na zona de crepúsculo entre osdois” (Friedman, 2005, p.470). E a realidade é justamente esta, o mundo não é plano. Asforças tectônicas poderosas ligadas à globalização estão formando um mundo onde existemvencedores e perdedores; onde os vencedores são justamente aqueles que podem maximi-zar as oportunidades de inovação, as atividades econômicas e o crescimento que o acessoem tempo real à informação oferece. A revolução informacional abriu uma nova janela deoportunidades, permitindo que novos atores possam emergir na arena global, enquantooutras são fechadas, provocando o declínio relativo de algumas regiões anteriormente líde-res. Além disso, algumas economias têm persistentemente permanecido marginais ao pa-norama econômico mundial. O novo regime tecnológico está produzindo uma minuciosareorganização da economia mundial, ao invés de uma tendência global de níveis semelhan-tes de desenvolvimento possibilitados pelo conhecimento economicamente produtivo eubíquo. Nesta nova geografia, as grandes cidades do mundo emergem como vencedorasreais, já que oferecem o ambiente certo para permitir que os agentes econômicos prospe-rem. Desse modo, a ironia é o fato de que o mundo plano está repleto de altos picos.

E nem todos são capazes de escalar estes altos picos. Da mesma maneira que o cida-dão comum não sonharia em escalar o Everest. Apenas alpinistas profissionais – a quem

M O N T A N H A S E M U M M U N D O P L A N O

24 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 25: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

realmente foi dada a capacidade – ousam se aventurar nestes cumes. Mas como em qual-quer atividade esportiva de elite, os jogadores reais, os alpinistas reais, são apenas uns pou-cos escolhidos, consistindo principalmente de firmas multinacionais e de executivos de al-to nível. A maior parte de nós tem que se contentar em apenas observar as montanhas delonge e ter a esperança de que algum dia venhamos a nos beneficiar de sua escalada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMIN, A.; THRIFT, N. Institutional issues for the European regions: From markets andplans to socioeconomics and powers of association. Economy and Society 24:41-66, 1995.AMIN, A.; THOMAS, D. The negotiated economy: State and civic institutions in Den-mark. Economy and Society, 25: 255-81, 1996.ANDERSSON, R.; QUIGLEY, J. M.; WILHEHNSSON, M. Agglomeration and thespatial distribution of creativity. Papers in Regional Science, 84: 445-464, 2005.ANSELIN, L.; VARGA, A.; ACS, Z. Local Geographic Spillovers between UniversityResearch and High Technology Innovations. Journal of Urban Economics 42: 422-448,1997.AUDRETSCH, D. B.; FELDMAN, M. P. Innovative clusters and the industry life cycle.Review of Industrial Organization, 11: 253-273, 1996.__________. Knowledge Spillovers and the Geography of Innovation. In: HENDER-SON, J. V.; THISSE J.F. (eds.) Handbook of Urban and Regional Economics Amsterdam:Elsevier. V.4, p.2713-39, 2004.BATHELT, H. Regional competence and economic recovery: Divergent growth paths inBoston’s high technology economy. Entrepreneurship and Regional Development 13: 287-314, 2001.BEUGELSDIJK, S.; DE GROOT, H.; VAN SCHAIK, T. Trust and economic growth, arobustness analysis. Oxford Economic Papers, 56: 118-134, 2004.BOSCHMA, R. A. Proximity and innovation: a critical assessment. Regional Studies 39:61-74, 2005.BOSMAN, M.; DE SCHMIDT, M. The geographical formation of international mana-gement centres in Europe. Urban Studies, 30: 967-980, 1993.BURRONI, L. Allontanarsi crescendo: Politica e sviluppo locale in Veneto e Toscana. Torino:Rosenberg & Sellier, 2001.CAIRNCROSS, F. The Death of Distance. Cambridge, Ma: Harvard Business SchoolPress, 1997.CANTWELL, J.; IAMMARINO, S. Multinational corporations and European regionalsystems of innovation. Routledge, London, 2003.CARLINO, G.; CHATTERJEE, S.; HUNT, R. Knowledge spillovers and the new eco-nomy of cities. Working Paper n.01-14, 2001, Mimeo: Federal Reserve Bank of Phila-delphia.CASTELLS, M. The Rise of the Network Society. Malden, MA, Blackwell, 1996.__________. End of Millennium. Oxford: Basil Blackwell, 1998.COHEN, W.; LEVINTHAL, D. Absorptive capacity: A new perspective on learning andinnovation. Administration Science Quarterly 35: 128-152, 1990.COOKE, P.; GÓMEZ URANGA, M.; ETXEBERRIA, G. Regional innovation systems:Institutional and organizational dimensions. Research Policy 26: 475-91, 1997.

A N D R É S R O D R Í G U E Z - P O S E , R I C C A R D O C R E S C E N Z I

25R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Andrés Rodríguez-Pose épesquisador do Departmentof Geography and Environ-ment, London School ofEconomics. E-mail: a.rodri-guez-pose@ lse.ac.uk.

Riccardo Crescenzi é pes-quisador do Robert Schu-man Centre for AdvancedStudies, European UniversityInstitute; e Dipartimento diEconomia, Università degliStudi Roma. E-mail: [email protected].

Artigo recebido em abril de2009 e aprovado para publi-cação em abril de 2010.

Page 26: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

COOKE, P.; MORGAN, K. The associational economy: Firms, regions and innovation.Oxford, UK: Oxford University Press, 1998.CRESCENZI, R.; RODRÍGUEZ-POSE, A.; STORPER, M. The territorial dynamics ofinnovation: a Europe–United States comparative analysis, Journal of Economic Geography,7(6): 673-709, 2007.DE BONDT, R. Spillovers and innovation activities. International Journal of IndustrialOrganization 15: 1-28, 1996.DOLLAR, D.; KRAAY, A. Spreading the wealth. Foreign Affairs (January/February):120-133, 2002.DOWRICK, S.; AKMAL, M. Explaining Contradictory Trends in Global Income Ine-quality: A Tale of Two Biases, Faculty of Economics and Commerce. AustralianNational University, 2001.DOSI, G. Sources, procedures, and microeconomic effects of innovation. Journal of Eco-nomic Literature, 26: 1120-71, 1988.DURANTON, G.; PUGA, D. From sectoral to functional urban specialisation. Journalof Urban Economics, 57: 343-70, 2000.__________. Nursery cities: Urban diversity, process innovation, and the life cycle ofproducts. American Economic Review, 91: 1454-1477, 2001.ENGELBRECHT, H.-J. International R&D spillovers, human capital and productivityin OECD economies: an empirical investigation. European Economic Review, 41 (8),1479-1488, 1997.EASTERLY, W.; LEVINE, R. Africa’s growth tragedy: Politics and ethnic divisions.Quarterly Journal of Economics 112: 1203-50, 1997.FELDMAN, M.; AUDRETSCH, D. B. Innovation in cities: science-based diversity, spe-cialisation and localised competition. European Economic Review, 43: 409-429, 1999.FLORIDA, R. The Rise of the Creative Class, and how it’s transforming work, leisure, com-munity and everyday life. New York: Basic Books, 2002.FRIEDMAN, T. The World Is Flat: A Brief History of the Twenty-first Century. New York:Farrar, Straus, and Giroux, 2005.GERTLERT, M. S. Tacit knowledge and the economic geography of context, or the un-definable tacitness of being (there). Journal of Economic Geography 3: 75-99, 2003.GERTLER, M. S.; WOLFE, D. A.; GARKUT, D. No place like home? The embedded-ness of innovation in a regional economy. Review of International Political Economy 7:688-718, 2000.GLAESER, E.; KALLAL, H.; SCHEINKMAN, J.; SCHLEIFER, A. Growth in cities.Journal of Political Economy, 100: 1126-52, 1992.GRABHER, G. The Weakness of strong ties: the lock-in of regional development in theRuhr area. In: GRABHER, G. (ed.) The Embedded Firm: On the Socioeconomics of Indus-trial Networks. London/New York: Routledge, 1993. P.227-252.GRANOVETTER, M. Economic action and social structure: the problem of embedded-ness. American Journal of Sociology, 91, 481-510, 1985.GREGERSEN, B.; JOHNSON B. Learning economies, innovation systems and Euro-pean integration, Regional Studies 31: 479-490, 1996.GROSSMAN, G. M.; HELPMAN, E. Endogenous Innovation in the Theory ofGrowth. Journal of Economic Perspectives 8: 23-44, 1994.GUISO, L.; SAPIENZA, P.; ZINGALES, L. The role of social capital in financial deve-lopment. American Economic Review 94:526–56, 2004.

M O N T A N H A S E M U M M U N D O P L A N O

26 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 27: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

HALL, P. Forces Shaping Urban Europe. Urban Studies, 30, 883-898, 1993.HEALEY, P. Building institutional capacity through collaborative approaches to urbanplanning. Environment and Planning A, 30(9): 1531-1546, 1998.HELD, D.; MCGREW, A.; GOLDBLATT, D.; PERRATON, J. Global Transformations:Politics, Economics and Culture, Stanford: Stanford University Press, 1999.HENDERSON, J. V. Marshall’s economies National Bureau of Economic Research.Working Paper 7358, 1999.HENDERSON, V.; KUNCORO, A.; TURNER, M. Industrial Development in Cities.Journal of Political Economy, 103: 1067-90, 1995.HENRY, N.; PINCH, S. Spatialising knowledge: Placing the knowledge community ofMotor Sport Valley. Geoforum, 31: 191-208, 2000.HOWELLS, J. Tacit knowledge, innovation and economic geography. Urban Studies39(5-6), 871-884, 2002.IAMMARINO, S. An evolutionary Integrated View of Regional Systems of innovation:concepts, measures and historical perspectives. European Planning Studies, 13(4): 497-519, 2005.JAFFE, A.; TRAJTENBERG, M.; HENDERSON, R. Geographic localization ofknowledge spillovers as evidenced by patent citations. Quarterly Journal of Economics,108(3): 577-98, 1993.JESSOP, B. The Future of the Nation State in Europe: Erosion or Reorganization? WP50,Political Economy of Local Governance Series. Lancaster: Department of Sociology, Uni-versity of Lancaster, 1995.JONES, C. On the Evolution of the World Income Distribution. Journal of EconomicPerspectives, XI: 19-36, 1997.KNACK, S.; KEEFER, P. Does social capital have an economic impact? A crosscountryinvestigation. Quarterly Journal of Economics, 112:1252-88, 1997.KRISTENSEN, P. H. Industrial districts in West Jutland, Denmark. In PYKE, F.; SENGENBERGER, W. (ed.) Industrial districts and local economic regeneration. Geneva: International Institute for Labour Studies, International Labour Organization, 1992.P.122-73.KRUGMAN, P. Increasing returns and economic geography. Journal of Political Economy,99: 484-99, 1991.LAYARD, R. Happiness: Lessons From a New Science. New York and London: Penguin,2005.LEAMER, E. E.; STORPER, S. The Economic Geography of the Internet Age. Journalof International Business Studies, 32 (4): 641-65, 2001.LUCAS R. On the mechanics of Economic Development. Journal of Monetary Economics,22(1): 3-42, 1988.LUNDVALL, B. Å. Innovation policy in the globalising learning economy. In: ARCHI-BUGI, D.; LUNDVALL, B. Å. (ed.). The globalising learning economy. Oxford Univer-sity Press, Oxford, 2001.MILANOVIC, B. Worlds Apart: Measuring International and Global Inequality,Princeton: Princeton University Press, 2005.MORENO, R.; PACI, R.; USAI, S. Spatial spillovers and innovation activity in Europe-an regions. Environment and Planning A, 37: 1793-812, 2005.MORGAN, K. The learning region: institutions, innovation and regional renewal. Regio-nal Studies, 31: 491-503, 1997.

A N D R É S R O D R Í G U E Z - P O S E , R I C C A R D O C R E S C E N Z I

27R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 28: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

MORGAN, K. The exaggerated death of geography: learning, proximity and territorialinnovation systems. Journal of Economic Geography, 4: 3-21, 2004.NARIN, F.; HAMILTON, K. S.; OLIVASTRO, D. The Increasing Linkage BetweenU.S. Technology and Public Science. Research Policy 26, 3: 317-30, 1997.O’BRIEN, R. Global financial integration: the end of geography. London: Royal Instituteof International Affairs, 1992.OHMAE, K. The Borderless World: Power and Strategy in the Interlinked Economy. NewYork: Harper Perennial, 1991.__________. The end of the nation state: the rise of regional economies Harper Collins Lon-don, 1995.PALUZIE, E. Trade policy and regional inequalities. Papers in Regional Science, 80(1): 67-85, 2001.PIORE, M.; SABEL, C. The second industrial divide. New York: Basic Books, 1984.PUGA, D. The rise and fall of regional inequalities. European Economic Review, 43: 303-34, 1999.PUTNAM, R. Making democracy work: Civic traditions in modern Italy. Princeton: Prin-ceton University Press, 1993.QUAH, D. Empirics for Growth and Distribution: Polarization, Stratification, and Con-vergence Clubs. Journal of Economic Growth 2: 27-59, 1997.__________. The Weightless Economy in Economic Development. WIDER Working Paper155, 1999.REBELO, S. T. Long-Run Policy Analysis and Long-Run Growth. Journal of PoliticalEconomy, 99(3): 500-21, 1991.RODRÍGUEZ-POSE A. The dynamics of regional growth in Europe: Social and politicalfactors. Oxford University Press, New York, 1998.__________. Innovation prone and innovation averse societies. Economic performancein Europe. Growth and Change, 30, 75-105, 1999.RODRÍGUEZ-POSE, A.; CRESCENZI, R. R&D, spillovers, innovation systems andthe genesis of regional growth in Europe. Regional Studies, 41(forthcoming), 2008.RODRÍGUEZ-POSE, A.; GILL, N. How does trade affect regional disparities? WorldDevelopment, 34(7): 1201-22, 2006.RODRÍGUEZ-POSE, A.; STORPER, M. Better rules or stronger communities? On thesocial foundations of institutional change and its economic effects. Economic Geography,82(1): 1-25, 2006.ROMER P. M. Increasing Returns and Long-Run Growth. Journal of Political Economy,94(5) 1002-37, 1986.__________. The Origins of Endogenous Growth. The Journal of Economic Perspectives,8(1): 3-22, 1994.SALA-I-MARTÍN, X. The World Distribution of Income: Falling Poverty and … Con-vergence, Period. Quarterly Journal of Economics, 121(2): 351-97, 2006.SASSEN, S. Economic restructuring and the American City, Annual Review of Sociology16: 465-90, 1990.__________. The Global City. 2. ed. Princeton: Princeton University Press, 2001.SCHERER, F. M. The propensity to patent. International Journal of IndustrialOrganization, 1(1): 107-28, 1983.SCHULTZ, T. P. Inequality and the Distribution of Personal Income in the World: HowIt Is Changing and Why. Journal of Population Economics, 11: 307-44, 1998.

M O N T A N H A S E M U M M U N D O P L A N O

28 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 29: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

SCOTT, A. J.; AGNEW, J.; SOJA, E. W.; STORPER, M. Global city-regions, p.11-32.In: SCOTT, A. J. (ed.) Global city-regions: trends, theory, policy. Oxford: Oxford Uni-versity Press, 2001.SEMLINGER, K. Economic development and industrial policy in Baden-Wurttemberg:Small firms in a benevolent environment. European Planning Studies, 1:435-63, 1993.SONN, J. W.; STORPER, M. The increasing importance of geographical proximity intechnological innovation: an analysis of U.S. patent citations, 1975-1997. Environmentand Planning A. (Forthcoming), 2008.STORPER, M.; VENABLES, A. J. Buzz: face-to-face contact and the urban economy.Journal of Economic Geography, 4: 351-70, 2004.TAYLOR, P. J. Specification of the world city network. Geographical Analysis, 33:181-94,2001.TAYLOR, P. J.; HOYLER, M. The spatial order of European cities under conditions ofcontemporary globalization. Tildschrifte voor Economische en Sociale Geografle, 91: 176-89, 2000.TAYLOR, P. J.; HOYLER, M.; WALKER, D. R. F.; SZEGNER, M. J. A New Mappingof the World for the New Millennium, The Geographical Journal, 167(3): 213-22, 2001.TAYLOR, P. J.; WALKER, D. R. F. World cities: a first multivariate analysis of their ser-vice complexes. Urban Studies, 38: 23-47, 2001.TRIGILIA, C. Sviluppo senza autonomia.Effetti perversi delle politiche nel Mezzogiorno.Bologna: Il Mulino, 1992.UNDP. United Nations Development Program Human Development Report, New York,NY. United Nations Development Program, (2003) Human Development Report, NewYork, NY, 2001.VARGA, A. Local academic knowledge spillovers and the concentration of economic ac-tivity, Journal of Regional Science 40: 289-309, 2000.VELTZ, P. Mondialisation, villes et territoires: l’économie d’Archipel. PUF, 1996.__________. Le nouveau monde industriel. Paris : Gallimard, 2000.VERSPAGEN, B. Measuring Intersectoral Technology Spillovers: Estimates from the Eu-ropean and US Patent Office Databases. Economic Systems Research, 9(1): 47-65, 1997.WADE, R. Is globalization reducing poverty and inequality? World Development, 32 (4):567-89, 2004.ZAK, P.; KNACK, S. Trust and growth. Economic Journal, 111:295-321, 2001.

A B S T R A C T Thomas Friedman (2005) argues that the expansion of trade, theinternationalization of firms, the galloping process of outsourcing, and the possibility ofnetworking at increasingly low prices iscreating a ‘flat world’: a level playing field whereindividuals are empowered and better off. This paper challenges this view of the world byarguing that although globalization implies changes, opportunities, and threats, not allterritories have the same capacity to maximize the benefits and opportunities and minimizethe threats at hand. Numerous forces are coalescing in order to provoke the emergence of urban‘mountains’ where wealth, economic activity, and innovative capacity agglomerate. These‘tectonic’ forces include factors such as innovation, spillovers, backward and forward linkages,specialisation vs. diversification dynamics, community and social capital, and, last but notleast, the buzz of the city. The interactions of these forces in the close geographical proximity oflarge urban areas give shape to a much more complex geography of the world economy and

A N D R É S R O D R Í G U E Z - P O S E , R I C C A R D O C R E S C E N Z I

29R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 30: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

allows for new economic players to emerge. But this geography, rather than flat, is full ofmountains, with large urban agglomerations representing the highest peaks. The majority ofthe world population, far from being empowered, remains ill-prepared to face these challenges.

K E Y W O R D S Technological progress; new economic geography; competitiveadvantage.

M O N T A N H A S E M U M M U N D O P L A N O

30 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 31: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

DEMOCRACIA NO FIO DA NAVALHA

LIMITES E POSSIBILIDADES PARA A IMPLEMENTAÇÃO

DE UMA AGENDA DE REFORMA URBANA NO BRASIL

R A Q U E L R O L N I K

R E S U M O Os anos 1990 representaram no Brasil avanços institucionais no campodo Direito à Moradia e à Cidade, com a incorporação à Constituição do país, em 1988, dosprincípios da função social da cidade e da propriedade, do reconhecimento dos direitos de pos-se dos moradores dos assentamentos urbanos informais e da participação direta dos cidadãosnos processos decisórios sobre a política urbana. Estas proposições constituem os pilares da agen-da da Reforma Urbana, que, a partir da criação do Ministério das Cidades no governo Lula,penetra no âmbito do Executivo federal. O artigo avalia os limites e possibilidades de imple-mentação desta agenda através da trajetória de duas políticas propostas pelo Ministério – oConselho Nacional das Cidades e a campanha pelos Planos Diretores Participativos – centran-do a análise na organização do Estado na área do desenvolvimento urbano em sua relação como sistema político e as características da democracia brasileira.

P A L A V R A S - C H A V E Planejamento participativo; política urbana;democracia.

INTRODUÇÃO

Os anos 1990 representaram no Brasil um período de intenso debate, no seio da so-ciedade civil, dos partidos e governos, acerca do papel dos cidadãos e de suas organizaçõesna gestão das cidades. Além disto, foram anos de avanços institucionais no campo do Di-reito à Moradia e Direito à Cidade, com a incorporação à nova Constituição do país, em1988, de um capítulo de política urbana, estruturado em torno da noção de função so-cial da cidade e da propriedade, do reconhecimento dos direitos de posse de milhões demoradores das favelas e periferias das cidades do país e da incorporação direta dos cida-dãos aos processos decisórios sobre esta política. Esses têm sido – desde o período dachamada “transição democrática” – os pontos centrais da chamada “agenda da reforma ur-bana”, cujos principais proponentes são movimentos populares, organizações não gover-namentais, associações de classe e instituições acadêmicas e de pesquisa organizadas emtorno da promoção do direito à cidade (Santos Junior, 2007, p.297).

Os anos 90 também introduziram nas cidades brasileiras, e especialmente nas me-trópoles, os efeitos das reformas macroeconômicas de caráter liberal iniciadas nos anos 90e que incidiram tanto sobre a economia das cidades, gerando desemprego e radicalizandoas assimetrias econômicas e sociais já existentes anteriormente, como sobre a capacidadedos governos e atores sociais de enfrentá-las. Elas também viriam acompanhadas por umaagenda de reforma do Estado, tendo como eixo a privatização de amplas áreas das políti-cas públicas, a proposta de modernização e downsizing do Estado acompanhadas por um

31R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 32: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

discurso participacionista e de revalorização da sociedade civil, redefinida como TerceiroSetor (Dagnino, Oliveira, Panfichi, 2006; Telles, 2007; Santos Junior & Ribeiro, 2003).

Finalmente, foi também no mesmo período que o processo de descentralização fe-derativa, fortalecimento e autonomia dos poderes locais, propostos desde a Constituiçãode 1988, foi sendo progressivamente implantado no Brasil, limitado tanto pelos constran-gimentos do ajuste macroeconômico vivido pelo país nos anos 90, como pela alta dose decontinuidade política que o processo de redemocratização brasileira envolveu (Avritzer,2003; Alston, Melo, Mueller, Pereira, 2005).

A nosso ver, é a combinação particular e perversa destes elementos, em suas relaçõescom a herança pesada da lógica de gestão do território excludente e predatória, que têmditado as marchas e contramarchas da agenda da Reforma Urbana no país. Se, por um la-do, ela não logrou constituir uma base de sustentação política para incidir profunda e am-plamente na dinâmica estatal assim como relações entre sociedade política e sociedade ci-vil de forma a promover a gestão das cidades na direção de um espaço mais coeso,includente e sustentável, por outro, tem sido uma fonte permanente de tensionamento einovação cultural introduzida pelos atores sociais, que ampliou do ponto de vista territo-rial e político o espaço da democracia brasileira (Santos Junior, 2004; 2007).

Neste artigo, avaliamos os limites e possibilidades de implementação da agenda daReforma Urbana, tomando como objeto de reflexão sua incorporação à política urbanapromovida no âmbito do governo Lula, sobretudo através do Ministério das Cidades. Es-te balanço, restrito a apenas um aspecto da política implementada pelo Ministério, pre-tende contribuir com a reflexão sobre os desafios da política urbana no Brasil do pontode vista da frágil e vigorosa democracia brasileira.

A LÓGICA DA “DESORDEM” URBANA1

Em um dos movimentos socioterritoriais mais rápidos e intensos de que se tem no-tícia, a população brasileira passou de predominantemente rural para majoritariamenteurbana em menos de 40 anos (1940-1980). Este movimento, impulsionado pela migra-ção de um vasto contingente de pobres, ocorreu com base em um modelo de desenvolvi-mento urbano que basicamente privou as faixas de menor renda da população de condi-ções básicas de urbanidade ou de inserção efetiva à cidade. Em cada ponto do territórioque apresentou grande crescimento e dinâmica urbana, as qualidades urbanísticas se acu-mulam em um setor restrito, local de moradia, negócios e consumo de uma minoria dapopulação moradora.

Estas áreas, “de mercado”, têm sido reguladas por um vasto sistema de normas, con-tratos e leis que têm quase sempre como condição de entrada a propriedade escriturada eregistrada, restrita a poucos moradores. Os terrenos que a lei permite urbanizar, assim co-mo os financiamentos que a política de crédito imobiliário têm disponibilizado estão re-servados a este círculo restrito. Para as maiorias, sobraram os mercados informais e irre-gulares, em terras que a legislação urbanística e ambiental vetou para a construção ou nãodisponibilizou para o mercado formal ou nos espaços precários das periferias com as via-gens cotidianas “à cidade”. Embora não exista uma apreciação segura do número total defamílias e domicílios instalados em favelas, loteamentos e conjuntos habitacionais irregu-lares e outras formas de assentamentos marcados por alguma forma de precariedade ur-banística e irregularidade administrativa e patrimonial, é possível afirmar que o fenôme-

D E M O C R A C I A N O F I O D A N A V A L H A

32 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

1 Esta expressão foi cunha-da por Lucio Kowarick emseu livro A espoliação urba-na, quando dá o título “Alógica da desordem” aocapítulo em que descreve o processo de urbanizaçãobrasileiro pós-60 (Editora Paze Terra, São Paulo, 1980).

Page 33: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

no está presente na maior parte da rede urbana brasileira, atingindo 40% dos domicíliosurbanos brasileiros, ou 16 milhões de famílias (Ipea/IBGE, 2004). No vasto e diverso uni-verso dos 5.564 municípios que existem hoje no Brasil, são raras as cidades que não têmuma parte significativa de sua população “assentada precariamente” (IBGE, 2006).

Excluídos do marco regulatório e dos sistemas financeiros formais, os assentamentosprecários foram autoproduzidos por seus próprios moradores com os meios que se encon-travam à sua disposição: salários baixos, insuficientes para cobrir o custo da moradia (Oli-veira, 1988; Maricato, 1996), sem acesso a recursos técnicos e profissionais e nas terrasrejeitadas ou vetadas para o mercado formal, como encostas íngremes e áreas inundáveis,além das vastas franjas de expansão periférica sobre zonas rurais. Assim foi sendo produ-zida a cidade “fora da cidade”, eternamente desprovida das infraestruturas, equipamentose serviços que caracterizam a urbanidade.

As políticas governamentais implementadas durante o período de urbanização maisintensa (1960-1980) reforçaram de maneira perversa este modelo. Sob a égide de uma di-tadura militar que concentrou recursos e poder nas mãos do governo federal, o locus daformulação e implementação da política de desenvolvimento urbano concentrou-se noBNH – Banco Nacional de Habitação. Criado após o golpe militar de 1964, sua criaçãoera uma resposta do governo militar à forte crise de moradia presente no país buscando,por um lado, angariar apoio entre as massas populares urbanas, e, por outro, criar umapolítica permanente de financiamento capaz de estruturar em moldes capitalistas o setorda construção civil habitacional, objetivo que acabou por prevalecer. Em 1967, o BNH as-sumia a gestão dos recursos do FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço), consti-tuído pela poupança compulsória de todos os assalariados brasileiros, tornando-se assimo maior banco de segunda linha do país. O BNH passou então a concentrar não apenas ofinanciamento mas também toda a atividade de planejamento do desenvolvimento ur-bano no âmbito do governo federal, consubstanciada em metas quantitativas de produ-ção nos setores de habitação e saneamento. Sua atuação se dava através de disponibi-lização de crédito com juros subsidiados para companhias públicas de saneamento e dehabitação – organizadas sobretudo pelos estados e, em alguns casos, por municípios –para a execução de projetos de implantação de redes de água e esgoto e de construção demoradias populares, além de construtoras e indivíduos para a produção de casas e aparta-mentos para o mercados de média e alta renda (Arretche, 1996).

Quando construídas, as moradias populares foram, em sua maioria, implantadas foradas cidades, em periferias distantes e desequipadas e, muitas vezes, sob as mesmas condi-ções de irregularidade e precariedade urbanística que marcava o mercado informal popular.Por outro lado, o mercado de classe média – que concentrou 2/3 das unidades financiadaspelo BNH – conheceu enorme expansão, gerando crescimento da verticalização residenciale constituindo novos eixos de centralidade nas cidades médias e grandes do país.

Neste contexto, o exercício do planejamento urbano local, através dos Planos Dire-tores de Desenvolvimento Urbano, obrigatórios para os municípios que demandavam re-cursos federais para grandes investimentos públicos, eram meros documentos acessóriosde justificativa de investimentos setoriais, paralelos e externos à própria gestão local, de-finidos e negociados em esferas e circuitos que pouco ou nada tinham a ver com esta ges-tão, associados a estratégias de zoneamento que disponibilizavam as escassas áreas urbani-zadas da cidade para os produtos imobiliários de classe média.

Este quadro permaneceu inalterado, tendo sido impactado nos anos 80 pela fa-lência do BNH e queda no nível de investimentos no setor, e, do ponto de vista político,

R A Q U E L R O L N I K

33R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 34: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

pelo movimento pela redemocratização do país. A crise do modelo econômico implemen-tado pelo regime militar, a partir do início dos anos 80, gerou recessão, inflação, desem-prego e queda dos níveis salariais. Este processo teve enorme repercussão no Sistema Fi-nanceiro da Habitação (SFH), com a redução da sua capacidade de investimento, geradapela retração dos saldos do FGTS e da poupança e forte aumento na inadimplência, gera-do por um cada vez maior descompasso entre o aumento das prestações e a capacidade depagamento dos mutuários. Vivia-se o clima da luta pelas eleições diretas para presidentee pela Constituinte, com grande mobilização popular, e a oposição ao BNH se inseria nocombate à ditadura (Melo, 1993). Com o fim do regime militar, em 1985, esperava-seque todo o SFH, incluindo o BNH e seus agentes promotores públicos, as Cohabs, passas-sem por uma profunda reestruturação, na perspectiva da formulação de uma nova polí-tica habitacional para o país. No entanto, o BNH foi simplesmente extinto em 1986 e seuespólio foi assumido por outro banco, a Caixa Econômica Federal, enquanto as políticassetoriais de habitação, saneamento e transporte urbano passavam por distintos ministé-rios (Santos Junior, 2004, Maricato, 2006).

A AGENDA DA REFORMA URBANA E O MINISTÉRIO DAS CIDADES

Desde o período da Constituinte, um movimento pela reforma urbana articuloumovimentos sociais de luta por moradia a profissionais de várias áreas, como advogados,arquitetos, urbanistas, engenheiros, além de técnicos de prefeituras e segmentos da Uni-versidade como parte da mobilização social que pressionava a Constituição de 1988 nadireção da ampliação dos direitos humanos e cidadania. Especificamente na área de po-lítica urbana, a mobilização resultou na inserção de capítulo de Política Urbana naConstituição (artigos 182 e 183), em que se afirmava a função social da cidade e da pro-priedade, o reconhecimento e integração dos assentamentos informais à cidade e a demo-cratização da gestão urbana – entendida como ampliação dos espaços de partipação e con-trole social das políticas. Na fórmula adotada neste capítulo, fruto do processo denegociação no interior do Congresso, se requeria uma legislação federal para regulamen-tar os instrumentos de manejo do solo urbano e as sanções pelo não cumprimento dasfunções sociais, assim como a elaboração de planos diretores locais como bases para estasdefinições no âmbito de cada um dos municípios. A partir daí, a luta pela renovação dosinstrumentos de regulação urbanística, política urbana e planejamento territorial percor-reram o caminho duplo de experiências locais e nacionais (Rolnik, Nakano, Cymbalista,2008). Em 2001, foi aprovado em âmbito federal o Estatuto da Cidade, instituindo as di-retrizes e instrumentos de cumprimento da função social da cidade e da propriedadeurbana, do direito à cidade e de democratização de sua gestão. Em âmbito local, ações de urbanização progressiva de assentamentos precários e tentativas de implementação dereformas nos marcos regulatórios do uso e ocupação do solo começavam a penetrar nouniverso da gestão urbana, assim como se multiplicavam experiências de participação po-pular e controle social das políticas e do orçamento público, tais como orçamento parti-cipativo, conselhos gestores e programas autogestionários (Avritzer, 2003; Dagnino, Oli-veira, Panfichi, 2006).

Entretanto, este movimento em direção à construção de políticas urbanas includen-tes não foi imediatamente acompanhado pela formulação e revisão de um novo marco

D E M O C R A C I A N O F I O D A N A V A L H A

34 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 35: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

institucional e de organização do Estado no campo do desenvolvimento urbano nas ins-tâncias federais.

Em 2002, ganha as eleições presidenciais brasileiras Lula, o candidato do Partido dosTrabalhadores (PT), um imigrante nordestino em São Paulo, ex-morador de favela e lídersindical metalúrgico. O PT, partido de esquerda, cuja base incluía membros da maior cen-tral sindical do país, intelectuais e membros da Igreja progressista e movimentos sociais,como sem-terra urbanos e rurais, foi ao longo dos anos 90 aumentando sua participaçãona cena político-institucional brasileira, assumindo governos locais e ampliando sua par-ticipação no Legislativo. Uma das marcas registradas desta trajetória foi a formulação deum “modo petista de governar”, que rompia com formas tradicionais de exercício da po-lítica brasileira, introduzindo novas práticas, como a participação direta dos cidadãos nagestão pública.

Durante a campanha presidencial, o compromisso com uma intervenção no campodo desenvolvimento urbano consubstanciou-se no “Projeto Moradia”, que, entre outraspropostas, incluía a criação de um Ministério das Cidades como locus para a formulaçãoe implementação de uma política urbana, depois de quase vinte anos de institucionalida-des erráticas e dispersas em distintos ministérios. Esta proposta foi assumida no início de2003, com a nomeação de Olívio Dutra, também ele líder sindical, ex-prefeito de PortoAlegre e ex-governador do Rio Grande do Sul, conhecido por ter introduzido o orçamen-to participativo em seus mandatos como prefeito e governador.

Para os atores ligados ao movimento social pela reforma urbana, a criação do Minis-tério das Cidades representava a possibilidade de avançar na democratização da gestão ur-bana, fazendo dela um dos pilares institucionais de sua agenda, ampliando os espaços dedemocracia participativa, até então experimentados sobretudo no âmbito local. A respos-ta a esta demanda, no interior do processo de organização do Ministério, se deu atravésda constituição de um Conselho Nacional das Cidades como parte integrante de sua es-trutura e elemento central na formulação e negociação de políticas, e no qual tanto seto-res governamentais (dos três níveis de governo) como os segmentos da sociedade civil (se-tor empresarial, sindicatos, organizações profissionais, ONGs, entidades acadêmicas e depesquisa e movimentos populares) são representados, eleitos através de assembleias porsegmentos, entre delegados presentes em Conferências Nacionais. A primeira Conferên-cia Nacional, realizada em 2003, contou com 2.500 delegados. À exceção dos 250 repre-sentantes do Poder Público federal, indicados pelo Executivo, seus delegados poderiam outerem sido eleitos nas Conferências Estaduais (75%) ou indicados por entidades e orga-nizações de caráter nacional (25%). A Conferência de 2003, que elegeu o Conselho Na-cional das Cidades, foi precedida por 1.427 conferências municipais, 185 conferências re-gionais e 27 estaduais, envolvendo 3.457 municípios.

O projeto inicial de construção do Conselho o concebeu como um campo de inte-rações políticas, arena aberta na qual a trama de interesses em torno da política urbana ti-vesse a possibilidade de expressão e negociação e na qual estivessem representados, comgrande peso, os principais demandatários destas políticas – sem-teto, sem-casa, morado-res de assentamentos precários no país – além dos setores empresariais e sindicais envol-vidos no setor, gestores públicos de municípios, estados e governo federal, ONGs, profis-sionais e pesquisadores do urbano.

O Ministério incorporou também em sua estrutura e política outro ponto central daagenda da reforma urbana – as ações e instrumentos para garantir a função social da cida-de e da propriedade urbana, que a Constituição e o Estatuto da Cidade haviam definido

R A Q U E L R O L N I K

35R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 36: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

como competências locais, dependentes da aprovação de planos diretores pelas câmarasmunicipais. Os novos instrumentos de gestão do solo urbano requeriam, de acordo com otexto constitucional e Estatuto da Cidade, a elaboração de planos diretores em todas as ci-dades com mais de 20.000 habitantes no país – 1.683 municípios – que deveriam ser apro-vados nas câmaras municipais até outubro de 2006. Como o plano diretor transformou-seem condição para que instrumentos de validação da função social da propriedade pudes-sem ser implementados, desde 1989, quando coalizões “democrático-populares” vencerameleições em várias cidades brasileiras, teve início um processo de experimentação na dire-ção de uma revisão conceitual e metodológica do planejamento urbano.

Com base em proposta do Ministério, o Conselho Nacional das Cidades decidiu es-truturar uma campanha pela implementação de Planos Diretores Participativos, dirigidapara governos e sociedade civil nas cidades que estavam “obrigadas” a cumprir a lei. O ob-jetivo da campanha era disseminar os novos conteúdos e os novos métodos que o plane-jamento territorial – e particularmente os planos diretores – deveriam incorporar, consi-derando a missão a eles atribuída pelo novo marco legal, considerando as realidadessocioterritoriais de cada município, a “função social de cada segmento de seu território”,com base em um processo participativo de discussão e pactuação que deveria ocorrer emarenas públicas em cada cidade (Brasil, 2004a). Com base na proposta do Ministério, oConselho Nacional das Cidades definiu uma estratégia de apoiar a organização de núcleosde mobilização e capacitação da campanha em cada estado do país articulando uma redede parceiros em todo o território nacional constituída por entidades técnicas, acadêmicas,instituições de pesquisa, poder público estadual e municipal, movimentos sociais e popu-lares e, em alguns estados, o Ministério Público. Com a formação de Núcleos da Campa-nha em todos os estados brasileiros e a elaboração de material de difusão e capacitação emvárias mídias, utilizando para isso o próprio processo das conferências municipais, a cam-panha passou a trabalhar para sensibilizar, capacitar e monitorar os municípios “obrigató-rios” em cada estado; assim como, em conjunto com o Ministério, possibilitar a assistên-cia técnica e recursos para a elaboração dos planos diretores.2

Outro ponto central da agenda de reforma urbana – o direito à moradia – foi obje-to de políticas e ações prioritárias do Ministério através da ampliação de recursos para fi-nanciamento da produção habitacional e urbanização de assentamentos precários, do re-conhecimento e regularização fundiária plena dos assentamentos e, a partir da aprovaçãode lei federal oriunda de iniciativa popular, de criação e implementação do Sistema Na-cional de Habitação de Interesse Social, de forma a articular recursos de subsídios oriun-dos dos orçamentos dos vários níveis de governo e dirigi-los para a promoção de Habita-ção de Interesse Social baseada em critérios definidos no âmbito de conselhos gestoreseleitos em cada instância federativa. Entretanto, por limitações de espaço e escopo, elas,assim como as demais políticas promovidas pelo Ministério das Cidades – no campo dosaneamento ambiental e mobilidade urbana – não serão objeto de análise neste artigo(Brasil, 2004b).

Optamos por analisar aqui propostas de Reforma do Estado que tiveram como eixoa pluralização de atores e a diversificação de lugares de exercício da representação na ela-boração e implementação da política urbana (Lavalle, Houtzager, Costello, 2006). A ex-periência de construção de políticas no Conselho Nacional das Cidades, assim como osprocessos de planejamento territorial participativo apostaram na construção de espaçospúblicos como locus de exercício da solidariedade cívica e de conquista de “direito a terdireitos” de parte importante dos brasileiros, inseridos de forma precária nas cidades e po-

D E M O C R A C I A N O F I O D A N A V A L H A

36 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

2 Além do apoio através dadisseminação de materiaisdidáticos – o KIT do PlanoDiretor – com vídeo, carti-lhas e materiais de referên-cia técnica e a promoção ouapoio a promotores de Ofici-nas de Capacitação em to-das as regiões do país (maisde 380 oficinas envolvendo22.000 participantes entretécnicos e gestores locais elideranças sociais), o Minis-tério também repassourecursos próprios ou de par-ceiros no âmbito do gover-no federal para apoiar acontratação de serviços porparte dos municípios, apoi-ando financeiramente a ela-boração dos planos direto-res de aproximadamente1/3 dos municípios obriga-tórios.

Page 37: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

líticas urbanas. A agenda desafiava a máquina pública – burocracias estatais, partidos e li-deranças políticas a

produzir instituições capazes de gerar trocas e acordos entre os diferentes atores locais a respei-to do futuro de sua sociedade, promover redes de atores trabalhando sobre problemas públi-cos, instalar instrumentos de mobilização dos cidadãos, criar normas para garantir a imple-mentação destes acordos, ter capacidade estratégica de articulação política e, sobretudo, ganhar

a confiança dos atores e reduzir as incertezas do sistema político. (Milani, 2006, p.232.)

Em 2005, em plena preparação da Segunda Conferência Nacional e campanha dosPlanos Diretores Participativos, o ministro e seu gabinete são substituídos por Márcio For-tes, do quadro técnico-político ligado ao Partido Progressista (PP) do Rio de Janeiro (de-nominação que substituiu a antiga Arena, partido de situação no período autoritário), quejá havia assumido vários altos cargos no governo federal desde os anos 80. A nomeação deFortes para o Ministério das Cidades atendia à demanda do presidente da Câmara dosDeputados, do mesmo partido, em plena crise político-institucional que o governo Lulaatravessava, em razão de denúncias de corrupção e compra de votos no Parlamento.

Desde o início do governo petista, uma política de alianças que viabilizasse consti-tuir maioria no Congresso (já que o PT havia elegido apenas 91 dos 513 deputados e 14dos 81 senadores) pressionava para a mobilização dos recursos tradicionalmente utiliza-dos na política brasileira para esta finalidade: distribuição de cargos no governo, atendi-mento pontual de demandas de investimentos na base dos deputados e, muitas vezes, acompra de votos. Apesar da entrada de novas representações no Legislativo, comprome-tidas com interesses populares e políticas includentes e redistributivas, elites poderosas,incluindo proprietários de terra, setores empresariais e oligarquias familiares, continua-vam amplamente representadas no Congresso (Hunter, 2003; Hunter & Power, 2005). Amudança na direção do Ministério não interrompeu a campanha dos PDPs e nem as con-ferências e reuniões do Conselho Nacional. Entretanto, evidenciou de forma mais explí-cita os limites e contradições entre uma proposta de Reforma do Estado brasileiro na áreade desenvolvimento urbano e o forte conservadorismo de sua estrutura, apesar da impor-tante mudança de direção política representada pelo PT. Como veremos nas seções aseguir, não é por acaso que justamente esta, entre as várias áreas do Estado brasileiro, éprofundamente afetada pela lógica política tradicional, fortemente estruturada no clien-telismo, patronagem e controle por coalizões de interesses empresariais, reinventados nocontexto urbano e metropolitano brasileiros. Para entendê-la é necessário analisar onde ecomo se dão os processos decisórios reais sobre os investimentos urbanos e sua relaçãocom o sistema político e modelo federativo no país.

POLÍTICA URBANA – ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO, O REAL E O LEGAL

No modelo de política urbana vigente no país impera a “ambiguidade constitutiva”já largamente identificada por historiadores e cientistas políticos como marca da políticabrasileira, ambiguidade que “produz fórmulas combinatórias entre o ‘real’ e o ‘legal’, o‘público’ e o ‘privado’, reinventando suas fronteiras, mas trabalhando na direção de suamanutenção” (Gomes, 1998, p.502).

R A Q U E L R O L N I K

37R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 38: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

No caso da política urbana, o mundo “legal” representaria um poder centralizadoe concentrado em um Estado moderno, assentado sobre bases impessoais e racionais,sendo exercido por uma burocracia técnica. No pólo oposto estaria situada a informali-dade/ilegalidade, identificada sobretudo na autoprodução da cidade popular.

Entretanto, formas combinatórias entre “público” e “privado” e legal/ilegal se re-produzem no interior do mundo “legal”, no qual o Estado se faz presente. Esta obser-vação é importante porque é comum uma abordagem que atribui a “desordem” nas ci-dades à “falta de Estado”, sobretudo nos territórios populares. A nosso ver, estaassertiva é falsa na medida em que, se é verdade que faltam bens, serviços e espaçospúblicos nos territórios populares, esses só se constituem com e a partir da presençado Estado. Ausentes dos mapas e cadastros de prefeituras e concessionárias de serviçospúblicos, inexistentes nos registros de propriedade nos cartórios, os assentamentos in-formais têm uma inserção ambígua nas cidades onde se localizam. Modelo dominan-te de territorialização dos pobres nas cidades brasileiras, a consolidação destes assenta-mentos é progressiva, eternamente incompleta e totalmente dependente de uma açãodiscricionária do poder público – já que eles não se enquadram na semântica das nor-mas urbanísticas.

Na forma particular como se estrutura o Estado brasileiro na área de desenvol-vimento urbano, a oposição legal/ilegal, assim como a delimitação entre os mundos pri-vado e público nunca são absolutas.

Tanto para os segmentos empresariais como para os autoconstrutores do habitatpopular, a ação do Estado investindo em urbanização ou regulando o território é decisi-va. Para o mercado formal de produção da cidade, a relação com o aparato estatal se dáatravés da produção e fornecimento de bens cujo demandatário é o próprio Estado – éo caso das empreiteiras de obras públicas e de concessionários de serviços urbanos comocoleta de lixo, transporte, entre outras (Marques, 2003). Também ocorre pelo estabele-cimento do marco jurídico das transações econômicas realizadas neste mercado, ou ain-da por meio das leis e normas estabelecidas nos distintos níveis de governo que afetam acompetitividade e rentabilidade de seus produtos, da política de tributação sobre os imó-veis às normas de uso e ocupação do solo, das políticas de crédito imobiliário aos mar-cos regulatórios dos vários setores que constituem a política urbana.

A atividade imobiliária, assim como qualquer outra atividade capitalista, incorpora umforte componente de risco (...) uma bem montada coalizão público-privada que canalize re-

cursos públicos para a modernização prévia de determinadas “frentes imobiliárias” pode di-minuir substancialmente ou até mesmo eliminar estes riscos. (Ferreira, 2007, p.221.)

Setores empresariais envolvidos na produção da cidade formal estabelecem conexõesprivilegiadas com segmentos burocráticos de agências públicas que detêm o controle so-bre o encaminhamento dos processos decisórios na implementação de projetos e progra-mas, assim como de controle urbanístico, garantindo a destinação de áreas da cidade paraseus mercados e protegendo a rentabilidade de seus investimentos. Na área de desenvol-vimento urbano, estes processos decisórios se dão no interior da burocracia de gestão doterritório, altamente permeada por redes de influência que articulam de setores empresa-riais a mandatos parlamentares e partidos políticos, já que empreiteiras de obras públicas,concessionários de serviços e incorporadoras e construtoras são os maiores financiadoresde campanhas eleitorais locais.

D E M O C R A C I A N O F I O D A N A V A L H A

38 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 39: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

No Brasil, a gestão governamental do território se estrutura em “setores” (tais comohabitação, saneamento, transporte, meio ambiente, urbanismo, patrimônio histórico, pa-trimônio público etc.) com seus respectivos marcos regulatórios e burocracias verticaliza-das situadas em agências, empresas públicas, autarquias e órgãos de administração diretavinculados às esferas municipal, estadual e federal. A fragmentação institucional, constan-temente abordada como responsável pela ineficiência e baixa capacidade gerencial, buro-cratização excessiva e desordem nas cidades, constitui, na verdade, parte de uma estraté-gia de maximização de interesses particulares de burocratas, parlamentares e empresáriosfornecedores e provedores e bens e serviços

reproduzindo uma privatização cartorializada das políticas públicas (...) Neste processo de re-des de influência é necessário acrescentar ainda a interferência das forças políticas de apoio àcoalizão governante, que controlam a nomeação de pessoas para ocuparem os cargos consi-

derados chave para o funcionamento operacional dos programas. (Silva, 2003, p.36-8.)

Se para o mercado formal o Estado brasileiro – em sua capacidade de investimentoe aparato normativo – tem sido o principal referencial de indução ou obstaculização deexpansão do setor, para os autoconstrutores do habitat popular a ação do Estado é tam-bém central. Esta relação, imersa em um terreno marcado pela ambiguidade, se dá atra-vés do grau de tolerância por parte do aparato estatal em relação a ocupações e demaisatos de infração à legalidade estabelecida no marco jurídico, e do grau de acesso aos benspúblicos – como infraestrutura e serviços urbanos – distribuídos pelo Estado. Emboratanto para os segmentos empresariais como para os autoconstrutores do território popu-lar a ação do Estado sobre o urbano é essencial para sua própria existência e sobrevivên-cia, estas relações são marcadas por assimetrias e gramáticas distintas.

No pólo empresarial, a mobilização de um vasto aparato normativo formal é parteda estratégia de “privatização” do controle da cidade pelo capital, que se vale de uma“epistemologia imperial” para construir seu discurso, desqualificando e humilhando, emnome da ciência e da técnica, o conhecimento dos demais grupos sociais (Boaventura,2003, p.14). Podemos tomar, entre muitos outros exemplos, a linguagem do planejamen-to urbano, e mais especificamente do controle do uso e ocupação do solo na cidade, parailustrar o que acabamos de dizer. Não por acaso, trata-se de um código de grande com-plexidade e opacidade, estruturado pela lógica da rentabilidade e valorização do investi-mento imobiliário. Sua opacidade, por si mesma, já seria suficiente para “privatizar” oespaço de interlocução para “técnicos” diretamente envolvidos nas redes de influência doaparato político-burocrático. Considerando que a regulação do uso e ocupação do solo éjustamente a norma de atribuição do território a determinados segmentos econômico-sociais, a mobilização desta semântica específica tem como uma das principais funçõesresguardar valores imobiliários, garantindo-os mesmo no contexto de cidades habitadasmajoritariamente por pobres. Em outras palavras, na cidade infraestruturada e regulada –correspondente a menos da metade do território urbano –, onde atuam os segmentos em-presariais, são altíssimos os preços da terra e dos imóveis, se levarmos em consideração oPIB e a renda da população urbana (Smolka, 2003). Estes mercados, nutridos pela escas-sez de urbanidade na maior parte da cidade, incorporam todas as mais valias geradas pe-los investimentos públicos, mantendo assim altos seus preços e, exclusivos seus produtos.Por outro lado, estes incrementos são pouco taxados, já que os impostos prediais e terri-toriais cobrados são, na maior parte das cidades, bastante baixos, protegendo os ganhos

R A Q U E L R O L N I K

39R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 40: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

imobiliários.3 Nas áreas aptas a urbanizar são as normas de uso e ocupação do solo quedefinem o tipo de “produto imobiliário” que ali pode ser produzido. As tipologias previs-tas pela regulação urbanística e edilícia correspondem integralmente a produtos disponí-veis neste mercado (multifamiliar vertical, loteamento, condomínio, unifamiliar horizon-tal etc.), sendo que para estes empreendimentos são destinadas as melhores localizações eos maiores potenciais de aproveitamento nos planos diretores e leis de uso e ocupação dosolo. Desta forma se reproduz a exclusão de parcela significativa da demanda por cidade,bloqueando seu acesso aos territórios já urbanizados, ali gerando um processo de valori-zação quase que totalmente capturado por agentes privados.

Já no território popular, a presença do Estado se dá, sobretudo, através da me-diação política na distribuição de bens públicos (Graham, 1990). Considerando que amaior parcela dos investimentos em urbanização ocorrem quando os bairros já estão ocu-pados, e que esta demanda tem grandes dificuldades de ser atendida, a disputa pelo aces-so ao investimento é acirrada e tem grande importância político-eleitoral. A condição deinformalidade e/ou ilegalidade dos assentamentos gera impasses no interior dos órgãosburocráticos para que sejam reconhecidos como passíveis de consolidação, abrindo espa-ço para que esta demanda só possa ocorrer de forma seletiva e intermediada. Da combi-nação entre um processo de urbanização da pobreza e inserção precária destes moradoresà cidade, bens e serviços públicos que melhoram sua condição de urbanidade se conver-teram em uma das mais importantes demandas populares, tendo surgido em torno des-tas mobilizações locais com reivindicações organizadas em relação à moradia, transporte,saúde, saneamento etc. Estas mobilizações, ativas desde o final dos anos 70 no cenário dapolítica urbana, constituíram os chamados movimentos sociais urbanos, que, além de for-mas de pressão para a obtenção de bens públicos individuais, trouxeram novas formas deorganização coletiva para além daquelas presentes nas formas clássicas de organização po-lítica, como partidos políticos e sindicatos (Paoli, 1995, p.32; Sader, 1988).

Ao longo dos anos 80, com a retomada das chamadas “liberdades democráticas” –partidos e organizações sociais livres, eleições diretas e voto universal para os cargos deExecutivo e Legislativo –, a relação entre o sistema político eleitoral e estes movimentosfoi se tornando mais complexa. De um lado, a emergência de partidos – sobretudo o PT

– autoidentificados como partidos “dos movimentos sociais” traria, para dentro das insti-tuições da democracia formal e do aparato estatal, parte das agendas destes atores. Por ou-tro, a lógica da competição político-partidária também penetra no universo dos movi-mentos, transformando sua cultura.

Esta equação torna-se ainda mais complexa se considerarmos que a transição demo-crática no Brasil ocorreu através de um pacto restrito, interelites, que preservou as regrasdo jogo de representação de interesses, reproduzindo a tradição de mandatos individuaisarticulados em networks e máquinas político-eleitorais fortemente entremeados com amáquina estatal (Avritzer, 2003).

À esquerda ou à direita no espectro político partidário, tanto os “estreantes” na so-ciedade política que emergiram do movimento sindical e popular como os “velhos caci-ques” da política teriam que competir pelo voto popular e assim, de alguma maneira, serelacionar à demanda por inserção à cidade reivindicada tanto pela população organizadaem movimentos como por aquela mais ampla e desorganizada. É desta forma que os in-vestimentos em urbanidade assim como tolerância, autorização ou mesmo promoção deassentamentos precários se converteram em um potente dispositivo eleitoral, com gran-des possibilidades de retorno político para seus promotores, seja sob a forma do voto po-

D E M O C R A C I A N O F I O D A N A V A L H A

40 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

3 Segundo Smolka (2003),na América Latina os impos-tos sobre a propriedadeimobiliária representam me-nos de 0,5% do PIB, quandoem países como Canadá eEUA estão entre 3% e 4% doPIB.

Page 41: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

pular ou do acesso aos meios para o financiamento de campanhas. Como afirmamos, oterritório popular é permanentemente investido pelo mundo da política, que ali espera re-ceber o prêmio por parte daqueles que foram seletivamente beneficiados com recursos pú-blicos por seu intermédio (Avelino, 1994; Carvalho, 1997).

O grau de controle dos governos locais sobre os recursos para estes investimentos –tanto aqueles vinculados à abertura de frentes imobiliárias como para urbanização de as-sentamentos precários – é, entretanto, bastante limitado. No atual modelo federativo bra-sileiro, em que pese o controle do uso e ocupação do solo ser uma competência local, ogoverno federal e em, menor medida, os governos estaduais controlam boa parte do pro-cesso decisório sobre os investimentos.

INVESTIMENTOS EM URBANIZAÇÃO – QUEMDECIDE?

Na Constituição promulgada em outubro de 1988, os governos municipais tiveramreforçada a sua autonomia, passando a assumir um papel de maior importância na pres-tação de serviços de interesse local. O texto constitucional aprovado fortaleceu financei-ramente os municípios, o que se deu muito mais pelo aumento da sua participação nastransferências constitucionais do que pela ampliação da sua capacidade tributária. De fa-to, a Constituição inovou muito pouco em relação à competência tributária municipal,mantendo basicamente os mesmos impostos destinados pelas Constituições anteriores.Os municípios têm à sua disposição tributos que se aplicam sobre atividades eminente-mente urbanas: o Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) e o Im-posto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS). Entretanto, a grande maioria dos mu-nicípios do país é de base econômica rural (Bremaeker, 2006, p.5). Mesmo aqueles comdinâmica econômica urbana significativa, como vimos na seção anterior, tributam muitopouco as mais valias imobiliárias urbanas. Assim, mais de 70% dos municípios brasilei-ros obtêm 90% suas receitas através de transferências de outros níveis de governo. Nemmesmo os dois municípios mais populosos do país – São Paulo e Rio de Janeiro – conse-guem ultrapassar a marca de 40% de receita própria (Idem, p.25) (Quadro 1).

Quadro 1 – Receitas municipais por tipo de municípios.Tipos de Total de número de Receitas de Receitas Outras municípios municípios por grupos tranferências fiscais receitas

Número % (%) (%) (%)Total Brasil 5.564,00 100,00%Até 5.000 hab. 1267,00 22,77% 91,10% 2,49% 6,42%De 5.001 até 10.000 hab. 1290,00 23,18% 88,88% 4,31% 6,81%

De 10.001 a 20.000 hab. 1385,00 24,89% 87,78% 5,18% 7,04%

De 20.001 a 50.000 hab. 1037,00 18,64% 81,43% 7,86% 10,71%

De 50.001 a 100.000 hab. 319,00 5,73% 73,54% 11,34% 15,12%

De 100.001 a 500.000 hab. 229,00 4,12% 60,20% 19,77% 20,03%

Mais de 500.000 hab. 37,00 0,66% 39,25% 39,89% 20,86%

Fonte: Bremaeker, F. (2008).

R A Q U E L R O L N I K

41R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 42: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

Considerando que a maior parte das receitas de transferências automáticas cobremo custeio da máquina municipal, incluindo a prestação de serviços sociais básicos previs-tos constitucionalmente, a maior parte dos municípios depende das chamadas transferên-cias voluntárias e/ou de acesso a operações de crédito para poder realizar obras e investi-mentos em infraestrutura urbana. Diferentemente do que ocorreu nas áreas de educaçãoe saúde, na área de desenvolvimento urbano a Constituição não estabeleceu qualquerhierarquização de competências de gestão entre os níveis de governo. Segundo a Carta Fe-deral, a implementação de programas nesta área é competência de qualquer um dos ní-veis da federação.

Ao longo de todo o período analisado, o governo federal manteve os recursos – cré-dito ou recursos orçamentários – centralizados e geridos por uma burocracia fragilmenteinsulada (Arretche, 2000). As possibilidades de acesso a crédito para os municípios esti-veram, entretanto, bastante restringidas em razão da política de ajuste das contas públi-cas, que estabeleceu maiores controles sobre gastos ex ante e ex post, limitando drastica-mente as possiblidades de endividamento municipal (Alston, Melo, Mueller, Pereira,2005, p.40).

Com possibilidades restritas de acesso a crédito e limitadas receitas próprias, resta-ram aos municípios as chamadas transferências voluntárias, que ocorrem por meio deconvênios dos municípios com os governos estaduais e federal, originando-se em proces-sos de seleção conduzidos pelo Executivo (o chamado orçamento programável) ou peloLegislativo (as emendas parlamentares). Emendas parlamentares são rubricas orçamentá-rias “carimbadas”, ou seja, com definição prévia não apenas do programa ou ação, mas dolocal preciso de sua destinação. Podem ser coletivas – de bancadas regionais ou estaduais– ou individuais. No caso das emendas individuais, normalmente é prefixado um valoranual por parlamentar, que pode alocar em ações finalísticas de qualquer setor.

Embora todo o processo de definição e alocação do orçamento seja permeado portransações políticas, na literatura (e no senso comum) costuma-se atribuir à prerrogativacongressual de emendar o orçamento, e mais especificamente às emendas individuais, opapel de

engrenagens centrais de um processo que se alicerça no individualismo dos políticos, dando

lugar a uma distribuição clientelista e localista dos recursos públicos. (Limongi & Figueire-do, 2005, p.737.)

Entretanto, os próprios autores citados, entre outros, demonstraram que o Executi-vo mantém sob rígido controle todo o processo de elaboração e execução orçamentárioatravés de normas e procedimentos institucionais que não permitem sua desfiguração pe-lo Legislativo4 (Alston, Melo, Mueller, Pereira, 2005).

as emendas individuais não são privilegiadas pelo Legislativo (...) Ao executar recursos aloca-

dos por parlamentares mediante emendas individuais, o Executivo não está cedendo a pres-sões e deixando de executar sua agenda. A alocação de recursos feita pelos legisladores é com-

plementar, e não contrária à do Executivo. (Limongi & Figueiredo, 2005, p.776.)

De fato, a parcela do orçamento federal destinado às emendas individuais tem-semantido, pelo menos desde 1997, em torno de 2% do total, com pequenas variações po-sitivas em 2001 e 2004. Tem-se mantido também relativamente estável o número total de

D E M O C R A C I A N O F I O D A N A V A L H A

42 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

4 Estes mecanismos vãodesde o caráter autorizativo– e não impositivo – doorçamento, o que permitegrande discricionariedadeem sua execução, atravésdo controle do fluxo do gas-to, o chamado “contingenci-amento”, até a existência deinstrumentos como o crédi-to suplementar, especial ouextraordinário, que permi-tem alterações durante aexecução.

Page 43: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

emendas (em torno de 8.000), bem como a parcela de emendas individuais em relação àsemendas coletivas (em torno de 90%) (SIAFI, 2007). A continuidade – mais ou menos nosmesmos termos – do perfil das emendas individuais e seu papel no orçamento público aolongo de mandatos presidenciais com agendas distintas, demonstra, além da pouca rele-vância para o centro da agenda, a alta funcionalidade política deste mecanismo, que, comum baixo custo, pode, em conjunturas específicas, apresentar alta rentabilidade do pon-to de vista da governabilidade (Pereira & Mueller, 2002).

Embora envolvendo valores pequenos, a emenda individual “carimbada” pode terimpactos positivos no sucesso eleitoral e sobrevivência política dos parlamentares. Se doponto de vista dos grandes objetivos da coalizão governante as emendas têm poucaimportância, é necessário ressaltar que no âmbito da competição política no município,base fundamental para definir a reeleição de um parlamentar, este mecanismo pode sertranscendente.

assumir o “comando político” do município é tarefa vital para tentar controlar a oferta polí-tica e reduzir a insegurança. Esse direito tem correspondência com algumas obrigações, prin-cipalmente naqueles municípios cuja capacidade de arrecadação é insuficiente frente às des-pesas. O apelo eleitoral junto aos eleitores é feito justamente em nome da capacidade docandidato de intermediar recursos públicos para a comunidade. (Avelino,1994, p.238.)

Considerando as regras atuais de organização partidária e de competição eleitoral eos custos crescentes das campanhas eleitorais, para garantir sua sobrevivência política, osparlamentares necessitam não apenas de mecanismos de acesso à distribuição de recur-sos públicos como também de alternativas de financiamento de suas campanhas. O con-trole de postos-chave na máquina estatal, em condições de interferir nas regras de con-tratação de serviços e obras, assim como a garantia de um fluxo de recursos paraalimentar esta máquina podem responder a esta dupla função – de provocar possíveis re-tornos eleitorais positivos por parte dos beneficiários diretos das obras e serviços, e tam-bém de recepção de possíveis prêmios por parte dos contratistas sob a forma de contri-buições para custear campanhas.

Não é por acaso que a área de desenvolvimento urbano – hoje gerida pelo Ministé-rio das Cidades – tem sido, juntamente com a área da saúde, a que mais recebe emendaspor parte dos congressistas (Quadro 2).

R A Q U E L R O L N I K

43R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 44: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

Quadro

2–

Emendasparlam

entaresporministériosdo

governofederal.

20042005

20062007

Órgão

IndividuaisC

oletivas+Individuais

Coletivas+

IndividuaisC

oletivas+Individuais

Coletivas+

Relator

Relator

Relator

Relator

QVA

FQ

VAF

QVA

FQ

VAF

QVA

FQ

VAF

QVA

FQ

VAF

Ministério

daSaúde

3171733.600.644

8829.660.890.962

2261571.816.650

831.261.053.209

27441.121.892.895

2664.127.781.032

28891.242.389.162

1132.573.411.286

Ministério

dasCidades

859188.894.750

132677.301.778

1468515.259.500

1151.396.003.773

1218582.536.540

1221.194.612.132

1386740.213.668

1061.794.866.505

Ministério

daEducação

41868.411.000

931.570.654.559

38872.527.000

47948.113.583

46594.659.977

2211.834.449.736

468145.411.420

2502.104.701.622

Ministério

doEsporte

53495.548.000

31143.199.395

736200.987.500

20143.470.000

732258.525.255

28498.673.011

631266.267.500

15216.995.000

Ministério

daIntegração

29276.922.300

184864.827.242

24286.219.700

1151.404.713.900

18674.244.540

1171.333.670.416

194125.269.216

1091.633.590.838

Nacional

Soma

totaldeem

endaspor7162

1.468.810.0002027

20.806.967.1777513

2.063.010.000887

15.874.322.0077789

2.943.223.5011404

45.134.068.8758024

3.510.344.0001197

18.150.145.880período

Q=

Quantidade,VA

F=

ValorAprovadoFinal

F onte:S iafi,2007.

D E M O C R A C I A N O F I O D A N A V A L H A

44 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 45: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

Se para o orçamento federal o percentual representado pelas emendas (incluindo ascoletivas) é pouco relevante em relação ao total, para o Ministério das Cidades elas re-presentam mais de 50% do orçamento aprovado e mais de 80% do orçamento executa-do (SIAFI, 2006). Trata-se de recursos para a construção de casas, pavimentação de vias,canalização de água, reforma de espaços públicos, enfim, de obras de urbanização nor-malmente dirigidas a consolidar assentamentos precários nas cidades do país que se abri-ga em um programa de emendas individuais criado anualmente pelo Congresso. No âm-bito das emendas coletivas, as rubricas orçamentárias também abrigam obras nas cidadesdesignadas pelos parlamentares. Várias das emendas coletivas – oriundas de bancadas es-taduais e, portanto, destinadas genericamente aos municípios do Estado de origem des-tas bancadas – são na verdade combinações de emendas individuais (“rachadinhas”) des-tinadas a acomodar os pleitos de obras de urbanização de parlamentares queultrapassaram os limites estabelecidos para o total das emendas individuais. Finalmente,são também muitas vezes definidos como emendas – normalmente coletivas – os recur-sos federais “carimbados” para grandes obras de urbanização (obras viárias e sistemas detransporte coletivo, como metrôs).

É no interior, portanto, do jogo político-eleitoral que boa parte do processo decisó-rio sobre a política urbana, especialmente no que se refere aos investimentos em obras eampliação de serviços urbanos, ocorre. O acesso a crédito, como a recursos a fundo per-dido, seja sob a forma de emendas parlamentares, seja sob a forma de convênios com osprogramas do Ministério, dependem essencialmente das relações que os governantes lo-cais estabelecem com o governo federal, com intensa participação de mandatos parlamen-tares e networks.

NOTAS FINAIS

Após a convocatória do Ministério das Cidades, mais de 4.000 municípios brasilei-ros promoveram processos locais de discussão de políticas de desenvolvimento urbano, se-ja através das Conferências Municipais, da elaboração de Planos Diretores Participativosou da participação em Conselhos instituídos a partir destes processos. Uma grande diver-sidade de experiências foram vividas pelos que se envolveram nestes espaços, já que se es-palharam por todo o país, articulando atores e incidindo sobre configurações político-ter-ritoriais as mais diversas.

Em muitas cidades, debates públicos sobre temas de política urbana ocorreram pelaprimeira vez; em outras, tratou-se apenas de um procedimento formal – a convocação deuma audiência pública e seu registro em ata – para que o poder político local não pudes-se ser acusado e eventualmente punido por descumprir a lei.

Boa parte dos Executivos locais apostaram na realização destes processos na expecta-tiva de poder, através do cumprimento da exigência legal, se credenciar para acessar recur-sos federais para obras de urbanização, uma vez que, como vimos, o atual modelo federa-tivo de distribuição de receitas e gestão territorial não contempla as necessidades básicaslocais de urbanidade. Descentralizar a gestão do uso do solo sem estabelecer uma organi-zação do Estado que permita a coordenação de políticas entre níveis de governo e setorese uma capacidade local instalada para viabilizar a implementação de uma estratégia urba-nística de longo prazo é condenar a prática de planejamento urbano local a um exercícioretórico que, assim como em outros vários corpus normativos, funciona no mesmo regis-

R A Q U E L R O L N I K

45R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 46: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

tro da “ambiguidade constitutiva”: trata-se de uma lei que pode ou não ser implementada,a depender da vontade e capacidade do poder político local de inseri-la no vasto campodas intermediações do sistema político.

De fato, mesmo que o Estatuto da Cidade estabeleça a obrigatoriedade de vincularos ciclos orçamentários subsequentes à aprovação de planos diretores às suas definições epropostas, na área de desenvolvimento urbano, pouca autonomia real têm as arenas deci-sórias locais sobre estes investimentos – sejam elas participativas ou não –, uma vez que aárea de desenvolvimento urbano do Estado brasileiro permanece estruturada em burocra-cias altamente setorializadas e centralizadas que funcionam através de processos decisóriosbastante penetrados pelos interesses de atores econômicos e políticos que deles dependempara sobreviver.

Este fato nos ajuda a entender algumas características da política urbana que blo-queiam as tentativas de implementação de uma agenda de reforma na direção de cidadespactuadas e planejadas democraticamente em uma esfera pública. Uma complexa rede decorretagem política que vai dos altos escalões aos espaços locais intermedeia a transferên-cia de recursos para os municípios, tanto através das emendas como dos convênios e aces-so ao crédito.

Os recursos materiais do Estado desempenham um papel crucial na operação do siste-ma; os partidos políticos – isto é, aqueles que apóiam ou participam da coalizão de governo– têm acesso a inúmeros privilégios através do aparelho de Estado. (Nunes, 1997, p.32.)

A área de desenvolvimento urbano é particularmente suscetível a estas práticas: co-mo os recursos são geograficamente determinadas, microinvestimentos nas periferias con-tribuem para sustentar mandatos em eleições sucessivas. Os pequenos valores orçamentá-rios envolvidos, insuficientes para garantir condições de urbanidade básica, apresentam,no entanto, resultados visíveis a curto prazo e, portanto, possibilidades de retribuição porparte do eleitor. Atores políticos, especialmente aqueles envolvidos no jogo político-par-tidário, estão geralmente mais interessados nas consequências de suas ações a curto prazoem razão da temporalidade da política eleitoral.

Agendas complexas e grandes reformas institucionais, com efeitos necessariamente delongo prazo, só mobilizarão apoio destes atores se ganharem grande relevância política, ouquando estes não vêem ameaçados, no curto prazo, a retribuição do eleitor. (Pierson, 2000.)

De um lado, com a garantia de bases populares através da distribuição seletiva e in-dividual de benefícios e, de outro, com os investimentos em obras – e regulação urbanís-tica – articuladas à criação de novas frentes de expansão imobiliária, este modelo contri-buiu para garantir a sustentação política das coalizões de governo junto às elites e ao podereconômico ao mesmo tempo apoiando-as pelo voto popular. Este modelo de Estado e sis-tema político, que compõem o que descrevemos como a “lógica da desordem”, posto emmovimento na fase urbano-industrial de nosso desenvolvimento urbano e construído nointerior da chamada “transição democrática”, continuou em vigor, mesmo sob o coman-do de um governo de origem operária e popular.

Entretanto, não queremos afirmar com isso que uma proposta de reforma tributáriae desenvolvimento do modelo federativo, capaz de sustentar governos locais com capaci-dade administrativa e técnica e recursos para gerir seu território, seria a condição necessá-

D E M O C R A C I A N O F I O D A N A V A L H A

46 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 47: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

ria e suficiente para potenciar processos de planejamento pactuados na esfera pública. Asgramáticas políticas que conformam as relações Estado–Sociedade no Brasil atravessam osâmbitos federativos através de um intrincado conjunto de relações que envolvem gruposmunicipais, estaduais e federais, baseados numa hierarquia de vínculos e favores que in-cluem empregos no governo, acesso a recursos e prestação de bens e serviços. Os partidospolíticos desempenham papel crucial na ligação entre estas gramáticas e as normas uni-versalistas da democracia representativa instalada no Brasil, de tal maneira que “correto-res” no mercado de votos (que por sua vez asseguram posições no mercado de bens e ser-viços ao Estado) compõem muitas vezes quadros das máquinas partidárias ou sãofuncionários de gabinetes legislativos.

Longe de marcarem práticas que se dão apenas no interior do aparato estatal, emsuas relações com a sociedade, estas gramáticas penetram e estruturam relações de podertambém no interior da sociedade civil. Ao examinarmos as relações políticas que se de-ram no interior da construção e implementação do Conselho Nacional das Cidades, as-sim como em sua relação com o ministério e o governo como um todo, é possível iden-tificar que, além da inovação político-cultural, também ali estiverem presentes e vigorososo clientelismo, o corporativismo, a tecnocracia elitista e a ambiguidade. Desta forma, re-futamos uma visão simplista e apologética da sociedade civil, considerada como pólo devirtudes democratizantes e o Estado como “encarnação do mal” (Dagnino, Oliveira, Pan-fichi, 2006, p.16).

Nos Conselhos, assim como no interior do Estado e no vasto campo que constituemas relações de poder na sociedade brasileira, são múltiplos os projetos políticos, de demo-cracia e de país, em permanente disputa. Assim, ao mesmo tempo que podemos identifi-car na experiência de elaboração dos Planos Diretores e de atuação do Conselho Nacio-nal das Cidades a força conservadora de uma cultura política fortemente entranhada narelação Estado–atores sociais, também devemos apontar os elementos de inovação e rup-tura que estes processos trouxeram.

Desde logo, o conteúdo dos debates que se abriram nas cidades, apesar de pautadospelo Ministério, e, desde a eleição do Conselho, com ele negociado previamente, incor-porou questões e projetos locais que produziram no âmbito de cada cidade novos agen-ciamentos e abriram novas pautas na agenda da política urbana.5

A ideia de construção pública e coletiva de um projeto de cidade, alicerçada sobrea definição de sua função social lançada pelo Estatuto das Cidades e presente na Campa-nha dos Planos Diretores, esbarrou, como já demonstramos, na blindagem semânticaoperada pela linguagem do planejamento urbano. Entretanto, não foram poucas as cida-des onde movimentos e organizações da sociedade civil interviram ao propor outras dire-ções e lograr, em conjunto ou em oposição a representantes do Executivo e Legislativo, emuitas vezes mobilizando o Judiciário, sobretudo através do Ministério Público, incluirinstrumentos de democratização da gestão e do território. Mas, mesmo para aqueles quelograram construir planos minimamente pactuados, o grande desafio é ainda a sua imple-mentação. Mais do que uma suposta “vontade política” de seguir um plano diretor, o go-verno local carece claramente de incentivos para fazê-lo, já que, como demonstramos, osprocessos decisórios sobre os investimentos e o destino da cidade são, no atual modelo fe-derativo e sistema político brasileiros, estruturados sob outra lógica.

O avanço da Reforma Urbana no Brasil carece, portanto, além da tessitura de umanova gramática política alicerçada no fortalecimento de espaços de exercício da democra-cia direta e controle social – eixos tradicionais de sua agenda –, da formulação de um pro-

R A Q U E L R O L N I K

47R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

5 Entre inúmeros temas queentraram na agenda da polí-tica urbana a partir desteprocesso, destacamos aregularização fundiária ple-na dos assentamentos infor-mais.

Page 48: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

jeto de reforma política e de desenvolvimento do atual modelo federativo de governo egestão urbana, elementos fundamentais para a consolidação da democracia plena no país.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALSTON, L.; MELO, M.; MUELLER, B.; PEREIRA, C. Who decides on public expen-ditures? A political economy analisys of the budget process. The case of Brasil. São Paulo:FIPE/USP, 2005.ARRETCHE, M. Desarticulação, ação do BNH e autonomização da política habitacio-nal. In: AFFONSO, R.; SILVA, P. (orgs.) Descentralização e políticas sociais. São Paulo:Fundap, 1996.__________. Estado federativo e políticas sociais. Determinantes da descentralização. SãoPaulo: Fapesp, 2000.AVELINO FILHO, G. Clientelismo e política no Brasil. Revisitando velhos problemas.Novos Estudos Cebrap, 38, 225-240, 1994.AVRITZER, L. Modelos de deliberação democrática: uma análise do orçamento partici-pativo no Brasil. In: BOAVENTURA, S. (org.) Democratizar a democracia: os caminhosda democracia participativa. Rio de Janeiro: Afrontamento, 2003.BOAVENTURA, S. (org.) Democratizar a democracia: os caminhos da democracia partici-pativa. Rio de Janeiro: Afrontamento, 2003.BRASIL. Ministério das Cidades. Planos Diretores Participativos, Brasília: 2005.BRASIL. Ministério das Cidades. Plano Diretor Participativo – Guia para a elaboraçãopelos municípios e Cidadãos. Brasília: Secretaria Nacional de Programas Urbanos/Con-fea, 2004a.BRASIL. Ministério das Cidades. Política Nacional de Desenvolvimento Urbano; Parti-cipação e Controle Social; Planejamento Territorial Urbano e Política Fundiária; Habita-ção; Saneamento Ambiental; Mobilidade Urbana; Trânsito; Capacitação e Informação.Brasília: ) Ministério das Cidades, 2004b. 8v.BREMAEKER, F. As finanças municipais em 2007. Transparência Municipal. EstudoTécnico n.2, 2008.__________. Panorama das finanças municipais em 2005. IBAM, 2006. (Série EstudosEspeciais.)CARVALHO, J. Mandonismo, coronelismo, clientelismo. Uma discussão conceitual.Dados, (40) 2, 1997.DAGNINO, E.; OLIVEIRA, A.; PANFICHI, A. (org.) A disputa pela construção demo-crática na América Latina. São Paulo: Paz e Terra, 2006.FERREIRA, J. O mito da cidade global. O papel da ideologia na produção do espaço ur-bano. São Paulo: Vozes/Unesp/Anpur, 2007.GOMES, C. A política brasiliera em busca da modernidade. Na fronteira entre o públi-co e o privado. In: SCHWARCZ, L. (org.) História da vida privada no Brasil. São Paulo:Companhia das Letras, 1998. v.4.GRAHAM, R. Patronage and politics in nineteenth-century Brazil. Stanford: Stanford Uni-versity Press, 1990.HUNTER, W. Brazil’s New Direction. Journal of Democracy, 14(2), 151-162, 2003.HUNTER, W.; POWER, T. Lula’s Brazil at Midterm. Journal of Democracy, 16(3): 127-140, 2005.

D E M O C R A C I A N O F I O D A N A V A L H A

48 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Raquel Rolnik é professo-ra doutora da FAU/USP. Re-latora Internacional do Direi-to à Moradia Adequada doConselho de Direitos Huma-nos da ONU. Secretária Na-cional de Programas Urba-nos do Ministério dasCidades (2003-2007). E-mail: [email protected].

Artigo recebido em agostode 2009 e aprovado parapublicação em setembro de2009.

Page 49: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

IBGE. Pesquisa de Informações Básicas Municipais – MUNIC, 2006. Disponível emwww.ibge.gov.br.IPEA/IBGE. Objetivos de Desenvolvimento do Milênio: Relatório Nacional de Acompa-nhamento. Brasília: s.n., 2004.KOWARICK, L. A espoliação urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.LAVALLE, A.; HOUTZAGER, P.; COSTELLO, G. Democracia, pluralização da repre-sentação e sociedade civil. Revista Lua Nova, 67, 49-103, 2006.LIMONGI, F.; FIGUEIREDO, A. Processo orçamentário e comportamento legislativo:emendas individuais, apoio ao Executivo e programas de governo. Dados, 48(004), 737-776, 2005. MARICATO, E. Terra e habitação: elementos estratégicos da política nacional de desen-volvimento urbano. Brasília, Estudos Sociais IPEA, 2006. __________. Metrópole na periferia do capitalismo. São Paulo: Hucitec, 1996.MARQUES, E. Estado e empreiteiras II. Permeabilidade e políticas urbanas. Dados,46(1), 39-74, 2003.MELO, M. A. B. C. Anatomia do fracasso: intermediação de interesses e reforma da po-lítica social na Nova República. Dados, 36(3), 119-164, 1993.MILANI, C. Les paradoxes du “príncipe partifipatif ” dans la gestions public locale. In:EEUWEN, D. Le Nouveau Brésil de Lula. France: De L’Aube, 2006.NUNES, E. A gramática política do Brasil. Clientelismo e insulamento burocrático. Rio deJaneiro: Jorge Zahar, 1997.OLIVEIRA, F. A economia brasileira. Crítica da razão dualista. Petrópolis: Vozes, 1988.PAOLI, M. Movimentos sociais no Brasil. Em busca de um estatuto político. In: HELL-MAN, M. Movimentos sociais e democracia no Brasil. Natal: Marco Zero, 1995.PEREIRA, C.; MUELLER, B. Comportamento estratégico em presidencialismo de coa-lizão. As relações entre Executivo e Legislativo na elaboração do orçamento brasileiro. Da-dos, 45(2), 22, 265-301, 2002.PIERSON, P. Increasing returns, path dependence and the study of politics. The Ameri-can Political Science Review, 94(2), 2000.ROLNIK, R.; NAKANO, K.; CYMBALISTA, R. Urban Land and Social Housing inBrazil: the issue of land. In: Participatory Master Plans. The Challenges of DemocraticManagement in Brazil: the right to the city. São Paulo: Instituto Pólis/Fundação Ford,2008.SADER, E. Quando novos personagens entram em cena. São Paulo: Paz e Terra, 1988.SANTOS JUNIOR, O. Cidade, cidadania e planejamento urbano. Desafios na pers-pectiva da reforma urbana. In: FELDMAN, S.; FERNANDES, A. (orgs.) O urbano eo regional no Brasil contemporâneo: mutações, tensões, desafios. Salvador: EDUFBA,2007.__________. Reforma urbana e gestão democrática. Um ano de funcionamento do Conselhodas Cidades. Rio de Janeiro: Relatório FASE, 2004.SANTOS JUNIOR, O.; RIBEIRO, L. Democracia e segregação urbana. Reflexões sobrea relação entre cidade e cidadania na sociedade brasileira. Revista Eure, 29(88), 79-95,2003.SIAFI. Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal, 2006. Dis-ponível em: https://consulta.tesouro.fazenda.gov.br.SILVA, P. Limites e obstáculos à reforma do Estado no Brasil. A experiência da previdênciasocial na Nova República. Campinas: Instituto de Economia da Unicamp, 2003.

R A Q U E L R O L N I K

49R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 50: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

SMOLKA, M. Informalidad, pobreza urbana y precios de la tierra. In: SMOLKA, M.;MULLAHY, P. (eds.) Perpectivas urbanas: temas críticos en políticas de suelo en AméricaLatina. Cambridge, MA: Land Lines, Lincoln Institute Of Land Policy, 2003.TELLES, V. Trajetórias urbanas. In: DAGNINO, E.; TATAGIBA, L. (orgs.) Democracia,sociedade civil e participação. Chapecó: Argos, 2007.

A B S T R A C T In Brazil the nineties represented years of institutional achievementsin the field of housing and urban rights, since the 1988 Constitution, which included theprinciples of social function of cities and properties, the recognition of tenure rights for slumdwellers and the direct participation of citizens in the decision making process of urbanpolicies. Those propositions have been the pillars of the Urban Reform agenda, which hadpenetrated into the national governments scope since the creation of the Ministry of Cities,under Lula’s administration. This article evaluates the limits and possibilities for theimplementation of this agenda through the analysis of two policies proposed by the Ministry:the National Council of the Cities and the Campaign for Participatory Master Plans. Theapproach is centered in the organization of Brazilian State in the sector of urban development,in its relationship with the political system and the features of the country’s democracy.

K E Y W O R D S Participatory planning; urban policy; democracy.

D E M O C R A C I A N O F I O D A N A V A L H A

50 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 51: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

A OUTORGA ONEROSA DO DIREITO DE CONSTRUIR

E O SOLO CRIADOUMA NECESSÁRIA AVALIAÇÃO DAS MATRIZES CONCEITUAIS

V E R A F. R E Z E N D EF E R N A N D A F U R T A D O

M . T E R E S A C . O L I V E I R AP E D R O J O R G E N S E N J R . *

R E S U M O Este artigo contempla uma avaliação sobre as matrizes conceituais queorientaram a construção da noção da Outorga Onerosa do Direito de Construir, instrumentodefinido no Estatuto da Cidade para integrar a política urbana municipal das cidades brasi-leiras. Este trabalho propõe uma análise do longo caminho percorrido desde os primeiros de-bates até a edição de sua versão atual no Estatuto da Cidade, entendendo esta avaliação comonecessária para uma melhor compreensão das potencialidades da outorga onerosa e das ques-tões que permeiam os atuais debates sobre sua implementação em diferentes municípios. Paratanto, o trabalho realiza uma sistematização do extenso material bibliográfico que aborda oinstrumento, assim como das questões pertinentes ao Solo Criado, conceito que lhe dá origem,percorrendo as décadas de 1970, 1980 e 1990.

P A L A V R A S - C H A V E Outorga onerosa do direito de construir; Solo Cria-do; Estatuto da Cidade; direito de construir; instrumentos de política urbana.

INTRODUÇÃO

Este artigo1 recupera o caminho da construção teórica da noção de Outorga Onerosado Direito de Construir (Outorga) e da discussão de sua possível prática, a partir da análi-se de material produzido sobre o tema ao longo das décadas de 1970, 1980 e 1990 e des-tacando as questões principais presentes ao longo dessas décadas. O material analisado con-templa artigos, livros, conclusões de seminários e o conjunto da legislação proposta ouaprovada sobre o tema. O objetivo desta avaliação das matrizes conceituais do instrumen-to é contribuir para uma melhor compreensão das potencialidades da Outorga e das ques-tões que permeiam os atuais debates sobre sua implementação pelos municípios brasileiros.

Embora a Outorga só apareça na normativa geral brasileira como instrumento depolítica urbana em 2001, através do Estatuto da Cidade, seus fundamentos remontam àdécada de 1970, e mesmo a sua aplicação se encontra prevista por municípios a partir doinício da década de 1990. O instrumento é inicialmente denominado Solo Criado, de-nominação que evolui já na década de 1990, quando de sua aplicação pelos municípios,para Outorga Onerosa do Direito de Construir, e que é consagrada pela Lei Federal10.257/2001.

Com o objetivo de reconstruirmos a evolução do conceito de Solo Criado e das ba-ses da Outorga, retornamos inicialmente às referências internacionais, exemplos de utili-

51R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

1 Este artigo é fruto de pes-quisa realizada pelos auto-res para o Lincoln Instituteof Land Policy.

* Colaboração de IsabelaBacellar.

Page 52: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

zação de instrumentos semelhantes ou que indiquem um maior controle sobre a terra ur-bana em outros países. Posteriormente, com base na literatura produzida sobre o instru-mento em questão, apresentamos a sua construção e contornos teóricos, as justificativas epotencialidades contempladas quando de sua proposição e os temas recorrentes que ali-mentaram os debates e discussões técnicas por quase três décadas, empreendidos por es-tudiosos das cidades, juristas, economistas, arquitetos e urbanistas. Alguns temas recor-rentes são: a criação de solos adicionais e sua relação com a densidade dos bairros, anecessidade de compensação da sobrecarga sobre a infraestrutura urbana, e a necessáriarecuperação por parte do poder público da valorização da terra resultante do processo deurbanização em termos gerais.

Outras questões se encontram imbricadas nas formulações da noção, em que se des-tacam: a constitucionalidade do Solo Criado ou Outorga, não só quanto à possibilidadede separação entre o direito de construir do direito de propriedade, mas também quantoà competência dos municípios para instituí-lo, e a adoção de um índice básico único e atéunitário para a aplicação do instrumento. Essas questões, entre outras, estão relatadas e re-lacionadas aos autores que compartilham determinadas posições, como veremos a seguir.

AS PRINCIPAIS REFERÊNCIAS INTERNACIONAIS

As primeiras experiências internacionais documentadas relacionadas com o SoloCriado revelam objetivos e contextos muito diversos e datam, em sua maioria, do inícioda década de 1970. Todas, no entanto, se não separam diretamente o direito de construirdo direito de propriedade, limitam e submetem o direito de construir ao interesse coleti-vo ou instituem a possibilidade de se transacionar ou transferir esse direito de um lote pa-ra outro através da transferência de direitos construtivos. Surgem como uma alternativaaos efeitos negativos da urbanização a partir da constatação das limitações de outros ins-trumentos, em especial o zoneamento, no encaminhamento de soluções para os proble-mas das cidades.

A preocupação com um mecanismo semelhante ao Solo Criado é expressa inicial-mente em 1971 na Itália, quando técnicos ligados à Comissão Econômica da Europa, dasNações Unidas, e especialistas em política de habitação, construção e planejamento urba-no defendem em documento a necessária separação entre o direito de propriedade e o di-reito de construir. Argumentam que esse “deve pertencer à coletividade e não pode ser ad-mitido senão por concessão ou autorização administrativa a particulares”.(MEMORANDO..., 1977, p.3)

Dentre as primeiras experiências internacionais, ganha destaque a experiência ame-ricana exemplificada no Plano para a cidade de Chicago2 (1973), que demonstra o uso dedois instrumentos: space adrift e zoning bonus. O primeiro (na tradução literal, espaço flu-tuante) como parte de uma política de preservação de imóveis, previa a transferência dopotencial construtivo de um lote (que acomodasse um edifício histórico) para outro ououtros, com o objetivo de se compensar o proprietário do imóvel que se pretendia preser-var quando da não utilização total do potencial construtivo permitido. (Costa & Santos,1977; Costonis,3 1974).

O segundo instrumento (numa tradução literal bônus de zoneamento) previa a pos-sibilidade de se permitir coeficientes de aproveitamento do solo maiores, e, portanto, maislucrativos para os empreendedores, exigindo-se em contrapartida o financiamento de uma

A O U T O R G A O N E R O S A D O D I R E I T O D E C O N S T R U I R

52 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

2 O Plano de Chicago pro-punha uma alteração naunidade de controle de de-senvolvimento, tradicional-mente fixado no lote indivi-dual, para o distrito comoum todo, possibilitando quelotes dentro de um mesmodistrito abrigassem densida-des diferentes (Costonis,1974).

3 John Costonis vem algu-mas vezes ao Brasil para di-vulgar a experiência do Pla-no de Chicago e discutir osconceitos do Solo Criado, aconvite do CEPAM.

Page 53: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

melhoria ou equipamento a critério do poder local (Costa & Santos, 1977). A crítica aeste instrumento é a de que, ao contrário da transferência de potencial, em que só existiauma redistribuição de densidades já aprovadas pelo zoneamento, os bônus injetavam au-mentos de densidade na comunidade que, se não fossem bem controlados, poderiam criardemandas por serviços públicos que a cidade não poderia atender.

A experiência francesa foi provavelmente a que mais influenciou as primeiras expe-riências brasileiras. Em 1975, uma nova política fundiária e de reforma urbana é formu-lada na França, visando aumentar a eficácia de controle do uso e ocupação do solo; redu-zir as desigualdades sociais decorrentes do zoneamento, que provoca a valorizaçãodiferenciada da terra; e aumentar a participação da coletividade no processo de planeja-mento através da redistribuição de responsabilidades entre o Estado e as Comunas (SÃO

PAULO. EMURB, 1977). Na experiência francesa, o direito de construir acima de uma densidade construtiva

básica só poderia ser obtido diretamente do Estado, havendo a possibilidade de transfe-rência do coeficiente de ocupação do solo nos casos de imóveis tombados ou a preservarou em áreas que justificassem a não urbanização. Define-se um teto legal de densidade(plafond légal de densité – PLD)4 estabelecido como único para todo o país, igual a umavez a área do terreno, com exceção de Paris, onde é fixado em uma vez e meia a área doterreno. Nos casos em que a legislação permita que esse limite seja ultrapassado, a edifi-cação que exceder o teto é subordinada a um depósito pelo beneficiário à prefeitura, cor-respondente ao valor do metro quadrado do terreno, na proporção da área em excesso.

Ao PLD são atribuídos os objetivos concretos de luta contra a segregação social, atra-vés da redução dos preços fundiários, redução da densidade das áreas centrais e aumentodos recursos locais. Esses dois últimos, contraditórios, segundo Granelle (1981), já quesem a promoção do adensamento não se poderia obter um aumento dos recursos. No ca-so francês, a intenção original, de dissociar o direito sobre o solo do direito sobre o espa-ço, não prevalece por razões constitucionais, adotando-se uma concepção fiscal.

Embora a sua análise inicial leve em conta um pequeno período de 5 anos, aindasegundo Granelle (1981), o PLD fez com que os incorporadores, em grande parte, se ade-quassem aos limites, optando por orientar as suas atividades para obras de recuperaçãode edificações em áreas centrais ou de novas construções na periferia. A consequência foia geração de um volume reduzido de recursos com a aplicação do instrumento.

Na França, na década de 1980, o PLD é objeto de várias emendas, o que acaba coma sua supressão na maioria dos municípios. Em 1992, no Seminário Solo Criado, rea-lizado no Rio de Janeiro, Granelle apresenta as modificações normativas5 que alterarama aplicação do instrumento e avalia os efeitos após 16 anos de sua instituição: “Um efei-to positivo é a tendência à redução dos preços da terra... e também a diminuição da diferença de preços centro-periferia. Talvez o único efeito perverso que se possa citar do PLD seja a retenção da terra pelos proprietários no primeiro período de aplicação dalei” (p.11).

Na Itália, o governo propõe, em 1975, uma lei que estabelece a separação do direi-to de construir do direito de propriedade. O direito de construir somente poderia serexercido mediante concessão da municipalidade ao proprietário da área, “o qual deve con-tribuir para as despesas necessárias com agenciamento e equipamento da área”, exigindo-se o pagamento de uma determinada quantia como compensação (Costa & Santos, 1977,p.92). As construções só poderiam ser realizadas de acordo com os objetivos traçados porPlanos Plurianuais de atuação urbanística, elaborados pelas grandes comunas, que tam-

V. F. R E Z E N D E , F. F U R TA D O , M . T. C . O L I V E I R A , P. J O R G E N S E N J R .

53R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

4 Instituído através da Lei75-1328 de 31/12/75 (“Co-de de l’Urbanisme”).

5 A Lei de 29/12/82 ofere-ce, sobretudo aos municí-pios com mais de 50.000habitantes, a possibilidadede aumentar o PLD até 2(1,5 até 3 em Paris). A Leide 18/07/1985 prevê queos Conselhos Municipais po-dem aumentar o PLD. Em23/12/86, nova lei reformafundamentalmente o PLD ao permitir sua revogaçãopelos municípios (Granelle,1992, p.6).

Page 54: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

bém determinariam os prazos para a urbanização das áreas (Costa & Santos, 1977; SÃO

PAULO. EMURB, 1977).A proposta transforma-se na Lei 10/77, que estabelece que a execução das obras

resultantes de atividade que envolva transformação edilícia e urbanística do solo fica su-bordinada à concessão da administração local (art. 1°). O direito de construir não mais seinsere como uma manifestação natural do direito de propriedade e passa a constituir umaconcessão do Estado.6

Na tramitação do projeto que resultou na lei surge, entretanto, a preocupação daconstitucionalidade dessa restrição ao direito de construir (Lira, 1981). As primeiras de-cisões da Corte Suprema italiana consideram inconstitucionais alguns dispositivos da no-va Lei, mas posteriormente decide-se sobre a sua constitucionalidade e o ordenamentoitaliano passa a reconhecer uma posição inicial de propriedade do solo correspondente aoterreno sem capacidade de edificar.7

Outros exemplos de experiências internacionais que, de alguma forma, submetiamo direito de construir à coletividade também são descritos na literatura. A Grã Bretanha,já em 1947, aprova um dispositivo legal que prevê que os proprietários que detivessemuma autorização para construir deveriam pagar ao Estado ou à coletividade uma somaigual à totalidade das mais-valias que suas terras sofreriam em consequência de obras pú-blicas. Este dispositivo é abandonado no pós-guerra por ser considerado um freio ao de-senvolvimento (Costa & Santos, 1977).

Na Espanha, para lidar com a escassez de terra urbanizada, a partir da década de1950 procura-se forçar o aproveitamento de terrenos em áreas urbanizadas (“edificaciónforzosa”) (Lira, 1983). Posteriormente, na década de 1970, a partir da Lei do Solo de1975, busca-se resgatar parte das mais-valias urbanísticas através da disposição gratuita detodo o solo correspondente às infraestruturas e aos equipamentos urbanos, pelo mecanis-mo de compensação em solo edificável (Costa & Santos, 1977).

Em meados da década de 1970, a Colômbia aprova uma lei que fixa, entre outrosdispositivos, a extensão vertical da propriedade do solo urbano. A ideia subjacente é deque o domínio do espaço aéreo pertence à sociedade, e a lei propõe uma limitação de al-tura inerente ao direito de propriedade, a partir da qual o volume de construção deveráser adquirido das autoridades locais. Em vez de se pensar em criação de solo, é propostauma limitação de altura, fazendo-se, assim, uso de uma dimensão física como elementobásico para a restrição.

Na década de 1970, como vemos, a questão fundiária, expressa principalmente pe-la escassez de terra urbanizada e pela necessidade de controle sobre o aproveitamento daterra, se encontra incluída entre as preocupações de diversos países. Como resultado, em1976, a Conferência das Nações Unidas sobre os Assentamentos Humanos “Habitat”,realizada em Vancouver no Canadá, contempla entre as suas conclusões o princípio geral(n°10): “A terra é um dos elementos fundamentais dos assentamentos humanos. Todo Es-tado tem direito a tomar as medidas necessárias para manter sob fiscalização pública ouso, a propriedade, a disposição e a reserva de terras. Todo Estado tem direito a planejare administrar a utilização do solo, que é um de seus recursos mais importantes, de manei-ra que o crescimento dos centros populacionais tanto urbanos como rurais se baseiemnum plano amplo de utilização do solo” (MEMORANDO..., 1977, p.4).

Reflexos da experiência internacional e como são tratadas as questões que funda-mentam, especialmente, o Solo Criado ou outros instrumentos de controle da terra urba-na, podem ser observados na literatura brasileira produzida no Brasil nas décadas de 1970,

A O U T O R G A O N E R O S A D O D I R E I T O D E C O N S T R U I R

54 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

6 Permanece, contudo, pa-ra uso do proprietário, umadensidade residual de 3% daárea do terreno. Sobre o as-sunto, ver Renard (1993).

7 Esse princípio afirma-se,também, para fins de desa-propriação de um terreno,quando é considerado o va-lor agrícola, ou seja, o valordescolado da possibilidadede aproveitamento do terre-no para fins urbanos (Lira,1981).

Page 55: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

1980 e 1990, destacando-se trabalhos de Azevedo Netto (1977a), Costa & Santos (1977),Lira (1983, 1991), E. Azevedo & Mazzei de Alencar (1993), e do próprio Granelle, quepor duas ocasiões (1981, 1992a e 1992b), em artigos publicados ou divulgados no Bra-sil, apresenta e avalia a aplicação do PLD na França.

As experiências estrangeiras certamente influenciaram o curso do debate no Brasilsobre o Solo Criado e suas variantes. No entanto, Azevedo Netto (1977a) refuta a críticade que o conceito seja importado, afirmando que o Solo Criado é um “conceito pura-mente brasileiro, nosso, paulista. Não foi importado, ninguém o encontrará em nenhumdocumento técnico, em nenhuma legislação do mundo todo” (p.44).

A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO E A DISCUSSÃONO BRASIL, UMA REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

Ao analisarmos a produção sobre o tema, sob a forma de artigos, propostas de leisou conclusões de seminários, percebemos uma distinção entre aqueles realizados nas dé-cadas de 1970 e 1980 e os produzidos na década de 1990. Os primeiros buscam princi-palmente justificar o instrumento, conceituá-lo e dirimir dúvidas quanto à sua constitu-cionalidade e à necessidade ou não de se considerar destacável o direito de construir dodireito de propriedade para a sua aplicação. Os textos produzidos na década de 1990, apósa Constituição de 1988, coincidem ou são imediatamente posteriores à previsão do ins-trumento em alguns planos diretores municipais. Com a tarefa de conceituação da Ou-torga já efetuada, esses textos enfocam principalmente seus possíveis efeitos e procedi-mentos para a sua aplicação.

A maioria dos trabalhos nas décadas de 1970 e 1980 toma como ponto de partida areflexão sobre o processo de adensamento e verticalização das cidades e a evidente impos-sibilidade de inclusão dos grupos de diversos níveis de renda na oferta de seus bens, en-tre eles a moradia e a infraestrutura viária e de saneamento, a partir de instrumentos tra-dicionais de regulação urbana.

No elenco das justificativas para o instrumento, há uma concordância com diferen-tes nuances entre diversos autores. Num primeiro conjunto de argumentos, é apontada avalorização diferenciada da terra que beneficia proprietários, resultante em grande partede normas de uso e ocupação e de investimentos públicos, justificando mecanismos querecuperem essa valorização para o poder público. Estabelecer uma maior justiça socialentre proprietários, já que todos teriam o mesmo direito de construir, aparece como umdos objetivos. Nessa vertente estão os trabalhos e afirmações de Moreira Lima, AzevedoNetto, Ambrosis & Nogueira Filho (1975), Azevedo Netto, Moreira Lima, Ambrosis &Nogueira Filho (1977), novamente Azevedo Netto (1977a), Eurico Azevedo (entrevistaapud Brasileiro, 1977) e Hori (1977).

Na década de 1990, E. Azevedo & Mazzei de Alencar (1993) destacam para o ins-trumento a função de equidade social, assegurando igualdade de direitos de construir.Silva & Saule Jr. (1993) invocam a questão da justiça social, atribuindo ao instrumentoum caráter redistributivo de rendas fundiárias, ao propor a distribuição, com equidade,dos custos e benefícios dos investimentos públicos. Ribeiro & Cardoso (1991) justificam,além de sua potencialidade como gerador de recursos que, de forma compensatória,financiariam programas habitacionais e de urbanização de áreas populares, a função de di-minuir a escassez social de terra urbanizada.

V. F. R E Z E N D E , F. F U R TA D O , M . T. C . O L I V E I R A , P. J O R G E N S E N J R .

55R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 56: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

A necessária subordinação do poder econômico ao interesse geral está expressa emSeabra Fagundes (1977), Fortuna (entrevista apud Brasileiro, 1977) e Moreira (1977).Hori (1977) o justifica também para compatibilizar o direito de propriedade com afunção social da propriedade. Destacam-se, ainda, a verticalização e o adensamento dascidades, com resultados nefastos para a qualidade de vida e para a saturação dos serviçospúblicos e das áreas livres e públicas. O Solo Criado se colocaria nessas situações pararestaurar o reequilíbrio urbano, principalmente entre bens e serviços públicos por umlado e demanda, por outro, consequentes do processo de adensamento. Encontram-senessa linha os trabalhos e manifestações de Azevedo Netto e outros (1977), Mange(1977), Hori (1977), Contador (1977), Lira (1981, 1983), E. Azevedo (entrevista apudBrasileiro, 1977).

A justificativa para o Solo Criado baseada no que já é praticado em relação aos par-celamentos é afirmada por Azevedo Netto e outros (1977), Contador (1977), Hori(1977) e Silva Cordeiro (1977). Fortuna (entrevista apud Brasileiro, 1977, p.90), tambémafirma: “Do mesmo modo que o poder público exige normalmente dos loteadores areserva de áreas para circulação e instalação de equipamentos, deve exigir do criador desolos superpostos a contrapartida para fazer face ao esforço do mesmo poder público nosentido de manter ou aumentar a qualidade de vida já existente.”

Também nessa linha está Campos Filho (1977), adicionando, ainda, ao instrumen-to a função de uniformização dos preços do solo urbano em áreas legais e de redireciona-mento de parte da poupança nacional. Junto com o IPTU progressivo, o instrumento traz,a seu ver, maior estabilidade e segurança para o mercado imobiliário. Ferraz (entrevistaapud Brasileiro, 1977), dentro dessa vertente, divisa no instrumento um papel reguladordo mercado imobiliário.

Uma outra vertente de justificativas, ligada à anterior, enfoca diretamente a questãoda carência de recursos públicos para atuar no processo de urbanização. Nessa linha en-contra-se a tese proposta em 1976,8 com significativo impacto nos meios políticos e em-presariais, pelo prefeito de São Paulo, Olavo Setúbal, no XX Congresso Estadual de Mu-nicípios, no Guarujá.

A FORMULAÇÃO E A EVOLUÇÃO DO CONCEITO

A revisão bibliográfica nos mostra que, apesar das variações nas afirmações de natu-reza jurídica ou urbanística, existe uma relativa homogeneidade na formulação inicial doconceito, desde a sua primeira definição, e em sua evolução: “De um ponto de vista pu-ramente técnico, toda vez que uma construção proporcionar uma área utilizável maior doque a área do terreno, haverá criação do solo. De um ponto de vista prático, poderá serconsiderado como solo criado, a área construída que exceder uma certa proporção de áreado terreno. Baseado neste conceito de solo criado podemos propor três novos instrumen-tos extremamente importantes para controle do uso do solo, a saber: coeficiente de apro-veitamento único; transferência de direitos de construir; proporcionalidade entre áreasconstruídas e áreas de uso público” (Azevedo Netto et al., 1977, p.9-10).

Na mesma direção de entendimento, quanto à relação entre Solo Criado e transfe-rência de direitos de construir, encontra-se Grego (1981), que define a noção corrente desolo criado como: “uma figura jurídica mediante a qual limita-se a dimensão permitidade construção a um percentual da área do terreno, estabelecendo-se que a edificação aci-ma do parâmetro somente será permitida desde que se dê a aquisição do respectivo direi-

A O U T O R G A O N E R O S A D O D I R E I T O D E C O N S T R U I R

56 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

8 Trata-se do trabalho deno-minado “Uma política parautilização do solo urbano”,de 1976, reproduzido na CJArquitetura, 1977.

Page 57: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

to de construir que seria alienado ao interessado por outro particular ou pelo Poder Pú-blico (na parte relativa a suas praças e áreas verdes)” (p.1).

A noção do coeficiente único também se difunde: “Em sentido genérico, pode-se de-finir solo criado como a criação de áreas adicionais de piso utilizável não apoiadas direta-mente sobre o solo. É a criação de piso artificial. A ideia do solo criado pressupõe a ado-ção de um coeficiente único de aproveitamento do solo. É partindo-se dessa ideia que sepode chegar a uma concepção de solo criado stricto sensu, quando se terá que solo criadoé o excesso de construção (piso utilizável) superior ao limite estabelecido em função docoeficiente único de aproveitamento” (Lira, 1983, p.6).

Dallari (in Seminário IDEPE, 1987) reforça esta noção, e remete a criação de solo aoconceito de outorga: “A ideia do solo criado – todo mundo conhece – se baseia funda-mentalmente no estabelecimento de um potencial de edificação uniforme. Estabelecidoesse potencial de edificação, que pode ser uma vez a área do terreno, o que passasse dissoseria solo criado, ou seja, cada vez que se construísse, por exemplo, um andar, haveria cria-ção de solo; havendo criação de solo, haveria necessidade de uma outorga do Poder Pú-blico, haveria possibilidade de cobrança por parte do Poder Público” (p.140).

Após a promulgação da Constituição Federal em 1988, o discurso sobre o instru-mento passa a enfatizar a questão da recuperação para a coletividade dos benefícios quepropicia para os fins de financiamento de infraestrutura e serviços públicos. A ideia podeser encontrada em diversos autores, como em Ribeiro & Cardoso (1991): “Trata-se de ummecanismo que permite a repartição entre proprietários da terra, incorporadores e poderpúblico, dos benefícios privados do processo de urbanização criado pela iniciativa priva-da, mas que se funda no investimento que o conjunto da sociedade realiza na forma daimplantação dos equipamentos e da infraestrutura urbana. Ou seja, trata-se da apropria-ção, pela autoridade municipal, de parte da valorização fundiária e imobiliária” (p.55).

A abordagem jurídica e a urbanística se fundem à ideia da geração de recursos pú-blicos: “O solo criado é figura jurídica de natureza urbanística, mas que pode ser extre-mamente eficaz como meio de obtenção de recursos para obras e serviços públicos. A fi-gura jurídica do solo criado representa a admissibilidade da dissociação do direito deconstruir do direito de propriedade, embora limitada a determinadas situações de interes-se urbanístico” (E. Azevedo & Mazzei de Alencar, 1993, p.7).

Este conjunto de ideias passa também a ser mais diretamente associado à outorgaonerosa: “Permite que um proprietário construa acima de um índice de aproveitamentodo terreno de sua propriedade. Neste caso, o Poder Público exige uma contrapartida emtermos financeiros tendo em vista os benefícios que este proprietário irá auferir da infra-estrutura realizada pelo Poder Público. Ao estabelecer a diferenciação e os limites entreo direito de propriedade do solo e o direito de construir, os benefícios dos investimen-tos públicos em infraestrutura passam a ser cobrados pelo Poder Público que os recuperapara a coletividade, reinvestindo-os em equipamentos e serviços públicos. Esta outorgaonerosa do direito de construir é também chamada de solo criado” (Silva & Saule Jr.,1993, p.27).

O DEBATE JURÍDICO: CONSTITUCIONALIDADE, NATUREZA E COMPETÊNCIA

Surgem, das formulações acima, questões que se tornam pontos essenciais na discus-são. Destacam-se, entre elas, as que envolvem explorações na doutrina jurídica, que justi-fiquem a separação ao menos parcial entre os direitos de propriedade e de construção, à

V. F. R E Z E N D E , F. F U R TA D O , M . T. C . O L I V E I R A , P. J O R G E N S E N J R .

57R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 58: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

luz da Constituição então vigente. A discussão sobre a constitucionalidade do instrumen-to pode ser encontrada em Grego (1981), que adota uma visão conjunta do interesse indi-vidual e do social na delimitação dos direitos de propriedade. A cláusula da “função social”permitiria formas de controle da ação do responsável pela utilização do bem. Acima de de-terminado patamar, a decisão quanto ao uso do bem decorreria de uma co-decisão de queparticipariam poder público e proprietário, figura que pode ser estendida ao Solo Criado.

A possibilidade de separação do direito de construir do direito de propriedade, semalteração do quadro constitucional vigente anterior à Constituição de 1988, é vista co-mo possível por S. Ferraz & E. Azevedo (apud Brasileiro, 1977), ressaltando este últimoa condição de que não seja esvaziado o seu valor econômico, ou seja, desde que assegu-rado um mínimo desse valor. Segundo Lira (1981), em imóveis localizados em área ur-bana onde a possibilidade de construir constitui a essência econômica da propriedade, asimples autonomia do direito de construir, distinto do domínio e entregue ao Estado,conflitaria com a garantia constitucional da propriedade. A instituição do Solo Criado,segundo ele, no direito brasileiro, permite que se chegue a esse resultado sem criar pro-blemas de inconstitucionalidade.

Seabra Fagundes (1977), contudo, não se alinha entre os que consideram a auto-nomia do direito de construir, ou seja, a possibilidade deste existir distintamente dodireito de propriedade. Para o autor, “em se tratando de imóvel localizado em área ur-bana, é na possibilidade de construir, via de regra, que está a essência econômica da pro-priedade” (p.58).

J. A. Silva (1981, p.313) também afirma que o instrumento não promove a separa-ção do direito de propriedade do direito de construir, contudo percebe a ideia do SoloCriado como justificativa para a compensação de proprietários que não atinjam o índiceúnico. Em suas palavras: “O conceito de solo criado, nos termos postos acima, não im-porta na separação da faculdade de construir do direito de propriedade do terreno. Aocontrário, reafirma-o na medida em que transforma em direito subjetivo a faculdade de construir até o limite do coeficiente único estabelecido. Tanto assim que, se a legisla-ção de uso e ocupação do solo determinar para alguma zona ou área coeficiente menor,os proprietários terão direito a uma compensação pela limitação estabelecida em desigual-dade com os demais proprietários”.

Cabe aqui registrar o debate realizado no Seminário IDEPE (1987). Neste encontroJ. C. Figueiredo Ferraz, ex-prefeito de São Paulo, sugere outros instrumentos e afirma:“[O solo criado] É um instrumento inadequado, um instrumento prematuro, porque háoutros meios de se arrecadar do que estar invadindo em conceitos clássicos e já consoli-dados pela sociedade brasileira, do que vem a ser um bem social. ... No momento que ex-traio do indivíduo a capacidade de construir e tem que pagar se quiser transacionar como governo, trocar etc., isso significa que lhe foi subtraído um direito. Isto é, na verdade,uma expropriação, nem é uma desapropriação” (p.146).

Nessa ocasião, a comparação do Solo Criado com as obrigações impostas aos parce-lamentos e a sua consequente constitucionalidade é lembrada por Campos Filho. Ao dis-cordar de Figueiredo Ferraz, afirma que “é o mesmo instituto do loteamento, só que é lo-teamento do espaço aéreo” (Idem, p.157).

Após a Constituição de 1988, no momento de elaboração do Plano Diretor do Mu-nicípio de São Paulo, Grau (1990a, p.9) afirma que não há no regime constitucional au-tonomia do direito de construir dissociado do direito de propriedade. Acresce, entretan-to, que o exercício do direito de construir poderá ser definido em lei municipal. Quanto

A O U T O R G A O N E R O S A D O D I R E I T O D E C O N S T R U I R

58 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 59: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

à competência para instituir o Solo Criado, Grau entende que o município tem compe-tência tanto para instituí-lo como para instituir a transferência do direito de construir.

Também na década de 1990, E. Azevedo & Mazzei de Alencar (1993, p.3), obser-vam que: “É possível afirmar, portanto, em face dos princípios constitucionais vigentes noBrasil, que o direito de construir pode ser dissociado do direito de propriedade, desde quetal providência tenha por objetivo o uso adequado do imóvel urbano de acordo com suafunção no ordenamento da cidade e desde que essa providência não esvazie por comple-to o valor econômico da propriedade. Essa condução pode ser perfeitamente alcançadapela aplicação do solo criado”.

Outros aspectos da construção do instrumento, que acionam à época debates jurí-dicos, dizem respeito à natureza do instrumento, se tributário ou não, e à competênciamunicipal para instituí-lo na ausência de normativa federal.

O debate sobre a natureza do instrumento atravessou as décadas de 1970 e 1980.E. Azevedo (apud Brasileiro, 1977) apontava que no projeto do Conselho Nacional dePolítica Urbana – CNPU (1977), o Solo Criado se apresentava como uma licença espe-cial remunerada, aproximando-se de um tributo, enquanto na proposta do Centro deEstudos e Pesquisas de Administração Municipal da Fundação Prefeito Faria Lima –CEPAM, esse aparecia como uma compensação, à semelhança do que ocorre nos lotea-mentos, afastando-se das características de um tributo.

Greco Filho (1977) argumentava que a restrição do direito de construir a uma vez aárea do terreno era admissível e tradicional, até no Direito brasileiro, que, inclusive, ad-mitia restrição maior. Para o autor, contudo, a instituição de um valor a ser pago à pre-feitura ou ao Estado que correspondesse à efetiva transferência de direito de construir te-ria a configuração de tributo, insustentável diante da sistemática constitucional tributáriavigente. Nessa afirmação o autor menciona especialmente a modalidade Solo Criado co-mo transferência do direito de construir e não o Solo Criado como Outorga Onerosa doDireito de Construir.

O tratamento tributário como forma de instituição do instrumento era, ainda, con-siderado por G. Ataliba no próprio Seminário CEPAM em 1976 (apud Jansen, 1978), etambém por Seabra Fagundes (1977) e Jansen (1978), enfocando este último autor so-mente o caso em que a compensação se desse por equivalente econômico (monetário).A compensação por doação de áreas vazias (de terreno) não apresentaria, a seu ver, ca-racterísticas tributárias.

Ferraz (apud Brasileiro, 1977), ainda, não reconhecia a natureza tributária do instru-mento, tratando-o como simples ampliação do poder de polícia em matéria de edifica-ções. A par disso, pode-se verificar a utilização tácita do termo tributo, sem a consequen-te discussão da natureza do instrumento, como é o caso do documento de trabalho doCEPAM (1982b).

Cabe destacar, também, o entendimento exposto por Gandra Martins (1981), se-gundo o qual, o Solo Criado teria coloração tributária nítida,9 sendo uma forma de tri-butação penal, “que visa desincentivar as construções, além de um determinado limiteou, em permitindo, impor elevado ônus, viabilizando acréscimo de receita aos cofresmunicipais” (p. 62).

A questão sobre a natureza do instrumento está presente para vários autores até o iní-cio da década de 1990, quando por ocasião da elaboração do Plano Diretor do Municípiode São Paulo, e também o do Rio de Janeiro, torna-se inadiável o aclaramento da questão.É desse período a manifestação de Grau (1990b, p.13), que orienta a aplicação do instru-

V. F. R E Z E N D E , F. F U R TA D O , M . T. C . O L I V E I R A , P. J O R G E N S E N J R .

59R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

9 Segundo Gandra Martins,“qualquer exigência paraque se permita a constru-ção além de certos limitesganharia, pela definição doart. 3º do Código TributárioNacional, coloração nítida einequívoca de tributação”(1981, p.62)

Page 60: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

mento nos planos diretores: “Trata-se indubitavelmente, no caso, de um ônus, vínculo im-posto à vontade do proprietário do imóvel como condição para a satisfação do seu própriointeresse e cujo descumprimento não importa a aplicação de sanção jurídica, mas tão so-mente efeitos econômicos negativos. Não há, pois, como confundir a obtenção da outor-ga onerosa de que se cuida com qualquer figura a que corresponda obrigação tributária”.

É, também, importante registrar aqui as discussões a respeito da competência muni-cipal, na ausência de uma legislação federal que lhe desse apoio, questão ultrapassada atra-vés da regulamentação da Outorga pelo Estatuto da Cidade. E. Azevedo & Ferraz (apudBrasileiro, 1977) se manifestam favoravelmente quanto à possibilidade de adoção do So-lo Criado sem suporte de legislação federal. E. Azevedo impõe como condição, para quepossa ser aplicado pelos municípios, que seja instituído nos mesmos moldes das exigên-cias feitas aos loteadores, através de compensações com áreas livres correspondentes àsáreas de Solo Criado. Por outro lado, Seabra Fagundes (1977), embora, reconhecendo que a regulação do direito de construir é da órbita municipal, entende que caberia àUnião regular ou pelo menos permitir a utilização do Solo Criado. Já para Greco Filho(1977), a definição do coeficiente básico e unitário (um) como atributo da propriedadelhe parece matéria de Direito Civil e, portanto, de competência legislativa da União.

O ÍNDICE BÁSICO ÚNICO E, ATÉ, UNITÁRIO

Nas formulações apresentadas, destaca-se, ainda, a questão da construção do concei-to de Solo Criado apoiado na adoção de um índice básico e único. A necessidade de suafixação apresenta uma quase total unanimidade nos textos analisados, não se consideran-do a possibilidade de coexistirem índices básicos diferenciados numa mesma cidade, co-mo a forma adotada posteriormente pelo Estatuto da Cidade. Nesse caso, estão os traba-lhos e entrevistas de Azevedo Netto e outros (1977), em que o coeficiente único poderiaser local, regional ou até valer para todo o país, Hori (1977), Mange (1977), E. Azevedo& Fortuna (entrevistas em Brasileiro, 1977), Jansen (1978) e Lira (1981,1986). A pro-posta do prefeito Setúbal (1976) também adota essa posição, como já consta, em 1976,da Carta de Embu, em sua primeira conclusão: “1. É constitucional a fixação, pelo Mu-nicípio, de um coeficiente único de edificação para todos os terrenos urbanos. 1.1. A fi-xação desse coeficiente não interfere com a competência municipal para estabelecer índi-ces diversos de utilização dos terrenos, tal como já se faz, mediante legislação dezoneamento. 1.2. Toda edificação acima do coeficiente único é considerada solo criado,quer envolva ocupação de espaço aéreo, quer a de subsolo”.

A justificativa é apresentada de forma clara por Hori (1977, p.63): “O conceito desolo criado parte da idéia fundamental de que o direito de ocupar uma área urbana comconstrução deve ser igual para todos, incorporando-se ao direito de propriedade. Quer di-zer: do ponto de vista jurídico, admite-se como inerente ao direito de propriedade um di-reito de construção igual para todos, que pode ser denominado coeficiente de aproveita-mento único”.

É, também, Jansen, que se propõe a avaliar as versões existentes (1978, p.85): “Ana-lisando as diversas versões do solo criado constatamos que todas coincidem quanto à ne-cessidade de adoção de um coeficiente único de aproveitamento do lote do terreno, comocondição prévia indispensável ao surgimento do adicional de solo. Divergem as sugestõesno que tange aos encargos a serem impostos ao proprietário que quiser edificar acima des-se coeficiente, e quanto à finalidade do conceito”.

A O U T O R G A O N E R O S A D O D I R E I T O D E C O N S T R U I R

60 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 61: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

O documento de trabalho do CEPAM (1982b), contudo, é o único analisado em queencontramos a possibilidade de índices básicos diferenciados como alternativa ao índiceúnico. Esse trabalho considera, ainda, a possibilidade de uma compensação para os pro-prietários que não atingissem o teto de densidade ou índice básico.

A adoção de um coeficiente básico único e, além disso, igual a um, é justificada naformulação do instrumento. Azevedo Netto (1977a, p.50) explica: “Esse valor foi, entrenós, quase por consenso admitido como igual a um (1). Intuitivamente seria a possibili-dade de cobrir toda a extensão de um terreno; ou deixando-se recuos ou espaços para ilu-minação e ventilação, a construção poderia ter dois pavimentos conservando a mesma ex-tensão da área construída”.

O anteprojeto do CNPU, divulgado em 1977, afirma: “Art. 50. O proprietário temo direito de construir em seu terreno área equivalente à do lote. § 1.° No solo urbano emque houver conveniência de aumento populacional, lei municipal de uso e ocupação dosolo poderá permitir construção de área excedente à prevista neste artigo, mediante licen-ça da prefeitura. § 2.º A licença especial prevista neste artigo será sempre remunerada”.

Abaixo desse valor igual a um, não se configuraria o Solo Criado, entendimento queatenderia não só à garantia do não esvaziamento econômico da propriedade, assim comoao objetivo urbanístico de garantia de qualidade de vida e de aproveitamento racional dainfraestrutura urbana. Acima desse coeficiente, a criação de solos interferiria com o inte-resse da comunidade. Nessa linha estão os trabalhos de Hori (1977), Mange (1977), Con-tador (1977). E, também, a proposta apresentada por Setúbal (1976), o Plano de Desen-volvimento Integrado do Município de São Bernardo transformado em lei (1977) e aproposta para um projeto de lei para o município de São Paulo (1977), não encaminha-da à Câmara Municipal.

Para Greco Filho (1977, p.100) o índice básico igual a um está atrelado à possibi-lidade de construir, ao equilíbrio urbano e à transferência de potencial construtivo, ou seja,“quem quiser criar solo, construir acima da metragem quadrada de seu lote, deve adquirirde outrem esse direito, mediante transferência onerosa ou gratuita, de modo que, se a umterreno se incorpora ou se soma o direito de construir a mais, de outro esse direito é reti-rado, para que, afinal, a área de superfície urbana seja sempre igual à área construída”.

A respeito da variação do conteúdo econômico dos terrenos urbanos em função daaplicação de diferentes índices construtivos, assim se manifesta Silva (1981, p.311): “Poisbem, a fixação do coeficiente único iguala essa equação econômica. Esse coeficiente úni-co pode ser qualquer um, mas o mais lógico e razoável consiste no coeficiente de aprovei-tamento correspondente a 1 (um), o que equivale a reconhecer a todo proprietário de ter-reno o direito de erguer nele uma construção correspondente, em metros quadrados, atantos metros quadrados quantos ele tiver, ou seja, cada metro quadrado do terreno lhedará o direito de construir um metro quadrado de edificação, coeficiente esse que pode-rá previstos para a zona”.

OUTRAS QUESTÕES RELACIONADAS COM A APLICAÇÃO DO INSTRUMENTO

Um ponto de debate é o da forma de compensação. Cabe registrar, aqui, a manifes-tação de Seabra Fagundes (1977), opondo-se à troca por pecúnia de áreas proporcionais àsáreas criadas por construção, ou seja, de Solo Criado. A possibilidade de compensação emequivalente econômico é, contudo, considerada na Carta de Embu (1976), e também porMange (1977), Grego (1981) e Contador (1977), que defende o equivalente econômico

V. F. R E Z E N D E , F. F U R TA D O , M . T. C . O L I V E I R A , P. J O R G E N S E N J R .

61R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 62: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

pela inexistência de terrenos na mesma zona da construção ou pelo risco de aceitação deterrenos impróprios. Lira (1986), por outro lado, anos mais tarde, contempla o instrumen-to com duas versões: uma urbanística em que o criador de solo compensa a coletividadecom a cessão de espaço em favor do grupo, e outra financeira, que pode ser tolerada, emque o criador de solo reverte à municipalidade uma certa importância em dinheiro.

Autores se debruçam também sobre o processo de implementação do instrumento.A aplicação progressiva e contínua que atinja a plenitude em 5 anos é defendida porMange (1977). Smolka (1991) propõe o estabelecimento de um período de transição, naforma de moratória com prazo definido para terrenos adquiridos recentemente por edifi-cadores e incorporadores, o que facilitaria a aceitação da proposta.

As consequências do Solo Criado no mercado imobiliário fazem parte da discussãode sua construção e irão permear o debate até a década de 1990. Contudo, há uma ex-pressiva concordância sobre as consequências do Solo Criado na queda dos preços dos ter-renos já nas décadas de 1970 e 1980. Essa visão é compartilhada, entre muitos outros, porE. Azevedo (entrevista apud Brasileiro, 1977) e por Mange (1977).

Apesar de admitir uma certa elasticidade no comportamento do mercado, esse últimoautor afirma que, se ficava impossível que os preços dos terrenos baixassem, pelo menosnão subiriam. O repasse do valor do Solo Criado para o preço final das unidades, argu-mento muitas vezes levantado por profissionais do mercado imobiliário, não é considera-do possível, a não ser em casos excepcionais de imóveis para os grupos de mais alta renda.

Segundo Campos Filho (1977), o custo do Solo Criado deverá ser absorvido poruma pequena redução da excessiva valorização dos terrenos urbanos e não pelo consumi-dor final da unidade imobiliária (apartamento ou escritório). Mas, para o CEPAM (1982a),a transferência do custo do Solo Criado para o proprietário do terreno ou para o consu-midor final dependeria das condições do mercado de terras e de imóveis construídos.

Há nesse aspecto uma quase unanimidade entre os estudiosos sobre as consequênciasdo Solo Criado sobre o valor da terra, no longo prazo, salvo opiniões enviesadas pelos in-teresses de classe. Germanos (1977), refletindo a visão das empresas construtoras, vê oinstrumento como mais um tributo a incidir sobre o custo final das unidades, com efeitosno espraiamento das cidades e aumentando os custos do poder público com infraestrutu-ra. Gomes de Almeida (entrevista apud Brasileiro, 1977), também alerta para a baixa pro-dutividade fiscal do instrumento e para os seus efeitos sobre o preço final das unidades.

Após a Constituição de 1988, quando da elaboração e aprovação de planos direto-res municipais, retoma-se o tema do Solo Criado e suas consequências. Da mesma formaque na discussão sobre a natureza do instrumento, há uma reflexão quanto aos efeitos doSolo Criado sobre o preço dos terrenos. Nessa linha se destacam os trabalhos de Smolka(1991) e Ribeiro & Cardoso (1991):

Smolka (1991, p.3) afirma que “salvo em situações excepcionais de controle monopó-lico ou monopsônico do mercado de terras, o proprietário é, por assim dizer, inteiramente

passivo na determinação do preço do terreno – vale dizer, ele é “price-taker” conforme con-vencionado na teoria econômica. O preço do terreno é determinado essencialmente pela

concorrência (condição típica deste mercado) entre aqueles que disputam pelo uso do solo.

E, continua: “qualquer tentativa do proprietário em repassar ao usuário o ônus deuma taxa sobre o valor do terreno, será inteiramente frustrada pelo mercado, conquanto asdiferenças entre os terrenos não se alterem” (ibid). Conclui, afirmando que as inquietações

A O U T O R G A O N E R O S A D O D I R E I T O D E C O N S T R U I R

62 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 63: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

dos incorporadores e construtores em geral são, em princípio, infundadas e devem ser atri-buídas ao fato de que individualmente eles detêm parte significativa de seu capital imobi-lizado em terrenos ou a uma percepção equivocada de como opera o mercado imobiliário.

Para Ribeiro & Cardoso (1991, p.54-5): “seu efeito mais geral e mais a longo prazoé a diminuição do preço da terra, pelo aumento da oferta de solo urbanizado, a curto pra-zo, porque não alterará a rentabilidade da construção, pois o peso do pagamento do di-reito de construir não recairá sobre o lucro da construção”.

Outros efeitos da adoção do Solo Criado também levantados dizem respeito a umvirtual congelamento das áreas centrais mais valorizadas e ao direcionamento da constru-ção para as zonas mais periféricas, onde o preço da terra é menor e predomina a cons-trução de edifícios com projetos que criem pouco solo. Nesta linha, na década de 1990,estão os trabalhos de Ribeiro & Cardoso (1991) e outros, acompanhando o de Granelle(1992a) a respeito da França.

Quanto aos efeitos do instrumento para as camadas de mais baixa renda, assim semanifestam os estudiosos da cidade, sejam eles arquitetos, juristas ou sociólogos:

A importância do instrumento para as camadas de mais baixa renda advém da possibi-lidade de o poder público obter maior área livre, que seria destinada ao lazer da população.Ou, então, a possibilidade de o poder público obter maiores recursos financeiros, que pode-riam ser carreados para obras de infra-estrutura, em geral necessárias nos bairros periféricosocupados por essa população. (E. Azevedo, entrevista apud Brasileiro, 1977, p.94.)

O solo criado pode criar condições para que camadas de mais baixa renda tenham pos-sibilidades de conseguir morar em áreas inseridas no tecido urbano e não tão-somente emáreas periféricas sem nenhum equipamento. O solo criado não é uma panacéia universal,mas, caso a carência habitacional (no sentido completo da palavra habitação) seja a mais im-portante ou de atendimento prioritário, o poder público – obtendo através do citado instru-mento recursos vinculados a um fundo de reserva de áreas de habitação de interesse social –poderia comprar terrenos em locais dotados de serviços de infra-estrutura. (Mera, entrevista

apud Brasileiro, 1977, p.94.)

A instituição do solo criado carreará para o poder público terras ou recursos a serem

aplicados em obras ou serviços ou na aquisição de terras, certamente a preços mais baixos,com o que poderá o poder público incentivar a implantação de habitação para as classes me-nos favorecidas. (Fortuna, entrevista apud Brasileiro, 1977, p.94.)

Entretanto, Azevedo Netto, já em 1977, alerta para a crença excessiva nas possibi-lidades do Solo Criado para a solução de problemas sociais, inclusive a falta de moradias:“o solo criado não é uma panacéia para curar todos os males da cidade, ou mesmo da nos-sa sociedade. Muitas vezes ao se discutir o solo criado ele é visto como solução para o pro-blema de distribuição de riquezas ou para o problema da habitação das classes de menorrenda. É preciso deixar claro que o conceito do solo criado não foi feito para isso, nem vairesolver todos os problemas urbanos. Vai resolver alguns, apenas alguns, mas muito impor-tantes. Não dispensa o planejamento; pelo contrário, exige um bom planejamento” (p.54).

Na década de 1990, Smolka (1991, p.10) adverte que o processo de implantação doSolo Criado “não é neutro em relação ao seu sucesso. Os ganhos e perdas devem ser cla-ramente expostos e negociados de modo a reduzir, ao mínimo, eventuais expectativas alar-mistas e de modo a evidenciar e/ou deixar transparecer possíveis atitudes anti-sociais dos

V. F. R E Z E N D E , F. F U R TA D O , M . T. C . O L I V E I R A , P. J O R G E N S E N J R .

63R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 64: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

agentes. O compromisso de utilizar, de imediato, boa parte dos recursos arrecadados como solo criado, na contratação de novos empreendimentos habitacionais, para a populaçãode baixa renda, pode ser um argumento valioso nesta negociação do próprio instrumento”.

O CAMINHO EM DIREÇÃO AO ESTATUTO DA CIDADE

No Brasil, as discussões sobre a necessidade de meios efetivos de controle do solo ur-bano datam da década de 1960. Em 1963, se realiza o Seminário de Habitação e Refor-ma Urbana, organizado pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil, em Petrópolis, no Estadodo Rio de Janeiro, no qual o quadro geral das cidades é discutido e é encaminhada a ne-cessidade de instrumentos efetivos de controle do solo urbano. A motivação é a necessi-dade de se equacionar uma política habitacional que enfrente a crise nas metrópoles bra-sileiras. É proposto um imposto de habitação a incidir sobre terrenos e unidades com maisde 100 m2 que, porém, não se assemelha à Outorga, assim como ainda não estão expres-sos no encontro entendimentos fundamentais do instrumento, como a valorização artifi-cial de terrenos ou a questão da possibilidade de separação entre o direito de construir eo direito de propriedade.

Entretanto, constitui um avanço ao indicar a necessidade de estabelecimento demaiores limites ao direito de propriedade, além das limitações administrativas tradicio-nais, na busca de soluções para o problema habitacional. Já se encontram nesse documen-to os princípios que, mais tarde, viriam a ser defendidos pelo Movimento Nacional pelaReforma Urbana na Assembleia Nacional Constituinte e, posteriormente, no contexto daelaboração do Estatuto da Cidade (Bassul, 2005).

As primeiras ideias relacionadas com o instrumento do Solo Criado surgem em1974, quando o Grupo Executivo da Grande São Paulo – GEGRAN, órgão da Secretariado Planejamento do Estado de São Paulo, estuda, com a consultoria de Azevedo Netto,os problemas de uso do solo e suas possibilidades de controle. Como parte desse traba-lho, em 1975, o GEGRAN realiza um seminário com a presença de juristas, em que são de-batidos conceitos envolvidos na noção de Solo Criado (Azevedo Netto, 1977a).

Em 1974, ainda, têm início no Município de São Bernardo do Campo estudos so-bre o instrumento pela equipe técnica da Secretaria de Planejamento e Economia, tendoem vista a inclusão do Solo Criado no conjunto das propostas urbanísticas do Plano empreparação. Em 1977, São Bernardo será o primeiro a ter este conceito transformado em lei, através do Plano de Desenvolvimento Integrado do Município. A lei aprovada ins-titui o coeficiente de aproveitamento 1 (um) para toda a zona urbana e determina que ointeressado em construir além desse limite deve pagar ao município uma certa quantiapor metro quadrado de área construída excedente, cujos valores recolhidos se destinam aum Fundo de Áreas Verdes.

Também em 1974, o então futuro governador do Estado de São Paulo, Paulo E. Mar-tins, promove a realização de estudos preparatórios de seu governo e no relatório sobre oControle do Uso do Solo, sob a consultoria de Azevedo Netto, aparecem as propostas defixação de coeficiente do aproveitamento único e da transferência de direito de construção.Nesse mesmo ano, o Solo Criado é discutido no Simpósio sobre Política Urbana, realiza-do em Brasília pela Fundação Milton Campos, recomendando-se o seu estudo com vistasa sua aplicação em grandes cidades e em áreas metropolitanas (Azevedo Netto, 1977a).

A O U T O R G A O N E R O S A D O D I R E I T O D E C O N S T R U I R

64 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 65: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

Em 1976, no XX Congresso Estadual dos Municípios em Guarujá, o prefeito de SãoPaulo, Olavo Setúbal, propõe o Solo Criado como instrumento de uma “Política paraUtilização do Solo Urbano”, a ser criado em âmbito federal. A proposta consiste em asse-gurar a todos os proprietários de terrenos uma proporção fixa e uniforme de área cons-truída e que esse direito de construir possa ser transferido a outros terrenos. Contemplaa possibilidade de construção acima do limite fixado, mediante transferência dos direitosde construir de outros terrenos, ou aquisição dos direitos de criar solo, mediante conces-são do Poder Público e a destinação dos recursos públicos provenientes da aquisição dedireitos de construir, criando solo para aquisição de áreas públicas, para equipamentos co-munitários ou reurbanização.

No mesmo ano de 1976, a questão do solo, constitui o tema de três seminários re-alizados em São Sebastião, São Paulo e Embu,10 sob o patrocínio do CEPAM. Essa entida-de, vinculada à Secretaria de Estado dos Negócios do Interior do Estado de São Paulo,constitui, sem dúvida, a que lidera ao longo do tempo os estudos e debates sobre o SoloCriado. O resultado desses seminários é a já mencionada Carta de Embu, datada dedezembro de 1976, um marco na evolução dos estudos sobre o tema.

A separação do direito de propriedade e o de construir aparece pela primeira vez emnível nacional em 1977, através do instrumento do Solo Criado, na primeira versão doAnteprojeto de Lei de Desenvolvimento Urbano, elaborado pelo Conselho Nacional de Política Urbana – CNPU. O anteprojeto abriga a figura do Solo Criado (art. 50 e 51)e garante ao proprietário o direito de construir em seu terreno uma área equivalente à áreado terreno; assegura ainda, mediante licença especial e remunerada, obedecendo a conve-niências de natureza urbanística, a construção de área excedente. O instrumento, entre-tanto, gera reações contrárias e não é incluído no anteprojeto final, que dá origem ao Pro-jeto de Lei Federal 775 de 1983.

Este último, chamado de Projeto de Lei de Desenvolvimento Urbano, elaborado pe-lo Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano do Ministério do Interior – CNDU,tenta estabelecer o perfil da propriedade em termos urbanísticos com a criação de instru-mentos de controle e de limitação à utilização da propriedade. Apesar de não conter o ins-trumento do Solo Criado, o projeto inova quanto ao tratamento dado a vários temas e,em especial, fornece contornos urbanísticos ao direito de propriedade (Lira, 1983; RochaLagoa, 1984; Campos Filho, 1986), contemplando questões a serem observadas pelo pla-nejamento urbano desde a esfera federal até a municipal.

Constitui a primeira tentativa formal em nível nacional de tratar a questão da pro-priedade privada de maneira urbanística. A habitação fica incluída entre os serviçoscomuns de interesse metropolitano (art. 40). Nos casos de ausência de plano, fica estabe-lecido para todos os lotes o índice de aproveitamento de terreno igual a 1 (um), o que sig-nifica que o limite de área edificável por lote passa a corresponder à área de cada lote, de-terminação que vigoraria até a edição de um plano que definisse critérios locais. Aomesmo tempo, consolida a ideia de um índice básico único e unitário. A concessão da li-cença para construção fica sujeita ao Município, que pode concedê-la ou não, condicio-nando-a à existência ou à programação de equipamentos urbanos e comunitários (art.5°).

Segundo Rocha Lagoa (1984), nesse projeto o governo federal mostra conhecer quea matéria urbanística depende de modo básico da disciplina conferida à propriedade. Aseu ver, porém, existe uma nota de inconstitucionalidade no anteprojeto na série de arti-gos através dos quais se criam diretrizes a serem adotadas pelos municípios na elaboraçãodas respectivas legislações urbanísticas, extrapolando-se a competência da União.11

V. F. R E Z E N D E , F. F U R TA D O , M . T. C . O L I V E I R A , P. J O R G E N S E N J R .

65R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

10 Em junho de 1976, o CE-PAM realizou o Seminário deSão Sebastião (e depois emSão Paulo), que contou coma participação de especialis-tas Internacionais, como oprofessor John Costonis, ju-rista da Universidade de Chi-cago, o arquiteto Luís GayLlacer, do Instituto de Estu-dos de Administração Localde Madrid, e o senador Jor-ge Cárdenas, da Colômbia.A presença desses especia-listas devia-se ao fato deque em seus países os ins-trumentos da transferênciados direitos de construir e ocoeficiente único já tinhamsido aplicados (AzevedoNetto, 1977a).

11 A favor da inconstitucio-nalidade, existia o fato deter sido apresentada umaproposta de Emenda àConstituição nº 19/77, dan-do à União o poder de emi-tir normas gerais sobre odesenvolvimento urbano,projeto que havia sido rejei-tado (Rocha Lagoa, 1984,p. 02 e 05).

Page 66: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

O Projeto de Lei 775/73 causa inúmeras reações, principalmente por parte de repre-sentantes do setor de construção civil, e a inconstitucionalidade é por eles também argui-da. Nesse caso, o aspecto denunciado se encontra relacionado aos limites colocados paraa propriedade, e a definição do índice 1 (um) para edificação em terrenos localizados emmunicípios que não possuam plano de uso e ocupação do solo. Essas alegações, como ob-serva Rocha Lagoa (1984), não possuem fundamento, pois a Constituição já adotava osistema pelo qual a propriedade era uma função social, sendo conferido ao proprietárioum conjunto de deveres para a satisfação do interesse social. Mas, para a sua aprovação,criam-se dificuldades. Por um lado, a reação pelas razões ligadas à questão do direito deconstruir, por outro, os municipalistas que condenam a intromissão da União na políticaurbana dos municípios.

No processo de preparação da nova Constituição, ganha força o Movimento Na-cional pela Reforma Urbana, que retoma as propostas de instrumentos discutidos nasdécadas de 1970 e 1980 e que, juntamente com setores progressistas da sociedade, in-fluencia as disposições constitucionais. O direito à cidade e o direito à terra, bandeiras domovimento, se expressam nos conceitos de função social da cidade e função social da pro-priedade, este último já presente em textos constitucionais desde a Constituição de 1934.Vários estudos (Ribeiro & Cardoso, 1991; Silva & Saule Jr., 1993; Ribeiro & SantosJúnior, 1993; Maricato, 1994; Rolnik, 1994; Ribeiro, 1994; entre outros) contribuírampara uma melhor compreensão do que se denominou Movimento pela Reforma Urbanae quais os seus resultados para a Constituição de 1988.

Na fase de elaboração da Constituição, determinados princípios são traduzidos econsolidados numa emenda popular, síntese das reivindicações das discussões sobre a ci-dade. Um dos artigos da emenda contempla de forma conceitual, embora sem nomear, oinstrumento do Solo Criado ou Outorga: “A valorização de imóveis urbanos que nãodecorra de investimentos realizados no próprio imóvel, mas que seja proveniente de in-vestimentos do poder público ou de terceiros poderá ser apropriada por via tributária ououtros meios” (Bassul, 2005).

Ainda que nem todas as propostas da emenda popular sejam aprovadas, a Consti-tuição de 1988 contempla um capítulo específico sobre política urbana. Ao estabelecerque a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências funda-mentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor (art. 182 e 183), a Constitu-ição Federal provoca, segundo Baldez (1991), um abrandamento formal na concepção eno caráter da propriedade privada e, segundo Lira (1991), traça um perfil que caracteri-za a propriedade urbanística. A propriedade, a partir de 1988, fica submetida à políticaurbana determinada pelos municípios, sendo o Plano Diretor o instrumento privilegia-do para a sua subordinação.

Ao lado da antiga concepção de propriedade privada surge, então, a propriedadeurbanística, como a denomina Lira (1986). Essa está condicionada à sua função sociale tem origem na administração pública como agente do processo de produção da ci-dade. A cidade, nessa concepção, não é o resultado da atuação de proprietários no go-zo de suas propriedades particulares, mas da própria administração na gerência do es-paço urbano.

Porém, cabe destacar, como afirma Rabello12 (2003), que a concepção da funçãosocial da propriedade, instituída desde a Constituição de 1934, é somente fortalecida pela Constituição de 1988, atuando sobre as interpretações em que se apóiam as deci-sões judiciais.

A O U T O R G A O N E R O S A D O D I R E I T O D E C O N S T R U I R

66 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

12 A favor da inconstitucio-nalidade, existia o fato deter sido apresentada umaproposta de Emenda àConstituição nº 19/77, dan-do à União o poder de emitirnormas gerais sobre o de-senvolvimento urbano, proje-to que havia sido rejeitado.(Rocha Lagoa, 1984, p. 02e 05).

Page 67: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

Com o final da Constituinte, os estados e municípios preparam as suas Constitui-ções Estaduais, Leis Orgânicas Municipais e Planos Diretores. A proposta do Solo Cria-do é incluída em Leis Orgânicas e Planos Diretores de várias cidades do Brasil.

Quanto à regulamentação da política urbana constante da Constituição de 1988,vale mencionar que o projeto original do Estatuto da Cidade (Projeto de Lei do Senadon° 181 de 1989) não menciona o Solo Criado nem a Outorga. Apenas orienta que o Pla-no Diretor Municipal – obrigatório para as cidades com mais de 20.000 habitantes – de-ve exigir (art.41, inciso VI) a prévia avaliação por parte dos órgãos competentes do Po-der Público para a aprovação de quaisquer projetos de mudança de uso do solo, alteraçãode índices de aproveitamento, parcelamentos, remembramentos ou desmembramentos(Furtado, 2005).

O projeto estabelece também que, enquanto não for aprovado o Plano Diretor, oíndice de aproveitamento máximo para a construção será de uma vez a área do terreno(Bassul, 2005), seguindo, neste particular, a orientação dada pelo projeto de Lei775/1983 (LDU).

COMENTÁRIOS FINAIS

A revisão da bibliografia do Solo Criado procura demonstrar que a construção do ins-trumento foi feita paulatinamente, suscitando questionamentos até a formulação do ins-trumento Outorga tal como previsto no Estatuto da Cidade. O próprio instrumento daOutorga ainda levanta algumas questões importantes quanto à sua aplicação, princi-palmente quanto à adoção do coeficiente básico. Esse é um ponto crucial da discussão quemerece ser aprofundado. Como afirma Rabello (2005, p.5): “o índice básico se relacionacom o aproveitamento mais elementar do imóvel, o mínimo útil da propriedade, seu di-reito básico de utilização econômica, equitativamente atribuído, ao menos no seu aspectoeconômico, aos proprietários das propriedades imobiliárias urbanas pelo poder público”.

Embora nas formulações teóricas iniciais o índice único para toda a cidade fosse umaideia central, na definição dada pelo Estatuto da Cidade o coeficiente básico passou a po-der variar segundo áreas da cidade. Além disso, o coeficiente básico defendido original-mente era não somente único, mas de modo geral considerado igual a 1 (um). Na práti-ca, no entanto, o coeficiente básico é estabelecido localmente e, em poucos casos limita-sea 1 (um) (Furtado et al., 2006).

A concepção do Solo Criado como outorga de área construída acima de um coefi-ciente básico apresenta raízes conceituais comuns com o Solo Criado como base da trans-ferência de potencial construtivo de um terreno para outro, o que dificulta a consideraçãode um instrumento de forma independente do outro. Melhor dizendo, as justificativas quefundamentam o Solo Criado no primeiro caso, tanto no que se refere a questões urbanís-ticas ligadas a densidades adequadas para determinadas áreas, como no que se refere à pre-valência do interesse coletivo sobre o individual, são as mesmas que no segundo caso.

Além disso, as justificativas jurídicas que levam ao entendimento da possibilidade deseparação parcial entre o direito de construir e o de propriedade e, ainda, a questão da constitucionalidade da criação do instrumento nas normas municipais ou federais sãoas mesmas. Nessa perspectiva, à vista da literatura produzida e de seus argumentos, con-sideramos que a aceitação de um deles como um instrumento de política urbana incluipor extensão o outro, excetuadas as demais questões relativas às dificuldades com a apli-

V. F. R E Z E N D E , F. F U R TA D O , M . T. C . O L I V E I R A , P. J O R G E N S E N J R .

67R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 68: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

cação de cada um, assim como de ambos, conforme ressaltado em Furtado et al. (2006),que trata da avaliação de experiências municipais com estes instrumentos.

Muitos elementos ainda precisam ser investigados no sentido de melhor guiar a apli-cação da Outorga, principalmente a respeito do seu impacto nos mercados fundiário eimobiliário, sua efetiva capacidade de recuperação de mais-valias fundiárias urbanas e suainteração com outros instrumentos que incidam sobre a valorização da terra. Para os mu-nicípios, a Outorga, instrumento valioso, representa tanto uma conquista importante co-mo ferramenta de intervenção pública, como também, um grande desafio, exigindo umamelhor compreensão de seus limites para uma aplicação mais efetiva.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANTEPROJETO da lei de desenvolvimento urbano. São Paulo, C. J. Arquitetura: Revis-ta de Arquitetura, planejamento e construção, n.16, p.26-33, 1977.AZEVEDO, E. A.; ALENCAR, M. L. M. Solo Criado. In: Seminário Avaliação dos ins-trumentos de intervenção urbana. São Paulo: FAU-USP, 1993.AZEVEDO NETTO, D. T. Experiências similares ao solo criado. São Paulo, C. J. Ar-quitetura: Revista de Arquitetura, planejamento e construção, n.16, p.44-54, 1977a.AZEVEDO NETTO, D. T. et al. O “solo criado”. São Paulo, C. J. Arquitetura: Revistade Arquitetura, planejamento e construção, n.16, p.9-11, 1977.BALDEZ, M. L.; MIGUEL, L. Conselhos populares e usucapião especial urbano. Petrópo-lis, RJ: Centro de Defesa dos Direitos Humanos, 1991.__________. Solo urbano, reformas, propostas para a Constituinte. Rio de Janeiro, Re-vista de Direito da Procuradoria Geral, n.38, 1986.BASSUL, J. R. Estatuto da Cidade. Quem ganhou? Quem perdeu? Brasília: Senado Federal,Subsecretaria de Edições Técnicas, 2005.BRASIL. Ministério do Interior. Desenvolvimento Urbano, Projeto de Lei Federal n.775/83. Brasília: MINTER, 1983.BRASILEIRO, A. M. O Uso do Solo “Criado”. Rio de Janeiro, Revista de AdministraçãoMunicipal, n.24, set./out. 1977.CAMPOS FILHO, C. M. Argumentos em favor do solo criado. São Paulo, C. J. Arqui-tetura: Revista de Arquitetura, planejamento e construção, n.16, p.78-81, 1977.__________. Comentário sobre o projeto de Lei Federal de Desenvolvimento Urbano.São Paulo, Espaço e Debates, v.2, n.18, 1986. CARTA DO EMBU. São Paulo, C. J. Arquitetura: Revista de Arquitetura, planejamento econstrução, n.16, p.20-1, 1977.CONTADOR, J. C. Um modelo para propiciar equilíbrio urbano. São Paulo, C. J. Ar-quitetura: Revista de Arquitetura, planejamento e construção, n.16, p.82-9, 1977.CORDEIRO, I. M. S. O clube urbano. São Paulo, C. J. Arquitetura: Revista de Arquite-tura, planejamento e construção, n.16, p.90-1, 1977.COSTA, M. L.; SANTOS, S. L. As experiências estrangeiras. São Paulo, C. J. Arquitetu-ra: Revista de Arquitetura, planejamento e construção, n.16, p.92-5, 1977.COSTONIS, J. Plano de Chicago – “Space Adrift”. São Paulo: EMURB/COGEP, s.d.FUNDAÇÃO PREFEITO FARIA LIMA. Centro de Estudos e Pesquisas de Administra-ção Municipal – CEPAM. Carta do Embu: Documento síntese do Seminário Aspectos Ju-rídicos do Solo Criado. São Paulo, 1976.

A O U T O R G A O N E R O S A D O D I R E I T O D E C O N S T R U I R

68 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Vera F. Rezende é doutorapela FAU-USP, professoraassociada da Escola de Ar-quitetura e Urbanismo e doPrograma de Pós-gradua-ção em Arquitetura e Urba-nismo da UFF, e pesquisado-ra do CNPq. E-mail: [email protected]

Fernanda Furtado é dou-tora pela FAU-USP, professo-ra adjunta da Escola de Ar-quitetura e Urbanismo e doPrograma de Pós-gradua-ção em Arquitetura e Urba-nismo da UFF, e colaborado-ra do Lincoln Institute of LandPolicy. E-mail: [email protected]

Maria Teresa Corrêa deOliveira é doutora pelaUtrecht University e pesqui-sadora independente. E-mail:[email protected].

Pedro Jorgensen Junior émestre em Engenharia deTransportes pela COPPE-UFRJ e pesquisador inde-pendente. E-mail: [email protected].

Artigo recebido em agostode 2009 e aprovado parapublicação em setembro de2009.

Page 69: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

FUNDAÇÃO PREFEITO FARIA LIMA. Centro de Estudos e Pesquisas de Administra-ção Municipal – CEPAM. Instrumentos para aplicação de uma política fundiária urbana: si-nopse do projeto do II Seminário de Problemas Fundiários Urbanos. Brasília, 1982a.__________. Pesquisas sobre o problema fundiário urbano, documento de trabalho. São Pau-lo, 1982b.FURTADO, F. Gestão Social da Valorização da Terra através do “Solo Criado”: bases para omapeamento das questões envolvidas. (Versão preliminar – maio de 2005.)FURTADO, F.; REZENDE, V. F.; CORREA, M. T.; JORGENSEN JR., P. OutorgaOnerosa do Direito de Construir, panorama e avaliação de experiências municipais.In: Encontro Nacional da ANPUR, 12, 2007, Belém, PA. Anais... Belém, PA: UFPA,2007.GANDRA MARTINS, I. Solo Criado. São Paulo, Revista de Direito Civil, Imobiliário,Agrário e Empresarial, ano 5, jan./mar. 1981.GERMANOS, P. A. J. A visão das empresas construtoras. São Paulo, C. J. Arquitetura:Revista de Arquitetura, planejamento e construção, n.16, p.102-3, 1977.GRANELLE, J. J. A Experiência francesa do teto legal de densidade. In: Seminário SoloCriado, seu impacto na dinâmica urbana e os desafios para sua operacionalização. Rio de Ja-neiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 1992a.__________. As experiências da política fundiária na França. In: PESSOA, A. (Org.).Direito do urbanismo, uma visão sócio-jurídica. Rio de Janeiro: IBAM, 1981.__________. L’expérience française du plafond légal de densité. Paris: ADEF, abril 1992b.(Mimeografado.) GRAU, E. R. Questões sobre o plano diretor. São Paulo: USP, Faculdade de Direito, 1990a.(Mimeografado.)__________. Emendas ao projeto de lei sobre o plano diretor. São Paulo: USP, Faculdade deDireito, 1990b.GREGO, M. A. O solo criado e a questão fundiária. In: PESSOA, A. (Org.). Direito dourbanismo, uma visão sócio-jurídica. Rio de Janeiro: IBAM, 1981.GRECO FILHO, V. Sobre a constitucionalidade do solo criado. São Paulo, C. J. Arqui-tetura: Revista de Arquitetura, planejamento e construção, n.16, p.99-101, 1977.HORI, J. Efeitos econômicos da implantação do solo criado. São Paulo, C. J. Arquitetu-ra: Revista de Arquitetura, planejamento e construção, n.16, p.61-73, 1977.INSTITUTO INTERNACIONAL DE DIREITO PÚBLICO E EMPRESARIAL –IDEPE. Seminário Solo Criado, conferências e debates, Revista de Direito Público,1987. JANSEN, L. M. F. J. Solo Criado. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Rio de Ja-neiro, n.33, 1978. LIRA, R. P. Campo e cidade no ordenamento jurídico brasileiro. Conferência na Universi-dade degli Studi di Macerata, Italia, 1991. Rio de Janeiro: Riex Eds, 1991.__________. Disciplina do uso solo urbano, a propriedade urbanística. In: Os TemasFundamentais do Direito Brasileiro nos Anos 80. Rio de Janeiro: UERJ, 1986.__________. Liberdade e direito à terra. Rio de Janeiro, Revista de Administração Muni-cipal, jan./mar. 1981.__________. O uso do solo e o seu controle: alguns aspectos de Lei Federal n. 775/83,Rio de Janeiro, Revista de Direito Administrativo, v.154, out./dez. 1983.MANGE, E. R. C. O solo não é a terra. São Paulo, C. J. Arquitetura: Revista de Arquite-tura, planejamento e construção, n.16, p.74-7, 1977.

V. F. R E Z E N D E , F. F U R TA D O , M . T. C . O L I V E I R A , P. J O R G E N S E N J R .

69R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 70: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

MARICATO, E. Reforma urbana: limites e possibilidades, uma trajetória incompleta.In: RIBEIRO, L. C. Q.; SANTOS JÚNIOR, O. (Orgs.). Globalização, fragmentação e re-forma urbana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994.MEMORANDO. São Paulo, C. J. Arquitetura: Revista de Arquitetura, planejamento econstrução, n.16, p.3-6, 1977.MOREIRA, A. C. M. L. O entesouramento em terrenos urbanos. São Paulo, C. J. Ar-quitetura: Revista de Arquitetura, planejamento e construção, n.16, p.104-5, 1977.MOREIRA, A. C. M. L.; AMBROSIS, C.; NOGUEIRA FILHO, D. V.; AZEVEDONETTO, D. T. O Solo Criado. São Paulo: Centro de Estudos e Pesquisas de Administra-ção Municipal, 1975.RABELLO, S. A outorga do direito de construir e o plano diretor, s.l., s.n., 2005. (Mimeo-grafado.)RENARD, V. “Les outils de la politique foncière”. Ajda L’actualité juridique, mai 1993.Número especial: Droit de l’urbanisme, bilan et perspectives.RIBEIRO, L. C. Q. Reforma urbana na cidade da crise: balanço teórico e desafios. In:RIBEIRO, L. C. Q.; SANTOS JÚNIOR, O. (Orgs.). Globalização, fragmentação e refor-ma urbana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994.RIBEIRO, L. C. Q.; CARDOSO, A. L. O solo criado como instrumento de reforma ur-bana: avaliação de seu impacto na dinâmica urbana. Rio de Janeiro, Cadernos IPPUR/UFRJ,v.5, n.1, dez. 1991.RIBEIRO, L. C. Q.; SANTOS JÚNIOR, O. Das desigualdades à exclusão social, da se-gregação à fragmentação: os novos desafios da reforma urbana. Rio de Janeiro, CadernosIPPUR/UFRJ, v.7, n.1, abr. 1993.ROCHA LAGOA, P. Rio de Janeiro, O projeto de lei sobre desenvolvimento urbano, algu-mas considerações, s.n., 1984. (Mimeografado.)ROLNIK, R. Planejamento urbano nos anos 90: novas perspectivas para velhos temas.In: RIBEIRO, L. C. Q.; SANTOS JÚNIOR, O. (Orgs.). Globalização, fragmentação e re-forma urbana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994.SÃO BERNARDO DO CAMPO (SP). Prefeitura Municipal. A proposta de São Ber-nardo do Campo. São Paulo, C. J. Arquitetura: Revista de Arquitetura, planejamento e cons-trução, n.16, p.22-3, 1977.SÃO PAULO (SP). Empresa Municipal de Urbanização. Solo criado: análise das experiên-cias estrangeiras. São Paulo: EMURB/COGEP, 1974.__________. Solo criado: análise das experiências estrangeiras. São Paulo: EMURB/

COGEP, 1977.SÃO PAULO (SP). Prefeitura Municipal. A segunda proposta de São Paulo. São Pau-lo, C. J. Arquitetura: Revista de Arquitetura, planejamento e construção, n.16, p.18-9,1977.SEABRA FAGUNDES, M. Aspectos jurídicos do solo criado. Rio de Janeiro, Revista deDireito Administrativo, n.129, jul./set. 1977.SETÚBAL, O. Uma política para utilização do solo urbano. São Paulo, C. J. Arquitetu-ra: Revista de Arquitetura, planejamento e construção, n.16, p.12-7, 1977.SILVA, A. A.; SAULE JUNIOR, N. A cidade faz a sua constituição. São Paulo: Polis,1993.SILVA, J. A. Direito Urbanístico Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981.SMOLKA, M. O Solo Criado: Notas para a fundamentação de questões em debate. Riode Janeiro, Revista de Administração Municipal, n.201, out./dez. 1991.

A O U T O R G A O N E R O S A D O D I R E I T O D E C O N S T R U I R

70 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 71: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

A B S T R A C T This paper analyzes the conceptual framework underlying the“Outorga Onerosa do Direito de Construir”, a legal instrument defined in the City Statute aspart of urban policy in Brazilian municipalities. We focus on the evolution of this powerfuland complex instrument from the early stages of its debate until its current version in the CityStatute, emphasizing the importance of such analysis to the understanding of the procedure’spotential and to the controversy on its implementation across different municipalities. Withthis intent, this paper investigates the literature on the procedure, as well as on a relatedconcept, the “Solo Criado”, from the seventies until the nineties.

K E Y W O R D S Outorga onerosa do direito de construir; Solo Criado; City Statute;building rights; urban policy instruments.

V. F. R E Z E N D E , F. F U R TA D O , M . T. C . O L I V E I R A , P. J O R G E N S E N J R .

71R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 72: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA
Page 73: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

A REGULARIZAÇÃOFUNDIÁRIA URBANA

NA AMAZÔNIA LEGAL

D E N I S E D E C A M P O S G O U V Ê AP A U L O C O E L H O Á V I L A

S A N D R A B E R N A R D E S R I B E I R O

R E S U M O Este artigo examina como a ocupação irregular de terras na Região Ama-zônica gerou conflitos que exigiram uma nova lei federal para a resolução do problema. Du-rante a década de 1970, o governo federal, para estimular a ocupação da região, desenvolveuprogramas para a fixação de colonos e empresas em terras da União, sob a coordenação do Ins-tituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra. No entanto, a falta de processosrigorosos de distribuição de terras e o descuido sobre o uso e a ocupação do solo permitiram aformação e o crescimento de cidades em muitos assentamentos rurais. Tal fato resultou emcidades onde a irregularidade fundiária afeta milhares de moradias em toda a região. Pararesolver a situação, o governo federal editou em 2009 a Lei 11.952, que estabelece condiçõesespecíficas e regras para a destinação das terras da União aos municípios de modo a promove-rem a regularização fundiária e o desenvolvimento sustentável das cidades.

P A L A V R A S - C H A V E Regularização fundiária; Região Amazônica; urba-nização; desenvolvimento urbano; insegurança da posse.

INTRODUÇÃO

O processo de urbanização no país não é homogêneo em suas diversas regiões, masem geral ele é estudado à luz do desenvolvimento econômico que, ao longo do século XX,esteve associado à industrialização e ao intenso fluxo migratório em direção às cidades dasregiões Sul e Sudeste ou, quando muito, às capitais dos estados de outras regiões.

Tais estudos destacam a forte marca que o processo de urbanização no Brasil pro-duziu nas suas cidades pela presença maciça de diversas formas de assentamentos infor-mais, como favelas, loteamentos irregulares e clandestinos, que adquirem magnitude ta-manha que no fim do século XX passam a ser quase a regra da produção do espaçourbano no país. As diversas formas de assentamentos precários são produtos das assime-trias e distorções do modelo de desenvolvimento adotado, que não se preocupou emcriar as condições para incorporar os segmentos mais pobres da população à sociedademoderna, que utilizava esta massa de mão-de-obra como insumo do seu progresso.

De fato, tais assentamentos abrigam em grande medida os segmentos sociais demenor renda, que formam a maior parte da população brasileira. Em 2000, 40,8% dosdomicílios urbanos do Brasil tinham renda mensal familiar de até 3 salários mínimos,sendo que 60% deles apresentavam alguma carência de infraestrutura (água, esgoto,coleta de lixo ou energia elétrica). Essas e outras condições de precariedade e vulnera-bilidade, como violência urbana e a falta de equipamentos e serviços urbanos, reprodu-zem os mecanismos de exclusão que impedem tais grupos de satisfazer plenamente suas

73R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 74: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

expectativas e demandas sociais, gerando um ciclo perverso de reprodução da desigual-dade social.

A incapacidade de integrar os segmentos mais pobres da população às cidades é fru-to não só do padrão excludente de desenvolvimento, mas também das políticas de plane-jamento e gestão urbana, do próprio sistema político que favorece determinados grupose do regime jurídico que definiu ao longo do tempo os mecanismos de acesso à terra fa-voráveis à formação de uma sociedade patrimonialista que, ao fim e ao cabo, dificulta oreconhecimento de direitos sociais e estimula mercados de terras especulativos. Tais fato-res não ofereceram aos grupos sociais mais pobres as condições adequadas de acesso à ter-ra e à moradia, provocando a ocupação irregular do solo urbano (Fernandes, 2007).

O acesso à terra é um dos nós na urbanização brasileira, e, nas duas últimas décadasdo século XX, no bojo da crise econômica mundial que afetou o país, as barreiras a esteacesso pela população de menor renda se exacerbam, estimulando conflitos. Neste perío-do, as desigualdades sociais se acirram no país e a concentração da pobreza se torna pre-dominantemente urbana. Em São Paulo, se no início da década de 1970 cerca de 1% dapopulação vivia em favelas, esta proporção alcança 20% no fim do século passado, assimcomo em outras capitais, como Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre, ou beiramos 30%, como em Fortaleza e Salvador, e alcança 46% em Recife (Maricato, 1999). Estaproporção pode chegar a 50% se à população das favelas for somada à população viven-do em loteamentos irregulares.

O padrão de formação dos assentamentos informais também se modifica no perío-do, fomentando os conflitos fundiários urbanos. Maricato (1999) aponta que enquantoa formação de favelas foi predominantemente espontânea no passado, resultado de açõesindividuais que ensejavam um crescimento gradual dos assentamentos, a partir da déca-da de 1980 a formação de assentamentos precários passa a apresentar um padrão organi-zado, intenso e coletivo de ocupações.

A construção de um espaço marcado pela desigualdade também tem como um deseus insumos a execução arbitrária da lei, que é aplicada de acordo com as circunstânciasnuma sociedade caracterizada pelas relações de favorecimento e privilégios (Maricato,1999). Neste ponto, o sistema normativo é um elemento estratégico na reprodução dadualidade da produção da cidade, que contrapõe um espaço contido num meticuloso ar-cabouço legal e, outro, três vezes maior, eternamente localizado numa zona intermediáriaentre o legal e o ilegal (Rolnik, 1997).

Esses e outros estudos fornecem um exaustivo quadro do contexto urbano brasileiro,em especial das cidades localizadas nas regiões mais desenvolvidas do país, que passarampor intenso processo de industrialização e urbanização, mas que, em certa medida, não éo cenário por trás do quadro de irregularidade fundiária de muitas cidades localizadas naregião Norte. Ou melhor, é, porém, com outros elementos que reproduzem e consolidama mesma estrutura social desigual.

A ocupação da Região Amazônica, seja nas áreas rurais seja nas áreas urbanas, e mes-mo nos dias atuais, apresenta muitas das características que marcaram o processo de ocu-pação e apropriação da terra no Brasil desde o tempo das sesmarias, sistema que foi fun-damental na estruturação da propriedade fundiária no país. Como tal, em muitos casos,este processo ainda não é pacífico e a complexa estrutura fundiária das terras da Amazô-nia é um dos principais elementos por trás dos impasses no acesso à terra na região.

A situação fundiária na Região Amazônica apresenta problemas de toda ordem, nãose conhecendo, por exemplo, em muitos casos, as cadeias dominiais das terras, sendo

A R E G U L A R I Z A Ç Ã O F U N D I Á R I A U R B A N A

74 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 75: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

grande também a ocorrência de títulos deslocados, sobreposição de títulos e registros fal-sos. Esta situação se deve não só à forma como estas terras foram ocupadas, mas tambémà inexistência de cadastros confiáveis nos cartórios e nos governos estaduais, o que, emgrande medida, cede espaço para as fraudes.

Estudo realizado por técnicos do Incra sobre a estrutura fundiária do Brasil, com ba-se nos dados do Cadastro de Imóveis Rurais do Instituto Nacional de Colonização e Re-forma Agrária,1 constata que a região Norte, com uma superfície de cerca de 387 milhõesde hectares, possuía em 1992 uma área cadastrada de apenas 59,6 milhões de hectares,ocupadas por 131.174 imóveis rurais, o que representava 15,4% de área cadastrada (Car-dim, Vieira, Viégas, s.d.). Assim, enquanto do ponto de vista geográfico a região repre-senta cerca de 60% da superfície do Brasil, do ponto de vista cadastral, sua área represen-ta apenas 19,2% da área cadastrada no Incra (Idem).

Hoje é sabido que, de fato, apenas cerca de 4% das terras da região possuem títulode propriedade e cadastro validado pelo Incra. Esta constatação foi feita a partir de um es-tudo do Imazon, Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia, com base em in-formações também do Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNRC), administrado peloIncra. O estudo verificou também que outros 43% da Amazônia são áreas protegidas, al-gumas com posses ilegais; outros 32% são terras com posses ou propriedades com infor-mações pendentes, algumas podendo ter títulos fraudados; e 21% constituem áreas pú-blicas sem cadastro, podendo também apresentar ocupações ilegais.

Em inspeção realizada em julho de 2009 pela Corregedoria do Conselho Nacionalde Justiça nos serviços de notas e registros do Estado do Pará, com foco na Comarca deAltamira, foram encontradas irregularidades de caráter formal e material que podem serclassificadas como muito graves, o que contribui com a completa insegurança jurídica dosserviços registrais imobiliários naquele estado (CNJ, 2009). As irregularidades encontra-das, entre as quais se destacam o ingresso de títulos no registro imobiliário sem força pa-ra transmitir o domínio,2 anotações em livros não previstos em lei, deterioração de livrosde registro, inovações descritivas sem o devido processo legal e falhas técnicas diversas, re-velam o completo descontrole da situação fundiária no Pará.

Tal descontrole abre caminho para que se consolide a desordem fundiária, com a prá-tica de fraudes que potencializam o conflito pela posse e domínio da terra no campo, nãoescapando o Poder Público da responsabilidade pela inquietude fundiária (CNJ, 2009).

O relatório do Conselho de Justiça Federal transcreve trecho do Relatório da CPI

destinado a investigar a ocupação de terras públicas na Região Amazônica, apresentadoem 29 de agosto de 2001, que destaca outro aspecto que dificulta o controle e fiscaliza-ção dos cartórios na região:

A grilagem de terras na Amazônia é tão notória quanto antiga. Última fronteirado País,ainda pouco povoada, a Amazônia oferece espaços, distâncias e dificuldades de comunicaçãoque incentivaram as ilegalidades fundiárias de todo tipo. A volubilidade das políticas gover-

namentais para a região também exerceu papel importante neste sentido (Relatório da CPIda Grilagem. (Diário da Câmara dos Deputados, 2009.)

Estes fatos geraram uma larga cadeia de irregularidades e de incertezas quanto à si-tuação real dos imóveis na Amazônia, e os conflitos agrários pela posse das terras e pro-blemas de ordem econômica, ambiental e social acabaram por extravasar também para asáreas urbanas.

D . C . G O U V Ê A , P . C . Á V I L A , S . B . R I B E I R O

75R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

1 No total de área cadastra-da pelo Incra em 1992, nãoestavam incluídas as terraspúblicas, exceto cerca de 2 milhões de hectares emRoraima e 2 milhões no Pa-rá. Isso porque, a partir de1992, o Incra criou o Cadas-tro de Terras Públicas, comformulário próprio (DTP).Naquele ano, a área cadas-trada era formada por2.924.204 imóveis rurais,totalizando 310 milhões dehectares ocupados por imó-veis rurais, ou apenas36,7% do território nacional(Cardim, Vieira e Viégas,s.d.).

2 À parte as fraudes imobi-liárias perpetradas por títu-los falsos e por registrosirregulares, foram encon-trados títulos de mera pos-se, de concessão de direitos,de legitimação, de outorgade propriedades em caráterresolutivo, certidões extraí-das do Registro do Vigário,datas de sesmaria etc., títu-los que visavam justificar, le-gitimar e regularizar a pos-se, em cumprimento depolíticas e programas so-ciais de colonização e refor-ma agrária desenvolvidosao longo dos tempos, mui-tos dos quais expedidos nodecorrer de décadas pordiversos órgãos – União,Incra, Estado do Pará, Inten-dências, prefeituras munici-pais – que, somados aos tí-tulos centenários, oriundosde negócios jurídicos cele-brados no final do séculoXIX e início do seguinte,com base em um cipoalverdadeiramente impressio-nante de leis e regulamen-tos, acabaram por formarum mosaico de difícil com-preensão, regulação, ges-tão, saneamento e fiscaliza-ção (CNJ, 2009).

Page 76: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

Muitas cidades da Amazônia Legal se desenvolveram em terras públicas sob a tute-la do Incra, a partir de núcleos e assentamentos da reforma agrária. Bairros de capitaiscomo Porto Velho e Boa Vista, por exemplo, também cresceram sobre as terras que se-riam utilizadas na reforma agrária. Nestas áreas, não só as moradias não possuem títulosde propriedade, mas também equipamentos públicos, como hospitais e escolas, sedes dosgovernos estadual e municipal e órgãos federais estão edificados em terras sem registro.

Diante deste quadro, é muito difícil para os governos locais executarem de modoefetivo sua política de desenvolvimento urbano em áreas que enfrentam grandes fluxosmigratórios, uma vez que, sem a propriedade do solo claramente definida, as prefeiturasficam de mãos atadas diante da impossibilidade de realizar investimentos em infraestru-tura e equipamentos públicos, fazer cumprir a legislação urbanística e promover suas po-líticas habitacionais.

Com o intuito de desatar o nó da questão da terra na Amazônia, um dos elementosque agrava o quadro de desigualdade social e incentiva a ocupação desordenada do terri-tório na região, foi iniciada em 2009 uma ampla ação de regularização fundiária das ter-ras da União na Amazônia, tanto em áreas rurais como urbanas. As ações promovidas comeste intuito integram vários entes do Executivo federal e dos governos estaduais e muni-cipais, assim como órgãos da Justiça e entidades da sociedade civil. Com isso, se esperaeliminar a insegurança patrimonial daqueles que ocupam efetivamente as terras, e tam-bém exercer maior controle sobre a ocupação desordenada do território, que alimenta odesmatamento e a violência no campo e nas cidades.

No caso das áreas urbanas, esta ação busca não só trazer à legalidade milhares demoradias em toda a Amazônia Legal, garantindo às famílias o seu direito constitucio-nal à moradia digna, mas também assegurar que as prefeituras possam integrar tais áreasàs políticas de desenvolvimento urbano sustentável, cujos princípios são estabelecidosnos artigos 182 e 183 da Constituição Federal e na Lei 10.257, de 2001 (Estatuto daCidade).

O ACESSO À TERRA NO BRASIL

O início da colonização do Brasil se deu a partir da divisão da porção leste da linhado Tratado de Tordesilhas (1494), que cabia à Portugal, em 15 capitanias hereditárias, cu-jas administrações foram concedidas a homens de confiança da coroa portuguesa. Cadadonatário recebia a concessão de vastas extensões de terras, tendo poder para ocupar e ad-ministrar a sua posse e conceder terras a particulares, as sesmarias. As terras deveriam serocupadas em 6 anos, após os quais era concedido o título de domínio pleno e perpétuo.Aquelas que não fossem efetivamente ocupadas eram retomadas pela coroa, o que deu ori-gem às terras devolutas.

Longe dos donos das terras, os sesmeiros rapidamente se tornaram as únicas autori-dades do interior, formando verdadeiros feudos pessoais, cujo controle da ocupação eraexercido pela concessão de novas autorizações para outros colonos, e ampliando a exten-são original das suas concessões pela ocupação e a posse efetiva de terras devolutas.

Como observa Delson (1997), a prática da concessão de sesmaria institucionalizouo fenômeno dos latifúndios e, na ausência de sanções governamentais, surgem poderosasfamílias interioranas que derivam o seu poder e influência baseadas no domínio sobre apropriedade das terras.

A R E G U L A R I Z A Ç Ã O F U N D I Á R I A U R B A N A

76 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 77: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

A preocupação da coroa com a ocupação do interior aumenta, fazendo com que, su-cessivamente, se tentasse limitar a influência dos grandes proprietários de terras por meiode reformulações da situação jurídica do solo colonial, limitando a extensão das áreas con-cedidas e estabelecendo o sistema do “cultivo útil” (1695) como critério para manter aposse das terras, com a possibilidade de expropriação em caso de não cumprimento (Del-son, 1997).

A intenção era ampliar a presença de pequenos proprietários e reduzir os latifúndios,uma vez que os imperialistas reconheciam que a colonização do interior não seria possí-vel se houvesse a manutenção de grandes propriedades particulares (Delson, 1997).

O sistema de sesmarias é encerrado por ocasião da Independência do Brasil em1822, passando a vigorar o regime de posses até 1850, quando entra em vigor a Lei 601,de setembro de 1850 (Lei de Terras).

No período entre a Independência do Brasil e a Lei de Terras, o país deixa de con-tar com legislação de titulação de terra pública e a posse informal da terra continua exis-tindo, sendo que as propriedades eram transmitidas por simples contrato, posse ou he-rança, bastando comprovar a posse para que a propriedade fosse transmitida, o que deumargem a extenso apossamento de terras. A ausência de registros formais também abriaespaço ao surgimento de toda sorte de fraudes, causando insegurança nas relações comer-ciais que utilizavam os imóveis como garantia de crédito.

A Lei de Terras encerra este período proibindo a aquisição de terras públicas por ou-tro título que não o de compra, estabelecendo também critérios para a legitimação dasposses antigas. A Lei também instituiu o registro paroquial com finalidade cadastral paracomprovação da posse, identificando as terras particulares e discriminando as terras pú-blicas por exclusão. De fato, ela acaba com a posse e a doação de terras devolutas, impe-dindo a aquisição da propriedade por aqueles que simplesmente ocupassem a terra. Talsistema consolida a propriedade privada, garantindo a exclusividade dos proprietários deterras existentes, num período de transição entre a força de trabalho escrava, agora liber-ta, e a força de trabalho assalariada dos imigrantes, os quais não teriam condições de ad-quirir terras pela compra, uma vez que não possuíam recursos próprios. Desta forma, aalocação de terras exclusivamente pela compra favoreceu a elite econômica, resultando naconcentração da terra e no acirramento das desigualdades sociais.

A Constituição Federal de 1891 estabeleceu que as terras devolutas pertenciam aosestados, com exceção das áreas de fronteira e aquelas necessárias à segurança nacional. Aalocação de terra se torna fragmentada, passando os estados a emitir títulos, em alguns ca-sos, como no Pará, extraídos de registros de mera posse, de outorga de propriedades, deconcessão de direitos, do Registro do Vigário, sesmarias etc.

Neste momento, a estrutura fundiária do país se consolida, ao mesmo tempo quenas áreas onde a autoridade não conseguia exercer o seu poder os conflitos pela posse daterra se intensificam, assim como as fraudes e a grilagem, em especial nas terras públicasdevolutas. Nas áreas mais inóspitas do país, onde as dificuldades de comunicação são, porvezes, intransponíveis, como na região Amazônica, áreas de difícil acesso e de escassa fis-calização se tornaram o palco de conflitos pela posse das terras, que, em certos casos, re-produz em pleno século XXI o cenário de lutas do século XIX.

Os conflitos de terras se acirram na medida em que cresce o potencial econômico daregião, especialmente nas áreas onde se constroem estradas e onde a fronteira agrícolaavança sobre as áreas inexploradas, atraindo colonos e invasores de terras. É o caso dasáreas da Transamazônica, áreas ao norte do Mato Grosso e Rondônia, onde a fronteira

D . C . G O U V Ê A , P . C . Á V I L A , S . B . R I B E I R O

77R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 78: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

agrícola avança com o rebanho bovino, a cultura de soja e a exploração da madeira e, tam-bém, das áreas ao sul do Pará, onde se instalam grandes mineradoras, que atraem grandefluxo migratório.

Como afirma o relatório do CNJ:

Considerando que grande parte de nossos municípios ainda está no início de seu desen-volvimento, por isso ainda bastante preservados e com poucos conflitos de terras, como

aqueles que se situam em toda a margem esquerda do rio Amazonas, nas regiões do oeste-suladiante de Altamira e baixo-amazonas, entretanto, o problema fundiário é latente em todoseles, pois os registros irregulares lá estão adormecidos, prontos para produzirem os seus ne-

fastos efeitos, quando para lá se expandir a chamada fronteira agrícola, com a venda, muitasvezes fatiada, dessas áreas irregulares a colonos e fazendeiros que lá se instalarão, sendo ine-vitável o conflito entre os posseiros nativos e os índios que lá se encontram com esses novos

adquirentes. (CNJ, 2009.)

A OCUPAÇÃO URBANA NA AMAZÔNIA E A QUESTÃO DA TERRA

Via de regra, a colonização do interior do país seguiu ciclos cronológicos que se ini-ciam com os boiadeiros, os caçadores de índios e, por fim, os garimpeiros que penetra-ram o interior sem qualquer controle das autoridades. Algumas trilhas vão do interior daBahia e seguem sertão adentro até o Maranhão. Estes agentes são logo seguidos pelos ca-çadores de silvícolas e depois pelos garimpeiros em busca de ouro, que penetram o ter-ritório fora do alcance das autoridades a partir da década de 1690.

A crescente preocupação dos portugueses com a ocupação sem controle do interi-or fez com que, a partir do século XVIII, fosse iniciado um programa de urbanização dosertão, pois havia a convicção de que a construção de municipalidades organizadas era omelhor meio de civilizar e promover o povoamento do agreste do sertão (Boxer apudDelson, 1997).

A implantação destas comunidades, vilas e povoações, buscava a formação de re-des urbanas integradas que tinham como objetivo controlar a ocupação do interior apartir da sua localização em pontos estratégicos. As cidades seguiam projetos racionaisque incluíam planos diretores contendo um conjunto de normas e diretrizes de dese-nho urbano.3

A implementação do programa se inicia em 1716 com a ordem de implantação deduas novas cidades no interior do Piauí, Mocha (Oeiras) e Piracuruca, cujo escopo era acriação de uma ligação segura entre a Bahia e o Maranhão. Outras vilas e cidades foramcriadas em várias regiões do Sul e Sudeste da colônia, nas capitanias de Goiás, Minas Ge-rais, Paraná, Mato Grosso e Ceará.

A implantação de cidades e vilas na Amazônia tem início com a ascensão de Pom-bal ao poder em 1750. O marquês defendia a ampliação do poder real por meio de umaintegração que se daria com a criação de vilas e cidades no interior e consequente apro-veitamento das potencialidades dos territórios inexplorados, incluindo as populações in-dígenas, utilizadas como força de trabalho na agricultura e construção das vilas.

Neste período, a Região Amazônica adquire maior importância econômica por con-ta da ligação fluvial Pará-Madeira-Guaporé entre Belém, a sede da capitania do Pará, e

A R E G U L A R I Z A Ç Ã O F U N D I Á R I A U R B A N A

78 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

3 O conceito geral das regu-lamentações era barroco,alinhado a conceitos de be-leza e sofisticação própriosda Europa refinada, tida co-mo modelo de civilidade eprogresso. As instruções es-tabeleciam traçado de ruasretilíneo, praças bem defini-das ornadas por árvores si-metricamente dispostas,edificações alinhadas, regu-laridade de composições ar-quitetônicas e localizaçãodo pelourinho, igreja, Casade Câmara, cadeia e outrasedificações públicas. Traziatambém regras de ajuste aomodus vivendi das pessoas.

Page 79: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

Vila Bela, em Mato Grosso. Vila Bela da Santíssima Trindade foi objeto do programa, esua planificação urbana foi fielmente posta em prática para criar em 1752 a sede da novacapitania de Mato Grosso, recomendada pelo Conselho Ultramarino em 1748. Localiza-da próxima ao rio Guaporé, firmava um sistema de comunicação fluvial integrado comBelém do Pará como rota alternativa de abastecimento do Sul, e sua fundação visava es-tabelecer estrategicamente um ponto de observação governamental nessa rota.

De modo geral, a escolha das áreas para povoamento imediato buscava localizaçõespróximas às principais vias fluviais da bacia Amazônica, o principal meio de transporte naregião até os nossos dias. Assim é que foram fundadas vilas nos rios Madeira, Tapajós eNegro, além de outras mais para o interior, no rio Xingu. Tais vilas serviam tanto comopostos administrativos nas principais rotas fluviais comerciais como de controle do territó-rio, especialmente naquelas localizadas nas zonas limítrofes do território, como no Amapá,que tinham a função de proteger o território de eventuais incursões dos franceses.

O desenvolvimento urbano na Amazônia ganha impulso com o ciclo da borracha, apartir da segunda metade do século XIX, que estimulou o surgimento de novas aglomera-ções e o desenvolvimento de uma rede urbana da qual Belém e Manaus eram os centros demaior hierarquia. Belém se destacava por concentrar população e os recursos financeiros pa-ra investimento urbano, enquanto Manaus, segunda maior cidade, se responsabilizou pelainteriorização das frentes de exploração da borracha (Kampel, Câmara, Monteiro, 2001).

A decadência do ciclo da borracha desestruturou a rede urbana, esvaziando cidadese fazendo crescer outras aglomerações devido ao êxodo rural das áreas de exploração.Frentes de ocupação surgiram, tendo por esteio a criação de gado ou a exploração de re-cursos naturais (minérios etc.), em Mato Grosso, norte de Goiás, hoje Tocantins, ou noMaranhão com a exploração de arroz. Tal padrão se estende até meados do século XX.

A partir deste período, a questão do desenvolvimento econômico da região passa aser uma preocupação cada vez maior do estado que, por meio de ações deliberadas de pla-nejamento, cria e consolida novos vetores de penetração e de circulação no interior e en-tre os espaços regionais. O espaço regional, ainda marcado pelo povoamento irregular eesparso, também resultado da desarticulação da rede urbana do ciclo da borracha, passa aser pressionado pelos resultados da modernização da indústria e da agricultura no Sudes-te e por seus efeitos na reorganização espacial da produção (Ipea, 2001).

Um dos principais componentes da influência do estado na reorganização dos flu-xos e vetores de ocupação na região é a implantação de uma rede rodoviária que, ao mes-mo tempo que funciona como mecanismo de desmobilização da unidade regional estru-turada no período de exploração da borracha, submete o transporte fluvial a rápidoprocesso de obsoletismo econômico (Ipea, 2001). Os novos vetores de circulação no in-terior são fortemente amparados pelas novas rodovias implantadas na região e pelos in-vestimentos governamentais em infraestrutura por meio de planos de desenvolvimento.

A intervenção do estado na região Amazônica se inicia durante o governo de Getu-lio Vargas em 1953, com a chamada “Marcha para o Oeste”, quando é criada a Superin-tendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA), cujo objetivo erapromover o desenvolvimento da região integrando-a à economia nacional. Tal política se-gue no governo de Juscelino Kubtischek, com o Plano de Desenvolvimento Nacional(PDN), do qual resultam a construção de Brasília e da rodovia Belém-Brasília (BR-010),além de investimentos em redes de comunicação, distribuição de energia elétrica, cons-trução de hidrelétricas e outras rodovias interligando a região ao sul-sudeste e abrindo no-vas frentes de desenvolvimento da agricultura e da indústria.

D . C . G O U V Ê A , P . C . Á V I L A , S . B . R I B E I R O

79R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 80: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

Ao longo dos anos 1960 e 1970, novas frentes de investimentos são executadas, coma ação combinada de recursos públicos e privados por meio de programas oficiais como,por exemplo, a criação da Zona Franca de Manaus (1967), o Programa de Integração Na-cional – PIN (1970); o Programa de Redistribuição de Terras e de Estímulo à Agroindús-tria do Norte e Nordeste – Proterra (1971); o Programa de Pólos Agropecuários e Agro-minerais da Amazônia – Polamazônia (1974), Programa de Desenvolvimento do Cerrado– Prodecer (1974), entre outros, e a criação em 1967 da Superintendência de Desenvol-vimento da Amazônia (Sudam), que extingue a SPVEA.

Fazem parte destes programas desde a implantação de estradas, projetos de incen-tivo ao estabelecimento de indústrias e produção agropecuária até projetos de coloniza-ção da reforma agrária. Grande parte dos projetos de colonização foi criada pelo gover-no federal durante a década de 1970 ao longo de novas rodovias, centralizando aadministração da alocação de terras e distribuindo pequenas propriedades, em geral, me-nores que 100 ha.

Além dos colonos atraídos pelo governo para projetos oficiais de colonização, a ex-pectativa de ocupação fácil das terras disponíveis, acessíveis com a implantação das rodo-vias na região, fez que diversas outras pessoas migrassem espontaneamente para a Amazô-nia. O fracasso de alguns projetos levou o governo a atrair grandes empresas e fazendeirospor meio da oferta de incentivos fiscais para projetos agrícolas e de extração da madeira,em muitos casos com a dispensa de licitação para concessão das terras.

Um caso emblemático é representado pelos resultados alcançados pela abertura daBR-163 (Cuiabá-Santarém), em 1976, que causou uma corrida ao desmatamento e diver-sos conflitos armados de ordem fundiária. A má distribuição e os usos distorcidos da ter-ra em sua região multiplicaram-se, avolumando as tensões sociais.

Pode-se perceber a forte concentração das terras na área de abrangência da BR-163em que, segundo o Cadastro de Imóveis Rurais do Incra, as propriedades com até 100 harepresentam 74,8% do número total, mas ocupam apenas 17,5% da área total dos imó-veis rurais, enquanto os grandes imóveis com mais de 1.500 hectares são 5,9% do total,mas ocupam 54% da área total (Brasil, 2006).

Hoje, importantes estradas se consolidam como os atuais eixos de urbanização daAmazônia: BR-163 (Cuiabá-Santarém), BR-174 (Cáceres/Manaus/Boa Vista), BR-319(Manaus/Porto Velho), BR-153 (Marabá/RS – Transbrasiliana), ou mesmo a BR-230(Transamazônica), além de estradas estaduais, como a PA-150. Ao longo destas rodoviasdiversos projetos de colonização deram origem a várias cidades que hoje servem de sus-tentação à produção agropecuária e à extração da madeira.

No entanto, o processo de colonização não é homogêneo na Amazônia, sendo maisintenso no Acre, Rondônia e Pará. Projetos de colonização como Pedro Peixoto, BoaEsperança, Quixadá, Humaitá e Santa Luzia, entre outros, alteraram o quadro fundiáriodo Acre. Em Rondônia, mais de 90% dos seus municípios são originários de ProjetosIntegrados de Colonização (PICs), como Ariquemes e Ouro Preto, enquanto Roraima eAmapá são áreas praticamente desocupadas e vazias de infraestrutura econômica e social(Cardim, Vieira, Viégas, s.d.).

No Pará, um movimento espontâneo de ocupação de terras devolutas ao sul do es-tado e na região do Bico do Papagaio se manifesta a partir da década de 1980, protago-nizado por população afugentada pela seca do Nordeste, principalmente do Maranhão.Recentemente, esta região também tem recebido grande afluxo de migrantes devido aosprojetos de mineração, especialmente na região de Carajás.

A R E G U L A R I Z A Ç Ã O F U N D I Á R I A U R B A N A

80 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 81: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

O Incra, responsável pela coordenação de toda a colonização e projetos de reformaagrária, não foi capaz de exercer o controle da situação da terra, não só por causa da histó-rica complexidade da ocupação da terra, da corrupção e falta de investimentos para contro-lar a ocupação, mas também devido à ausência de conexão entre os entes federais e esta-duais, entre o sistema cartorário e o sistema cadastral de terras rurais do Incra, abrindoespaço para a ação de grileiros, que levantam dúvidas até mesmo sobre os imóveis da União.

Além disso, os problemas se manifestam dentro e fora dos projetos oficiais de colo-nização, pois pequenos colonos e invasores de terras ocuparam áreas de forma irregular aolongo das principais rodovias na expectativa de legitimar posses de até 100 ha. Outro fa-to que agrava ainda mais os conflitos é que o Incra não emancipou nem titulou áreas pormais de 15 anos, deixando os assentados em total situação de insegurança e dependência,visto que os sustentava por meio de uma série de atividades de apoio, num paternalismopouco racional (idem).

É nesse cenário que várias povoações se desenvolveram e tornaram-se cidades na re-gião Amazônica, especialmente a partir da década de 1970.

O QUADRO URBANO ATUAL DA AMAZÔNIA LEGAL

Os dados do IBGE demonstram o processo de urbanização brasileira de forma acele-rada. Destaca que a população urbana em 1950 representava 36%, aproximadamente 18milhões de habitantes, e em cindo décadas a população chegou a 169 milhões. Hoje, 82%dos brasileiros vivem em cidades. Em 50 anos, a população urbana cresceu mais de 150milhões de habitantes.

A área da Amazônia Legal, segundo o art. 2º da Lei Complementar 124, de 3 de ja-neiro de 2007, engloba todos os municípios dos estados de Roraima, Rondônia, Acre,Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Tocantins, Pará e parte do Maranhão. Totalizando 762municípios, a Amazônia Legal ocupava cerca de 60% do território nacional, sendo que asua população alcançou, segundo dados da Contagem da População de 2007 (IBGE), cer-ca de 22,3 milhões de habitantes ou 12% da população do país.

Entre 1991 e 2000, a taxa de crescimento urbano na Amazônia Legal beirou os 5%ao ano, enquanto no Brasil foi de 2,4% ao ano. Entre 2000 e 2007, o crescimento foi me-nos intenso, porém ainda acima da média nacional, 2,2% contra 1,5%. Para se ter umaideia desse crescimento, entre 1991 e 2007 a população urbana da Amazônia Legal pra-ticamente dobrou de tamanho, passando de 8,9 milhões de pessoas para 16 milhões.

As pequenas e médias cidades da Amazônia apresentam os maiores índices de cres-cimento populacional nas duas últimas décadas e, como salientam Cardoso & Lima(2006), o aspecto fundiário determina a direção da expansão urbana, quando as tensõesno campo desencadeiam uma dinâmica de transformação que rapidamente alcança o pe-rímetro urbano das sedes municipais. O mesmo processo se verifica em aglomeraçõesmais afastadas, que se desenvolvem a partir de cruzamentos de vicinais com a Transama-zônica, por exemplo, onde se localizam alguns dos serviços públicos, como escolas ou ocomércio (Cardoso & Lima, 2006).

D . C . G O U V Ê A , P . C . Á V I L A , S . B . R I B E I R O

81R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 82: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

Tabela 1 – Municípios da Amazônia LegalMunicípios Área População 2007 Taxa de

(1.000 km2) (1.000 hab) urbanizaçãoTotal Urbana

Brasil 5.564 8.498 184.000 153.000 83,2%100% 100% 100% 100%

Amazônia Legal 762 5.016 22.312 15.996 71,7%13,7% 59,0% 12,1% 10,5%

Cidades com menos de 20 mil 637 3.613 8.182 4.056 49,6%habitantes

83,6% 72,0% 36,7% 25,4%Cidades com mais de 20 mil 125 1.403 14.130 11.939 84,5%habitantes

16,4% 28,0% 63,3% 74,6%

Fonte: Contagem da População 2007 (IBGE, 2008).

A taxa de urbanização média hoje na região é de cerca de 72%, sendo que grandeparte da população urbana (75%) está localizada em 125 cidades com mais de 20 mil ha-bitantes (Tabela 1). Os municípios destas cidades apresentam, em conjunto, uma taxa deurbanização de 85%, enquanto os municípios de cidades com menos de 20 mil habitan-tes apresentam uma taxa de urbanização de cerca de 50%.

Em resumo, pode-se afirmar que a Amazônia, apesar do seu enorme patrimônio na-tural, possui uma considerável urbanização, muito embora tal afirmação deva ser encara-da com cuidado em razão das sobreposições entre o rural e o urbano, especialmente nascidades pequenas. Tal advertência se deve ao fato de que muitas cidades se desenvolveramem terras antes destinadas para os assentamentos rurais promovidos em terras da Uniãopelo Incra, no âmbito da reforma agrária. Segundo dados preliminares do Incra, estima-se que existam 169 municípios cujas áreas urbanas incidem em suas terras, e desses, 138são cidades com menos de 20 mil habitantes.

Esse é um indicativo de que a análise da urbanização na Amazônia não deve repetiresquemas teóricos que fazem sua leitura de modo desarticulado da dinâmica territorial,composta também pelas estruturas rurais (Castro, 2006). Desta forma, o espaço geográ-fico do município amazônico é constituído não só pela sede municipal, mas também peloespaço ocupado pelas vilas e agrovilas, planos de assentamento, comunidades ribeirinhas,além das áreas da União plenas de conflitos devido à grilagem de terras para exploraçãomadeireira e ampliação das áreas de pasto (Cardoso & Lima, 2006).

Apesar do grande número de cidades pequenas na região (83,6%), os municípioscom mais de 20 mil habitantes na Amazônia Legal concentram a maior parte da popula-ção urbana, cerca de 1,6 milhão de pessoas ou 63,5% da população vivendo em cidades,como mostra a Tabela 2.

A R E G U L A R I Z A Ç Ã O F U N D I Á R I A U R B A N A

82 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 83: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

Tabela 2 – Municípios da Amazônia Legal com terras do Incra em áreas urbanasMunicípios Área População 2007 Taxa de

(1.000 km2) (1.000 hab) urbanizaçãoTotal Urbana

Cidades com terras do Incra em 169 1.315 4.062 2.596 63,9%áreas urbanas

100% 100% 100% 100%Cidades com menos de 20 mil 138 871 1.922 948 49,3%habitantes

81,7% 66,3% 47,3% 36,5%Cidades com mais de 20 mil 31 443 2.140 1.648 77,0%habitantes

18,3% 33,7% 52,7% 63,5%

Fonte: Contagem da População 2007 (IBGE, 2008).

A situação fundiária de parte ou da totalidade destas 169 cidades se encontra inde-finida, uma vez que, embora suas terras pertençam ao Incra, elas perderam, de fato, suavocação de uso rural, apresentando ocupação urbana consolidada cuja reversão é impos-sível. A manutenção desta situação causa uma série de problemas e entraves ao desenvol-vimento urbano sustentável, e ao cumprimento da função social da propriedade e dacidade, como estabelecidos na Constituição Federal (artigos 182 e 183) e no Estatuto daCidade (Lei 10.257, de 2001).

A falta de segurança quanto às moradias de milhares de famílias devido à falta de re-gistro expõe a população a ameaças constantes de desocupações forçadas e invasões, im-pedindo também o uso econômico destes ativos no acesso a financiamentos. A falta deum responsável formal pelos imóveis também faz com que o poder público fique impos-sibilitado de implementar sua política urbana, especialmente na aplicação dos dispositi-vos de sua política de ordenamento territorial ou de instrumentos fiscais de controle dodesenvolvimento urbano. O município também perde uma importante fonte de recursosuma vez que as transações imobiliárias que ocorrem à margem do registro, em mercadosinformais, faz com que deixem de ser recolhidos os impostos incidentes nestas transações.

Além disso, uma vez que os municípios não detêm, de fato, o domínio das áreas pú-blicas, fica muito difícil a realização de investimentos em infraestrutura, na melhoria dosespaços públicos, na implantação de equipamentos públicos comunitários para atendi-mento das demandas locais de saúde, educação, segurança e outros serviços urbanos, etambém na execução de políticas habitacionais para responder ao crescimento populacio-nal que muitas cidades ainda experimentam.4

O Gráfico 1 mostra como a irregularidade fundiária pode estar afetando o desenvol-vimento urbano destas cidades. Utilizando dados do Censo de 2000, pode-se observarque, enquanto nos municípios da Amazônia Legal, em torno de 57% dos domicílios par-ticulares permanentes urbanos não eram atendidos por rede geral de coleta de esgotos ounão possuíam instalações sanitárias, nos municípios cujas áreas urbanas incidem em ter-ras do Incra, esta proporção era de 72%.

A maior parte destes domicílios (65%) estava nas cidades com mais de 20 milhabitantes, enquanto na Amazônia Legal, esta proporção era de 50% nas cidades acima

D . C . G O U V Ê A , P . C . Á V I L A , S . B . R I B E I R O

83R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

4 A aplicação de recursosobtidos da União para reali-zar investimentos quando ti-ver por objeto a execuçãode obras ou benfeitorias emimóveis está condicionada,pela Instrução Normativa 01de 15 de janeiro de 1997,da Secretaria do TesouroNacional, e pela Portaria In-terministerial MPOG/MF/CGU 127, de 29 de maio de2008, à comprovação doexercício pleno dos poderesinerentes à propriedade doimóvel, mediante certidãoemitida pelo cartório de re-gistro de imóveis competen-te. Uma vez que a maioriados municípios é dependen-te de recursos da União, se-ja por meio de convênios,contratos de repasse ouemendas parlamentares, asituação fundiária indefinidaconstitui sério entrave aoseu desenvolvimento.

Page 84: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

de 20 mil habitantes. Nas cidades menores, com população abaixo de 20 mil habitantes,a proporção se manteve praticamente equivalente, entre 83% e 85%.

O mesmo Gráfico 1 mostra que nas 169 cidades com terras do Incra, cerca de 51%dos domicílios particulares permanentes não eram atendidos por rede de água, enquantona Amazônia Legal esta proporção beirava os 33% em 2000. Tanto as cidades acima de20 mil habitantes como aquelas abaixo deste patamar na Amazônia Legal apresentam pre-cariedade inferior no abastecimento de redes de água potável em relação aos municípioscujas áreas urbanas são incidentes em terras do Incra.

Gráfico 1 – Domicílios sem atendimento por redes de esgotos e de água na Amazônia Legal.

Fonte: Censo Demográfico, 2000 (IBGE).

De modo geral, os municípios com áreas urbanas em terras do Incra reuniam ape-nas 15,4% do total de domicílios particulares permanentes urbanos da Amazônia Legalem 2000, mas somavam cerca de 24% dos domicílios sem acesso à rede de água e 20%dos domicílios sem coleta de esgotos. A impossibilidade da realização de investimentospúblicos nestas áreas compromete o desenvolvimento social da população, gerando tam-bém impactos negativos de ordem econômica e ambiental. Ao fim e ao cabo, os entravesgerados pela irregularidade fundiária das áreas citadas comprometem o desenvolvimentosustentável das cidades de modo geral.

A GESTÃO URBANA NA AMAZÔNIA LEGAL

Embora o quadro geral urbano dos municípios na Amazônia Legal seja bastante pre-cário, especialmente naqueles cujas áreas urbanas são incidentes em terras do Incra, a Pes-quisa do Perfil dos Municípios Brasileiros de 2008 realizada pelo IBGE detectou que a

A R E G U L A R I Z A Ç Ã O F U N D I Á R I A U R B A N A

84 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 85: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

região dispõe de médias superiores às do Brasil no que diz respeito a alguns instrumentosde política e planejamento urbanos à disposição dos municípios.

A Tabela 3 mostra, por exemplo, que enquanto em 1985 apenas 8,8% dos municí-pios da Amazônia Legal dispunham de Plano Diretor, esta proporção em 2008 subiu pa-ra quase 36% dos municípios, enquanto no Brasil subiu de 14,5% para 33,8% no mes-mo período. Tal crescimento pode ser atribuído à campanha de elaboração de PlanosDiretores Participativos implementada pelo Ministério das Cidades, em cumprimento aosdispositivos do Estatuto da Cidade.

Tabela 3 – Instrumentos de política e planejamento urbano – Brasil e Amazônia LegalMunicípios Total Plano Plano Legislação Programas Conselho

Diretor Diretor Regularização de Regula- Municipal2005 2008 Fundiária rização de Política

2008 Fundiária Urbana 2008 2008

BrasilTotal 5.564 805 1.878 843 593 1.066

- 14,5% 33,8% 15,2% 10,7% 19,2%Amazônia LegalTotal 762 67 273 153 104 144

- 8,8% 35,8% 20,1% 13,6% 18,9%Mais de 20 mil 125 29 114 60 40 68habitantes

- 23,2% 91,2% 48,0% 32,0% 54,4%Menos de 20 mil 637 38 159 93 64 76habitantes

- 6,0% 25,0% 14,6% 10,0% 11,9%Amazônia Legal com terras do IncraTotal 169 19 77 52 65 44

- 11,2% 45,6% 30,8% 38,5% 26,0%Mais de 20 mil 31 4 29 17 22 17habitantes

- 12,9% 93,5% 54,8% 71,0% 54,8%Menos de 20 mil 138 15 48 35 43 27habitantes

- 10,9% 34,8% 25,4% 31,2% 19,6%

Fonte: Perfil dos Municípios Brasileiros, 2008 (IBGE).

Sem entrar na questão da qualidade dos planos ou na sua efetiva implementação, osnúmeros indicam que na Amazônia Legal o crescimento proporcional de cidades que for-mularam novos Planos Diretores para orientar sua política urbana à luz do Estatuto daCidade foi maior que no resto do país. Naquelas com mais de 20 mil habitantes (125)com obrigatoriedade de ter seus planos diretores, em torno de 91% cumprem a determi-nação, ao passo que naquelas com menos de 20 mil habitantes, em torno de 25% pos-suem planos diretores.

D . C . G O U V Ê A , P . C . Á V I L A , S . B . R I B E I R O

85R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 86: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

Estas médias são ainda maiores em relação às cidades onde as áreas urbanas incidemem terras do Incra – e apresentam, para as com mais de 20 mil moradores e com popu-lação inferior a esse limite, respectivamente, 93,5% e 38% com plano diretor.

Pode-se especular que isso esteja relacionado ao fato de que a forte ação do estadono planejamento da ocupação da Amazônia possa ter criado uma maior propensão dasmunicipalidades amazônicas em criar instrumentos próprios de política e planejamentourbano, especialmente nas cidades com terras do Incra, oriundas, em muitos casos, deprojetos de assentamentos rurais.

Mas tal afirmação pode não corresponder ao que se observa na prática quando severifica o grau de descontrole na ocupação do território, especialmente em municípioscom forte pressão demográfica em virtude da implementação de grandes projetos demineração, avanço da fronteira agrícola ou projetos de infraestrutura, como as barragens.Por outro lado, a ineficácia dos instrumentos de planejamento em controlar processosintensos de crescimento urbano parece ser a regra no país, e não uma exceção na RegiãoAmazônica.

No que se refere à regularização fundiária, as médias na Amazônia Legal também su-peram às encontradas no restante do país. Enquanto naquela região cerca de 20% dosmunicípios possuem legislação específica que dispõe sobre regularização fundiária e emtorno de 14% possuem plano ou programa específico de regularização fundiária, no Bra-sil estas médias são de 15% e 11%, respectivamente. Nos municípios com terras do Incraem áreas urbanas, estas médias são, respectivamente, de 31% e 38% aproximadamente.

Destaca-se também que dos 762 municípios da Amazônia legal, por volta de 19%possuem Conselho Municipal de Política Urbana, Desenvolvimento Urbano, ou órgão se-melhante, ao passo que no Brasil esta proporção é de pouco mais de 19%.

Embora as médias apresentadas pelos municípios da Amazônia legal em termos dedisponibilidade de instrumentos de política e planejamento urbano sejam superiores ousemelhantes às apresentadas pelo país, muito ainda necessita ser feito não só na constru-ção desse arsenal nos municípios que ainda não dispõem dos instrumentos necessários àgestão do crescimento de suas áreas urbanas, mas também na capacitação de todos os mu-nicípios na efetiva implementação de suas políticas de desenvolvimento.

Verifica-se que um dos grandes entraves à implementação de políticas e planejamen-to urbano é a baixa capacidade dos municípios em termos humanos e materiais. Destaforma, o apoio de estados e da União na capacitação de técnicos e no aparelhamento dosgovernos locais são desafios urgentes a serem enfrentados. Tal desafio é mais flagrante na-queles municípios que enfrentam intensos processos de crescimento urbano, no bojo dosinvestimentos públicos e privados realizados na região, muitas vezes acompanhados da so-breposição de conflitos agrários, ambientais e fundiários.

A POLÍTICA DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIAURBANA PARA A AMAZÔNIA LEGAL

Desde a extinção do BNH em 1996, o governo federal se ausentou em desempenharum papel mais ativo de proposição de uma política de desenvolvimento urbano e habita-cional para o país que fosse além de programas pontuais e isolados. Com o Estatuto daCidade em 2001 e a criação do Ministério das Cidades em 2003, em que pese os equívo-cos e desafios ainda presentes, avanços de âmbito nacional podem ser sentidos.

A R E G U L A R I Z A Ç Ã O F U N D I Á R I A U R B A N A

86 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 87: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

O Ministério das Cidades, criado a partir de uma antiga demanda do movimentopela reforma urbana, procurou integrar os setores de habitação, planejamento urbano, sa-neamento ambiental e transportes em um mesmo ministério. O Ministério foi assim es-truturado em quatro Secretarias Nacionais e um Conselho das Cidades. O Conselho dasCidades nasceu como órgão colegiado deliberativo e consultivo, tendo por finalidade es-tudar e propor diretrizes para a formulação e implementação da Política Nacional de De-senvolvimento Urbano.

Entre as quatro Secretarias Nacionais criadas, coube à Secretaria Nacional de Progra-mas Urbanos – SNPU o papel de apoiar estados, municípios e entidades civis na elabora-ção e implementação dos Planos Diretores Participativos e na Regularização FundiáriaPlena. O Programa de Apoio à Regularização Fundiária Sustentável – Programa PapelPassado, criado junto com o Ministério das Cidades e coordenado pela SNPU, tem três es-tratégias básicas: • apoiar os estados, municípios e entidades civis sem fins lucrativos na promoção da re-

gularização fundiária de assentamentos de baixa renda em áreas urbanas;• remover os obstáculos existentes na legislação;• capacitar os agentes que promovem a regularização fundiária, incluindo os gestores e

técnicos municipais e os operadores do Direito. Decorridos seis anos do Programa de Apoio à Regularização Fundiária Sustentável,

os resultados obtidos mostram que a regularização fundiária já se integrou às agendas mu-nicipais e estaduais de política urbana. Um número significativo de municípios de todoo país já se encontra desenvolvendo programas ou projetos de regularização fundiária.

Segundo dados do monitoramento da SNPU, até dezembro de 2009 foram contabi-lizados 2,6 mil assentamentos em processo de regularização em 472 municípios, com 1,7milhão de famílias com processos de regularização fundiária iniciados. Deste total, 370mil famílias receberam o título de propriedade ou posse do seu lote, sendo que 137 mildesses títulos foram devidamente registrados nos cartórios de registro de imóveis. Nosestados da Amazônia Legal, são 176 assentamentos em processo de regularização em 65municípios, beneficiando 473 mil famílias. Deste total, 118,4 mil famílias receberam otítulo de propriedade ou posse do seu lote, e 45,4 mil deles foram devidamente registra-dos nos cartórios de registro de imóveis.

Estes números são importantes, mas não suficientes, pois o atual universo de infor-malidade urbana, de acordo com estimativas realizadas pelo Ministério das Cidades combase nos dados do Censo de 2000 do IBGE, ultrapassa 12 milhões de moradias, habitadaspor famílias com renda mensal de até 5 salários mínimos. Na Amazônia Legal, este totalsupera um milhão de moradias, podendo ser ainda mais elevado se forem contadas as pos-ses e permissões com títulos precários.

Apesar de todos os esforços já realizados para o apoio à implementação de progra-mas de regularização em todo o país, existem especificidades regionais que ainda criamobstáculos, questões que acabam não sendo tratadas nas legislações de caráter geral for-muladas para todo o país. Deste modo, na Amazônia Legal é necessária a retirada de vá-rios obstáculos que hoje burocratizam e até mesmo impedem a regularização fundiária emterras da União, juntamente com ações específicas que qualifiquem e agilizem os proces-sos de regularização fundiária na região.

Um destes entraves refere-se à legislação disponível até 2009 para a transferência deterras devolutas da União ou do Incra, remanescentes de núcleos de reforma agrária, aosmunicípios da Amazônia Legal. A Lei 6.431, de 11 de julho de 1977, e a lei 5.954, de

D . C . G O U V Ê A , P . C . Á V I L A , S . B . R I B E I R O

87R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 88: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

3 de dezembro de 1973, nunca surtiram o efeito desejado, uma vez que deixavam muitaslacunas nos procedimentos de como se daria o processo de transferência destas áreas, ge-rando longos e incertos ritos de transferência de terras, muitas vezes com exigências difí-ceis de serem cumpridas pelos municípios.

Outros fatores se ligam ao complexo emaranhado de títulos e certidões presentes eàs incertezas quanto ao registro de terras na Amazônia, conforme relatado no início des-te artigo, que põem em dúvida até o registro de terras da União. Isso sem mencionar osnotórios casos de corrupção nos cartórios, como livros guardados nas casas dos registra-dores, cartórios que se incendeiam mais de três vezes, livros mal preservados e concessõesirregulares de títulos por municípios e estados.

Como resultado, o fato é que raras foram as ações de destinação de terras pelo gover-no federal na Amazônia Legal aos municípios que chegaram a uma resolução desde a déca-da de 1980, o que abriu espaço para a intensificação do ambiente de instabilidade jurídica,resultando no aumento da ocupação desordenada alimentada pela grilagem de terras, o que,por sua vez, levou ao acirramento dos conflitos agrários e ao avanço do desmatamento.

Na busca por uma solução para esta grave questão, em 2009 foi iniciada uma açãocompartilhada com vários órgãos federais, estaduais e municipais a fim de se construiruma ação nacional ampla para a regularização de áreas rurais e urbanas na Amazônia Le-gal. Em 10 de fevereiro de 2009, o governo editou a Medida Provisória 458, com o ob-jetivo de adequar os dispositivos legais de modo a permitir que a doação das terras daUnião seja implementada de forma mais célere apara a regularização das ocupações inci-dentes tanto nas áreas rurais como nas áreas urbanas.

A MP 458, depois de polêmica discussão no Congresso Nacional e com a sociedadeem geral, foi finalmente convertida na Lei 11.952, de 25 de junho de 2009. Esta lei, emque pese o desagrado de alguns setores quanto a alguns dispositivos vinculados à questãoda alienação de terras nas áreas rurais, especialmente grupos de defesa do meio ambienteque alegaram que a doação das terras incentivaria o desmatamento e a ocupação desorde-nada, constitui um importante marco na regularização fundiária na Amazônia Legal.

A NOVA LEGISLAÇÃO PARA REGULARIZAÇÃOFUNDIÁRIA DE ÁREAS URBANAS NA AMAZÔNIA LEGAL

A regularização fundiária e urbanística das áreas de propriedade do Incra na Amazô-nia Legal que perderam sua vocação para o uso rural é uma condição necessária e funda-mental para trazer à legalidade porções consideráveis de muitas cidades. A edição da MP 458, convertida na Lei 11.952, simplifica os procedimentos e exigências para a doa-ção ou concessão de terras do Incra e da União aos municípios, de modo a realizar a re-gularização fundiária de suas áreas urbanas.

A nova lei estabelece que as doações e concessões de terras da União ou do Incra pos-sam ser efetuadas tanto em áreas com ocupações urbanas consolidadas como em áreas deexpansão urbana, desde que as demandas sejam enquadradas nos critérios específicos de-finidos na nova legislação e sua regulamentação.

As áreas com ocupações urbanas consolidadas serão aquelas onde existe sistema viá-rio implantado, pavimentado ou não, e que tenha ocupação caracterizada como urbana,isto é, moradias, áreas de comércio e serviços, equipamentos urbanos, e outros usos; bas-

A R E G U L A R I Z A Ç Ã O F U N D I Á R I A U R B A N A

88 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 89: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

tando o requerente da destinação das áreas comprovar as condições de ocupação com usourbano, por meio de imagens ou levantamento fotográfico e laudo comprovando a perdada vocação rural da área. A área de expansão urbana é definida como a área ou conjun-to de áreas previstos em Plano Diretor ou lei municipal específica de ordenamento ter-ritorial urbano, sem ocupação para fins urbanos já consolidados e que também tenhamperdido sua vocação para uso rural.

A solicitação de doação de áreas ou de concessão de direito real de uso deverá ser en-caminhada pelo município ao Ministério do Desenvolvimento Agrário ou à Secretaria doPatrimônio da União. No primeiro caso, quando se tratar de áreas arrecadadas ou admi-nistradas pelo Incra e, no segundo, quando se tratar de áreas da União, que, após análiseda Secretaria do Patrimônio da União, poderão ser repassadas por meio de concessão dedireito real de uso.

De modo a identificar a área pretendida em relação aos registros do Incra ou daUnião, a prefeitura municipal deverá apresentar também a planta georreferenciada do pe-rímetro da área acompanhada do respectivo memorial descritivo. O Incra, em conjuntocom a SPU, identificará o posicionamento correto da área em relação às glebas registradasem nome do Incra ou da União e fará o devido destaque para realizar a doação ou a con-cessão da área ao município, caso não haja nenhum impedimento, como títulos definiti-vos concedidos a particulares, desapropriações ou outros obstáculos.

No caso de áreas para expansão urbana, o município deverá apresentar, também, leido Plano Diretor ou da lei municipal específica contendo o ordenamento territorial ur-bano, de acordo com os quesitos exigidos pela regulamentação da lei. Basicamente, pre-tende-se que para a obtenção das áreas o município defina minimamente as diretrizes pa-ra a sua ocupação, ou seja, as diretrizes para proteção ambiental e do patrimônio históricoe cultural, parâmetros urbanísticos de parcelamento, uso e ocupação do solo urbano, den-sidade populacional, sistema viário, infraestrutura e delimitação de Zonas Especiais de In-teresse Social.

O ordenamento territorial urbano deverá adequar-se às disposições da lei do PlanoDiretor Municipal, quando houver, e aos princípios do Estatuto da Cidade, devendo serapresentado em audiência pública e ao Conselho Municipal da Cidade ou similar, quan-do houver. Esta exigência visa possibilitar uma ampla discussão da necessidade de expan-são urbana do município ou de implantação de novas áreas urbanas.

Deve-se destacar que a exigência de apresentação do ordenamento territorial não écolocada para a doação de terras incidentes em áreas com ocupações urbanas consolida-das. Tal procedimento se justifica no sentido de preservar e garantir o direito de moradia,remediando as situações de insegurança da posse. Ademais, a exigência de Planos Direto-res para municípios com menos de 20 mil habitantes seria uma exorbitância da lei, umavez que tal exigência não é prevista no Estatuto da Cidade ou na Constituição Federal.

Embora desejável, o ordenamento territorial consubstanciado em planos diretoresincide apenas nos municípios com população acima de 20 mil habitantes. Além disso,conforme foi visto, dos 31 municípios com mais de 20 mil habitantes com terras do In-cra em áreas urbanas, 29 já possuem planos diretores, enquanto 35% dos 138 municípioscom menos de 20 mil habitantes com terras do Incra em áreas urbanas possuem planosdiretores. Assim, a exigência de ordenamento territorial para estes municípios, a maioriados quais sem recursos, poderia inviabilizar a regularização fundiária das áreas urbanas,condenando os seus moradores a uma permanente situação de insegurança em relação àssuas moradias.

D . C . G O U V Ê A , P . C . Á V I L A , S . B . R I B E I R O

89R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 90: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

As terras da União ou do Incra só serão destinadas aos municípios após consulta àSecretaria do Patrimônio da União (SPU), Fundação Nacional do Índio (Funai), ServiçoFlorestal Brasileiro (SFB), Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade(ICMBio) e Ministério das Cidades. Quando as terras se situarem em faixas de fronteira,também o Conselho de Defesa Nacional (CDN) será consultado.

Os títulos de doação ou de concessão de direito real de uso deverão ser registradosno Registro Geral de Imóveis em favor do município e deverão prever a regularização fun-diária dos lotes ocupados em favor dos efetivos ocupantes, de acordo com a Lei 11.952,de 2009. A regularização a favor dos ocupantes será efetuada da mesma forma que ocor-rer a destinação das terras ao município, isto é, por doação nas terras do Incra ou Con-cessão de Direito Real de Uso (CDRU) nas áreas concedidas pela SPU.

A alienação das áreas para os moradores será gratuita para aqueles que tenham in-gressado na área antes de 10 de fevereiro de 2009 e que atendam às seguintes condições:não possuir renda familiar mensal superior a 5 salários mínimos, ocupe área urbana de até1.000 m2, sem oposição, por no mínimo um ano ininterrupto, utilize o imóvel como úni-ca moradia e não seja proprietário ou possuidor de outro imóvel urbano ou rural acimade quatro módulos fiscais.

A prefeitura municipal poderá também alienar de forma onerosa, precedida de lici-tação com direito de preferência, das áreas entre 1.000 m2 e 5.000 m2, desde que se com-prove a ocupação por um ano ininterrupto, sem oposição, até 10 de fevereiro de 2009.Acima dos 5.000 m2, as áreas serão alienadas por licitação aberta.

Além disso, no artigo 35 da nova lei, está prevista a gestão democrática dos proces-sos de aplicação da nova legislação, com a instituição de comitê constituído de represen-tantes da sociedade civil organizada que atue na Região Amazônica. Esta inclusão éimportante, pois permitirá que as atividades de doação de terras e regularização fundiá-ria possam ser definidas, avaliadas e monitoradas com transparência em conjunto pelo po-der público e pela sociedade civil.

Finalmente, a lei estabelece que os estados da Amazônia Legal aprovem no prazo detrês anos, a contar da data de vigência da lei, mediante lei estadual, seus ZoneamentosEcológico Econômico – ZEEs, sob pena de não poderem celebrar convênios com a Uniãoaté que tal obrigação seja adimplida. Este dispositivo é eficiente na medida em que esti-mula a elaboração dos ZEEs a fim de garantir o desenvolvimento econômico sustentávelda região.

Para a implementação da nova lei e das ações por ela prevista, foi criado o Progra-ma Terra Legal, lançado em junho de 2009 e coordenado pelo Ministério do Desenvol-vimento Agrário – MDA, com participação do Ministério das Cidades, Secretaria do Pa-trimônio da União e demais órgãos envolvidos. As ações de regularização fundiária doprograma se sobrepõem a outras ações do governo, como a Operação Arco Verde, dire-cionada ao desenvolvimento sustentável de 43 municípios da Amazônia com os maioresíndices de desmatamento ilegal do país, e o Territórios da Cidadania, que tem como ob-jetivo promover o desenvolvimento econômico sustentável e universalizar programas bá-sicos de cidadania.

Segundo dados do Programa Terra Legal, mais de 73 mil posseiros já foram cadas-trados para a regularização de posses rurais de até 15 módulos fiscais (cerca de 1.140 hec-tares), com área declarada de mais de 8,2 milhões de hectares até junho de 2010. Nas ter-ras incidentes em áreas urbanas, o MDA já demarcou o perímetro de cerca de 95 áreasurbanas em sedes e vilas de 87 municípios, cujos processos de destinação das terras já

A R E G U L A R I Z A Ç Ã O F U N D I Á R I A U R B A N A

90 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 91: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

foram iniciados, o que beneficiará mais de 5 mil famílias. O programa já fez a doação em2009 de uma área ao município de Porto Velho, correspondente aos bairros Socialista eJardim Santana, nos quais habitam cerca de 20 mil pessoas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um ponto fundamental para a reversão do quadro de irregularidades fundiárias nascidades da Amazônia é a presença mais sólida do estado nas áreas inóspitas da região. Es-ta reversão depende de diversos fatores que envolvem ações específicas dos governos fe-deral e estadual na remoção de obstáculos legais para a destinação das áreas públicas aosseus efetivos ocupantes, passando pela alocação de recursos financeiros e melhoria da ca-pacidade de gestão das prefeituras, por meio do apoio do Ministério das Cidades e dosórgãos de Planejamento e dos Institutos de Terras dos estados. Passa também pela rees-truturação dos cartórios da região.

O Conselho de Justiça Federal destaca que a situação encontrada nos cartórios doestado do Pará reclama providências urgentes de preservação da instituição de registrose notarial e medidas correcionais que visem sanar a insegurança jurídica na questão daposse e domínio das terras, campo fértil para fraudes financeiras e causa, ainda que re-mota, dos conflitos fundiários urbanos e rurais (CNJ, 2009). A situação do Pará, talveza mais crítica na Amazônia, cujos registros de terras podem chegar a três vezes a área doestado, exemplifica a confusão que é o sistema de registros na região. No Acre, sobre-põe-se ainda um outro elemento a completar a mixórdia de registros existentes, os títu-los bolivianos.

Diversas cidades da Amazônia, especialmente as pequenas e médias, enfrentamacelerado processo de crescimento, seja por conta de grandes projetos de infraestrutu-ra, como a construção das hidrelétricas de Girau e Santo Antônio no Rio Madeira, quetêm atraído grandes contingentes populacionais para Porto Velho, Rondônia, seja pela crescente atividade mineradora na região de Carajás, que tem pressionado o cres-cimento das cidades na região, tanto nas áreas de avanço da fronteira agrícola, no nor-te do Mato Grosso, Rondônia, sul do Amazonas e do Pará, como nas periferias dasgrandes capitais da região, Belém e Manaus. A este crescimento sobrepõem-se proble-mas de ordem urbanística, social, econômica e ambiental e as dificuldades que a maiorparte dos governos locais apresentam no ordenamento do crescimento de suas cidadessão múltiplas.

A nova legislação aplicável à regularização fundiária na Amazônia Legal, em que pe-se o objetivo de agilizar os procedimentos administrativos e legais que tornarão possívela concretização da regularização das cidades e o planejamento da ocupação territorial embases sustentáveis, e as ações do Programa Terra Legal para implementação da lei não sãosuficientes. Verifica-se que, assim como grande número dos municípios brasileiros, amaior parte dos municípios amazônicos possui limitações técnicas e financeiras para a concretização dos processos de regularização e de implementação das suas políticas dedesenvolvimento urbano. Esse parece ser o grande entrave para a regularização fundiáriaurbana na Amazônia.

A melhoria institucional dos governos municipais da Amazônia é urgente, seja naquestão da ampliação de receitas próprias, seja na capacitação de técnicos para formula-ção de políticas e planejamento das cidades. O Ministério das Cidades executa diversas

D . C . G O U V Ê A , P . C . Á V I L A , S . B . R I B E I R O

91R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 92: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

ações de capacitação e assistência técnica em planejamento e gestão urbana, com o obje-tivo de fortalecer a capacidade técnica dos municípios para elaborar estratégias de desen-volvimento que viabilizem os investimentos em infraestrutura social e urbana, sendo im-portante ampliar as ações do Ministério na região.

Assim é que, ao mesmo tempo em que se altera o arcabouço legal que permite quea regularização fundiária urbana se dê de modo mais célere e com procedimentos especí-ficos, como aqueles apontados na nova Lei 11.977, de 2009, que trata em seu capítulo IIIda regularização fundiária, é preciso investir mais fortemente na capacitação e sensibiliza-ção dos agentes locais da regularização fundiária, incluindo os gestores e técnicos muni-cipais, capacitação de notários e registradores, como aponta o relatório do CNJ (2009), edos operadores do Direito.

Nada adianta a evolução da normativa aplicável à regularização se os entes que de-cidem ainda estão apegados a conceitos e abordagens já superadas pela norma.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Grupo de Trabalho Interministerial – Plano BR-163 Sustentável. Plano de De-senvolvimento Regional Sustentável para a Área de Influência da Rodovia BR-163 Cuia-bá-Santarém. Brasília: Casa Civil da Presidência da República, jun./2006.__________. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo Demográficode 2000. In: http://www.sidra.ibge.gov.br. Acesso em abril/2009.__________. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Contagem da Popu-lação 2007. In: http://www.sidra.ibge.gov.br. Acesso em abril/2009.__________. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Perfil dos MunicípiosBrasileiros 2008. In: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/perfilmunic/2008/. Acesso em maio/2009.CARDIM, S. E.C. S.; VIEIRA, P. T. L.; VIÉGAS, J. L. R. Análise de estrutura fundiáriabrasileira. In: http://www.nead.org.br/index.php?acao=biblioteca&publicaçãoID=95.Acesso em 27.04.2010.CARDOSO, A. C. D.; LIMA, J. J. F. Tipologias e padrões de ocupação urbana na Ama-zônia Oriental: para que e para quem? In: CARDOSO, A. C. D. (org.) O rural e o urba-no na Amazônia: diferentes olhares em perspectivas. Belém: UFPA, 2006.CASTRO, E. Prefácio. In: CARDOSO, A. C. D. (org.) O rural e o urbano na Amazônia:diferentes olhares em perspectivas. Belém: UFPA, 2006.CNJ. Conselho Nacional de Justiça. Auto Circunstanciado de Inspeção Serviços Nota-riais e Registrais do Estado do Pará, Portaria nº 151 de 6 de julho de 2009.DELSON, R. M. Novas vilas para o Brasil-Colônia: planejamento espacial e social no sé-culo XVIII. Trad. Fernando de Vasconcelos Pinto. Brasília: Alva-Ciord, 1997.FERNANDES, E. Regularização de assentamentos informais: o grande desafio dos mu-nicípios, da sociedade e dos juristas brasileiros. In: BRASIL, Ministério das Cidades. Re-gularização Fundiária Plena: Conceitos e Diretrizes. Brasília, 2007. IMAZON. Política e administração fundiária na Amazônia. Palestra proferida no Semi-nário Internacional sobre “O desafio da regularização fundiária da Amazônia” organiza-do pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE) e BancoMundial (BM). Brasília, 24-25 de novembro de 2008. In: http://www.imazon.org.br/.Acesso em 05.07.2009.

A R E G U L A R I Z A Ç Ã O F U N D I Á R I A U R B A N A

92 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Denise de Campos Gou-vêa é arquiteta e mestre emPlanejamento Urbano (UnB);assessora técnica do Minis-tério das Cidades e profes-sora do curso de Arquitetu-ra e Urbanismo, FaculdadesIntegradas do Planalto Central – FACPLAC. E-mail:[email protected]

Paulo Coelho Ávila é arqui-teto e mestre em Planeja-mento Urbano (UnB) e ana-lista de Infraestrutura doMinistério das Cidades. E-mail: [email protected]

Sandra Bernardes Ribei-ro é arquiteta e mestre emPlanejamento Urbano (UnB),e gerente de Projetos do Mi-nistério das Cidades. E-mail:[email protected]

Artigo recebido em marçode 2009 e aprovado parapublicação em setembro de2009.

Page 93: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

IPEA. Caracterização e tendências da rede urbana do Brasil: redes urbanas regionais: Nor-te, Nordeste e Centro-Oeste. IPEA, IBGE, Unicamp/IE/Nesur. Brasília: IPEA, 2001.KAMPEL, S. A.; CÂMARA, G.; MONTEIRO, A. M. V. Análise espacial do processo deurbanização da Amazônia. Relatório Técnico. Brasília: Ministério da Ciência e Tecnolo-gia/INPE – Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Dezembro de 1991. In: http://www.dpi.inpe.br/geopro/modelagem/MARICATO, E. A terra é um nó na sociedade brasileira... Também nas cidades. Cultu-ra Vozes, 6 (93), p. 7-22, 1999.ROLNIK, R. A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na Cidade de SãoPaulo. 2.ed. São Paulo: Studio Nobel/Fapesp, 1999.

A B S T R A C T This article reviews how the irregular occupation of land in theAmazon region generated conflicts that claimed for a federal law for a resolution. In the1970's, to stimulate occupation of the region, the federal government developed programs togive away public land to settlers and firms willing to explore the region, under thecoordination of INCRA, the national government agency for agrarian reform. However, lackof a rigorous process of land distribution and oversight of land use allowed the formation andgrowth of cities in several rural settlements. This resulted in many urban areas where insecureland tenure affects thousands of housing and public buildings overall in the region. To resolvethis situation, the federal government edited the Federal Law 11,952 in 2009, establishingthe specific conditions and regulations to transfer federal land to the municipalities in order toregularize land ownership and promote sustainable urban development.

K E Y W O R D S Land regularization; Amazonian Region; urbanization; urbandevelopment; insecure land tenure.

D . C . G O U V Ê A , P . C . Á V I L A , S . B . R I B E I R O

93R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 94: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA
Page 95: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

A ATUAÇÃO DO MONTEPIO NA PRODUÇÃO ESTATAL DE HABITAÇÃO

EM JOÃO PESSOA DE 1932 A 1963

A N G E L A A R A U J O N U N E S

R E S U M O Este trabalho objetiva o exame da atuação da Carteira Imobiliária doMontepio do Estado da Paraíba na produção estatal de habitação na cidade de João Pessoa,de 1932 a 1963, período entre a designação da instituição para a produção de moradias embenefício do funcionalismo público até sua última realização antes da criação do BNH. Atra-vés de exaustiva pesquisa documental, realizada em acervos locais, e tendo como principal fon-te o jornal A União, registro oficial das realizações do Executivo estadual, foram recolhidos da-dos sobre as realizações habitacionais do instituto, possibilitando a identificação das suas vilase conjuntos populares e, posteriormente, a classificação das unidades construídas e a reconsti-tuição da planta e fachada originais.

P A L A V R A S - C H A V E Montepio; João Pessoa; carteira imobiliária; habita-ção popular.

INTRODUÇÃO

A questão habitacional, entendida como necessidade de provisão de uma morada pa-ra as classes menos abastadas, teve sua origem e consolidação nas transformações sociais,políticas, econômicas e culturais ocorridas a partir do século XVIII, com a Revolução In-dustrial. Baseado na insalubridade e degradação produzidas pela inadequada confluênciapopulacional, o poder público foi compelido a intervir, primeiro através de medidas sa-nitaristas, e em seguida com a determinação de leis e normas que buscavam, além da hi-giene, a necessária disciplina construtiva para a edificação das casas e alojamentos operá-rios e populares.

Ainda assim, o fornecimento de moradia para aqueles desfavorecidos, tardou a serencarado como uma responsabilidade estatal. A habitação do operário, do trabalhador, dopobre continuava destinada ao especulador privado e, lentamente, o Estado chegou aoposto de agente direto responsável por conter e eliminar o déficit habitacional.

Por conta da insustentável condição urbana que se formara e pela pressão popular,o empenho governamental direcionou-se para ações concretas, como a construção de ca-sas, vilas, conjuntos e até bairros inteiros para a população desprovida. Desta forma, aatuação pública tornava habitação subsidiada um sinônimo de habitação popular. O re-sultado construído do comprometimento governamental passou a ser elemento não só ar-quitetônico, mas político, econômico e social na formação das cidades, e casa subsidiadatornou-se um definidor do espaço urbano.

Até a década de 1930, a Europa já apresentava um amadurecimento pioneiro naquestão habitacional. Em parte, devido às transformações urbanas desencadeadas pelaRevolução Industrial, mas, fundamentalmente, devido às experiências ocorridas após aPrimeira Grande Guerra, com o envolvimento estatal no provimento de habitação parao trabalhador.

95R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 96: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

Em João Pessoa, encontramos duas etapas distintas, balizadas pela forma de atuaçãodos governos locais. A primeira se situa entre o surgimento e a afirmação do processo demecanização da produção. Nesta fase, o Estado, em suas várias esferas, ocupou-se apenasindiretamente da resolução do problema, através da criação e implementação de leis sani-tárias e mecanismos burocráticos para obtenção de moradia, ficando no âmbito privadoa maioria das obras construídas. O outro momento se situa no período entre-guerras,quando a iniciativa pública direciona-se ao cooperativismo, com incentivo direto para arealização de moradias através de instituições de origem previdenciária. Mesmo que estafase tenha sido marcada pelo início da construção em massa de edificações e conjuntoshabitacionais, o Estado ainda não assumia a posição de promotor ou executor da mora-dia popular, apenas mostrava-se disposto a colaborar com os institutos e organizações queobjetivavam concretizar a habitação para seus associados. Esta forma de atuação estatal,seja pela comodidade burocrática ou pelo sucesso construtivo, tornou-se um modelo departicipação reproduzido em diversos países, como no caso brasileiro, por exemplo, ondea maior parte da habitação realizada pelo governo provinha de sociedades mutuárias.

No Brasil, destaca-se a produção de moradia pelo Estado pela atuação do SistemaFinanceiro de Habitação (SFH) através do Banco Nacional de Habitação (BNH), criadoem 1964, tanto por ser o primeiro executor de uma política habitacional no país, quan-to pela quantidade de unidades que foram construídas. Mas as experiências anteriorestambém desempenharam importante papel na tentativa de prover moradia popular.

As primeiras manifestações de preocupação com a problemática habitacional remon-tam ao período final do Império. Contudo, as ações governamentais para aqueles que nãotinham condições de obter moradias sem ajuda começaram a ser realizadas apenas a partirdo século XX, quando as cidades do país, ainda eminentemente agrário, consolidavam-secomo centros urbanos e “modernos” nos moldes europeus, mas com grande parte da po-pulação composta por escravos libertos.

Enquanto as cidades cresciam, a estrutura urbana entrava em colapso, como no ca-so europeu, por questões de aglomeração populacional e deterioração do espaço, agrava-das pelas condições de moradia dos necessitados. O governo brasileiro, em suas diferen-tes esferas de atuação, perseguiu as mais distintas soluções para sanar a dificuldadehabitacional da população pobre ou do trabalhador humilde. Até dar execução direta-mente à construção de casas, o Estado colocou-se como incentivador da construção pri-vada e como executor de uma rígida postura higienista para garantir o controle sobre acidade e “resolver” a questão habitacional.

No princípio, a ação do poder público foi incipiente, com poucas realizações con-cretas e poucas unidades construídas. O embrião de uma política habitacional só se for-mou a partir da República Nova (1930-1937), com a criação dos IAPs (Institutos deAposentadoria e Pensão), entidades que realizavam programas de financiamento dashabitações, cuja prerrogativa era a de que os beneficiados deveriam pertencer a deter-minadas categorias trabalhistas, de forma que a aquisição da casa própria ficava restritaa pequenas parcelas da população, deixando as camadas menos favorecidas excluídas des-ses benefícios.

As carteiras prediais destes institutos foram as maiores empreendedoras de habitaçãono país, inclusive durante o Estado Novo (1937-1945), responsáveis por inúmeros con-juntos habitacionais que se tornaram símbolos do ideário da arquitetura moderna. A pro-dução dos IAPs foi abalada pela inflação, pois “muitos dos financiamentos para a comprada casa própria não eram reajustados (não havia ainda o sistema de correção monetária),

A A T U A Ç Ã O D O M O N T E P I O

96 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 97: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

de modo que os Institutos tiveram que absorver os prejuízos decorrentes da desvaloriza-ção da moeda” (Finep/GAP, 1983, p.55).

Com a criação da Fundação da Casa Popular (FCP), em 1946, o Estado pretendiasistematizar as atividades, até então dispersas, de todos os órgãos do governo que vinhamintervindo no setor da habitação para a população de baixa renda, especialmente para res-ponder aos anseios daqueles que não participavam do mercado formal de trabalho, e quepor isso não tinham acesso aos programas dos IAPs. Com limitados recursos para o seuvasto campo de atuação, a FCP chegou a construir apenas 4.879 unidades em 45 cidadesde 12 estados do país.

Até a instituição do SFH e BNH, quando a ação governamental passou a acontecer deforma coordenada e sistemática, havia apenas esforços desconcentrados para a construçãode unidades. Um marco, não necessariamente positivo, na forma de gestão da questão dahabitação pelo Estado, visto que a provisão de moradia passou a ser um mero mecanismode reaquecimento da economia na época, sem a necessária preocupação social ou urbanís-tica. Todas estas iniciativas foram importantes na abordagem do problema habitacionalno país e na tentativa de solucioná-lo. As realizações destas diversas instituições públicasmarcaram a paisagem de muitas cidades, bem como foram fatores determinantes do dese-nho e da expansão de muitas delas, mesmo que o planejamento não fizesse parte da po-lítica de implantação das unidades.

Na cidade de João Pessoa, como em diversas capitais do Brasil, anteriormente àatuação do BNH, os IAPs e a FCP se encarregavam de promover casa própria para seussegurados associados mediante parcelas amortizadas e tiveram grande importância nodesenvolvimento e na definição do traçado urbano, como apontam diversos estudos(Cavalcanti, 1999; Lavieri, 1999). Mas, antes dos renomados institutos federais, o go-verno da Paraíba prontificou-se a auxiliar seu funcionalismo na solução do problema dacasa própria.

O MONTEPIO DOS FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS NAPRODUÇÃO HABITACIONAL DE JOÃO PESSOA

Em 15 de setembro de 1912 foi criada a Sociedade de Benefícios e de Auxílio Mú-tuos Cooperativa Predial Parahybana. Por meio desta instituição, o governo estadualconstruiria e, preferencialmente, incentivaria a construção de moradias através da desa-propriação de terrenos e da isenção fiscal para as empresas construtoras responsáveis pe-las séries ou subséries de edifícios, para os materiais empregados na construção e para opróprio edifício. Além da utilização destes instrumentos de estímulo, o Estado se pronti-ficaria a realizar as intervenções urbanas necessárias. Contudo, não foram realizadas edi-ficações, nem foram encontrados registros da atividade da Cooperativa.

Apenas em 1913 seria fundada a instituição responsável pela realização das primei-ras unidades de habitação subsidiada no Estado: o Montepio dos Funcionários Públicosdo Estado da Paraíba. O órgão tinha cunho previdenciário e assistencialista, era mantidopor seus associados, que formavam um fundo para a cobertura de determinados infortú-nios no intuito primeiro de prover pensões e conceder empréstimos. No ano de 1929, oentão presidente do Estado, João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque, sugeriu em mensa-gem oficial que o Montepio passasse a construir edificações para os servidores, como for-ma de incentivo aos funcionários. Com a morte do presidente em 1930, o plano de cons-

A N G E L A A R A U J O N U N E S

97R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 98: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

trução de habitações foi retomado em 1932, quando foi fundada a Carteira Imobiliáriado Montepio, objetivando o financiamento para construção, aquisição, ampliação e libe-ração de edifícios residenciais destinados aos seus segurados.

Nosso objetivo foi examinar a atuação do Montepio na produção estatal de habita-ção em João Pessoa, sem o propósito de estabelecer discussões de ordem arquitetônica,estética ou estilística e, assim, realizar a exposição, caracterização e classificação das uni-dades populares construídas em conjuntos e vilas pela instituição, agrupadas de acordocom o período em que foram edificadas. Através de um inventário das habitações cons-truídas, definimos o recorte temporal de 1932 a 1963, estabelecido pela criação da Car-teira Imobiliária até a última realização de habitação popular da instituição antes da atua-ção do BNH na cidade.

Separamos este período em duas etapas, utilizando como marco divisor a atualiza-ção estrutural que transformou o Montepio dos Funcionários Públicos do Estado da Pa-raíba em Montepio do Estado da Paraíba (MEP). Na primeira etapa, estão compreendidasas habitações construídas entre 1932 e 1941, anos iniciais da criação da Carteira Imobi-liária. A segunda etapa vai de 1942, quando o interventor Ruy Carneiro sanciona a alte-ração para MEP, até 1963, ano que antecede a criação do BNH.

O órgão continuou a construção de unidades habitacionais para seus funcionáriospúblicos, mesmo após a instauração do BHN, e o fez de maneira ainda mais organizada,através do estabelecimento de políticas voltadas exclusivamente para a concessão das mo-radias. Isso foi possível com a reestruturação ocorrida em 1970, quando o governadorJoão Agripino assinou o Decreto 5.144 de 27 de outubro, que transformava o MEP emInstituto de Previdência do Estado da Paraíba (IPEP).

O MONTEPIO E A CARTEIRA IMOBILIÁRIA: 1932 A 1941

Com a instauração da Carteira Imobiliária, foram mantidas as funções primordiaisdo Montepio – o pagamento de pensões e a concessão de empréstimos; porém, começoua ser disponibilizado capital para financiamento da construção de edifícios, compra deterrenos e aquisição de prédios já construídos. Todas estas ações visavam o uso exclusiva-mente residencial, não sendo permitidos financiamentos para construções comerciais oude qualquer outra natureza.

A A T U A Ç Ã O D O M O N T E P I O

98 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Figura 1 – Trecho da av. Almirante Barroso onde foram implantadas as primeirasunidades. Fonte: Google Earth.

Page 99: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

O ato inaugural da ação habitacional ocorreu em janeiro de 1932. Por meio de con-corrência pública, a diretoria do Montepio selecionou a proposta do engenheiro e cons-trutor Giovanni Gioia para a construção das dez primeiras casas, pelas vantagens de eco-nomia e conforto que o empreiteiro oferecia. As edificações foram construídas emterrenos de propriedade do órgão localizados na atual avenida Almirante Barroso, à épo-ca avenida Walfredo Leal, onde ainda era possível a implantação de mais 30 casas. A áreaescolhida, próxima ao Parque Solon de Lucena e zona eminentemente residencial, conso-lidou-se pela quantidade de prédios construídos ou comprados pelo Instituto. Posterior-mente, essa extensão seria delimitada como bairro Montepio.

Para estas primeiras unidades foram oferecidos quatro tipos de construções: casatipo A, com área de 100 m2, custo de 15:000$000 e construída isoladamente; casa ti-po B, com 120 m2, custo de 18:000$000 e também isolada; casa tipo C, com 85 m2,custo de 12:500$000 e agrupadas duas a duas; e a casa tipo F, com 40 m2, custo de6:000$000 e dispostas em séries maiores. Todos os tipos de edificações contavam cominstalações de água, luz e esgoto, e os mesmos materiais de construção e acabamento:paredes de alvenaria, estrutura de concreto, piso de tacos e forro de madeira nos dormi-tórios e salas, piso de mosaico hidráulico e paredes revestidas de azulejo na cozinha ebanheiro. A distinção entre as unidades ficava por conta da quantidade de cômodos e de suas respectivas áreas.

As casas com maior área e custo mais elevado eram destinadas aos contribuintes doscargos mais elevados, funcionários que gozavam de melhores salários e poderiam pagarfinanciamentos maiores. As edificações do tipo B eram compostas por quatro quartos,duas salas, terraço, cozinha, banheiro e lavanderia externa; e as do tipo A e C, que ti-nham três quartos, sala, terraço, cozinha e banheiro. Para os funcionários mais humildesrestavam as casas do tipo F, com apenas um quarto, sala, pequeno terraço de chegada,cozinha e banheiro.

Contudo, não há registro de quantas unidades de cada padrão foram construídasnem um número final exato. Apesar dessa imprecisão, as construções foram realizadas eficou comprovada a viabilidade do plano imobiliário da instituição. Os tipos de unidadesdefinidos tornaram-se referência para as residências produzidas por particulares na cida-de e foram adotados como modelos para construções futuras propostas pelo Montepio,populares ou não.

A N G E L A A R A U J O N U N E S

99R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Figura 2 – Vista de unidade construída em 1932, imagem realizada em julho de 2008.

Page 100: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

A instituição ajustou seus regulamentos para as especificidades da Carteira Imobiliá-ria, o que passou a ser, em curto espaço de tempo, uma de suas atividades mais solicita-das. O serviço de habitação subsidiada continuava exclusividade do Montepio, não obs-tante já tivessem sido criados alguns IAPs em João Pessoa. No entanto, nenhum deleshavia habilitado suas carteiras prediais ou começado a construção de edificações.

À população não atendida pelas entidades públicas restava recorrer ao autoempreen-dimento da casa própria ou às empresas privadas de promoção predial que se dissemina-vam na cidade. Eram empresas que contemplavam seus mutuários através de sorteios dostítulos de capitalização, como a Auxiliadora Predial S.A., Constructora Universal Ltda.,Líder Construções ou A Promotora da Casa Própria S.A., todas sediadas em outros esta-dos, mas com sucursais instaladas em João Pessoa a partir de 1934, em busca do crescen-te mercado disposto a livrar-se do aluguel.

O Montepio ainda não contava prontamente com o suporte financeiro do governodo Estado, que alegava não poder cumprir suas obrigações devido às despesas de comba-te à seca que assolava a Paraíba e às obras do Porto de Cabedelo, embora reconhecesse suadívida para com o funcionalismo e pretendesse quitá-la. Ainda que contasse apenas como capital advindo da contribuição dos funcionários e do lucro de seus próprios investi-mentos, o Montepio prosseguia com as construções e assumia importante papel no de-senvolvimento da cidade, de acordo com os depoimentos na Imprensa Oficial:

Essa instituição vem contribuindo de maneira notável para a solução do problema da

casa própria nesta capital. Iniciadas as construcções das primeiras residências para os seuscontribuintes, mediante amortização mensal dentro dos prazos de 10 e 15 annos, todo ummoderno bairro situado numa das zonas mais amenas da cidade já se acha coberto de lindas

casas, dando ao local uma feição de urbis adiantada e progressista. (A União, 1935, p.42.)

A Carteira Imobiliária começava a se firmar e, entre 1932 e 1934, possibilitou aconstrução de 63 casas, mas ainda não havia propostas ou construções de unidades popu-lares. No ano de 1935 seria construído o primeiro conjunto de habitação popular doMontepio, e também de João Pessoa, realizado no bairro que passaria a se chamar Mon-tepio. Conhecido como Vila Macacos, o conjunto era formado por 35 unidades padroni-zadas, implantadas com generosos afastamentos laterais. Essas unidades distanciavam-sedo padrão popular pela tipologia e pelo alto nível de qualidade das construções, mas al-guns problemas na implantação da vila ainda inquietavam:

Continua afeiando, consideravelmente o novo bairro dessa instituição, a falta dos res-pectivos muros e balaustradas [previstos nas especificações dos projetos]. Esperam os interes-sados que a digna e criteriosa directoria não deixe, por mais tempo, sem solução, tão urgen-te problema. (A União, 1935, p.4.)

Esta intervenção de 1935, durante a presidência de José Gomes Coelho, estabeleceuuma conduta nas realizações da Carteira Imobiliária do Montepio. Começaram a ser defini-dos padrões para projeto e construção das unidades de baixo custo. Na intenção de facilitara execução e baratear a obra, assegurando, assim, o maior número possível de edificações, es-sas unidades seriam realizadas segundo projetos predefinidos pela diretoria, em um sistemamais econômico, diferente do critério da “planta própria” adotado nos casos das edificaçõesmaiores e mais caras, nos quais o candidato apresentava o projeto da requerida residência.

A A T U A Ç Ã O D O M O N T E P I O

100 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 101: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

As construções passavam a ter uma distinção explícita em relação ao tamanho, ao va-lor, ao projeto e mesmo à nomenclatura utilizada pelo órgão para defini-las. A chamada“casa residencial” era a unidade que não tinha um modelo preestabelecido nem seguiauniformização ou standards. Nela, a concepção do projeto ficava a cargo dos futuros pro-prietários, mas deveriam ser obedecidos metragens, números de cômodos e acabamentosindicados pelo Montepio. Esse tipo de edificação era o modelo habitacional direcionadopara aqueles de remuneração maior, com cômodos generosos, acabamentos suntuosos eelementos decorativos segundo o gosto da época. Já a unidade padronizada, que recebiaa denominação de “casa residencial tipo popular” e era destinada aos funcionários de ga-nhos mais modestos, seguia um único projeto arquitetônico, era entregue na forma deconjuntos e vilas, e apresentava área reduzida, em torno dos 60 m2.

Independentemente da opção “casa residencial” ou “casa residencial tipo popular”,para o Montepio, a referência da habitação subsidiada era a da casa individual – uma resi-dência unifamiliar, construída de forma isolada em relação aos lotes vizinhos. Mesmo comos avanços alcançados nos grandes centros urbanos brasileiros e na Europa, na difusão dopadrão multifamiliar para habitação popular – várias unidades organizadas em edifícios econjuntos –, a residência unifamiliar ainda era o possível e o ideal em terras paraibanas.Isso se deveu principalmente às limitações tecnológicas e econômicas, bem como aos valo-res sociais e estéticos, consequências inerentes a uma cidade de progresso lento.

O Montepio focalizou sua produção na casa individual, chegando a priorizar o ti-po não popular. As casas maiores eram financiadas sobretudo para a classe média que seconsolidava e acabaram por se tornar o emblema da atuação do órgão. Entre os anos de1936 e 1940, foram construídas 80 grandes residências, com a regularidade de produçãode uma unidade entregue por mês. As casas populares, conjuntos e vilas foram postas,temporariamente, em segundo plano. Após a construção da primeira vila popular, nãohouve mais construções deste tipo, até o ano de 1940.

Ainda em 1939, o interventor Argemiro de Figueiredo, diante da escassez de mora-dias de baixo custo para o funcionalismo e para as outras classes contribuintes, solicitouao Ministério do Trabalho a construção de casas pelos IAPs. Até “comunicando ao titularda pasta do trabalho que o Governo do Estado e a Prefeitura fariam doações de terrenopara as construções que fossem levadas a efeito, bem como concederiam isenção aos im-postos relativos às mesmas [sic]” (A União, 1939, p.1). Mas a construção de casas por ou-tros institutos ainda tardou e, apesar dos apelos governamentais, só foram realizadas a par-tir da década de 1950.

Sem produzir efetivamente as unidades populares, o presidente do Montepio, Virgí-lio Cordeiro de Melo, já buscava em 1939 a retomada da construção em massa de casasde baixo custo. Sempre preocupado com a repercussão social do Instituto, este gestor te-ve um desempenho diferenciado e realizou alguns dos mais significativos trabalhos, comoo maior conjunto entregue pelo Montepio nesta primeira etapa: a Vila 10 de Novembro,construída em 1941 no bairro Montepio, e a instalação da sede própria do Montepio noantigo prédio do Banco do Brasil na avenida Barão do Triunfo.

A vila era composta por 42 unidades populares com a mesma disposição em plan-ta, mas diferiam quanto ao acabamento e à localização, estando classificadas em tipo A,B e C. As casas do tipo A custavam Cr$ 16.000,00 e foram construídas na avenida JoãoMachado e Maximiniano de Figueiredo. As do tipo B e C custavam entre Cr$ 14.000,00e Cr$ 12.000,00 e foram construídas na rua Francisca Moura e avenida D. Pedro II.Mesmo destinadas aos segurados mais necessitados, o padrão das casas desta vila sobre-

A N G E L A A R A U J O N U N E S

101R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 102: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

pujava os modelos conhecidos de casas populares, devido ao tamanho, área, acabamen-tos e preço. Apesar disso, o conjunto era classificado como popular pela padronizaçãodas unidades, pois não apresentava a exclusividade da casa residencial planejada por seusproprietários.

Nesses anos iniciais de produção habitacional, o Montepio foi responsável pela cons-trução de 228 unidades, sendo 57% de unidades “residenciais” e 43% de unidades “resi-denciais tipo popular”. Embora pareça um número tímido diante dos conjuntos habita-cionais realizados naquele período pelos IAPs, essa produção local representa um avanço,visto que, no Brasil, até o fim do Estado Novo, só foram reconhecidas pela bibliografia,além da atuação federal dos IAPs, a construção de unidades pelo governo de Pernambucopara a erradicação dos mocambos, e do governo do Rio de Janeiro para a erradicação defavelas. A revelação dessas unidades do Montepio ratifica a produção, até então desconhe-cida, de outros órgãos estatais.

Já quanto à regularidade e ao valor das casas construídas, vimos a real distinção fi-nanceira entre os dois tipos de edificações e a realização apenas pontual dos conjuntos po-pulares. Para exemplificar esta diferença, adotemos os dois últimos anos da produção, pe-la proximidade cronológica e pela construção exclusiva de cada tipo de unidade. Em

A A T U A Ç Ã O D O M O N T E P I O

102 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Figura 3 – Sede do Montepio, imagem produzida em julho de 2008.

Figura 4 – Localização da Vila 10 de Novembro. Fonte: Google Earth.

Page 103: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

1940, foram produzidas apenas casas residenciais que custaram em média Cr$ 53.194,41,enquanto em 1941 foram construídas somente as unidades populares da Vila 10 de No-vembro com valor médio de Cr$ 12.656,13. Excetuando as possíveis desvalorizações fi-nanceiras e econômicas existentes no período, para cada unidade residencial não popularpoderiam ser construídas quatro unidades tipo popular. Uma relação considerável dianteda missão assistencialista e do comprometimento com os funcionários mais humildes aque se propunha o Montepio.

Assim, o Montepio acabou privilegiando a construção de casas luxuosas e de altíssi-mo custo. Esta liberdade para financiamento e concepção destas grandes residências eraem parte justificada pela garantia de retorno financeiro, em virtude da melhor condiçãoeconômica dos adquirentes. Entretanto, as unidades populares, mesmo em menor núme-ro e valor, foram realizadas com padrão construtivo consideravelmente elevado, se lem-brarmos das poucas experiências de habitação popular de mesma tipologia realizada atéentão pelo país, como as casas da Vila Paz e Trabalho realizadas na cidade do Recife.

CLASSIFICAÇÃO DE UNIDADES POPULARES PRODUZIDAS EM CONJUNTOS

Por meio da interpretação e análise de descrições contidas nos boletins e matériasveiculadas na Imprensa Oficial, bem como através das determinações construtivas conti-das na legislação municipal vigente no período – Código de Posturas do Município de1928, revisado pela Lei 399 de 21 de setembro de 1938, foi possível identificar e repro-duzir as unidades populares construídas nestes primeiros nove anos. Pela planta esquemá-tica, pelo esboço da fachada principal e pela relação dos materiais e técnicas de constru-ção, pudemos entender a conformação das unidades e a tecnologia empregada.

Para as duas vilas, utilizou-se como referência o tipo A construído em 1932. Maio-res e mais confortáveis, as casas viraram referência tipológica também para a cidade, fi-cando conhecidas como as primeiras “casa de conjunto” de João Pessoa. Embora a padro-nização não seja bem quista pelos moradores de conjuntos, haja vista as mudançasoperadas pelos proprietários com a ocupação dos imóveis, a composição da fachada aca-bou repetida em outras residências do bairro, inclusive naquelas que não eram construí-das pelo Montepio.

Nestas unidades ficam evidentes as decisões construtivas pela mudança de costumes,como a inclusão do banheiro no interior da casa – mas sempre na parte posterior – ou vi-sando à economia, com a articulação e proximidade das áreas molhadas para supressão de

A N G E L A A R A U J O N U N E S

103R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Figura 5 – Vista das casas construídas na av. João Machado. Fonte: Melo (1946, p.29).

Page 104: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

instalações hidráulicas. Além disso, fica evidente o respeito às determinações de higieneque exigiam os códigos municipais, e das áreas mínimas para os cômodos, como 6 m2 pa-ra cozinhas e 4 m2 para banheiros com latrina.

As unidades da Vila Macacos apresentavam volumetria mais simples do que as resi-dências individuais, não populares, realizadas pelo Montepio. Estavam implantadas deforma livre no lote, com recuo frontal e afastamentos laterais ajardinados. As edificaçõestinham um programa até extenso para uma casa tida como popular: terraço, sala, copa,três quartos, cozinha, banheiro e lavanderia externa, totalizando cerca de 66,5 m2. Poreconomia, as áreas molhadas continuavam concentradas e colocadas sempre na parte pos-terior da casa, sempre longe dos olhos dos visitantes, resquícios da hierarquia de espaçose dos preconceitos de um passado colonial.

Com área e programa semelhantes ao da Vila Macacos, foram construídas as casas daVila 10 de Novembro, que diferiam apenas quanto à disposição da planta e à implantaçãono lote. Elas tinham 67 m2 e também eram compostas por terraço, sala, copa, três quartos,cozinha, banheiro e lavanderia externa, porém, apresentavam um lado geminado e um es-forço projetual para que todos os quartos estivessem voltados para a rua. Outro diferencialera a ampla área avarandada, igualmente inédita em outras construções populares.

Nos dois exemplares das vilas, não pudemos notar grandes avanços em relação àtecnologia e aos materiais de construção. Eram materiais, em sua maioria, do repertóriolocal, como tijolo maciço, telha colonial, madeira, cimento, ladrilho hidráulico e azule-jos, e eram utilizados num esquema construtivo simples e tradicional, que contava ain-da com as alvenarias dobradas como sistema estrutural. O emprego tímido e a escolha

A A T U A Ç Ã O D O M O N T E P I O

104 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Figura 6 – Planta e fachada frontal original da unidade construída na Vila Macacos e Vila10 de Novembro.

Page 105: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

destes materiais não eram apenas uma questão de preferência particular ou imposição doórgão, tratava-se do momento pelo qual passava a indústria no Brasil, de maneira geral,como aponta Reis:

Até cerca de 1940 a industrialização dos materiais de construção seria tímida, em esca-la modesta, quase artesanal. A indústria ainda não atingira estágio de atendimento do mer-cado nacional; em verdade, no que se refere à construção, ensaiava apenas alguns avanços.

Verifica-se a importação de muitos equipamentos e materiais estrangeiros e, em contraparti-da, nos centros mais modestos, os progressos estavam longe de acompanhar os das grandescidades. (1978, p.64.)

As unidades produzidas até 1941 refletiam o desenvolvimento lento da cidade deJoão Pessoa, ainda amadurecendo como uma capital de Estado. Mesmo sem os avançosmateriais, a qualidade das unidades construídas era superior a muitas experiências reali-zadas neste período. As habitações produzidas pela Liga Social contra o Mocambo no Re-cife, por exemplo, não dispunham de certos cuidados em relação a detalhes e acabamen-tos da construção. Segundo Lira,

Se os materiais por vezes variavam e se aqui ou ali eram empregados pequenos lajeados,marquises, colunas, caixas de esquadria ou basculantes, a casa térrea, unifamiliar, de alvena-ria de paredes singelas, rebocos internos e externos de uma só massa, pé-direito de três me-

tros, piso em cimento e teto sem forro, instalação de esgoto simplificada e coberta com te-lhas planas sobre caibros e ripas serradas, oferecia a solução econômica oficial. (2002, p.59.)

A diferença existente entre as unidades propostas pelo Montepio e pela Liga podiaser justificada tanto pela forma de financiamento e aquisição das casas como pela ausên-cia de um modelo verdadeiramente popular, no caso do Montepio.

Na experiência do Recife, fazia-se urgente a instituição de uma casa popular que pu-desse ser reproduzida à exaustão, dada a quantidade de pessoas vivendo nos mocambos.Assim, essa unidade deveria ser viável economicamente para o poder público. Já em JoãoPessoa, o custo da unidade realizada estava garantido nos descontos do assegurado e futu-ro proprietário, bem como não foram realizadas investigações técnicas para obter um mo-delo de baixo custo. As habitações das vilas foram derivadas da bem-sucedida empreitadahabitacional realizada em 1932, sendo compreensível que, ao contrário das unidades daLiga, as do Montepio tivessem melhorias como alvenaria de paredes dobradas (em tornode 0,28 m), pé-direito de 4 m, piso de tacos e ladrilho hidráulico, teto com forro de ma-deira e coberta de múltiplas águas com telhas tipo colonial de barro sob madeiramento.

Um fator comum entre as unidades dos dois locais foi a opção pela unidade unifa-miliar, resultado de condições tecnológicas, sociais e culturais. Numa tentativa de garan-tir a salubridade e a decência, fazendo com que a moradia popular tivesse aspectos quali-tativos semelhantes aos das residências abastadas.

A idéia higiênica da habitação unifamiliar, isolada e devidamente compartimentada,

com jardim em frente para a ocupação moral do tempo livre e bem-disposta em arruamen-tos e conjuntos planejados, se espalharia ao mesmo tempo pela opinião e pelo espaço comimpressionante rapidez. (...) E não foi por acaso que, a partir da década de 30, os ícones ro-mânticos da arquitetura residencial européia como o cottage, o bungalow e o chalet, viessem

A N G E L A A R A U J O N U N E S

105R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 106: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

a fornecer o modelo inspirador de um sem-número de paraísos proletários e vilas populares

construídas pelo Estado e pelo empresariado local. (Lira, 2002, p.56.)

Estes aspectos, de relação edifício/lote e reprodução, em escala econômica e redu-zida, de elementos das habitações dos ricos também foram mencionados por Reis (1978),ao discorrer sobre o desenvolvimento urbano no Brasil no período de 1920 a 1940. O au-tor aponta, como uma forte tendência na produção das casas populares, a repetição das“aparências” das residências mais ricas com a modéstia dos recursos disponíveis.

Vimos que o isolamento total e parcial da edificação no lote foi utilizado nas uni-dades das vilas, procurando garantir vistosos jardins e discretas passagens para a porçãoposterior das residências. No entanto, não parecia haver preocupações com conforto tér-mico-ambiental na edificação, já que a mesma planta era inserida em terrenos de diferen-tes orientações, fossem frente norte ou sul. Quanto ao emprego de componentes advin-dos das residências opulentas, notamos que este uso resultou numa volumetria semevidência de estilo arquitetônico, sem refinamento projetual, servindo de ponto de dis-tinção entre as unidades populares e não populares do Montepio.

Assim, enquanto a política de vários órgãos de provisão habitacional, notadamenteos IAPs, baseava-se na eleição de uma planta mínima de baixíssimo custo para a produçãoem larga escala, e na verticalização para potencializar o aproveitamento do solo, o Mon-

A A T U A Ç Ã O D O M O N T E P I O

106 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Figura 7 – Vista de uma casa da Vila 10 de Novembro na época da inauguração. Fonte:Melo (1946, p. 33)

Figura 8 – Casa da Vila 10 de Novembro, localizada na rua Francisca Moura, imagemproduzida em julho de 2008.

Page 107: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

tepio continuou com sua proposta de residências individuais reproduzindo tipologiasbem-sucedidas no primeiro ato de sua Carteira Predial. Sem a procura por um modeloeconômico, estas casas populares tinham a qualidade e o conforto das grandes residências,e, por conseguinte, seu custo impediu um maior número de construções.

Ao fim desta fase, percebemos que as unidades realizadas pelo Montepio distancia-vam-se dos tipos de habitação popular realizados pelo país. As edificações possuíam ca-racterísticas construtivas, de qualidade e acabamento, que as afastavam da modéstia e li-mitação dos exemplares vistos até então. Estas casas acabaram por não se diferenciarmuito daquelas construídas sob a alcunha de “residenciais”, apenas tinham certa conten-ção na questão da área construída, no uso de alguns materiais e no rebuscamento dos vo-lumes arquitetônicos e fachadas. O Montepio reproduzia suas unidades, estabelecendoum modelo por tentativa, através da repetição das experiências e não por meio de pesqui-sas e projetos que possibilitassem um protótipo econômico e eficaz.

A HABITAÇÃO ATRAVÉS DO MEP: 1942 A 1963

Mesmo com as novas funções atribuídas pelo governo da Paraíba, transformando oinstituto em MEP, ainda era finalidade principal do órgão assegurar pensão e pecúlio aosbeneficiados dos seus segurados falecidos e, por finalidade secundária, facilitar aos seus se-gurados empréstimos em dinheiro e financiar a construção ou aquisição de casa para mo-radia. E foi justamente o sucesso das atividades das carteiras de empréstimos e de imóveisque atraiu cada vez mais contribuintes e inscritos para adquirir ou construir casas. Alémda construção, a liberação de crédito para reforma de habitações também passou a fazerparte das competências do Montepio.

Nos sete anos seguintes à alteração para MEP, o ritmo de produção das edificaçõesmanteve-se semelhante ao período anterior, mas passou a ser exclusivamente de casas nãopopulares, com elevação significativa do custo médio das unidades. Resguardadas as de-vidas variações de custo pela inflação ou pela alta das tarifas relativas à construção civil,os valores unitários triplicaram. Em 1942, por exemplo, cada edificação foi realizada pe-la importância de Cr$ 27.893,76. Já em 1943, o valor subiu para Cr$ 60.435,42 e, em1944, uma casa chegou a custar Cr$ 111.207,86.

Como se tratava de valores médios, obviamente cada casa apresentava suas particu-laridades, uma vez que para estas unidades era utilizado o sistema da “planta própria”,projeto apresentado pelo futuro proprietário e não pelo MEP. Assim foram construídas re-sidências com os mais variados projetos e, por conseguinte, diversos estilos arquitetôni-cos. Embora fossem projetos os mais distintos, estas unidades residenciais não popularespodiam ser balizadas e agrupadas de acordo com área e valor de custo.

Num grupo A estariam as casas maiores com área em torno de 150 m2 e númeroconsiderável de cômodos – na maioria das vezes compostas por duas salas, sala de copa,três ou quatro quartos, terraço, banheiro, cozinha e área de serviço, algumas até comquarto e banheiro de empregada. Estas unidades, geralmente dispostas em dois pavimen-tos – térreo e primeiro andar – eram implantadas em terrenos maiores que os habituaisutilizados pelo Montepio, em torno de 300 m2 ou 360 m2, e sempre com afastamentoslaterais e frontais ajardinados e bem definidos.

Num grupo B estariam as demais casas, igualmente “residenciais”, porém menores emais simples. Eram unidades com área abaixo dos 100 m2; implantadas em terrenos detamanho regular, segundo padrão do Montepio – 10 m x 30 m; todas com afastamento

A N G E L A A R A U J O N U N E S

107R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 108: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

frontal e apenas algumas gozando de afastamentos laterais. Todas estas residências eramtérreas e constituídas de sala, terraço, dois ou três quartos, cozinha, banheiro e área de ser-viço externa. Os modelos apresentados nessa classe aproximavam-se dos definidos comopopulares, mas cada proprietário conferia certas particularidades às casas, de acordo coma necessidade ou gosto.

O Montepio distanciava-se da execução de habitações populares, dedicando-se ex-clusivamente à construção das grandes residências. Segundo registros do órgão (A União,1950; Melo, 1946), entre os anos de 1942 a 1948, foram construídas 178 casas, nenhu-ma delas do tipo popular. Naqueles anos, as atividades da Carteira Imobiliária, quer fos-sem de construção, aquisição, hipoteca ou compra de terrenos, estavam direcionadas pa-ra os contribuintes que se dispunham a pagar maiores parcelas. Foi apenas em 1949,mesmo ano em que a FCP realizaria seu primeiro núcleo residencial na cidade, em meioao brado local e nacional pela provisão de moradia e baixa dos aluguéis, que o MEP reto-mou a construção das requisitadas casas populares (Tabela 1).

A A T U A Ç Ã O D O M O N T E P I O

108 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Fig. 9 – Grupo A e B de casas não populares construídas entre 1942-1943. Fonte: Melo,1946.

Fig. 10 – O governador Oswaldo Trigueiro na inauguração da Vila 11 de Junho. Fonte:A União, 12.6.1949.

Page 109: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

Tabela 1 – Unidades residenciais construídas entre 1932-1963Ano Nº Tipo de unidades1932 15 Residenciais1933 7 Residenciais1934 41 Residenciais

19358 Residenciais35 Residenciais tipo popular em séries

1936 16 Residenciais1937 14 Residenciais1938 15 Residenciais1939 15 Residenciais1940 20 Residenciais1941 42 Residenciais tipo popular em séries1942 17 Residenciais1943 13 Residenciais

1944 11 Residenciais1945 24 Residenciais1946 24 Residenciais1947 24 Residenciais1948 65 Residenciais

194930 Residenciais tipo popular em séries52 Residenciais

195038 Residenciais tipo popular em séries22 Residenciais

19512 Residenciais11 Residenciais tipo popular

195211 Residenciais21 Residenciais tipo popular

19538 Residenciais24 Residenciais tipo popular

195410 Residenciais29 Residenciais tipo popular

1958 20 Residenciais1959 17 Residenciais

1963 78 Residenciais tipo popular em sériesTotal 471 ResidenciaisTotal 223 Residenciais tipo popular em sériesTotal 85 Residenciais tipo popularTotal 779 Construídas

A Vila 11 de Junho, inaugurada naquele dia no ano de 1949, consagrou o recome-ço da produção das unidades residenciais tipo popular, realizada pela última vez em 1941.As obras foram iniciadas na administração de Orestes Lisboa e concluídas na presidênciado doutor Normando Guedes Pereira, outro presidente reconhecido por suas realizaçõesà frente do MEP. O conjunto, destinado às famílias mais humildes, foi implantado nobairro Santa Júlia. Eram trinta casas térreas, geminadas por um lado, com uma nova com-

A N G E L A A R A U J O N U N E S

109R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 110: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

posição e tipologia de dois quartos e com área menor em relação às vilas anteriores. Tra-tava-se de um grupo de casas modestas como há tempos não era realizado pelo MEP, pa-ra atender àquela parcela desconsiderada de seus contribuintes.

Com o governo estadual imbuído deste espírito empreendedor, foi lançada a pedrafundamental de mais um conjunto residencial destinado ao funcionalismo público, naocasião da inauguração da Vila 11 de Junho. Tratava-se da Vila da Rua Miguel Santa Cruzno bairro Torrelândia, Vila Torrelândia, entregue em 1950. O conjunto era composto porestabelecimentos comerciais, quatro unidades destinadas a açougues e 38 prédios paramoradia, realizados com o mesmo projeto da vila de 1949, no bairro de Santa Júlia. A ini-ciativa, segunda realizada na presidência do doutor Normando Guedes Pereira, inovavapela inclusão de outros usos além do residencial, a exemplo, guardadas as devidas propor-ções, dos conjuntos dos IAPs realizados pelo país, que continham alguns serviços neces-sários aos moradores, como praças, lavanderia, posto médico ou lojas. Com a realizaçãodesta vila, sagrava-se a mudança de postura do MEP, priorizando o atendimento dos ser-vidores desprovidos, ao invés da construção apenas das grandes casas, “pequenos palace-tes”, como chamavam alguns críticos na época.

A reivindicação elementar dos cidadãos e da sociedade era a construção das casas,mas logo a necessidade de complementação com os serviços de infraestrutura passou a serpleiteada pela população. Notadamente nas áreas dos conjuntos residenciais que recebi-am um contingente populacional considerável num curto espaço de tempo, e a falta deabastecimento d’água, esgotamento sanitário, iluminação e pavimentação eram sentidasde forma mais aguda. A esse respeito, a construção da Vila da Torrelândia possibilitou, aomenos, a instalação do abastecimento d’água para o próprio conjunto e para mais 90residências localizadas naquela região, algumas executadas isoladamente pelo Montepio.A obra de infraestrutura foi realizada em 1952 pelo governador José Américo.

A adoção da causa habitacional fez com que o MEP continuasse a construção das ca-sas populares nos quatros anos que se seguiram. Contudo, o movimento produtivo dimi-nuiu de forma considerável, e o número de unidades, tanto das residenciais quanto dasresidenciais de tipo popular, caiu admiravelmente. Passando das 82 construções realizadasem 1949 e das 60 em 1950, para 13 unidades construídas em 1951, 32 unidades cons-truídas em 1952 e 1953 e 39 unidades construídas em 1954. Além do declínio da pro-dução, outra característica do período foi a construção isolada das casas populares, nãosendo executado nenhum conjunto ou vila após 1950. Em prejuízo para a população demaneira geral, porque a implantação das vilas significava a possibilidade de implantação da infraestrutura básica na área.

A diminuição da produção do MEP deveu-se, em parte, ao pouco comprometimen-to da sua administração e também ao lançamento e atuação de diversas carteiras prediaisde outros institutos que dividiram a atenção e o incentivo estatal. Destaca-se, nesse sen-tido, não só o exercício das instituições já reconhecidas – como os IAPs e a FCP, respon-sáveis por pelo menos sete conjuntos entre 1949 e 1963 –, mas, sobretudo, a iniciativa deinstituições novatas na questão habitacional, como as locais Caixa de Aposentadoria dosServiços Públicos na Paraíba, a Caixa Beneficente da Polícia Militar da Paraíba, o Institu-to dos Servidores do Estado e também a Caixa Econômica Federal da Paraíba, que im-plantou o bairro Jardim Miramar em 1950. O governo estadual fez parceria com todosestes institutos, mas deu preferência às ações federais pelo número de unidades que pode-riam ser construídas e pela aparente comodidade em ser incentivador, através da doaçãode terrenos e isenção fiscal, ao invés de investir diretamente na construção ou aquisição

A A T U A Ç Ã O D O M O N T E P I O

110 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 111: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

das casas. Muito mais vantajoso para o Estado incentivar a produção federal que custearsuas próprias habitações.

Somou-se à descentralização do apoio do governo estadual, o direcionamento daatuação do MEP para a saúde do segurado, reservando parte da receita orçamentária paraserviços médicos, dentários e ambulatoriais. Em 1959, na administração de Nizi Mari-nheiro, planejava-se a construção do Hospital do MEP, com projeto feito pela Divisão deObras do Ministério da Saúde, que deveria ser implantado em terreno de 10.000 m2 lo-calizado no bairro de Oitizeiro. Também prejudicou o desenvolvimento do MEP, e con-sequentemente o andamento da Carteira Imobiliária, a instabilidade no governo estadual,pois entre 1951 e 1963 estiveram no poder sete governadores. Entre acusações sobre irre-gularidades, desvios, nomeação de funcionários em troca de votos, atraso nos vencimen-tos dos servidores, o Montepio esteve com suas realizações quase paralisadas e com a con-tinuação dos serviços e benefícios ameaçada.

A retomada do crescimento do MEP só aconteceu no governo de Pedro Gondim, quereparou a estrutura do Instituto e reconduziu a construção em massa de casas populares,ocorrida no ano de 1963. Pelo empenho do governador, foi realizado o maior plano deconstrução de casas populares do Montepio ao fim do período pré-BNH: a Cidade doFuncionário Público Estadual, implantada no bairro de Oitizeiro em 1963. Na ocasião da

A N G E L A A R A U J O N U N E S

111R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Figura 11 – Localização do conjunto Cidade do Funcionário Público Estadual. Fonte:Google Earth.

Figura 12 – Inauguração da Cidade do Funcionário. Fonte: A União, 5.7.1963.

Page 112: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

inauguração, foi entregue para 76 famílias a primeira parte das 300 unidades que seriamconstruídas. A distribuição das casas respeitou o mesmo critério usado na entrega dosconjuntos anteriores, dando preferência aos funcionários inscritos com família mais nu-merosa, mais sobrecarregada de filhos, auxiliando assim os servidores mais desamparados,mais humildes, mais sacrificados, aqueles de remuneração menos significativa.

O Montepio atingia ineditamente um número bastante expressivo de unidades po-pulares em benefício da parcela realmente desprovida de seus associados. Também em ca-ráter pioneiro, estabelecia a implantação de conjuntos habitacionais em áreas periféricas– esse seria o primeiro conjunto do MEP a ser instalado fora do perímetro e das adjacên-cias da zona central da cidade, numa área de nível socioeconômico bem mais baixo. As-sim, dava-se início a um processo de expansão urbana, de periferização, que se tornariatão comum na era BNH, e bastante criticado posteriormente.

Os conjuntos populares realizados nesta fase foram possíveis pelo comprometimen-to direto do governo estadual, e a construção das unidades deveu-se sobretudo à figurados governadores Oswaldo Trigueiro e Pedro Gondim, que viram a necessidade, e a opor-tunidade, de reforçar o apoio ao órgão. Como muitos assegurados não teriam outra for-ma de adquirir a casa própria, era de fato estratégico reinvestir na produção estadual demoradias como garantia de popularidade social e política. Com este importante auxílio àCarteira Imobiliária do MEP, foram executadas as vilas de 1949 e 1950, o conjunto de1963 e várias unidades populares isoladas.

Ao fim deste período, vimos que o Montepio deixou de ser o único provedor de ha-bitação subsidiada, com o início da construção de vilas e conjuntos pelos IAPs e FCP nacidade. Distanciando-se do foco popular, o instituto estadual continuou sua produção ha-bitacional colocando em primeiro plano a construção de residências maiores e maisluxuosas para associados de melhores posses. Enquanto esteve sozinho na provisão de uni-dades subsidiadas, o Montepio atuava similarmente às autarquias federais, numa espéciede escala reduzida pela disponibilidade de recursos e pelo tamanho da cidade. Com avinda dos IAPs e FCP para João Pessoa, parece que o instituto fica “liberado” do apelo po-pular e pode se dedicar à construção de outra modalidade de casas, com maior retornofinanceiro, sem grandes investimentos por parte dos cofres da instituição. A produção doMontepio ficou associada a estas unidades diferenciadas, enquanto as casas de conjuntocomeçaram a ser “responsabilidade” dos órgãos federais.

A A T U A Ç Ã O D O M O N T E P I O

112 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Figura 13 – Visita do governador potiguar Aluisio Alves à Cidade do Funcionário. Fonte:A União, 7.8.1963.

Page 113: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

CLASSIFICAÇÃO DE UNIDADES POPULARES PRODUZIDAS EM CONJUNTOS

Nesta segunda fase, a produção popular do Montepio foi caracterizada pela altera-ção do seu modelo. Com redução das áreas das unidades e do número de cômodos e sim-plificação tipológica e construtiva, semelhante à praticada por outros institutos como IAPse FCP. Foi adotado o mesmo projeto nas duas vilas realizadas em 1949 e 1950, em SantaJúlia e Torrelândia, respectivamente. A repetição do projeto na Vila da rua Miguel SantaCruz também tinha por objetivo a economia de tempo e recursos, assim como esta novatipologia empregada pelo Montepio já havia sido bem aceita pelos contribuintes.

As realizações federais tornavam-se referência para construções populares, influen-ciando diretamente a produção do MEP. A padronização das unidades passou a ser inevi-tável para o sucesso dos empreendimentos populares do Instituto, e junto à ideia da uni-formização, fortaleceu-se a cada ano a simplificação construtiva. O programa e a área dasunidades foram reduzidos, a planta tornou-se mais compacta e funcional e, como resul-tado, o volume arquitetônico surgia despojado de elementos decorativos, sem profusão derecortes na coberta, nem preocupações estilísticas, apenas fruto de mera representação di-mensional da planta. Os materiais de construção e os acabamentos também ficaram maismodestos, enquanto as técnicas construtivas não apresentaram grandes alterações, privi-legiando as empresas e o trabalho local.

Com área aproximada de 51 m2, estas casas eram compostas por terraço, sala, doisquartos, copa, cozinha e banheiro. Estavam geminadas por um lado, além de implanta-das em um terreno menor e com composição volumétrica bem mais simples do que asunidades das vilas anteriores, num esforço do Montepio para baratear o custo das casas eassim possibilitar um número maior de construções. Adotando-se esta postura de simpli-ficar e padronizar, as unidades construídas pelo Montepio acabaram por se aproximar, fi-nanceira e tipologicamente, das casas construídas pelos institutos federais.

A construção destas unidades consagrou a retomada das casas populares e a associa-ção com o significado de habitação de baixo custo, uma vez que o Montepio mudava suapostura na concessão dos financiamentos, dedicando-se aos contribuintes mais carentesem benefício dessas famílias.

Compartilhando desta mesma intenção, porém, após 13 anos, foram construídas asunidades da Cidade do Funcionário, com número de cômodos e área ainda menores. Ahabitação, com aproximadamente 50 m2, era composta por terraço, sala, dois quartos, co-zinha e banheiro, sem a copa das vilas anteriores, mas implantadas em terrenos de maio-res dimensões, com 10 m de frente por 30 m de comprimento. O conjunto também foiconcebido primando pela economia, embora a edificação estivesse disposta livremente noterreno, com afastamentos laterais – decisão considerada menos econômica, a composi-ção volumétrica apresentava-se de maneira mais simplificada, sem adornos decorativos,além da coberta com caimento em uma água.

O padrão construtivo do Montepio nestes 29 anos de atuação da sua Carteira Imo-biliária sempre foi tido como alto, quer pelo tamanho das unidades construídas ou peloesmero no uso dos materiais e acabamentos, mesmo nas construções mais modestas. Con-tudo, foi inevitável promover a adaptação deste alto padrão às necessidades quantitativase financeiras do instituto.

No processo evolutivo das unidades populares, desde a primeira casa realizada naVila Macacos até esta última na Cidade do Funcionário, vimos a diminuição gradual dasáreas de construção – as plantas tornaram-se cada vez mais enxutas; a supressão de cômo-

A N G E L A A R A U J O N U N E S

113R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 114: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

A A T U A Ç Ã O D O M O N T E P I O

114 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Figura 14 – Planta e fachada da unidade construída na Vila 11 de Junho e Vila da RuaMiguel Santa Cruz.

Figura 15 – Vila 11 de Junho no ano da inauguração. Fonte: A União, 9.6.1949.

Figura 16 – Casas na Vila Miguel Santa Cruz, imagem produzida em julho de 2008.

Page 115: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

A N G E L A A R A U J O N U N E S

115R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Figura 17 – Unidades da Cidade do Funcionário em julho 2008.

Figura 18 – Planta e fachada frontal original de unidade da Cidade do Funcionário.

Page 116: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

dos, primeiro com a retirada do terceiro quarto, seguida da remoção da copa; a busca pe-la economia na geminação das unidades, antes implantadas livres no lote, depois dispos-tas aos pares, unidas por um cômodo ou lateral; e, por último, viu-se a gradual e sensívellimpeza formal das unidades – em parte por questões de custo, mas também a consideraras transformações estéticas e de gosto no decorrer deste tempo. Contudo, as unidades po-pulares do Montepio ainda guardaram um padrão diferenciado, tendo-se em conside-ração as residências de outros institutos estatais e mesmo algumas propostas de organiza-ções privadas.

Nesta segunda etapa, ocorreu uma divisão de esforços. O MEP acabou por dedicar-se à construção de casas maiores e por deixar em segundo plano as unidades populares,visto que a atenção para estas unidades estava resguardada pelos órgãos federais. Mas asunidades construídas pelo Montepio, populares ou não, tiveram grande importância nodesenvolvimento dos bairros em que foram implantadas, e consequentemente no cresci-mento da cidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando foi iniciada a coleta dos dados para este trabalho, a intenção era examinara produção estatal de habitação realizada pelos institutos estaduais e federais antes da im-plantação do sistema BNH. Mas com o desenvolvimento da pesquisa, o desempenho doMontepio dos Funcionários Públicos do Estado da Paraíba destacou-se dos demais órgãosgovernamentais, pela reiterada incidência de notícias e notas na nossa principal fonte deinformação, o jornal A União. A regularidade da concessão dos benefícios a seus associa-dos e o consequente apreço da sociedade pela instituição despertaram nossa atenção para

A A T U A Ç Ã O D O M O N T E P I O

116 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Figura 19 – Bairros com obras do Montepio até 1963, em preto o Bairro Montepio e aCidade do Funcionário Público Estadual. Fonte: Seplan – PMJP.

Page 117: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

o trabalho do Montepio. Tínhamos, então, uma base sólida para determiná-lo como ob-jeto do nosso estudo, relatando a sua produção na tentativa de estabelecer uma ligaçãocom o traçado e o desenvolvimento da cidade, já que também desconhecíamos sua im-portância na evolução de João Pessoa.

Com as primeiras descobertas deste estudo, começamos a perceber uma instituiçãoque gradativamente foi dominando a construção civil na cidade, realizando grandes casas– ou pequenos palacetes –, apesar de relegar a construção das casas populares, tratando-as como uma questão de mero exercício de caridade. Afinal, a instituição tinha outras ati-vidades e investimentos, sendo os empréstimos a médio e longo prazo bem mais rentá-veis, ao passo que a modalidade predial, através da Carteira Imobiliária, não possibilitavagrandes lucros, ainda mais com estas construções. Mas era inegável a função e a necessi-dade social da intervenção do Montepio, pois grande parcela dos contribuintes dependiaexclusivamente da instituição para ter a idealizada casa própria. Apenas sob a ótica assis-tencialista foi que as primeiras moradias populares foram construídas.

Mas a construção das unidades populares nunca aconteceu de forma continuada,eram momentos espaçados na história do Montepio, levados a cabo por empenhados ad-ministradores, como Maurício Furtado, José Gomes Coelho, Virgílio Cordeiro de Melo,Normando Guedes Pereira, Nizi Marinheiro, Oswaldo Trigueiro do Vale, e Antônio Cor-reia de Vasconcelos, que atuaram em consonância com os respectivos governadores decada período.

Mesmo que não tenha realizado avassaladores planos urbanísticos ou grandes con-juntos com centenas de casas como os dos institutos federais, o Montepio realizou aqui-lo que era sua meta primordial: a casa para o funcionário público, sendo popular ounão. E amparado nesse sentido, foi muito bem-sucedido em sua missão. Pode-se afir-mar que a atuação do Montepio na habitação consolidou o uso residencial naquela áreapróxima à Lagoa, dinamizou a infraestrutura do local pelo número considerável deconstruções; atraiu o interesse do governo para provisão da infraestrutura após a insta-lação das vilas e conjuntos – embora as respostas estatais tenham sido comumente maisdemoradas; foi responsável pelas incursões iniciais em bairros como Torre e Expedicio-nários – que mais tarde se firmariam como bairros residenciais pela ação de outros ins-titutos também públicos, e finalmente o Montepio inaugurou a implantação periféricade habitação subsidiada produzida em larga escala ao conceber a Cidade do Funcioná-rio Público Estadual.

Quantitativamente a produção do Montepio pode até ser considerada pequenadiante dos números dos institutos federais, mas foram realizações e alguns reflexos urba-nos importantes que ficaram há muito esquecidos pela inexistência de um estudo apro-fundado sobre o período abordado. Mesmo que de forma acanhada, a Paraíba envolveu-se diretamente no processo de produção habitacional e antecipou-se à ação federal, comofizeram poucos estados da federação, a exemplo de Pernambuco, Minas Gerais, São Pau-lo e Rio de Janeiro. O Montepio, com suas casas unifamiliares e vilas para o funciona-lismo público, conseguiu estabelecer um padrão construtivo que se tornou referência emJoão Pessoa, sendo repetido até mesmo por particulares. Numa ação que, até então, en-contrava-se pouco documentada e desmerecida, em consequência da dificuldade de aces-so às informações da atuação do órgão ou mesmo por se tratar de um instituto estadualde pouca visibilidade, diante dos recursos nacionais que possibilitaram a implantação dasvilas e conjuntos da FCP, dos pequenos e médios conjuntos dos IAPs e, posteriormente,dos grandes conjuntos habitacionais afastados da malha urbana pelo BNH na cidade.

A N G E L A A R A U J O N U N E S

117R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Angela Araujo Nunes émestre em Engenharia Urba-na e Ambiental (UFPB), pro-fessora do Instituto Federalde Educação, Ciência e Tec-nologia da Paraíba (IFPB). E-mail: [email protected].

Artigo recebido em agostode 2009 e aprovado parapublicação em setembro de2009.

Page 118: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

A UNIÃO. Com o Montepio. João Pessoa, 14.3.1935.__________. Construção nesta capital, de casas pelo Instituto de Aposentadorias e Pen-sões. João Pessoa, 17.8.1939.__________. Mensagem governamental. João Pessoa, 4ª Secção, 4.6.1950.ANNUARIO DA PARAHYBA. Montepio dos funccionarios publicos do Estado da Pa-rahyba. 1935. João Pessoa: Imprensa Official, 1935.CAVALCANTI, J. B. A política habitacional do BNH no Brasil pós-64 e seus reflexos naexpansão urbana de João Pessoa. João Pessoa: Editora Universitária UFPB, 1999.FINEP/GAP. Habitação popular: inventário da ação governamental. Rio de Janeiro: FI-NEP/Projeto, 1983.LAVIERI, J. R.; LAVIERI, M. B. F. Evolução urbana de João Pessoa pós-60. In: GON-ÇALVES, R. C. (org.) A questão urbana na Paraíba. João Pessoa: Editora UniversitáriaUFPB, 1999.LIRA, J. T. C. Modernidade e economia de morar no Recife (1930-1964). In: SAM-PAIO, M. R. A. (org.) A promoção privada de habitação econômica e a arquitetura moder-na 1930 – 1964. São Carlos: RiMa, 2002. p.52-76.MELO, V. C. Relatório do exercício de 1944. Apresentado ao Conselho fiscal do Mon-tepio do Estado da Paraíba. João Pessoa: Imprensa Oficial, 1946.PARAHYBA (Cidade). Código de posturas. Lei n.º 140 de 04 de outubro de 1928. Pa-rahyba: Imprensa Official, 1928. REIS, N. G. Quadro da arquitetura no Brasil. 4.ed. São Paulo: Perspectiva, 1978.

A B S T R A C T This work analyzes the constructive actuations of the real estateportfolio of Montepio Paraiba State in the statal housing production in the city of João Pessoa,from 1932 to 1963, established between the institutional designation for the production ofhousing in benefit of the public functionalism and its last popular realization before the workof BNH. Through exhausting documental research, done in local collections and especiallythrough the newspaper A União, official record of the realizations of the state executive, datawas found regarding the realizations of the housings by the institution, identifying the citiesand popular aggregation and later on classifying the built unities and the reconstitution of thehouse plans and the front elevation.

K E Y W O R D S Montepio; João Pessoa; real estate portfolio; popular housing.

A A T U A Ç Ã O D O M O N T E P I O

118 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 119: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

IDENTIDADES RELACIONADASAO ESPAÇO GEOGRÁFICO

A NAÇÃO BRASILEIRA E A CIDADE DE

NOVO HAMBURGO/RS (1927-1945)

A L E S S A N D E R K E R B E RC L E B E R C R I S T I A N O P R O D A N O V

R E S U M O O texto analisa as lutas de representações em torno da construção de iden-tidades ligadas ao espaço geográfico da nação brasileira e da cidade de Novo Hamburgo (RS)através do seu principal jornal, O 5 de Abril, no período de 1927, momento de sua emanci-pação, até 1945, final da Segunda Guerra Mundial e da ditadura do Estado Novo. Este pe-ríodo foi marcado pela construção de versões acerca destas duas identidades e de sua dissemi-nação através da imprensa. As duas versões apresentavam conflitos especialmente focados nofato de a cidade ser representada por signos que remetiam ao processo de imigração alemã, e ànação, por signos que remetiam à mestiçagem. Tais conflitos acirraram-se no momento em queo Brasil entrou na Segunda Guerra Mundial contra a Alemanha.

P A L A V R A S - C H A V E Cidade; identidade nacional; imprensa.

INTRODUÇÃO: DEFININDO O PROBLEMA E OSAPORTES TEÓRICOS

Durante o primeiro governo de Getúlio Vargas no Brasil (1930-1945), construiu-see disseminou-se através dos meios de comunicação de massa – especialmente o rádio, aimprensa e o cinema – uma versão acerca da identidade nacional baseada em elementoscomo a valorização da mestiçagem. Contudo, havia espaços do território brasileiro excluí-dos desta versão, entre os quais se destacavam cidades constituídas pela imigração ocor-rida durante o século XIX, especialmente aquelas com populações predominantemente deorigem germânica, como as existentes no sul do país. Pode-se afirmar que houve umprocesso de lutas de representações na construção de identidades. Identidades nacionais ede cidades são produzidas em relação a um espaço geográfico e estão ligadas à organiza-ção do espaço público e político.1 Uma identidade se expressa, justamente, através de re-presentações que definem a ideia e o sentimento de pertencimento a um grupo. Assim,ela é, ao mesmo tempo, sentimento e ideia, é sentida e pensada como formulação de umaimagem de si mesmo, ou seja, como autorrepresentação.2

Como propõe Hall (2005), em um mesmo grupo social há uma diversidade de iden-tidades que se sobrepõem, se relacionam, conflitam e se transformam constantemente.No caso deste artigo, propõe-se analisar a construção da identidade da cidade de NovoHamburgo, localizada no extremo sul do Brasil, no Estado do Rio Grande do Sul, no pe-ríodo entre 1927 e 1945. Este enfoque justifica-se na medida em que houve um processode lutas no âmbito do imaginário, marcado pelo conflito entre representações da cidadeligadas à germanidade e às representações nacionais brasileiras. Destaca-se que este con-flito aprofundou-se no contexto da Segunda Guerra Mundial.

119R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

1 Como afirma Oliveira(1990, p.14), existe uma re-lação íntima entre identida-de nacional e política, pois:“A ideia de nação faz partedo universo simbólico. Suavalorização vai proporcionarsentimentos de identidade ede alteridade a uma popula-ção que vive ou que se origi-nou em um mesmo territó-rio. Trata-se de um símboloque pretende organizar o es-paço público, referindo-se,portanto, à dimensão polí-tica”.

2 Como propõe Chartier(1990, p.17), para a com-preensão do real, há um pro-cesso de significação e as-sociação com símbolos jáexistentes no imaginário da-quele grupo. Até o desco-nhecido é pensado a partirde símbolos já conhecidos.Uma realidade, assim, nun-ca é apreendida de formapura, sempre é apropriada e simbolizada, consciente ou inconscientemente, pelosgrupos que dela se aproxi-mam. E, é nesta atribuiçãode sentido, que percebemosque o quanto as representa-ções não são “ingênuas”.Apesar de se proporem auma aproximação com a rea-lidade, sempre são influen-ciadas pelos interesses dogrupo que as produzem.

Page 120: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

Para analisar esta construção identitária, foi utilizado o principal meio de comuni-cação existente na cidade à época, o jornal O 5 de Abril,3 que também apresentava-se co-mo representante da sua identidade, como veremos.

Analisou-se o jornal, com periodicidade semanal desde sua fundação, que ocorreujunto à do município, em 1927, até o final do primeiro governo Vargas, observando osdiscursos presentes acerca da identidade nacional brasileira e sua relação com a identidadeda cidade. Percebeu-se que o jornal apresentava interessantes relações entre as representa-ções da cidade de Novo Hamburgo e a imagem nacional, influenciadas especialmente pe-las lutas de representações entre uma cidade que se afirmava como descendente de imi-grantes alemães em um período de emergência da nacionalização.

Novo Hamburgo, como qualquer cidade, como materialidade erigida pelo homem,também é sociabilidade e, ainda, sensibilidade. Conforme Pesavento, é construção de umethos que implica a atribuição de valores ao que se convencionou chamar de urbano, é pro-dução de imagens e discursos que se colocam no lugar da materialidade e do social e queos representam, é percepção de emoções e sentimentos, expressão de utopias, desejos emedos, assim como prática de conferir sentidos e significados ao espaço e ao tempo, quese realizam na e por causa da cidade (Pesavento, 2002, p.24).

No processo de inclusão e exclusão existente na seleção dos símbolos que represen-tam a identidade de uma cidade, percebe-se que existe a manifestação de relações de po-der. No caso do enfoque deste trabalho, há um produto midiático influenciando a cons-trução de uma identidade. Sendo o primeiro e, inicialmente, único jornal de NovoHamburgo, O 5 de Abril detinha poder simbólico, o qual influenciou a construção iden-titária. Tal poder é entendido como:

poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de

transformar a visão do mundo e, deste modo, a acção sobre o mundo, portanto o mundo;poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (físicaou econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido,quer dizer, ignorado como arbitrário. (Bourdieu, 2005, p.14.)

A definição da fronteira entre uma nação e outra, entre uma região e outra ou, nocaso deste estudo, entre uma cidade e outra, ao se estabelecer, produz a existência daqui-lo que enuncia. Assim, após legitimado um discurso que estabelece a divisão, o aparelhopolítico passa a ter, também, legitimidade para utilizar-se de violência física e simbólicapara a manutenção deste discurso:

O discurso regionalista é um discurso performativo, que tem em vista impor como legí-tima uma nova definição das fronteiras e dar a conhecer e fazer reconhecer a região assim de-limitada – e, como tal, desconhecida – contra a definição dominante, portanto, reconhecidae legítima, que a ignora. O ato de categorização, quando consegue fazer-se reconhecer ou

quando é exercido por uma autoridade reconhecida, exerce poder por si: as categorias “étni-cas” ou “regionais”, como as categorias de parentesco, instituem uma realidade usando do

poder de revelação e de construção exercido pela objetivação no discurso. (Idem, p.116.)

De qualquer forma, há, ainda segundo Bourdieu, a necessidade da autoridade parao estabelecimento da legitimidade deste discurso:

I D E N T I D A D E S R E L A C I O N A D A S A O E S P A Ç O G E O G R Á F I C O

120 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

3 A coleção do jornal O 5 deAbril encontra-se disponívelno Arquivo Municipal de No-vo Hamburgo e na bibliotecada Feevale.

Page 121: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

A eficácia do discurso performativo que pretende fazer sobrevir o que ele enuncia no pró-

prio ato de o enunciar é proporcional à autoridade daquele que o enuncia: a fórmula “eu auto-rizo-vos a partir” só é eo ipso uma autorização se aquele que pronuncia está autorizado a au-torizar, tem autoridade para autorizar. Mas o efeito de conhecimento que o fato da objetivaçãono discurso exerce não depende apenas do reconhecimento consentido àquele que o detém;ele depende também do grau em que o discurso, que anuncia ao grupo a sua identidade, es-tá fundamentado na objectividade do grupo a que ele se dirige, isto é, no reconhecimento e

na crença que lhe concedem os membros deste grupo assim como nas propriedades econômi-cas ou culturais que eles têm em comum, pois é somente em função de um princípio deter-minado de pertinência que pode aparecer a relação entre estas propriedades. (Idem, p.116-7.)

Uma estratégia utilizada pelo jornal O 5 de Abril, também presente na imprensa emgeral, foi a utilização de autoridades assinando as matérias, pois a presença de autores comcapital simbólico para serem reconhecidos como autoridade também confere autoridadeao veículo de comunicação. Desta forma, o primeiro prefeito da cidade de Novo Ham-burgo, Leopoldo Petry, era uma das principais autoridades a assinar matérias.

NAÇÕES, NACIONALISMOS E HOMOGENEIZAÇÃODA DIVERSIDADE REGIONAL

O Estado é uma construção política que, para conquistar legitimidade, necessita seafirmar como “nação”, ou seja, construir representações que insiram as diversas identida-des dos diversos grupos que habitam o território administrado por ele, dentro de um no-vo conceito. É necessário fazer com que diversas identidades pensem-se e sintam-se comopertencentes à nação brasileira. Assim, a nação pode ser entendida como uma representa-ção presente no imaginário social. Como afirma Oliven (1992, p.25), nação é um produ-to cultural que surge na Europa a partir do fim do século XVIII e se constitui em umacomunidade política imaginada. É, pois, preciso invocar antigas tradições (reais ou inven-tadas) como fundamento “natural” da identidade nacional que está sendo criada. Isso ten-de a obscurecer o caráter histórico e recente dos Estados nacionais.

O surgimento do imaginário que constitui a nação está associado a uma questão po-lítica: a formação dos Estados nacionais modernos. Contudo, a nação não é construídaapenas com base na propaganda e nos elementos coercitivos estatais; existe um processode negociação em que vários agentes influenciam em um jogo de poder que define as re-presentações desta identidade nacional. Deste modo, é interessante fazer um histórico daforma como foi inicialmente abordado este tema, relacionando-o com a forma atual.

De 1890 a 1945, houve uma grande produção teórica, dentro das ciências humanas,sobre a nação. A questão a ser respondida era: o que é uma nação? Já na pergunta, perce-be-se que os autores procuravam alguma forma de legitimar politicamente alguns estados,sendo eles identificados como nação em detrimento de outros, em uma espécie de violên-cia simbólica. Pode-se, assim, considerar esse momento da discussão sobre nação como al-tamente engajado em relação à formação dos Estados nacionais.

Esta discussão, por sua vez, ocorreu influenciada pela assimilação da região da Alsá-cia Lorena pela Alemanha, questionando-se aí o fato de a região pertencer à nação fran-cesa ou alemã. Em ambos os países, intelectuais engajados procuraram formular concei-tos de nação que justificassem o controle sobre ela.4

A L E S S A N D E R K E R B E R , C L E B E R C R I S T I A N O P R O D A N O V

121R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

4 Os alemães afirmavam,de modo geral, que a per-tença a uma nação é umaquestão determinada pelonascimento, ou seja, inde-pende da vontade do indiví-duo. O que eles estavamafirmando é que elementoscomo a raça, a língua e a re-ligião definiam a nação. Nes-se sentido, a Alsácia perten-ceria à Alemanha. Essepensamento é largamenteinfluenciado pelo romantis-mo, que construiu a repre-sentação de um passadounificado e heroico para anação alemã. Em oposiçãoa essa concepção alemã denação, levantam-se pensa-dores franceses que procu-ram, de todas as formas,legitimar a pertença da Alsá-cia à França. O principaldeles é Renan (1997) que,no seu clássico Qu’est-cequ’une nation?, publicadopela primeira vez em 1882,por influência das ideias ilu-ministas, entende a naçãonão como naturalmente de-terminada, mas como umpacto social a partir do qualos indivíduos optam pelapertença. O autor colocaque a nação seria algo co-mo um plebiscito diário emque se reafirma ou não estanação.

Page 122: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

Cabe destacar que a questão teórica sobre nação foi pouco estudada no período após1945, provavelmente pelos traumas causados pelo nacionalismo na Segunda GuerraMundial. Desde os anos 80, porém, vários pensadores têm-se proposto, novamente, apensar teoricamente o conceito. Tendência influenciada por um novo contexto social: oda globalização. Especialmente nos anos 90, fortes nacionalismos renasceram na Europa,apropriando-se deste imaginário já existente sobre a nação como forma de defesa em re-lação à globalização.

O antropólogo Ernest Gellner, uma das principais referências sobre nação no con-texto atual, define que:

A “era do nacionalismo” não é uma mera soma da revelação e da auto-afirmação políticadesta ou daquela nação. Em vez disso, quando as condições sociais gerais conduzem a culturaseruditas standartizadas, homogêneas e centralizadas, abrangendo populações inteiras e não ape-

nas minorias de elite, surge uma situação em que as culturas unificadas, educacionalmente san-cionadas e bem definidas, constituem na prática o único tipo de unidade com que os homensse identificam voluntariamente e muitas vezes ardentemente (...) Deste modo, os homens que-rem estar politicamente unidos com todos aqueles, e apenas aqueles, que partilham a sua cul-tura. Então as organizações políticas estenderão as fronteiras até aos limites das respectivasculturas para protegerem e imporem essas culturas até às fronteiras do seu poder. (1993, p.88.)

Uma identidade nacional forma-se através de um sentimento e ideia de pertenci-mento a uma nação. Destaca-se, então, o conceito de Anderson, para quem a nação nãoexiste em outra instância senão no imaginário de uma comunidade; ela é:

uma comunidade política imaginada – e imaginada como implicitamente limitada e sobera-na. Ela é imaginada porque nem mesmo os membros das menores nações jamais conhecerãoa maioria dos seus compatriotas, nem os encontrarão, nem sequer ouvirão falar deles, embo-ra na mente de cada um esteja viva a imagem de sua comunhão (...) é imaginada como li-mitada, porque até mesmo a maior delas, que abarca talvez um bilhão de seres humanos, pos-sui fronteiras finitas, ainda que elásticas, para além das quais encontram-se as outras nações.Nenhuma nação se imagina coextensiva com a humanidade (...) É imaginada como sobera-na, porque o conceito nasceu numa época em que o Iluminismo e a Revolução estavam des-truindo a legitimidade do reino dinástico hierárquico divinamente instituído (...) é imagina-da como comunidade porque, sem considerar a desigualdade e exploração que atualmente

prevalecem em todas elas, a nação é sempre concebida como um companheirismo profundoe horizontal. Em última análise, essa fraternidade é que torna possível, no correr dos últimosdois séculos, que tantos milhões de pessoas, não só se matem, mas morram voluntariamen-te por imaginações tão limitadas. (1989, p.14-6.)

A comunidade imaginada, por sua vez, identifica-se por intermédio de uma série desímbolos. Segundo Thiesse (2001/2002, p.8-9), existe uma check list, um código de sím-bolos internacionais que define o que todas as nações devem ter: uma história estabele-cendo a continuidade da nação; uma série de heróis-modelos dos valores nacionais; umalíngua; monumentos culturais; um folclore; lugares memoráveis e uma paisagem típica;uma mentalidade particular; identificações pitorescas – costumes, especialidades culiná-rias ou animal emblemático. Estes símbolos não são apenas uma superficial lista de ador-nos, mas essenciais para a autorrepresentação das pessoas que se identificam com a nação.

I D E N T I D A D E S R E L A C I O N A D A S A O E S P A Ç O G E O G R Á F I C O

122 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 123: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

No Brasil, diferentemente da República Velha, que teve o federalismo como carac-terística, a política que se instalou após a Revolução de 30 tendeu ao centralismo e, con-sequentemente, valorizou a identidade nacional em detrimento das regionais e das cida-des. O modelo de Estado autoritário que começava a se instaurar a partir de então teveuma importante atuação, em âmbito cultural, para a construção de uma nova identidadenacional. Especialmente a partir do Estado Novo e da instauração do Departamento deImprensa e Propaganda (DIP), ocorreu um processo de censura mais efetiva sobre repre-sentações regionais e de cidades que apresentavam tensões em relação às nacionais.

A FORMAÇÃO DA CIDADE DE NOVO HAMBURGOE SUA IMPRENSA

Leopoldo Petry foi o primeiro a escrever uma versão que se apresentava como umahistória de Novo Hamburgo. Segundo ele, o surgimento da cidade está intimamente li-gado ao projeto imperial brasileiro de ocupação da região meridional do país, com popu-lação europeia leal ao imperador e à Coroa. Neste processo, desembarcaram no Rio Gran-de do Sul, a partir de 1824, sucessivas levas de imigrantes de origem germânica, que seestabeleceram em várias regiões do Estado.

Conforme Leopoldo Petry (1959, p.6), é possível estabelecer a seguinte periodizaçãopara narrar a trajetória do município: o primeiro período tem início na época da funda-ção de Hamburger-Berg (povoado que originou a cidade) e segue até a implantação dotráfego ferroviário (1824-1876); o segundo corresponde ao funcionamento do tráfegoferroviário e se estende até o começo da industrialização (1876-1900); o terceiro começacom a industrialização e se estende até a emancipação do município (1900-1927); oquarto e último, tem início com a emancipação e continua até a data da elaboração deseu livro (1927-1959).

Percebe-se que Petry faz uma divisão focalizando, essencialmente, os aspectos econô-micos (com exceção da emancipação, que seria um aspecto político). Nesta perspectiva,analisa o início do desenvolvimento de um centro comercial, que futuramente comporiao município de Novo Hamburgo, ao redor do qual se estabelece um pequeno povoado.Marca, ainda, a chegada da estrada de ferro, que ligava Porto Alegre a Novo Hamburgo,o que veio a impulsionar ainda mais o desenvolvimento comercial da região, além do iní-cio do processo de desenvolvimento da indústria coureiro-calçadista.

Até a década de 1970, a visão predominante na historiografia brasileira acerca doprocesso de industrialização apontava que o capitalismo industrial, no Brasil, não tinhaconhecido as fases de artesanato e manufatura, ou seja, a atividade fabril já nascera tendona grande indústria seu principal sustentáculo. Ao enfocar o desenvolvimento da indús-tria calçadista em Franca (SP), porém, Barbosa encontra a origem do empresariado do cal-çado em modestos empreendimentos iniciados por artesãos e pequenos comerciantes(Barbosa, 2005, p.1-2).

A história da cidade de Novo Hamburgo, outro polo que se desenvolveu principal-mente a partir da indústria calçadista, ainda não foi devidamente analisada. O desenvol-vimento da indústria na região, no entanto, também teve origem em pequenas fábricascom baixo capital de investimento (Kerber, Prodanov, Schemes, 2007, p.194).

Criado por um grupo que defendia o movimento emancipacionista, o jornal O 5 deAbril foi o primeiro existente no território do município de Novo Hamburgo, em 1927.

A L E S S A N D E R K E R B E R , C L E B E R C R I S T I A N O P R O D A N O V

123R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 124: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

O nome foi escolhido em homenagem à data de emancipação do município – 5 de abrilde 1927. Intitulava-se no cabeçalho da página principal como “semanário de interessesgerais” e sem ligações partidárias ou religiosas. Na sua fundação, teve como diretor Leo-poldo Petry e como gerente Edgar Behrend (filho de Hans Behrend, dono da tipografiaonde era impresso o semanário). Werner Behrend (outro filho de Hans) mais tarde assu-miria, durante um período de 30 anos, a gerência do periódico, que saía às sextas-feiras eera impresso na “Typografhia Behrend”. Inicialmente era editado em quatro páginas, asduas últimas geralmente eram ocupadas com publicidade. Na primeira página, aparecia aprincipal notícia, que era geralmente transcrita de jornais da capital, como o Correio doPovo e a Federação.5

O 5 de Abril pretendia assumir uma vinculação direta com a identidade da cidade deNovo Hamburgo (elemento já perceptível no nome do próprio periódico). Assim, em seuexemplar de lançamento, na página 2, aparece a matéria intitulada “O nosso jornal”.

Com o advento da nossa emancipação política e administrativa, fruto do progresso queaqui se verifica como em nenhuma outra parte do nosso amado Rio Grande do Sul, toma-das as devidas proporções e, onde a atividade de seus filhos é múltipla, a criação de um ór-gão de publicidade era absolutamente inadiável. Eis porque, de um grupo de ardorosos pa-ladinos do vilamento local, partiu a idéia da fundação e um jornal.

Como, porém, não bastasse a concepção desta boa idéia, sendo precisa a coragem pararealizá-la, tratou-se desde logo de dar um caráter prático à teoria expendida, apresentou-se ho-

je, embora ainda em modestas condições, o nosso jornal que tomou o título de “O 5 de Abril”.Este título não é mais do que uma homenagem à, para nós gloriosa, data que se assina-

la à assinatura do decreto de ouro, com que o benemérito Governo do Estado, houve por

bem, concede-nos a tão almejada autonomia.Não será preciso encarecer o valor moral deste ato justo e nobre. Basta dizer-se que ele

mereceu os aplausos unânimes, chegando-nos de toda parte notícias destas manifestações.

E, de fato, se dentro de grande Estado gaúcho há centros com direito a este favor, No-vo Hamburgo merecia, sem dúvida, ser colocada em primeiro plano, pelo seu grande comér-cio e pelas suas extraordinárias indústrias, conhecidas em todos os recantos de nosso amadoBrasil e, quiçá, além de nossas fronteiras.

Por algumas colunas procuraremos amparar todas as boas causas e todos os grandes em-preendimentos. Será,porém, o nosso principal objetivo trabalhar pela união da coletividadedo nosso município, sem dúvida o fator primordial de seu progresso, máxime quando esta

união parece já estar consolidada com o auspicioso ato da municipalização, para o qual coo-peraram gregos e troianos.

Teremos ainda em mira especial amparar os que trabalham, porque foi com o trabalhoque a nossa localidade ascendeu ao ponto em que atualmente se encontra.

O nosso jornal não tem nenhuma ligação partidária ou religiosa. Isto não nos impedede consignarmos, no nosso artigo inicial, palavras do nosso mais profundo reconhecimento

ao preclaro estadista que tão proficuamente dirige os destinos do nosso querido Estado, Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros.6

A expressão “nosso” já remete, diretamente, à construção da identidade, ou seja, àdefinição do que pertence a nós e, consequentemente, aos outros (à alteridade). Nestaperspectiva, o jornal atuou construindo uma versão identitária sobre a cidade, estabele-cendo seus símbolos e “inventando tradições”7 que a justificassem.

I D E N T I D A D E S R E L A C I O N A D A S A O E S P A Ç O G E O G R Á F I C O

124 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

5 Calcula-se que as primei-ras tiragens alcançaramcerca de 200 a 300 exem-plares por semana. Para apopulação de Novo Hambur-go recenseada, na época,em 8.500 habitantes, o nú-mero era significativo, tendoem vista, especialmente, aexpressiva parcela de ham-burguenses moradores nazona rural e os habitantesque falavam apenas a línguaalemã. Já para a época dacriação do Departamentode Imprensa e Propaganda(DIP), ou seja, o período finalda década de 1930, falava-se na tiragem, por edição,de mil exemplares (Behrend,2002, p.43, 60).

6 O 5 de Abril, Novo Ham-burgo, 1 julho de 1927, p.2.

7 Segundo as reflexões deEric Hobsbawm (2006, p.9),que define uma “tradição in-ventada” como “um conjun-to de práticas, normalmentereguladas por regras tácitaou abertamente aceitas; taispráticas, de natureza ritualou simbólica, visam inculcarcertos valores e normas decomportamento através darepetição, o que implica, au-tomaticamente, uma conti-nuidade em relação ao pas-sado”.

Page 125: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

Também é tema recorrente no jornal a construção simbólica da cidade. Em diversasmatérias foram retomados temas como as características de Novo Hamburgo, a justificativae os signos8 da cidade, bem como a sua relação com outras cidades, com a região e a nação.

Os textos presentes nos meios de comunicação de massa pela articulação com a so-ciedade reconfiguram o espaço social. Isso ocorre quando as questões das identidades cul-turais podem ser percebidas através dos discursos jornalísticos veiculados, por exemplo,nos jornais impressos. Este movimento pode ser visualizado nas páginas do jornal O 5 deAbril, que, no caso do município de Novo Hamburgo, foi o primeiro meio de comuni-cação de massa voltado à população local.

Assim, verifica-se que o O 5 de Abril conseguiu se firmar como mediador entre asideias de um grupo de emancipacionistas e grande parte da população alfabetizada domunicípio, devido tanto à sua hegemonia como pela escolha dos redatores. Os colabora-dores eram representantes do governo e da sociedade local e os assuntos abordados trata-vam de avisos para a comunidade, colunas opinativas e anúncios do comércio local, quecomeçava a crescer junto com a cidade, ou seja, todos tinham um motivo para ler o “Cin-quinho”, nome carinhoso dado ao semanário pela comunidade.

Para comunicar a informação em uma mídia, é utilizado o chamado discurso jorna-lístico, pois é ele e suas características que legitimam um fato, considerando, é claro, o seumeio de divulgação e a sua abrangência. Ao fazer referência à notícia, que é traduzida pe-lo discurso/texto jornalístico, remete-se à pressuposição de um real, o real dos fatos, comose eles narrassem demandas e valores de uma comunidade, sem a intervenção do emissor.

A função testemunhal do discurso jornalístico mantém, ainda, uma relação de alte-ridade com outra questão: a da legitimação. Para Gomes (2000, p.45),

por causa dessa não-causação (na origem de um sem sentido), fomos levados à necessidadede que todo o testemunho, padece remetendo-se a um outro testemunho, de todo textojustificar-se por meio de outro e da reprodução discursiva como tentativa de costura da

proliferação.

A autora continua a ideia destacando que toda a legitimidade reduz-se a processos delegitimação que estão ancorados nos modelos discursivos. Para clarificar este pensamento,ela recorre aos trabalhos de Foucault e Lyotard e verifica que “existe uma impossibilidadede Verdade” (Idem, p.53). Sendo assim, a função referencial do jornalismo é a de dar o aval de que o seu testemunho é verdadeiro, ou seja, ser argumento pró-consenso.

As representações da cidade de Novo Hamburgo presentes no jornal no período deenfoque deste estudo referiam, essencialmente, a dois aspectos: a modernidade e a germa-nidade. Ambos os aspectos apresentavam-se no próprio nome dado à cidade recém-eman-cipada de São Leopoldo, berço da colonização alemã e representação do antigo, do velho,do ultrapassado, do qual a imprensa de Novo Hamburgo propunha se diferenciar.

REPRESENTAÇÕES DA CIDADE E ASSOCIAÇÕESCOM A IDENTIDADE ALEMÃ

Talvez o elemento mais recorrente nas matérias do jornal tenha sido a relação esta-belecida entre a cidade de Novo Hamburgo e a nação alemã. Até 1937, era inclusive fre-quente o uso da própria língua alemã no periódico.

A L E S S A N D E R K E R B E R , C L E B E R C R I S T I A N O P R O D A N O V

125R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

8 Utilizou-se o conceito designo conforme propostopor Roland Barthes (1999,134-5), que afirma que “to-da a semiologia postula umarelação entre dois termos,um significante e um signifi-cado (...) É preciso não es-quecer que, contrariamenteao que se sucede na lingua-gem comum, que me dizsimplesmente que o signifi-cante exprime o significado,devem-se considerar em to-do o sistema semiológiconão apenas dois, mas trêstermos diferentes; pois oque se apreende não é ab-solutamente um termo, umapós o outro, mas a correla-ção que os une: temos por-tanto o significante, o signifi-cado e o signo, que é o totalassociativo dos dois primei-ros termos”.

Page 126: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

A estratégia mais utilizada para estabelecer relação entre Novo Hamburgo e a Ale-manha era a menção à imigração que, desde mais de um século antes, teria estabelecidoa origem e a identidade da cidade. Necessário mencionar que Novo Hamburgo não erauma cidade em que a população fosse totalmente composta por descendentes de alemães,mas uma cidade com população diversificada. Estudos recentes, como os de Magalhães(2006), remetem a clubes e sociedades essencialmente negras na cidade nas décadas de1920 e 1930.

Contudo, no processo de lutas de representações, acabou vitoriosa, em Novo Ham-burgo, a versão sobre uma cidade originada e composta por descendentes de alemães. Es-ta relação era especialmente lembrada nas edições próximas ao dia 25 de julho, em que secomemora a imigração alemã no Brasil. Em 1930, por exemplo, o jornal apresentou, semidentificar autoria da matéria, o texto que segue:

Hoje, 25 de julho, se comemora neste Estado, a vinda dos primeiros imigrantes alemães.Foi em 25 de julho de 1824 que chegaram ao porto de São Leopoldo as primeiras famí-

lias de colonos contratadas, na Alemanha, pelo Governo Imperial do Brasil, e que aqui vie-ram lançar os alicerces dessa colonização que em pouco mais de um século tem trazido tãograndes benefícios ao nosso caro Rio Grande.

É, pois, justo que no dia de hoje nos lembremos, com veneração, daqueles primeirospioneiros, que vindos de longe, para um país novo e desconhecido para eles, com um climadiferente do de sua Pátria, com usos e costumes diversos, atiraram-se com coragem ao traba-

lho, à luta, conseguindo com a sua tenacidade e amor ao trabalho vencer todas as dificul-dades e legar aos seus pósteros um rico patrimônio moral e material.

Honremos a sua memória.9

O 5 de Abril frequentemente dirigia-se à população da cidade utilizando este ele-mento associado à identidade étnica. Por exemplo, no dia 20 de maio de 1927, em arti-go nomeado “Os primeiros frutos de nossa emancipação”, noticiou as obras empreendi-das pela municipalidade, afirmando que:

A laboriosa população do ex-2º distrito de São Leopoldo, hoje município de Novo

Hamburgo, graças ao decreto... que emancipou da tutela administrativa do município a quepertencia e que, até então, vivera entregue a si mesma, privada de qualquer melhoramentomoral ou material (...)10

No dia 7 de outubro do mesmo ano, a associação da identidade da cidade com a ale-mã tornou-se ainda mais explícita:

A autonomia de seu pequeno solo, conseguida a cabo de muita luta ingente, trás oshamburguezes orgulhosos pela maior semelhança que apresenta assim, com o seu glorioso

homônimo hanseático. E da tenacidade indiscutida de seus habitantes, tudo se podre espe-rar, por certo. 11

Destaca-se que o “orgulho pela semelhança” e o “homônimo hanseático” remetem,imediatamente, à ligação entre a identidade da cidade e a identidade étnica alemã, asso-ciada à modernidade e à industrialização de Novo Hamburgo, fazendo com que o jornalse referisse à cidade como “pequenina Manchester brasileira”.12

I D E N T I D A D E S R E L A C I O N A D A S A O E S P A Ç O G E O G R Á F I C O

126 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

9 “Imigração alemã”, in O 5de Abril, Novo Hamburgo,25 de julho de 1930, p.2.

10 O 5 de Abril, Novo Ham-burgo, 20 de maio de 1927.

11 Idem, 7 de outubro de1927, pp.2.

12 Idem, 4 de abril de1930, p.1.

Page 127: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

No dia 7 de junho de 1929, o jornal referiu-se à cidade como uma colmeia. A ima-gem de colmeia, que remete à de ordeiros trabalhadores, é ligada à questão étnica, cons-truindo-se uma narrativa em que tal elemento ordeiro e trabalhador liga-se à descendên-cia alemã. Vale a pena a longa citação:

Quem chega à esta Vila sente a inflexão da riqueza e do conforto, tamanha é a simpatiado ambiente e notável a benemerência do exemplo! Todos laboram pela grandeza econômica

do Município, cada qual como uma molécula desse grande organismo que se agita e que sedesenvolve em busca de um ideal esplêndido! Os estabelecimentos fabris assemelham-se àenormes colmeia, onde milhares de inteligências se empenham no trabalho que felicita e re-

dime o homem, reivindicando-o do mal e da perdição, produzindo o pão do corpo e a hós-tia do espírito!

Assim é que a criminalidade míngua e a moral abre as asas diáfanas sobre os nossos la-

res, protegendo-nos a vida e levantando-nos o nome de dignos e cristãos!Não sabemos de outra Vila que mais trabalhe e mais número de casas confortáveis te-

nha que a nossa, havendo mesmo requinte em alguns de seus palacetes, ótimos, magníficosde linhas e estilos, aptos a figurarem em qualquer capital do mundo civilizado.

A despeito de ser o menor município do país, não é, todavia, o mais ínfimo, posto queo potencial do seu trabalho supera o de muitos, não lhe ficando mal o título de Manchestergaúcha!

Os teutos têm o instinto da ordem e da prosperidade, infiltrando àqueles que os ro-

deiam o exemplo dignificante, buscando, como numa fonte maravilhosa, a independênciano labor de cada dia, tal o beduíno que procura no Alcorão a redenção e a glória da espéciemesma! (...)

Há ainda a fundação de três escolas, fato este que merece palmas e louvores, em virtude

de ser essa a maior preocupação dos grandes espíritos que almejam ao Brasil o verdadeiro lu-gar a que ele faz jus, pela sua grandeza e pelo seu posto de guardião da América do Sul! (...)

Para concluir vem a pelo a questão da luz e força, quando mais se fizera notar a inteli-gência do major Leopoldo Petry, solucionando, a contento geral, esse problema que nos em-polgava, encontrando nos snrs. Pedro Adams Filho e coronel José J. Matins os mais valiososdos seus auxiliares na consecução desse benefício que já transpusera as fronteiras hambur-

guezas para nos orgulhar e servir de paralelo à iniciativas congêneres que se debuxam peloEstado afora...

Salve! De homens deste jaez é que a pátria carece e não da chusma de maldizentes que

superabunda, inativa, corrupta e corruptora!Salve, major Leopoldo Petry!13

A afirmação de uma origem alemã apresentava-se, em geral, investida de um signi-ficado valorativo, justificado pela associação entre o alemão e o trabalho. Por exemplo, em1934, o próprio prefeito Leopoldo Petry apontou:

Dada a concentração ao trabalho, aliada ao espírito ordeiro desses pioneiros, rapida-

mente se desenvolveu a colônia: a mata virgem foi desaparecendo e em toda parte surgiram

prósperos núcleos, florescentes vilas e cidades, e hoje, ao cabo de 110 anos, com toda justiçapodemos orgulhar-nos do progresso e desenvolvimento da grandiosa estrutura econômica ecultural iniciada pelos nossos antepassados.14

A L E S S A N D E R K E R B E R , C L E B E R C R I S T I A N O P R O D A N O V

127R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

13 Idem, 7 de junho de1929, p.1.

14 Leopoldo Petry, “Do iní-cio da colonização alemã”,in O 5 de Abril, Novo Ham-burgo, 25 julho 1934, p.2.

Page 128: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

Esta associação entre “alemão” e “trabalhador” fez parte da própria versão identitá-ria proposta para sua nação pelo Estado alemão e está presente no “germanismo”.15 Im-portante, também, ressaltar, que antes dos anos 1930 não parece ter sido considerado pro-blema importante, pelo Estado brasileiro, a afirmação da “germanidade” de descendentesde imigrantes alemães, desde que também se afirmassem como brasileiros. Esta questão éfortemente influenciada pela percepção predominante das elites brasileiras, até a décadade 30, de que os elementos étnicos não brancos eram os principais entraves para o desen-volvimento do Brasil.16

AS TRANSFORMAÇÕES NAS VERSÕES SOBRE AIDENTIDADE NACIONAL BRASILEIRA DURANTEO GOVERNO VARGAS E SUAS RELAÇÕES COM AIDENTIDADE DA CIDADE DE NOVO HAMBURGO

No Brasil, a década de 30 acompanhou o início da produção científica de um jovemintelectual que se projetou como um marco no pensamento brasileiro: Gilberto Freyre.17

De acordo com Ortiz:

A passagem do conceito de raça para o de cultura elimina uma série de dificuldades co-locadas anteriormente a respeito da herança atávica do mestiço. Ela permite um maior dis-

tanciamento entre o biológico e o social, o que possibilita uma análise mais rica da socieda-de. Mas a operação que Casa grande e senzala realiza vai mais além. Gilberto Freyretransforma a negatividade do mestiço em positividade, o que permite completar definitiva-

mente os contornos de uma identidade que há muito vinha sendo desenhada. (2001, p.41.)

O que interessa na obra de Freyre é a influência de seu pensamento nas representa-ções do imaginário da sociedade brasileira. Segundo Carlos Fico (1997, p.34), a décadade 30 foi o período de “gilbertização” do país, ou seja, da absorção dos cânones explica-tivos da sociedade brasileira através da obra Casa grande e senzala, que promoveu uma res-significação dos negros e dos mestiços na cultura nacional. Com a obra de GilbertoFreyre, a mistura de raças como formadora da identidade nacional ganhou ampla aceita-ção, a noção de que o Brasil tinha se formado pela mistura das três raças (o branco, o ín-dio e o negro) difundiu-se socialmente e tornou-se senso comum.

A obra de Freyre ia perfeitamente ao encontro da proposta da política de Vargas, as-similando harmoniosamente diversos grupos étnicos à nacionalidade, idealizando umasociedade sem conflitos – e, com certeza, esse é um dos motivos de seu pensamento ter seprojetado tanto. Como afirma Hermano Vianna:

O governo pós-Revolução de 30 tornou semi-oficial a política de miscigenação, valorizan-

do inclusive os símbolos nacionais mestiços como o samba (...) As medidas de repressão foraminclusive legais (...) limitando as cotas de imigração [como forma de valorizar o trabalho dos mes-

tiços brasileiros em detrimento dos brancos europeus] e estabelecendo que nenhum estabeleci-

mento de trabalho poderia ter mais do que um terço de empregados estrangeiros. (1995, p.73.)

Esta versão sobre a identidade nacional brasileira emergente durante os anos 30,contudo, excluía os descendentes de imigrantes alemães no sul do país. A política esta-

I D E N T I D A D E S R E L A C I O N A D A S A O E S P A Ç O G E O G R Á F I C O

128 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

15 Conforme Gertz (1991,p.32), o germanismo é a tra-dução da palavra Deutsch-tum. É usada, às vezes, pa-ra designar simplesmente oconjunto da população dealemães e descendentes.Mas de uma maneira geralentende-se por Deutschtumuma ideologia e uma práticade defesa da germanidadedas populações de origemalemã. A palavra tambémpode aparecer significandoas duas coisas ao mesmotempo. É o caso do título daobra comemorativa do pri-meiro centenário da imigra-ção alemã, Hundert JahreDeutschtum im Rio Grandedo Sul (Cem anos de germa-nismo no...), publicada em1924.

16 Como afirma Renato Or-tiz (2001, p.16-7): “As con-siderações de Silvio Romerosobre o português, de Eucli-des da Cunha sobre a ori-gem bandeirante do nordes-tino, os escritos de NinaRodrigues refletem todos aideologia da supremacia ra-cial do mundo branco (...)Dentro desta perspectiva, onegro e o índio se apresen-tam como entraves ao pro-cesso civilizatório”.

17 O positivismo de Comte,o darwinismo social, o evo-lucionismo de Spencer fo-ram teorias elaboradas naEuropa em meados do sécu-lo XIX que apontavam para aevolução histórica e o pro-gresso das civilizações, legi-timando a superioridade dacultura branca européia so-bre os povos “primitivos”.Essas teorias europeias in-fluenciaram enormementeas teorias raciais que predo-minaram entre as elites bra-sileiras no final do séculoXIX e início do século XX.Também na Europa, aindano final do século XIX, come-çaram a aparecer trabalhosde Franz Boas, em que a no-ção de raça cede lugar à decultura. A obra de Boas tevegrande influência sobre Gil-berto Freyre.

Page 129: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

belecida durante esta época também fortalecia essa exclusão. Eliana Freitas Dutra, emO ardil totalitário (1997), focaliza especialmente o período entre 1935 e 1937, fun-damentando-se em teóricos da psicologia, e explica que, naquele momento, o imagi-nário social recorreu ao Estado, identificado a nação, a pátria-mãe, a um salvador quepoderia proteger a sociedade dos males que a atormentavam. Neste sentido, a naçãoveio a ser uma resposta às angústias de uma população em crise. Maria Helena Capela-to afirma que:

O varguismo e o peronismo surgiram em momentos de crise nas respectivas sociedades,o contexto de insegurança e instabilidade explica a aceleração dos sentimentos e sua trans-

formação em paixão. O apelo a valores comuns e, através deles, a emergência simbólica deum nós, proclamação agressiva de uma identidade a se afirmar e legitimar, implicavam emtrabalho complexo de construção da identidade e identificação do outro. Este processo levou

ao extremo das emoções. (1998, p.243.)

No contexto dos anos 30, é preciso prestar especial atenção à atuação do Estado pa-ra definições sobre o nacional. Isso ocorre porque a crise mundial também foi responsá-vel pela emergência de regimes autoritários em todo o mundo. O nacionalismo que seconfigurou a partir dos anos 30 não é mais o liberal, mas o do tipo autoritário, centradono Estado, o qual teve grande poder para autorizar ou censurar seus símbolos.

Capelato (1991, p.51-63) analisa a influência das ideias fascistas nos regimes deVargas e Perón, concluindo que eles não podem ser classificados como fascistas, apesar deterem sofrido grande influência deles. As ideias fascistas circularam pela América Latinaentre as décadas de 1930 e 1940, influindo, especialmente, em dois aspectos: no desen-volvimento do nacionalismo e na emergência do Estado autoritário, que atuou mais so-bre a cultura nacional.

A influência das ideias fascistas apresenta-se forte no governo Vargas no Brasil, emespecial a partir do Estado Novo, quando também houve um processo de renegociaçãosobre a identidade nacional brasileira. Parte-se do pressuposto de que uma identidade nãoé criada pelo Estado, mas que pode ser influenciada por ele. Assim, o Estado brasileiro doperíodo de Vargas teve, através de uma série de mediações, o controle sobre a imprensa,o rádio e o cinema.

Esta inovação da “Era Vargas”, que foi a centralização do poder político e a atuaçãocada vez mais forte do Estado na esfera social e cultural, é explicada da seguinte forma pe-lo antropólogo Ruben Oliven:

Se a República Velha se caracterizou pela descentralização política e administrativa, aRepública Nova reverte essa tendência e acentua uma crescente centralização nos mais varia-dos níveis. Esse processo precisa ser entendido como decorrência de importantes transforma-ções que vinham sendo gestadas nas primeiras décadas deste século e que assumiriam umadimensão mais ampla a partir da década de 1930. Em poucas palavras, essas mudanças fo-ram a formação de uma indústria de substituição de importação de bens não-duráveis, o cres-

cimento das cidades que eram centros de mercados regionais, a crise do café, a falência do

sistema baseado em combinações políticas entre as oligarquias agrárias (a “política dos go-vernadores”) e o surgimento de revoltas sociais e militares que começaram na década de 1920e culminaram com a Revolução de 1930. (...) Nesse período, as ideologias sobre o caráternacional brasileiro que enfatizavam a dificuldade de construir uma verdadeira cultura no

A L E S S A N D E R K E R B E R , C L E B E R C R I S T I A N O P R O D A N O V

129R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 130: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

Brasil por causa da miscigenação racial cedem lugar a posições como a de Gilberto Freyre,

que frisam a idéia de que no Brasil haveria uma democracia racial. (2000, p.74-6.)

Esta tendência acentua-se com o Estado Novo, ocasião em que os governadores elei-tos foram substituídos por interventores e as milícias estaduais perderam força, medidasque aumentaram a centralização política e administrativa. No plano da cultura e da ideo-logia, a proibição do ensino em línguas estrangeiras, a introdução da disciplina de Morale Cívica, a criação do Departamento de Imprensa e Propaganda (que tinha a seu cargo,além da censura, a exaltação das virtudes do trabalho) ajudaram a criar um modelo de na-cionalidade centralizado no Estado (o qual, logo a seguir, viria a exercer violências sobrealguns segmentos da população brasileira, especialmente imigrantes, e, mais enfaticamen-te, sobre os descendentes de alemães).

A emergência desta nova versão sobre a identidade nacional brasileira coincidiu coma emergência do nazismo na Alemanha, quando o país apresentou-se novamente comouma ameaça internacional. As ideias fascistas encontraram ressonância também na Amé-rica Latina, em especial no Brasil, fazendo com que se tornassem também uma questãopolítica importante. Neste período, os descendentes de alemães foram frequentementeconfundidos com e rotulados como nazistas. Houve, efetivamente, uma simpatia às ideiasfascistas nas regiões de imigração alemã que se manifestaram, em grande medida, no cres-cimento do Integralismo nestas regiões.

É provável que a emergência da Alemanha como uma potência, com base em umaperspectiva política nazifascista, tenha sido o principal elemento motivador na aproxima-ção de alguns descendentes de alemães com o Integralismo,18 movimento com inspiraçãono ideário fascista. Contudo, apesar desta participação ter sido de apenas parte da comu-nidade alemã, houve, no imaginário social, uma identificação genérica entre a identidadeétnica e tais ideias de caráter político.

O imenso crescimento econômico e, especialmente, industrial da Alemanha no co-meço do século XX contrastava, porém, com seu potencial em termos de mercados consu-midores e fornecedores de matérias-primas. Por ter se constituído tardiamente como Esta-do nacional, a Alemanha havia chegado “atrasada” na partilha dos mercados mundiais.Assim, a África e a Ásia já tinham sido divididas especialmente entre a Inglaterra e a Fran-ça, que exerciam controle sobre os mercados destas regiões através de, basicamente, três sis-temas: colônias, protetorados e áreas de influência. No caso do Brasil, desde a DoutrinaMonroe, os Estados Unidos definiam-no como seu mercado. Contudo, esta relação não eramais complexa do que gostaria o governos norte-americano, pois a Alemanha apresentava-se, até a Segunda Guerra Mundial, como segunda parceira comercial do Brasil.

A Alemanha, no entanto, encontrava limitações para o seu desenvolvimento econô-mico. Limitações tão rigorosas de acesso aos mercados internacionais que chegaram a serapontadas como explicação para a entrada do país nas guerras mundiais.

Uma das saídas parciais encontradas pela Alemanha foi estreitar os laços de comér-cio com as regiões do mundo que haviam sido colonizadas por seus emigrantes. O histo-riador René Gertz analisa este contexto histórico, identificando a política econômica exer-cida pela Alemanha:

A Alemanha não tinha colônias e ideólogos e estrategistas alemães pensaram no aprovei-tamento de “alemães no exterior” em benefício da “pátria-mãe”. Já em 1865 o geógrafo ale-mão Woldemar Schulz, escrevendo sobre as possibilidades de imigração para o sul do Brasil,

I D E N T I D A D E S R E L A C I O N A D A S A O E S P A Ç O G E O G R Á F I C O

130 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

18 O Integralismo tinha for-te inspiração fascista. Con-forme Helgio Trindade(1974), o Integralismo teveo topo de suas estruturasadministrativas ocupado es-pecialmente por descenden-tes de luso-brasileiros, masconseguiu um amplo apoio,nas bases, de descenden-tes de alemães.

Page 131: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

Uruguai e Argentina, citava uma personalidade alemã que havia dito: “... ninguém pratica-

mente lembra que com isto se criariam lugares de reunião para os ramos caídos do nossotronco, onde todo botão de flor se transforma em fruto maduro para a pátria alemã, ondequalquer pulsação do sangue da velha pátria é refletido”.

Certamente alguns destes ideólogos e estrategistas - mais exaltados e menos realistas –pensavam até numa anexação, na criação de uma colônia alemã como os franceses as tinhamna Ásia ou na África. A maioria, porém, pensava a presença de descendentes de alemães co-

mo fator fundamental para a conquista do mercado local. (Gertz, 1991, p.15.)

Tudo isso desencadeia a famosa campanha do “perigo alemão”, que se estende comintensidade variável por quase quarenta anos, até a Primeira Grande Guerra, quando daderrota alemã. Obviamente que é preciso considerar os exageros existentes no “perigo ale-mão”. Como o próprio Gertz afirma, o interesse em geral da Alemanha, excetuando o dealguns nacionalistas mais radicais, era apenas expandir seu mercado econômico para darvazão aos seus produtos industrializados e conseguir matérias-primas.

Uma pequena parcela dos descendentes de alemães no Brasil efetivamente aderiu àsideias fascistas. Contudo, houve uma identificação genérica, no imaginário social, entre aidentidade étnica e tais ideias de caráter político.

A parcela da população de Novo Hamburgo que se vinculava diretamente às propos-tas políticas do Estado alemão vincularam-se, em boa parte, à Ação Integralista Brasileira(AIB). Até 1937, a AIB fazia parte de sua divulgação através do jornal, em notas como acitada abaixo:

A Secretaria do Núcleo Municipal da A. I. B. nos forneceu a seguinte nota:

Sessão semanal – Teve lugar, segunda-feira última, na sede municipal, uma concorrida

[ilegível na fotografia, poucas palavras] de doutrina e propaganda integralista, falando oChefe Municipal Dr. W. Metzler e o comp. Alfredo Marotzky que, aproveitando a data do

aniversário da criação do município de Novo Hamburgo, fez uma demorada explanação da origem do “município” e como o encara o Estado Integral (...)

Anauê! Pelo Bem do Brasil.19

Ao mesmo tempo, anteriormente ao Estado Novo, apresentava-se, cada vez mais fre-quente, a crítica contra a propaganda alemã e o jornal O 5 de Abril parece ter sido espaçoda diversidade de discursos.

Em Novo Hamburgo, uma parcela da população participou da Ação IntegralistaBrasileira, demonstrando proximidade às propostas políticas do Estado alemão. Até 1937,a AIB fazia parte de sua divulgação através do jornal O 5 de Abril.

No entanto, a adesão às ideias fascistas e ao Integralismo na região de imigração ale-mã, durante a década de 1930, cresceu somente até a ocorrência de dois fatos: o rompi-mento do Estado Novo com a Ação Integralista Brasileira, em 1938, e o início da Segun-da Guerra Mundial, em 1939. A partir de então, iniciou-se uma repressão por parte doEstado brasileiro em relação aos suspeitos de se ligarem ao Integralismo. Por fim, em1942, com a entrada do Brasil na II Guerra, a repressão tornou-se muito mais forte e osdescendentes de alemães passaram a ser considerados suspeitos.

A L E S S A N D E R K E R B E R , C L E B E R C R I S T I A N O P R O D A N O V

131R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

19 O 5 de Abril, Novo Ham-burgo, 9 de abrIl de 1937,p.2.

Page 132: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

A IMPRENSA COMO ESPAÇO DE LUTAS DE REPRESENTAÇÕES ENTRE A NAÇÃO E A CIDADE

A questão da germanidade versus nacionalismo no Brasil dos anos 1930 perpassoumuitos dos discursos oficiais. Havia a necessidade e o interesse, em Novo Hamburgo, dese afirmar uma identidade nacional brasileira, mas os laços que uniam os descendentes de alemães à sua antiga pátria eram muito fortes e tinham que ser habilmente tratados.Em 1931, por exemplo, Leopoldo Petry criticava a falta de educação pública oferecida pe-lo Estado brasileiro desde o século XIX e, nesta crítica, acabava por responsabilizá-lo pelaprópria manutenção de uma identidade alemã na cidade:

os filhos dos colonos alemães, por falta de aulas Nacionais, não estudavam e não falavamsenão o idioma alemão, e que sendo Brasileiros, tornaram-se que nem estrangeiros no seu

próprio país natal.20

Foi pouco antes da comemoração do primeiro aniversário da emancipação de NovoHamburgo que a prefeitura estabeleceu a data de 5 de abril como feriado municipal. O jor-nal O 5 de Abril de 16 de março de 1928 apresentou o decreto em sua edição, afirmando que:

considerando que a criação do município de Novo Hamburgo foi de suma importância pa-ra o seu progresso econômico e social, e de incalculáveis conseqüências para o seu desenvol-

vimento futuro, considero que esse ato constitui uma velha e justa aspiração dos nossos an-tepassados, cuja memória devemos cultivar, e o resultado dos esforços congregados de toda apopulação do antigo 2º distrito de São Leopoldo.21

A partir do Estado Novo, especialmente após a criação do Departamento de Im-prensa e Propaganda (DIP), em 1939, percebe-se uma mudança drástica no jornal. Em re-lação aos meios de comunicação, o artigo 122 da Constituição de 1937 considerava a im-prensa um serviço de utilidade pública e determinava que os periódicos não poderiam serecusar a inserir comunicados do governo::

Uma das primeiras medidas do órgão foi proibir todas as transmissões radiofônicas e aimpressão de jornais e revistas em língua estrangeira. (...) As medidas constituíram-se numduro golpe para a imprensa organizada por imigrantes e seus descendentes, e atingiu parti-

cularmente as regiões Sul e Sudeste do país, que havia recebido contingente considerável demão-de-obra européia. (Martins & Luca, 2006, p.65.)

Percebe-se esta censura claramente no jornal O 5 de Abril através de três elementos:a eliminação do uso da língua alemã no jornal (até 1937 havia matérias inteiras nesta lín-gua); a mudança no discurso de identificação de Novo Hamburgo com representaçõesalemãs; a emergência cada vez mais frequente de matérias que exaltavam a identidade na-cional brasileira, tanto nas matérias oficiais, enviadas pelo governo federal e que os jornaiseram obrigados a publicar, como nas matérias escritas por integrantes da cidade de NovoHamburgo, especialmente por políticos, numa clara perspectiva de afirmarem-se dentrodo regime instaurado.

Por exemplo, na edição de 4 de abril de 1941, a matéria de capa “Recordando aEmancipação”, assinada por Leopoldo Petry, apresentou em seu subtítulo:

I D E N T I D A D E S R E L A C I O N A D A S A O E S P A Ç O G E O G R Á F I C O

132 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

20 Leopoldo Petry, “Pelainstrução”, in O 5 de Abril,Novo Hamburgo, 1 de maiode 1931, p.1-2.

21 O 5 de Abril, Novo Ham-burgo, 16 de março de1927, p.3.

Page 133: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

É antigo o espírito de brasilidade de Novo Hamburgo – Os dirigentes de São Leopoldo

atribuíram a este município sentimentos não brasileiros, não devendo assim emancipar-se(...) Relembremos ufanos esse fato 14 anos antes de ter o brilhante historiador Capitão Pa-ranhos Antunes afirmado ser Novo Hamburgo FORTE REDUTO DE BRASILIDADE[grifos do original].22

Segue Petry, informando sobre “memorial com 827 assinaturas pedindo a emanci-pação desta zona”, entregue em comissão ao conselho municipal de São Leopoldo em1925:

Por isso, certo de que esse conspícuo Conselho, inspirado pelo mais puro patriotismo etendo em vista unicamente o bem do povo (...) tendo como ideal o mais elevado amor aonosso querido Rio Grande do Sul, à nossa amada Pátria Brasileira, procurará facilitar uma

medida de que tão grandes vantagens advirão ao público.

Na continuação da matéria, na página 4 do mesmo número, Petry afirma:

Eu aqui não quero traçar um paralelo entre o nosso patriotismo e o da cidade vizinha[São Leopoldo], mas não posso deixar de levantar o meu protesto contra essa ofensa que nosfoi atirada. Nós não somos brasileiros?

Mas não são brasileiros esses nossos industrialistas e comerciantes, que com atividade in-

cansável trabalham nos seus estabelecimentos, (...) para a independência econômica da nos-sa Pátria, sem falar nas grandes contribuições que entregam aos cofres públicos?! (...) Não sãopatriotas os nossos operários, moços e velhos, que desde manhã cedo até ao escurecer mou-

rejam nas fábricas (...)Naturalmente, quando falo em patriotismo, me refiro àquele patriotismo são, que tra-

balha, que produz, que vê o supremo ideal do homem, no cumprimento estrito do dever –

aquele patriotismo que o Brasil precisa para tornar-se próspero, feliz e independente doestrangeiro (...) daquele patriotismo que o Brasil precisa para conseguir no concerto das na-ções a posição a que por sua natureza tem direito.

Este patriotismo é o que se cultiva em Novo Hamburgo, onde tudo trabalha, tudo pro-

duz, e onde os parasitas da humanidade, felizmente, não encontram ramo onde pousar. (...)23

Há, também, uma série de expressões utilizadas nas matérias que exaltam, de formaufanista, a pátria. Por exemplo, na edição de primeiro de setembro de 1944: “convidama patriótica população de Novo Hamburgo a se associar, com todo o seu ardor cívico, àsfestividades programadas”. Na mesma matéria: “Novo Hamburgo, como aliás costuma fa-zer todos os anos, vai festejar com um programa excepcional A Semana da Pátria”.24 Naedição seguinte, lia-se: “mais uma vez, vêm demonstrar, cabal e inequivocamente, que ocivismo em Novo Hamburgo é uma realidade”.25

Em relação às escolas, católicas ou luteranas,26 parecia haver uma competição naperspectiva de exaltação da pátria. A Escola Normal Santa Catarina27 noticiava que:

Como nos anos anteriores, este estabelecimento de ensino vem realizando com vivo en-tusiasmo as comemorações da Semana da Pátria (...) dia 24 de agosto teve início o programadas solenidades com a recepção das alunas da Escola Santa Teresa de Bom Princípio, que vie-ram em visita de intercâmbio cultural e regressaram com a mais grata impressão.(...) [a pro-

A L E S S A N D E R K E R B E R , C L E B E R C R I S T I A N O P R O D A N O V

133R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

22 Idem, 4 de abril de1941, p.1.

23 Idem, p.4.

24 Idem, 1 de setembro de1944, p.1.

25 Idem, 8 de setembro de1944, p.1.

26 A maior parte do siste-ma educacional do municí-pio da época era comunitá-rio e confessional, vinculadoàs igrejas católica e luterana.

27 Era uma escola comuni-tária católica de Novo Ham-burgo voltada para o públicofeminino.

Page 134: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

gramação previa] A Caminho da Vitória § dramatização em 9 cenas § a) Partida das Sama-

ritanas, b) Em defesa da Liberdade, c) Saída do Corpo de Expedicionários, d) Nossos maru-jos em águas longínquas, e) Recordando a Pátria distante, f ) Trabalho silencioso da 2ª fren-te, g) Supremo holocausto pela Pátria, h) Visão da Vitória, i) Os troféus gloriosos aos pés daVirgem Aparecida.28

A Fundação Evangélica,291 por sua vez, anunciava na mesma página:

mais uma de suas apreciadas ‘Horas de Arte’, com que homenageará a Semana da Pátria (...)o grande coro de quase 100 alunos que entoará a quatro vozes (arranjo especial do professor

de música M. Maschles), diversas canções brasileiras, sendo a primeira de autoria do maes-tro Villa-Lobos, com versos do atual Ministro de Educação sr. Gustavo Capanema, intitula-da ‘Nesta hora sombria do mundo’. O prof. Samuel Dietschi apresentará duas marchas de

sua autoria, com orquestra e coro: ‘Avante’ e ‘Louvor ao Brasil’.”; “Uma cena regional con-tribuirá para vulgarizar entre nós as nossas tradições tão belas e evocativas. Terminará a noi-tada, que terá a duração de aproximadamente, uma homenagem à gloriosa Bandeira Nacio-nal.”; “Antes da ‘Hora de Arte’, às 19,45 horas, o sr. Alberto Severo, digno edil desta comunae grande propugnador pela higidez da raça, especialmente convidado para esse fim, inaugu-rará um moderno gabinete dentário no próprio estabelecimento.30

Este ufanismo manifestou-se de forma similar durante todo o período do Esta-do Novo. O ano de 1945 já era permeado de desafios à censura por vários jornais do país.Como afirmam Martins & Luca,

No final de 1944, a derrota do nazi-fascismo já se tornara clara, o que acelerava a

desestabilização do governo. Vários jornais passaram a desafiar abertamente proibições,estampando entrevistas com personalidades do mundo político, que exigiam a volta das

liberdades democráticas, tal como ocorreu nos diários cariocas O Globo e Correio da Ma-nhã, e divulgando notícias vetadas e/ou não submetidas ao DIP, indício evidente de que acensura perdera sua eficácia. A pressão crescente pelo fim do regime de exceção levou o go-verno a anistiar os presos políticos e extinguir o DIP, substituído pelo Departamento Nacio-

nal de Informação (DNI) [sem tantos poderes de censura e também extinto em 1946].(2006, p.71-2.)

Contudo, estes desafios parecem não ter sido expressos no jornal O 5 de Abril,pois o discurso de exaltação à pátria permanece igual ao de anos anteriores. Em matériasem autor identificado relacionada à derrota alemã na Segunda Guerra, o jornal afirmava:

Novo Hamburgo comemorará com o seu nunca desmentido ardor cívico e com o maiorbrilhantismo até hoje demonstrado, a “Semana Máxima de nossa Pátria”; dia 31 de agosto –

Trânsito do Fogo Simbólico, acendido em Monte Castelo, nas abruptas encostas dos Apeni-nos, onde jorrou copiosamente o heróico sangue brasileiro, numa demonstração imarcescí-

vel de abnegação, bravura e entusiasmo em prol das grandes causas da humanidade – apaná-

gio da Brasil e a Gente.31

Na edição seguinte, o jornal descreveu a programação da Semana da Pátria, nova-mente ligando a cidade à nação:

I D E N T I D A D E S R E L A C I O N A D A S A O E S P A Ç O G E O G R Á F I C O

134 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

28 O 5 de Abril, Novo Ham-burgo, 1 de setembro de1944, p.8.

29 Era uma escola comuni-tária evangélica de confis-são luterana de Novo Ham-burgo voltada para o públicofeminino.

30 O 5 de Abril, Novo Ham-burgo, 1 de setembro de1944, p.8.

31 Idem, 31 de agosto1945, p.3.

Page 135: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

A Semana da Pátria mais uma vez passará, mas há de ficar ainda uma vez mais a de-monstração eloquente de que Novo Hamburgo cultiva o civismo, que esta terra de traba-lho e progresso sabe cumprir os seus deveres patrióticos, porque ela é um pedacinho des-se grande todo que é o Brasil, gloriosa pátria de heroicos filhos.32

Percebe-se, no discurso jornalístico, a perspectiva de vincular a cidade de NovoHamburgo com a nação brasileira. Não aparece, neste discurso, como nos vários outrospublicados durante a Ditadura Vargas, referências a muitas representações, tanto do Bra-sil quanto da cidade. Isso parece justificável pela grande diferença entre as representaçõesnacionais e da cidade apresentadas naquele contexto. Deste modo, fala-se em “pátria”,cuidando-se para não descrevê-la em detalhes, fala-se em “heroicos filhos”, sem identifi-cá-los. A não menção a representações tanto da cidade de Novo Hamburgo como da na-ção brasileira parece ser uma estratégia utilizada para ocultar as lutas de representação nes-te contexto de censura à imprensa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebe-se que existia uma tensão entre a afirmação da identidade nacional brasilei-ra e a identidade da cidade de Novo Hamburgo, ocasionada especialmente pelas diferen-ças de suas representações e expressa nos discursos presentes no O 5 de Abril. Desde suafundação até meados da década de 1930, o jornal apresentava representações sobre NovoHamburgo associada à identidade nacional alemã.

Parece um paradoxo, porém, que esta tensão tenha diminuído, no final da décadade 1930, período em que emergiu uma nova versão sobre a identidade nacional brasilei-ra, representada através de vários símbolos ligados à miscigenação. Esta versão parece ex-cluir mais ainda os brasileiros descendentes de imigrantes alemães. Contudo, ao se obser-var o contexto político, principalmente no que se refere ao controle da imprensa exercidono período do Estado Novo, poder-se-ia considerar que houve um silenciamento no jor-nal O 5 de Abril acerca das lutas de representações existentes entre a identidade da cidadee a nacional, o que é perceptível tanto através da eliminação do uso da língua alemã nojornal a partir de 1937, como pela emergência cada vez mais frequente de matérias queexaltavam a identidade nacional brasileira.

Contudo, durante o Estado Novo, nos discursos presentes no O 5 de Abril raramen-te apareciam representações da identidade nacional brasileira e da cidade de Novo Ham-burgo, o que parece justificável na perspectiva de evitar a apresentação das lutas de repre-sentação em um contexto de forte censura.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARBOSA, A. S. Uma burguesia de pés descalços: a trajetória do empresariado do calça-do no interior paulista. São Paulo, Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo do Estado, n.6,p. 1-2, 2005. Disponível em http://historica.arquivoestado.sp.gov.br/materiais/anteriores/edicao06/materia3/. Acesso em 23.04.2007. BARTHES, R. Mitologias. São Paulo: Bertrand Brasil, 1999.BEHREND, M. H. O 5 de Abril. Porto Alegre: Metrópole Ind. Gráfica, 2002. BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

A L E S S A N D E R K E R B E R , C L E B E R C R I S T I A N O P R O D A N O V

135R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

32 Idem, 7 de setembro de1945, p.1.

Alessander Kerber é dou-tor em História (UFRGS),professor e pesquisador daUniversidade Federal do RioGrande do Sul. E-mail:[email protected]

Cleber Cristiano Proda-nov é doutor em História(USP), professor e pesquisa-dor do Centro UniversitárioFeevale. E-mail: [email protected]

Artigo recebido em julho de2009 e aprovado para pu-blicação em setembro de2009.

Page 136: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

CAPELATO, M. H. R. Multidões em cena: propaganda política no varguismo e no pero-nismo. Campinas: Papirus, 1998. CAPELATO, M. H. Fascismo: uma idéia que circulou pela América Latina. Rio de Ja-neiro, História em Debate, 1991. CHARTIER, R. A história cultural. Lisboa: Difel, 1990. DUTRA, E. F. O ardil totalitário: imaginário político no Brasil dos anos 30. Rio de Ja-neiro: UFRJ, 1997.FICO, C. Reiventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil.Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997. GERTZ, R. O perigo alemão. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1991. GOMES, M. R. Jornalismo e ciências da linguagem. São Paulo: Hacker Editores/Edusp,2000. HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.HOBSBAWM, E. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006.KERBER, A.; PRODANOV, C.; SCHEMES, C. O patrimônio material e a construçãoda identidade em Novo Hamburgo (RS): a fotografia e a cidade. Goiânia, História Revis-ta. Revista da Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal de Goiás,v.2, 12/2, 2007. MAGALHÃES, M. Negras memórias: a trajetória da Sociedade Cruzeiro do Sul. In:NUNES, M. (org.) Diversidade e políticas afirmativas: diálogos e intercursos. Novo Ham-burgo: Feevale, 2006.MARTINS, A. L.; LUCA, T. R. Imprensa e cidade. São Paulo: Editora da Unesp,2006. OLIVEN, R. G. A parte e o todo: a diversidade cultural no Brasil-Nação. Petrópolis: Vo-zes, 1992.OLIVEN, R. Nação e região na identidade brasileira. In: ZARUR, J. C. (org.) Região enação na América Latina. Brasília: UnB, 2000. OLIVEIRA, L. L. A questão nacional na Primeira República. São Paulo: Brasiliense,1990. p.14.ORTIZ, R. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 2001.PESAVENTO, S. J. Memória, história e cidade? Lugares no tempo, momentos no espa-ço. Uberlândia, ArtCultura, 4(4), p.24, junho/2002. PETRY, L. O município de Novo Hamburgo – Monografia. Porto Alegre: Edições A Na-ção, 1959.RENAN, E. Qu’est-ce qu’une nation? Paris: Éditions Mille, 1997 [1882].TRINDADE, H. Integralismo: o facismo brasileiro na década de 30. Porto Alegre:UFRGS, 1974.VIANNA, H. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/Ed. UFRJ, 1995, p.73.

A B S T R A C T This is an analysis of the struggle over representations involving theconstruction of identities rooted in the geographical space of the nation of Brazil and the cityof Novo Hamburgo using the city’s main newspaper, “O 5 de Abril”, which was publishedfrom 1927, when the city was officially recognized, until 1945, which marked the end of theSecond World War and of the Estado Novo dictatorship in Brazil. This period was marked bythe construction of different versions of these two identities and their massification by themedia. These versions were in conflict, specifically focused on the fact that the city was

I D E N T I D A D E S R E L A C I O N A D A S A O E S P A Ç O G E O G R Á F I C O

136 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 137: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

represented through signs that refer to the process of German immigration, while therepresentation of the nation was through signs referring the intermixing of races. These conflictsintensified when Brazil entered the Second World War against Germany.

K E Y W O R D S City, national identity, the press.

A L E S S A N D E R K E R B E R , C L E B E R C R I S T I A N O P R O D A N O V

137R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 138: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA
Page 139: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

EIXO MONUMENTAL DE BRASÍLIA

A OBSESSÃO DA INTEGRAÇÃO

B R A S I L M A R F E R R E I R A N U N E S

Desejo inicialmente desculpar-me perante a Direção da Companhia Urbanizadora e a

Comissão Julgadora do Concurso pela apresentação sumária do partido aqui sugerido para a nova Capital e também justificar-me. Não pretendia competir e, na verdade, não concor-ro; apenas me desvencilho de uma solução possível, que não foi procurada, mas surgiu, por

assim dizer, já pronta.Lucio Costa, Memorial Descritivo do Projeto n. 22 para a escolha da Nova Capital da República, 1957

Não se pensa da mesma forma em todos os lugares.Alain Badiou, 1994

R E S U M O Procuramos no presente texto fazer uma análise do impacto do novo mu-seu e da biblioteca pública, construídos no Eixo Monumental de Brasília, que complementamparte da proposta original deLucio Costa de um corredor cultural para atender algumas funçõesde cidade-capital. A análise é de cunho intraurbano, visto que procura captar as implicações des-tes novos artefatos na vida cotidiana dos moradores do Distrito Federal (DF) e no uso que se abrepara uma subárea até então relativamente ociosa dentro do Plano Piloto. Nossa hipótese é de quea sua construção, na medida em que amplia e diversifica o seu uso, torna o espaço acessível a ou-tros grupos sociais e produz alterações na apropriação do Plano Piloto pela população do DF co-mo um todo, consolidando cada vez mais a cidade projetada. A nova acessibilidade ao espaçoprovocada pelos seus novos elementos constitutivos nos permitirá decodificar a dinâmica e o pro-cesso de apropriação deste território. Para tanto, faremos um estudo etnográfico a fim de perce-ber a expansão da influência de outros grupos no espaço até então restrito do Eixo Monumental,num esforço de retomada crítica do conceito de segregação socioespacial.

P A L A V R A S - C H A V E Brasília; museu; cultura urbana; segregação socioes-pacial; planejamento urbano.

APRESENTAÇÃO

Nosso intuito é contribuir para um debate que vem sendo feito ainda de maneirafragmentária dentro dos estudos urbanos no Brasil, mas que guarda a nosso entenderum prisma original de análise deste campo entre nossos intelectuais e pesquisadores. Apresença em congressos científicos, as pesquisas desenvolvidas em nossos centros depós-graduação, a instigante possibilidade de questionar a relação espaço/sociedadequando se reflete sobre a experiência de Brasília são fatores que nos motivam. Espe-cialmente, perseguimos uma ideia apresentada pelo professor Frederico Holanda da

139R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 140: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

FAU/UnB em Congresso da Anpur em 2007, em Belém (PA), quando de forma lúcidanos apela para um esforço interdisciplinar no sentido de contribuir para a delimitaçãode uma arquitetura sociológica que analisaria a relação entre arquitetura e sociedade,mais especificamente sobre as maneiras como se estruturam encontros interpessoais, de forma mais ou menos determinística, mais ou menos casual, concentrados ou nãono espaço e no tempo.

De início, deixamos claro que a Brasília à qual o trabalho se debruça é o que se co-nhece como Plano Piloto, onde se encontram as instituições públicas, as residências da al-ta burocracia e o comércio e prestação de serviços que têm nelas e nela seus clientes pri-vilegiados. É a área tombada como Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO epelo Iphan, o que lhe confere uma dignidade particular; sobretudo se considerarmos queesta classificação se fez quando a cidade mal tinha completado os seus trinta anos. Até omomento há consenso entre os estudiosos da cidade de que aqui a interação através doespaço é descontínua no tempo: o desenho segrega as pessoas. A segregação socioespacialda capital foi comandada por políticas públicas como resposta a princípios ideológicos,não como resultado de mercado, regra nas demais cidades brasileiras (Holanda, 2002).1

Em se tratando de cidade com pouco tempo de existência, é de se pressupor que emBrasília haja ainda uma memória em formação, que tanto pode ser um aspecto positivocomo negativo. Positivamente, pode significar um princípio de liberdade que nos permi-te agir segundo nossos desejos e fazer disso um componente fundamental na construçãode novas formas de sociabilidade, de vida em comum.2 O lado negativo está na rápidaproliferação da(s) cidade(s) em negativo ao redor do Plano Piloto. Assim, de um lado,uma cidade planejada, quase perfeita, e, de outro, um universo onde muitas vezes impe-ra um mercado selvagem de terras, trazendo aquele ar caótico que caracteriza nossas pe-riferias – a primeira induz o aparecimento da segunda.

Nesta realidade de dupla face, é na esfera simbólica que a desigualdade territorial seapresenta mais sutil e eficiente. Quando um morador da(s) cidades satélite(s) precariza-da(s) circula pelos espaços “públicos” do Plano é que esta desigualdade se manifesta: nosparques, nos shopping centers, nas áreas de lazer das superquadras etc. É justamente nes-tes momentos que vemos que, apesar da tão decantada liberdade de circulação no espaçoterritorial do Plano, ele, no fundo, é uma das áreas públicas mais privatizadas das cidadesbrasileiras. É nesse aspecto que a realidade socioespacial de Brasília nos permite criticartanto o planejamento quanto o urbanismo como prática social que nos condiciona a umpadrão de espaço com sua estética e seus usos de forma quase impositiva.

Mesmo assim, classificou-se e fez-se o tombamento do Plano Piloto, pelo menos dealgumas de suas áreas. Poderíamos nos perguntar: classificaram uma utopia? Se assim oé, estamos de acordo com André Micoud (2000) que, ao referir-se à prática do tomba-mento, argumenta que na medida em que haja unanimidade para este gesto podemosconsiderá-lo como um ato significativo, de importância. O Plano Piloto, o seu ideáriourbanístico, com sua premissa de racionalidade espacial como modeladora de compor-tamentos sociais tinha muito de utopia. Assim, mesmo se há o consenso atual de que aera das grandes utopias está no mínimo em crise, nada mais oportuno do que classificarum monumento síntese de uma ilusão de sociedade, como foi a proposta de transfe-rência da capital política do país nos anos de 1950. O resultado foi que o tratamentopreservacionista dado a Brasília parte do entendimento da cidade como obra de arte aca-bada, o que pode significar que congelamos uma experiência única nas suas potencia-lidades de explorar o novo.

E I X O M O N U M E N T A L D E B R A S Í L I A

140 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

1 Característica que por si sómerece reflexões mais aprofun-dadas, que não faremos porinstante.

2 Talvez tenha sido esta a in-tenção do arquiteto quando de-senhou a cidade e, utopicamen-te, imaginou um lugar onde asdiferenças sociais seriam aplai-nadas por um desenho urbanís-tico em que os grupos e asclasses “conviveriam em har-monia”.

Page 141: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

Estas reflexões nos guiarão na análise do significado da inauguração recente do Es-paço Cultural da República (museu e biblioteca pública) na Esplanada dos Ministériosem Brasília, como complementação de parte do projeto original de implantação de umespaço cultural naquela área da cidade. Trata-se aqui de uma perspectiva de compreenderas mutações aceleradas que se observam na aparente estabilidade que a cidade apresenta.Brasília tem um ritmo ditado em grande parte pelo funcionamento do Congresso Naci-onal, uma rotina que condiciona a dinâmica da cidade. Entretanto, há que se decodificaros mecanismos de regulação social e política através dos quais o tecido urbano, sua frag-mentação, a diversidade de práticas urbanísticas e territoriais, assim como a mobilidadeinterna e a emergência de novas centralidades, conduzem o pesquisador a reformular suasabordagens. Entendemos e tentaremos mostrar que a inauguração destes novos artefatostrazem novas formas de apropriação social daquela subárea.

O EIXO MONUMENTAL DE BRASÍLIA

O projeto de Lucio Costa para o Plano Piloto de Brasília concretiza todos os seusideais humanistas, libertários e de valorização da cultura brasileira. Fez uma cidade-jar-dim ao emoldurar os prédios com uma faixa verde pensando em dar qualidade de vida àpopulação. Inaugurou uma nova maneira de viver com as superquadras, onde os morado-res poderiam encontrar todos os serviços que precisavam a poucos metros de casa: pada-ria, barbearia, farmácia, mercado, salão de beleza, tudo deveria estar em uma das lojas docomércio local. Propõe que lazer e diversão também deveriam ficar perto das pessoas, masseparados do poder da Esplanada dos Ministérios ou do vai-e-vem da área central, volta-da para o trabalho (Costa, 1991).

No relatório para o concurso de escolha da nova capital, Lucio afirma categorica-mente: “Brasília é a expressão de um determinado conceito urbanístico, tem filiação cer-ta, não é uma cidade bastarda”. Construída para uma camada social média de funcioná-rios públicos, Brasília traz essa marca na sua imagem. Ao mesmo tempo, o peso de seudesenho, aliado às funções político-administrativas, produz um efeito singular sobre a so-ciedade no seu conjunto. Por um lado, ela é o símbolo materializado da república. E issonão é algo simples, pelo contrário. Com tão pouco tempo de existência ela se consolidacomo capital da democracia política brasileira, tanto quanto foi durante o regime militarum elemento estranho e distante nas paisagens política e urbana e da sociedade. Por ou-tro lado, internamente, permanece secreta para uma parcela significativa de moradores doDistrito Federal que para cá migraram justamente seduzidos pela sua imagem de esperan-ça.3 Trata-se, de fato, de um espaço urbano cuja memória e, portanto, sua identidade, es-tá em processo de construção.4

O plano para Brasília foi pensado em quatro escalas: a escala coletiva ou monumen-tal; a escala cotidiana ou residencial; a escala concentrada ou gregária; e a escala de lazerou bucólica. Façamos um passeio pelo Eixo Monumental valorizando o visível e, ao mes-mo tempo, ensaiando uma leitura feita por diferentes pontos de vista e na qual possa in-tervir o movimento do observador, seguindo algumas sugestões de Linch (1999), que nossugere descrever as variações do campo visual. Não se trata de um espaço pitoresco em ra-zão da acumulação de planos diferentes, com rupturas bastante fortes numa distância re-lativamente curta; é, de fato, um espaço monumental,onde se observam sucessões lentasque não causam impacto na sua sequência (Panerai, 2006).5

B R A S I L M A R F E R R E I R A N U N E S

141R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

3 A ideia de área “secreta”tem referência com a estruturapolinuclear do espaço urbanodo DF que faz com que as saté-lites funcionem como cidadesdormitórios, e o Plano Piloto –que concentra cerca de 60%do emprego formal do DF – se-ja visto pelos moradores de fo-ra como o centro do poder, oespaço de trabalho. Há que sedestacar que no plano demo-gráfico, da inauguração em1960 até hoje, a proporçãodos moradores do Plano em re-lação à população total do DFpassou de 48% a aproximada-mente 10%.

4 A noção de “memória urba-na” foi desenvolvida inicialmen-te por Pierre Nora (“Entre mé-moire et histoire: la probléma-tique des lieux”, in Pierre Nora(org.), Les lieux de mémoire,Paris: Gallimard, 1984, paraquem os lugares de memóriapodem ser lugares simbólicospara uma dada coletividade; lu-gares com acúmulo de investi-mentos simbólicos, portantosubjetivos, sujeitos e objetosconstruídos por determinadasociedade. Na concepção doEstado, o lugar da memória po-de ser visto como o lugar daidentidade coletiva (Silveira,2006).

5 Isso se mostra mais evidentepara um observador a quem oEixo Monumental é parte do co-tidiano e onde as mudançasnas sequências que ocorremao longo do tempo vão sendoabsorvidas no dia a dia.

Page 142: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

A consolidação do Eixo Monumental, espaço síntese do projeto de Lucio Costa, vemse dando de forma lenta ao longo desses relativamente poucos anos de existência. O Eixotem início na Praça dos Três Poderes e termina no extremo Oeste do Plano, na estação ro-doferroviária. Seu canteiro central, desde o Congresso até o cruzamento das Asas Norte eSul, onde está a rodoviária urbana, é uma grande área livre, reservada para as grandes ma-nifestações políticas nacionais. Após a rodoviária, para Oeste, este canteiro central passa aconter equipamentos tais como a Torre de TV, o Complexo Cultural da Funarte, o Pla-netário, o Clube do Choro, um moderno centro de convenções, a praça do Buriti, alémdo Museu da Cultura Indígena e, mais à frente, o monumento ao fundador da cidade(Juscelino Kubistchek). Termina com uma outra praça simples, sem artefatos, a não serum cruzeiro, símbolo do catolicismo, usado inclusive para rituais de outras religiões. Da-li até a rodoferroviária, no seu extremo Oeste, há um canteiro central vazio, com uma pe-quena igreja católica que comemora a passagem de um dos papas pela cidade.

Os limites do Eixo são, da sua extremidade Leste em direção a Oeste, os palácios dostrês poderes, os ministérios, a catedral, o Teatro Nacional, em uma posição secundária, eagora o Museu da República e a Biblioteca Nacional; a rodoviária urbana é um marco namedida em que estabelece um corte com um elevado que marca o cruzamento do Eixocom as Asas. Há que notar, do lado Norte, o Conjunto Nacional e, do lado Sul, o CONIC,dois shopping centers tradicionais na cidade. Seguindo em direção Oeste, há nas laterais osetor de hotéis Sul e Norte, seguido pelo complexo esportivo e pelas edificações do gover-no local (GDF). Após isso, uma área vazia nas laterais do Eixo, onde predomina uma ve-getação nativa e sem vida urbana.

Este é o espaço da cidade-símbolo que, na essência, se move em torno de uma árearestrita, que essencialmente se reduz à Esplanada dos Ministérios e à Praça dos Três Pode-res, pontos nodais e estratégicos na paisagem urbana. Na praça estão materializados emedifícios e palácios o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, além do Panteão da Demo-cracia, num quadrilátero de enorme carga simbólica. Trata-se de uma praça que, apesarde bonita, é fria, pouco acolhedora, que não aproxima pessoas, apesar da inexistência demuros ou barreiras. De fato, não há nada que as afaste. Há um ambiente de cerimôniaoficial que faz com que todos se sintam submetidos a uma disciplina codificada. Do cen-tro da praça, os edifícios dos três poderes são equidistantes, inatingíveis, apesar de próxi-mos, síntese do poder estatal que nos submete, muitas vezes sem necessidade de violênciafísica, mas sempre com uma violência simbólica que lhe é constitutiva. Esse é o cérebroda cidade; é dali que emana a energia que alimenta o seu ritmo.

Ali também é um dos extremos do Eixo Monumental que, como vimos, corta ver-ticalmente o Plano Piloto de Leste a Oeste, formando o corpo do pássaro cujas asas securvam delicadamente para baixo no desenho. Ao longo deste Eixo, nas suas laterais,duas instituições estão presentes nos seus limites: o Estado, com sua alta hierarquia mi-nisterial, e a Igreja, em posição relativamente secundária, porém visível, devido a umaarquitetura singular, como que enunciando o seu lugar próximo do poder. Logo após,entre a catedral e a estação rodoviária urbana, aparece o Espaço Cultural da República(Teatro Nacional de um lado, e os recém-inaugurados Biblioteca Nacional de Brasília eo Museu Nacional da República, do outro), artefatos da cultura ocupando lugar de des-taque no desenho da cidade-símbolo. O Eixo Monumental resume, portanto, material-mente, as superestruturas normativas da tradição cultural (direito, religião, moral, arteetc.), concebidas como irredutíveis a uma simples ideologia; pode-se dizer que são a ma-terialização do Estado.

E I X O M O N U M E N T A L D E B R A S Í L I A

142 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 143: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

A Figura 1 a seguir permite visualizar o Eixo Monumental, dando uma percepção desua escala e grandiosidade.

Figura 1 – O projeto “Artes Visuais” da Funarte – Cead/UnB, Brasília, 2008. Fonte: IaraMartorelli.

DENSIDADE E VÍNCULOS SOCIAIS

Brasília, com seus setores funcionais, produz um território de baixa densidade inter-grupos, o que reduz, de forma às vezes drástica, uma das dimensões da cidade a fato so-ciológico: segundo Wirth (1974), a sua natureza socialmente heterogênea. Portanto, pen-sar o espaço físico e social de Brasília nos leva a considerar que a urbanidade vem serealizando com base em uma cultura urbanística espacial e socialmente segregadora, difi-cultando a utilização do seu espaço público como local de interação social.

Esta característica termina gerando uma prática cotidiana de uso do território da ci-dade em que a particular combinação de elementos, tais como zoneamento funcional,prioridade pela circulação em quatro rodas, arquitetura residencial padronizada, baixadensidade, se agrega às propriedades inerentes à cultura moderna em sua expressão me-tropolitana, tais como individualismo, impessoalidade e consumismo. O resultado nãoinvoluntário desta combinação é a impossibilidade em Brasília da flânerie tradicional, quefica substituída por uma variante modernizada desta prática, qual seja, a contemplação domundo urbano através das janelas dos carros ou, o que mais se coaduna ao componentemercadológico da flânerie, a contemplação da mercadoria no anonimato dos shoppingcenters, das galerias ou das feiras (Silva, 2003).

Nosso interesse, conforme já expresso, será refletir sobre o impacto no uso desteEixo pela população do DF, considerando a recente inauguração do Museu HonestinoGuimarães e da Biblioteca Leonel Brizola, obras de Oscar Niemeyer que, junto ao já exis-tente Teatro Nacional, vieram complementar parte do ainda incompleto Conjunto Cul-tural da República. Estes novos artefatos situados na proximidade da rodoviária urbanada cidade, onde circulam diariamente milhares de pessoas oriundas das cidades-satélites,faz desse um dos raros espaços que sociologicamente podem ser considerados urbanos.

Entretanto, cumpre lembrar que a área urbana onde o novo museu e a biblioteca sesituam é utilizada principalmente durante os dias de semana, nas horas de trabalho. Não

B R A S I L M A R F E R R E I R A N U N E S

143R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 144: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

há ali pontos de encontro ou de sociabilidade, mesmo se levarmos em conta o clima ári-do e a ausência de abrigos que pudessem proteger ou favorecer frequências fora do traba-lho ou dos edifícios administrativos. O resultado é que a subárea radicaliza a característi-ca do Plano Piloto: a circulação por veículos automotores e a ausência de pedestres nasruas. A ilustração abaixo permite perceber o cenário descrito: na hora do rush a pequenapresença de pedestres e a predominância de veículos no Eixo.

Foto 1 – Eixo Monumental de Brasília ao anoitecer. Foto: Diego Lourenço Carvalho.

VISITA AO MUSEU DA REPÚBLICA

Brasília tem já algumas experiências de equipamentos culturais consolidados, espa-lhados por diferentes áreas da cidade: a Fundação Banco do Brasil, o Centro Cultural daCaixa Econômica Federal, a Funarte e outras galerias de instituições públicas, como oBanco Central e o Itamaraty, além de galerias de arte de iniciativas privadas.6 A comple-mentação do Complexo Cultural da República traz um sopro novo na Esplanada dosMinistérios, uma área da cidade até então reservada para eventos políticos ou cívicosesporádicos. Por agora não se trata ainda de discutir as atividades do museu. Ele ainda érecente, tendo sido apresentadas até o momento três exposições: uma, quando de suainauguração (2006), que sintetizava a trajetória de Niemeyer, e duas em 2008, sendouma comemorativa do centenário da imigração japonesa ao Brasil na galeria principal, e,na sala ao lado, da trajetória futebolística de Pelé. Foram exposições em que a arte, aoinvés de exercer uma função subversiva, teve um papel de “ligação”, o que se coadunacom a característica de museu oficial. De qualquer forma, as exposições são dignas demuseus importantes, seja pelos temas, que remetem a aspectos da identidade coletiva na-cional, seja pelo seu porte. Estas exposições permaneceram durante meses, o que evitouo acúmulo acentuado de público diário, e atraíram um número expressivo de visitas aolongo da sua permanência.

A acessibilidade ao local onde se situam os dois novos espaços culturais da ci-dade é relativamente fácil: próximo da rodoviária urbana, com inúmeras linhas de ônibusque ligam às cidades-satélites e vias expressas onde se circula sem maiores problemas de trânsito, à exceção dos horários de pico.7 Além disso, outra alternativa de transporte

E I X O M O N U M E N T A L D E B R A S Í L I A

144 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

6 Para se ter uma ideia da va-riedade de eventos de artesplásticas, fotografia, entre ou-tros que ocorrem no DF, quan-do de nossa pesquisa, no fimde semana de 18/07/2008,havia 27 exposições ocorrendona cidade.

7 Para a inauguração do Mu-seu e da Biblioteca foi retiradodo local um mercado informalque ali se implantou para apro-veitar a elevada circulação depessoas em trânsito na área.

Page 145: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

coletivo, o metrô, tem na própria rodoviária uma de suas estações, o que significa que háa facilidade de um confortável acesso para quem vem de algumas das principais cidades-satélites, além de circular na área cerca de 600 mil pessoas por dia.

Esse é um aspecto de importância, pois, como ressaltamos, a concepção urbana doDistrito Federal é caracterizada pela polinucleação, em que as diferentes cidades não es-tão (ainda!) conurbadas, provocando distanciamento físico e simbólico entre elas. Estasdistâncias encarecem o sistema de transporte coletivo, já precário em suas condições ecom elevados preços, o que torna o cruzamento dos eixos na rodoviária o efetivo “centroda cidade”, dada a facilidade de acesso.8 Trata-se de um dos raros espaços do Plano Pilo-to que podem ser considerados urbanos na perspectiva sociológica.

Uma rápida leitura desta área nos permite ver que ela se insere num complexo maisamplo com o chamado Setor de Diversões Norte e Sul, que em Brasília se resume aos doisshopping centers – o CONIC e o Conjunto Nacional – na plataforma superior da rodoviá-ria, além do Teatro Nacional. Trata-se de dois espaços comerciais e de serviços com eleva-do índice de interação e anonimato, mas que se mostram como área de exceção quandose verifica o vazio ao longo do Eixo que lhe corta. O Teatro Nacional em frente ao Con-junto Nacional não é integrado diretamente a este shopping e à sua rotina cotidiana, fun-cionando em período noturno com espetáculos esporádicos. Sua concepção o distanciatanto da plataforma superior da rodoviária quanto do próprio Eixo Monumental. A cons-trução neste eixo, no nível do térreo da rodoviária, do novo museu e de uma nova biblio-teca pública, requalifica a subárea, criando mais uma alternativa de uso deste espaço. Co-mo veremos adiante, esta subárea aciona aspectos significativos da cultura, da memória eda identidade de Brasília.

É consenso que o desenho do Plano Piloto concebido por setores funcionais seg-menta o uso e a ocupação do espaço da cidade. Tradicionalmente cidades se constroemsegundo um desenho que vai do edifício sagrado ao mercado profano; esta extensão designificados é a da diferenciação de papéis, justapostos em territórios comuns ou separa-dos por tênues barreiras físicas e/ou simbólicas (Ansay & Schoonbrodt, 2002). A primei-ra consequência da implantação deste complexo cultural é a diversificação do uso do EixoMonumental, exatamente o seu núcleo principal. A originalidade do novo espaço cultu-ral que se agrega à rotina da área é, sobretudo, a de inserir novos papéis naquele cenáriopor enquanto restrito: dominado especialmente pelas funções administrativas, e, portan-to, pela presença do funcionalismo público como uma espécie de usuário cativo; a che-gada do museu e da biblioteca incorpora novos elementos humanos na paisagem. Ao mes-mo tempo, numa cidade política por excelência, o espaço público se firma um pouco maiscom a construção deste novo artefato coletivo. Num certo sentido, aparece também co-mo um contraponto de tendências atuais dos espaços coletivos de nossas cidades, lugarescada vez mais inseguros onde a presença do flâneur se torna mais rara, onde o espaço pú-blico perde cada vez mais o seu sentido. Assim, o Eixo, pelas suas funções, sejam admi-nistrativas, comerciais, e até religiosas e, agora, culturais, se firma cada vez mais como ocentro da cidade numa cidade sem centro.

Neste ponto, a arquitetura do novo museu merece alguns comentários. Sua formaarredondada, lembrando uma enorme oca indígena ou um objeto extraterrestre, não es-tabelece níveis hierárquicos a priori. Todo o edifício está num plano único, como se fos-se um imóvel de um único gabarito. Esta característica, comum aos palácios governamen-tais em Brasília, oferece, ao mesmo tempo, uma sensação aparentemente ambivalente: demonumento e de acessibilidade. Sua forma, portanto, se adéqua a seu destino: cria uma

B R A S I L M A R F E R R E I R A N U N E S

145R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

8 Retornaremos mais adianteesta discussão sobre o “cen-tro” de Brasília.

Page 146: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

praça pública e sua função contribui para democratizar o acesso a um produto de consu-mo restrito, as artes visuais. Os concretos brancos ascéticos, também característicos da ar-quitetura de Niemeyer em Brasília, contêm uma “neutralidade” que democratiza o aces-so. Agrega-se a este aspecto o fato de que as exposições ali são gratuitas, com horáriosflexíveis, se estendendo para além do horário do expediente do trabalho das repartiçõespúblicas que o circundam.

Estes elementos nos levam a outros pontos que merecem destaque. A arquiteturacontemporânea vem apontando para uma nova visibilidade nas construções de grandesedifícios. A utilização do vidro com finos suportes de aço faz com que o interior e o ex-terior dos edifícios se confundam numa espécie de muro transparente. Entretanto, mes-mo transparentes, há uma total ruptura entre o espaço interior e o exterior, numa con-cepção que une estética da visibilidade com o isolamento social. Há então aqui umaparadoxal tendência de se anular o espaço público, mesmo quando ele ganha mais visibi-lidade e transparência (Sennet, 1979).

O edifício do Museu da República em Brasília escapa desta tendência. O interior eo exterior são completamente separados. Como nos ensina Holanda, “o invólucro arqui-tetural filtra atributos do espaço natural, cria espaço transformado, adequado a fins prá-ticos (arquitetura como valor de uso material, como bem) e expressivos (arquitetura co-mo valor de uso ideal, como signo). As expressões – bem e signo – sintetizam as duasmaneiras mais amplas pelas quais a arquitetura desempenha seu papel” (Holanda, 2007).Entra-se no edifício por uma rampa de concreto que chega numa porta estreita pelas di-mensões do prédio. Uma vez no seu interior, tem-se uma surpresa imediata dada a ampli-dão da sala. Espaçosa e climatizada, cria uma atmosfera oposta ao exterior, árido, seco ouúmido dependendo do período do ano, sem janelas ou aberturas, não há nenhuma pos-sibilidade de vista para o exterior. Escapa, portanto, às características da arquitetura de vi-dro, trazendo um aspecto original às tendências atuais de certa arquitetura em voga. Decerto modo, reproduz situações limites de arquiteturas em que a relação entre o interiore o exterior é completamente oposta, em que as duas dimensões encontram-se afastadas,não nos permitindo nenhuma visão do que existe no interior do edifício. O caso limitepode ser exemplificado pelas Grandes Pirâmides de Gisé no Egito antigo, ou as pirâmi-des maias da América pré-colombiana. Há sempre uma separação entre o interior (lugarsagrado) e o exterior (lugar público).

Foto 2 – Museu da República em Brasília.

E I X O M O N U M E N T A L D E B R A S Í L I A

146 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 147: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

Foto 3 – Interior do Museu da República durante exposição sobre Niemeyer.

A área em torno, uma praça típica dos espaços oficiais de Brasília, se constitui poruma ampla superfície de concreto, com um pequeno espelho d’água que quebra ligeira-mente a aridez, mas que coloca o edifício do museu como o centro, uma verdadeira es-cultura de concreto. Em outros termos, o museu é o centro de um espaço arquitetônicoe seu porte absorve tanto o anexo quanto a própria biblioteca, que fica timidamente co-locada numa posição de barreira em frente à rodoviária. Esta imagem é interessante, poisultrapassa a função utilitária do edifício (museu) e recupera a sua função simbólica, namedida em que passa a ser também um símbolo do conjunto arquitetônico do Eixo Mo-numental e da própria cidade. Desta maneira, a arquitetura tem aqui uma conformaçãoformal-espacial com componentes-meio (os elementos “escultóricos”, os “cheios”, os “só-lidos”, a forma) e componentes-fim (os “vazios”, os “ocos”, os espaços) (Coutinho apudHolanda, 2007).

Em que espécie de sentido estético, ritual e social pode residir o prazer de flanar porum espaço que aparenta artificialidade, carece de efervescência, é repetitivo, vazio de di-versidade, vazio de pessoas, vazio de alternativas? Esse parece ser o impasse do novo arte-fato no Eixo Monumental. Mas timidamente começam a acontecer exposições ao ar livre,especialmente de arte contemporânea, indicando futuras apropriações do espaço. Taiseventos estão a indicar que, pouco a pouco, a praça em torno do museu será uma novaalternativa para a realização de eventos na Esplanada, tais como ocorre em outras situa-ções similares no mundo: Paris (Beaubourg), Bilbao (Guggenheim), São Paulo (MASP),Londres (Tate Modern Gallery) etc. Conforme nos lembra Holanda (2007), os espaços(ruas, avenidas, praças), lugares abertos na paisagem natural, é que seriam os elementospor excelência da linguagem arquitetônica; afinal é neles que estamos imersos. É de se es-perar que as visitas ao museu sirvam como argumento para se frequentar a praça que orodeia. Isso, desde que a utilização destes lugares abertos sejam adaptados para atividadesque garantam interações sociais, além da ida às exposições.

A imagem a seguir permite visualizar a atmosfera exterior do novo espaço culturalda capital da República.

B R A S I L M A R F E R R E I R A N U N E S

147R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 148: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

Foto 4 – Perspectiva vista do alto da rampa do museu, vendo-se a biblioteca em primeiroplano, o Conjunto Nacional à direita e, ao fundo, a torre de TV. Interessante perceber co-mo a plataforma da rodoviária se integra ao solo na perspectiva observada.

A SUBÁREA DO COMPLEXO MUSEU E BIBLIOTECA COMO “CENTRO” DE BRASÍLIA

Brasília, resultado de um desenho na prancheta de um arquiteto urbanista não dei-xa de ser genial como proposta formal. Entretanto, sua implantação traz à ideia originala interferência na vida social, mesmo tendo que se contrapor à orientação conceitual daarquitetura racionalista que tira das ruas todas as suas dimensões sociais, culturais, simbó-licas e emocionais. A cidade está ainda se consolidando e, portanto, as práticas de uso eocupação de seu espaço ainda causam surpresas ao observador mais atento.

A proposta original para a Esplanada já antevia a futura diversidade de uso destasubárea do Plano Piloto. Assim, no “Relatório do Plano Piloto de Brasília”, está explicita-do que “o setor cultural será tratado à maneira de parque para melhor ambientação dosmuseus, da biblioteca, do planetário, das academias etc.” (Costa, 1991,p.24). Na propos-ta, o conjunto da esplanada deve prosseguir desimpedido até além da plataforma, onde osdois eixos urbanísticos se cruzam. Na proposta há, ainda, íntima articulação entre a pla-taforma superior da rodoviária e a inferior. Além de guardar a perspectiva da Esplanada,vista do alto da plataforma, com exceção de suas bordas (ao Sul, um edifício ainda semuma função precisa; ao Norte, o Teatro Nacional) com gabaritos baixos e uniformes,constituindo no conjunto um corpo arquitetônico contínuo. A vista para Oeste, do altoda plataforma, mostra os dois shoppings, com gabaritos relativamente elevados, onde se si-tuam lojas, escritórios, consultórios e sedes de empresas e autarquias.9

Lucio Costa, revisitando o Plano Piloto em 1987, se surpreende com a realidade dasua rodoviária:

eu sempre repeti que essa plataforma rodoviária era o traço de união da metrópole, dacapital, com as cidades-satélites da periferia. É um ponto forçado, em que toda essa popula-

E I X O M O N U M E N T A L D E B R A S Í L I A

148 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

9 “o tráfego é local, situou-seentão o centro de diversões dacidade (mistura em termos ade-quados de Picadilly Circus, Ti-mes Square e Champs Elysées”(Costa, 1991, p.24).

Page 149: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

ção que mora fora entra em contato com a cidade ... Isso tudo é muito diferente do que eu

tinha imaginado para esse centro urbano, como uma coisa requintada, meio cosmopolita.Mas não é. Quem tomou conta dele foram esses brasileiros verdadeiros que construíram a ci-dade e estão ali legitimamente ... Eles estão com a razão, eu é que estava errado. Eles toma-ram conta daquilo que não foi concebido para eles. Foi uma bastilha. (Costa, 1987.)

Foto 5 – Estação rodoviária urbana do Plano Piloto de Brasília. Foto: Diego LourençoCarvalho.

Profética percepção, esta do autor do plano urbanístico de Brasília. Entretanto, pou-co surpreendente para nós, pois sabemos que não se funda uma cidade. Ela é o resultadode processos sociais que na interação se manifestam no território fazendo aparecer formasurbanas muitas vezes inesperadas. A abordagem sociológica da cidade tem como tarefa ul-trapassar sua representação puramente espacial/territorial; considerar, de início, que o ob-jeto da sociologia são as interações sociais e os processos de mudança que nelas e a partirdelas ocorrem. Todos estamos de acordo que cidade é sinônimo de sociedade, especialmen-te como corpo político, um lugar de produção de relações. A palavra cidadão consideravaos indivíduos em razão de seu pertencimento a este corpo. Esquecemos muitas vezes a ori-gem etnológica do termo, que se refere à cidade. Da mesma forma, o termo política, quevem da polis grega. Da mesma forma ainda, a concepção de “espaço público”, que designa,no sentido figurado, espaço do debate ou da comunicação, e, no seu sentido próprio, oconjunto dos espaços urbanos, ágoras, fóruns, praças públicas, ruas onde os homens po-dem se juntar para debater assuntos da cidade ou mesmo manifestar suas opiniões.

Assim, na contemporaneidade, a existência de lugares de encontro, onde há a possi-bilidade de ver e ser visto, de discutir assuntos diversos, continua sendo constitutiva dacidade como fato social, por mais que o uso do espaço público venha se alterando. Osequipamentos de acesso coletivo (praças, ruas, feiras, museus etc.) podem ser compreen-didos na sua função de socialização. Não se trata aqui de entendê-los como unidades deprodução de alguma mercadoria específica: são, sobretudo, artefatos coletivos cuja prin-cipal função é a circulação de pessoas, de símbolos que compõem as construções identi-tárias. A cidade e seus equipamentos coletivos assumem então a figura de uma totalidadecomplexa, de uma unidade que desenha suas instituições no espaço da representação. Acidade na sociologia é, portanto, o lugar do “não falado” do “não dito”, do mostrado.

B R A S I L M A R F E R R E I R A N U N E S

149R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 150: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

A imagem de Brasília esteve sempre marcada pelo signo de excepcional ou de extraor-dinário, ainda que se tenha de certa forma banalizado suas próprias características, muitoprovavelmente pela sucessão de eventos políticos e burocráticos desgastantes que termi-nam por se confundir com a cidade. Viver em Brasília significa, assim, manter certa inti-midade com tudo aquilo que ela contém de teatral, em excesso ou exuberância, expostocotidianamente na mídia nacional. Entretanto, para os seus habitantes há ainda a percep-ção de que uma cidade está, cada vez mais, se consolidando num processo em que estãotodos envolvidos. Este sentimento se renova na medida em que novos investimentos sãofeitos para dispor a cidade de infraestrutura (como o metrô ou a expansão da área resi-dencial para o Noroeste da cidade) ou completar o projeto original (como o novo espaçocultural da República).

Neste movimento de criação da cidade, o seu uso por seus habitantes vai tambémse redefinindo. Há uma dinâmica intraurbana particularmente na sua dimensão micro-espacial, que pode ser observada quando nos debruçamos sobre a sua lógica de ocupa-ção, tanto por pessoas como por atividades. Ao mesmo tempo, existem ainda processosque envolvem a cidade no seu conjunto. Esse pode ser o caso da consolidação do cen-tro de Brasília. Pela sua característica de polinucleação e até mesmo pela setorializaçãodas suas funções no seu plano urbanístico, fomos sempre convencidos de que a cidadenão tinha um “centro”. O Plano Piloto guarda uma imagem de ordem, de uma rigidezférrea que se contrapõem à “anarquia” do espaço da cidade tradicional. Esta ordem ca-racterística do Plano Piloto funciona com a contribuição a um desenho linear e parauma sociedade aparentemente estável. Termina produzindo um modelo de apropriaçãodo espaço pelos moradores que se condiciona ao ângulo reto de suas vias, à ausência decruzamentos, à circulação motorizada, num distanciamento do contato direto com a ci-dade. Ela se mantém distante e toda forma de apropriação de seu espaço aparece comoconcessão e não como direito.

Este desenho se rebate na lógica social da cidade que se apresenta como algo es-truturado em camadas que parecem se superpor umas às outras, sem jamais se mistu-rar. Tendo sido apropriada imediatamente após sua inauguração pela classe média, econtando sempre com irrestrita atenção do Estado à sua manutenção, adquire imedia-tamente a característica autônoma das formas individualistas de existência social(Giddens, 1975). Opõe-se, assim, a outras lógicas urbanas dentro do DF que se desen-volvem nas cidades-satélites e mesmo nas cidades de seu entorno. Estas distintas for-mas urbanas produzem espaços com tempos também distintos, o que termina portransformar o DF numa área urbana como as demais do país, ou seja, com elevada dosede heterogeneidade socioespacial, dentro da qual Brasília aparece como exceção. Entre-tanto, a definição de um “centro” permanece em pauta, apontando que a cidade estáainda incompleta.

A noção de “centro” ou a determinação de centralidade que daí resulta se baseia nasoma de elementos distintivos (forma, função, posição etc.), os quais nas suas inter-rela-ções lhe atribuem conotações específicas. O “centro” se produz por três ordens de fatores(Ostrowetsky, 1994):1 o “centro de um conjunto” que permite a identificação (espaço monumental, com ca-

pacidade de agrupamento que simboliza a cidade do ponto de vista político, jurídicoe religioso);

2 o centro como sinergia (a parte pelo todo) que ”representa”, por sua essência, o papelpolítico e administrativo de toda a cidade;

E I X O M O N U M E N T A L D E B R A S Í L I A

150 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 151: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

3 o centro como ponto de convergência e espaço de concentração, o qual confere a cer-to lugar o valor de “núcleo” e que, por sua vez, define metaforicamente seu conteúdoessencial de centralidade mais do que sua posição real no espaço urbano.

Estas três ordens de fatores de centralidade não são excludentes e podemos utilizá-las para refletir sobre o Eixo Monumental, particularmente sobre a subárea em torno darodoviária. Objetivamente, nos perguntar se a configuração da área onde estão situadosos novos artefatos na Esplanada e a forma de sua utilização alteram a maneira com que osindivíduos e os grupos se localizam e se movem naquele espaço, e qual seria a modifica-ção visível nas condições de encontros e esquivanças interpessoais, assim como para a vi-sibilidade do outro. Sem dúvida a sua capacidade de agrupamento é inegável, além do fa-to de que nas suas proximidades, ao alcance dos olhos, está situado todo o arcabouçomaterial do Estado, na Esplanada dos Ministérios. É o espaço da política nacional, lugardas grandes manifestações públicas na cidade. Entretanto, afora o espaço dos shoppingsonde há um comércio e a prestação de serviços permanentes, a utilização desta subárea,especialmente na Esplanada, não se faz de forma corriqueira no cotidiano. Por ter umaelevada utilização como lugar de passagem, fica-se com a sensação de ociosidade, comsuas calçadas vazias praticamente o dia todo, mesmo na hora de maior movimentação. E,no entanto, conforme já frisamos, é um dos lugares de maior circulação de pessoas den-tro do Plano Piloto, com elevado potencial de polarização. Isso sem lembrar os aspectossimbólicos que o lugar contém e que remetem a outros elementos maiores do que o pró-prio Museu.

Entretanto, a proposta original de fazer desta subárea o centro da cidade não se com-pletou ainda. A inauguração do novo museu preenche parte desta função, na medida emque se apresenta como uma nova possibilidade de uso coletivo deste espaço, integrando-o um pouco mais à lógica social da cidade. Insistimos nesta dimensão, pois o que se temhoje é, sobretudo, a utilização da Esplanada para eventos políticos nacionais. A popula-ção do DF se vê em parte excluída do seu uso cotidiano, mesmo porque sua função ain-da se restringe às funções administrativas do Estado.

Temos no Distrito Federal uma pluralidade de formas de vida se materializando emlinguagens espaciais diversas e heterogêneas que, na essência, podem ser lidas como sín-tese de uma sociedade aberta nos termos popperianos, segundo os quais a magia cede lu-gar para decisões pessoais, em pleno processo de consolidação identitária. O peso simbó-lico do Plano Piloto (especialmente do seu Eixo Monumental) é enorme e monopoliza asrepresentações sobre Brasília. A possibilidade de permitir ou de ampliar o acesso à áreapor parte dos habitantes do DF pode significar uma efetiva apropriação do espaço da ci-dade pela população local. O Espaço Cultural da República pode, portanto, ser lido co-mo mais um elemento formador da identidade cultural da cidade vista na sua dimensãoheterogênea, pois autoriza a utilização daquele território, até então monofuncional e mo-nopolizado pelo funcionalismo público exclusivamente como lugar de passagem. Pode-mos retomar mais uma vez a Holanda (2007, p.124) e lembrar que as pessoas “se fazemhumanas pelos sistemas simbólicos que inventam, pelas maneiras de criar e usufruir doslugares”.10 Isso é especialmente válido se nos ativermos à facilidade de acesso ao novo ar-tefato urbano que rompe com a setorialização tradicional do espaço da cidade, que até omomento tinha apenas a Torre de TV como referência de alternativas de uso territorial doPlano Piloto (seu Eixo Monumental) por outras camadas sociais, com outros fins além dotrabalho.11 Particularmente o acesso à cultura escandalosamente desigual, inclusive em ra-

B R A S I L M A R F E R R E I R A N U N E S

151R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

10 Mais ainda: “Prática huma-na é perceber estímulos visuaisde uma sequência de ruas epraças e, a partir disso, formaruma imagem mental estrutura-da (aspectos topoceptivos); éemocionar-se diante da levezada arquitetura de Oscar Nie-meyer (aspectos afetivos)”(Idem, 1991, p.124).

11 A Torre de TV é onde serealiza uma tradicional feira deartesanato do DF e tem suaacessibilidade garantida pelaproximidade da estação rodo-viária, tal qual o novo museu,só que no sentido oposto ao daTorre, em direção à Esplanadados Ministérios.

Page 152: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

zão do padrão territorial de uso e ocupação do solo, torna-se mais efetivo, rompendo comesta lógica excludente que impera em Brasília.12 Quando do tombamento da cidade, pou-co se falou sobre o componente social do Plano Piloto, ou melhor, foi uma dimensãocompletamente descartada.13 Nesse sentido, o tratamento preservacionista dado a Brasí-lia, que parte do entendimento da cidade como obra de arte acabada, poderia estar signi-ficando que congelamos uma experiência única nas suas potencialidades de explorar o no-vo.14 O novo artefato introduz um novo elemento neste debate, apontando que talvez aproposta original tivesse méritos ainda pouco explorados na sua concepção.

Nesta perspectiva, podemos considerar que uma cidade se constrói ao longo de umahistória que lhe é própria, história em permanente movimento. Como acumulação de sig-nos, de bens, de pessoas, de equipamentos, ela é também memória, fluxos. Temos, entre-tanto, que considerá-la como fenômeno fragmentário em que as partes se unem por fiosinvisíveis, muitas vezes em situações de tensões implícitas ou explícitas. Em outras pala-vras, trata-se de fenômeno que só se compreende como totalidade, mesmo se recortadoem pedaços que reúnem pessoas, riquezas e atividades antes dispersas. Cabe lembrar ain-da que, ao contrário do campo econômico, os campos simbólicos, como o religioso ou ar-tístico, supõem que os agentes que nele atuam sejam “desinteressados” e que as trocas queaí se realizam não sejam trocas monetárias. Ao refletir sobre uma cidade-capital deve-selevar em conta que o Estado, sendo uma abstração real, só existe no espaço da representa-ção, como território, um mapa no qual se distribuem as instâncias administrativas: re-giões, estados, municípios, capitais. O Estado é, assim, o capital institucionalizado, e umadas cidades se destaca como cidade–capital do Estado, marcando uma importante dimen-são de sua identidade.

A TÍTULO DE CONCLUSÃO

É na dimensão interna à cidade que estamos insistindo sobre o lugar que os novosartefatos arquitetônicos vão ocupar. O Eixo Monumental, conforme já frisamos, é o lu-gar das grandes manifestações da sociedade brasileira, o lugar da política nacional. E jus-tamente o fascínio que este lugar emite é também o que motiva indivíduos e famílias aoptarem por Brasília. São duas lógicas de apropriação da subárea que se apresentam. Uma,que se deve ao papel de capital política, e outra, que se deve ao lugar de opção de mora-dia e construção de trajetórias de vida. Não são excludentes, pois em ambas a forma co-mo meio de aprendizado dos lugares responde a expectativas sociais, genéricas ou especí-ficas, colocadas pelo próprio processo de conhecimento que termina por dar sentido àforma urbana.

Kohlsdorf (1996) chama atenção para a vertente que avalia a forma dos lugares porsua resposta a expectativas psicossociais, ou seja, como adquire sentido afetivo para seususuários. A afetividade tem sido definida pela identificação emocional das pessoas com oslugares, qualificados como hospitaleiros, alegres, frios, agressivos, estimulantes, monóto-nos etc. Ao lado desta expectativa há ainda duas outras – a estética e a informação – que,juntas, dão sentido à apreensão da forma dos lugares, e nos são úteis para perceber a ma-neira como os habitantes do DF captam o significado daqueles novos artefatos de uso co-letivo. Há uma nova possibilidade de usufruto do território “sagrado” da capital e, na me-dida em que o acesso é generalizado aos diferentes grupos sociais, há também ademocratização do espaço da política materializado no Eixo Monumental de Brasília.

E I X O M O N U M E N T A L D E B R A S Í L I A

152 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

12 De fato, o Distrito Federalreproduziu a realidade social dopaís de forma radical, poisalém de expressá-la no territó-rio, expressou-a também nosimbólico do lugar.

13 O poder dogmático quepleiteia o tombamento do PlanoPiloto, num contexto urbano he-terogêneo como o do DF, se ba-seia numa ordem que é aquelado tempo estagnado ou repeti-do ad aeternum; esta é a ordemdo monumento histórico, emque o tempo é o tempo natural,físico. Ignora a existência de umoutro tempo, igualmente natu-ral, no sentido fisiológico e nãofísico. É o tempo do “desenvol-vimento”, que se refere ao tem-po do fenômeno vivo.

14 O Grupo de Trabalho Brasí-lia (GT – Brasília), formado ain-da no início dos anos 80 porprofissionais da Universidadede Brasília, do governo do Dis-trito Federal e da FundaçãoPró-Memória, teve com objeti-vo traçar e definir parâmetrospara a política de preservaçãodo patrimônio do Distrito Fede-ral. A proposta do grupo deampliar a área a ser preserva-da de forma a abranger reali-dades preexistentes não foi in-corporada no processo detombamento.

Page 153: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

Baseados nas considerações apresentadas, vamos procurar agora responder a algumasdas questões colocadas, de maneira explícita ou implícita, neste texto. Elas são de nature-zas distintas: a formação da identidade de Brasília, os limites ainda presentes na propostaaté agora implementada do projeto original do Plano Piloto, a diversificação do uso dasubárea do Eixo Monumental em relação aos novos artefatos instalados.

A primeira delas talvez seja a que sintetiza com mais propriedade as demais, poisresume grande parte do conteúdo do texto. Brasília, como experiência de cidade nova,não possui um passado que se prende à nossa historia urbana. A sua origem é caudatá-ria de um movimento que ocorre na concepção de cidade que vigorou, especialmente apartir do século XX, e que se guiou pelas implicações das guerras na Europa e pela ne-cessidade de reconstrução das cidades então destruídas. Estaria aí a proposta urbanísticado modernismo, estabelecendo que as construções contemporâneas não deveriam orien-tar-se pelo passado, o que fez com que a cidade da segunda metade do século passado sedesenvolvesse por rupturas históricas, como se nela não houvesse laços temporais(Kohlsdorf, 1996). A racionalidade do seu plano urbanístico, mesmo se procurando res-gatar aspectos da cultura brasileira, não escapa a esta lógica “futurista”.

Cabe ainda lembrar o componente político–ideológico na sua concepção, que an-tevia através do desenho a possibilidade de uma sociedade nova, de um homem novo.Sem as implicações da lógica concorrencial do mercado, pôde-se implantar um pilotode cidade original em que as propostas da prancheta foram implementadas pratica-mente como imaginadas. Já se analisou e criticou bastante as implicações deste gesto(Holston, 1993; Holanda, 2002; 2007; entre outros). Entretanto, não se pode negarque a cidade deu certo. Ela se firmou como representação da nação, tanto quanto sím-bolos como a bandeira e mesmo o hino nacional. Esta posição no cenário urbano esimbólico brasileiros implica certas responsabilidades por parte do Estado na preserva-ção desta experiência.

A segunda ordem de questões refere-se aos problemas que começam a aparecer jus-tamente pelo fascínio que a cidade exerce sobre populações “disponíveis” para migrar, pa-ra as quais o novo núcleo passa a contar como uma alternativa plausível de destino e fi-xação. A heterogeneidade social que vai então caracterizar o seu espaço vai recolocandoquestões à sua viabilidade, questionando a sua própria concepção original que, na sua di-mensão intraurbana, passa a ser uma exceção dentro de um território diversificado. As-sim, é como exceção que o seu Plano Piloto continua a ser a síntese da nova capital e, sim-bolicamente, segue representando a essência das subjetividades que optaram por Brasília.Ao lado do controle exercido pelo Estado, hoje a cidade divide esta função com mecanis-mos do mercado imobiliário, particularmente pelo lucro que pode se obter com a expan-são de seu ambiente construído. Assim, como espaço de exceção, o Eixo Monumentalpermanece o seu mais precioso território, pois sintetiza simbolicamente a própria cidade,lugar onde ainda se pode executar o que ainda falta da proposta original.

Finalmente, a análise dos novos artefatos que compõem o Espaço Cultural da Re-pública no Eixo Monumental se guiou por aspectos ligados ao seu potencial de utiliza-ção, em que o espaço é visto como um objeto de consumo, que é determinado, antes detudo, pela sua própria natureza. Trata-se, portanto, de um produto potencialmente ca-paz de favorecer o desenvolvimento de interações humanas e inserir aquela subárea nadinâmica mais ampla da cidade, vista no seu conjunto. A acessibilidade que se promovecom estes novos artefatos que oferecem bens culturais para uma ampla parcela de popu-lação do Distrito Federal, num local até então exclusivo do Estado e seus funcionários,

B R A S I L M A R F E R R E I R A N U N E S

153R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 154: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

redimensiona o próprio sentido de apropriação do espaço da cidade. A Esplanada dosMinistérios que é, no cotidiano do morador da cidade, um corredor de tráfego semmaiores atrativos, pouco a pouco se transforma num território de usos diferenciados,múltiplos. Modificam-se os mecanismos de sua apreensão na medida em que se trata deum lugar com elevada dose simbólica da função de capital da nação, constitutivo daidentidade tanto da cidade como de seus moradores. A forma do novo complexo arqui-tetônico é de tal maneira original que se destaca imediatamente quando se olha para aEsplanada, concorrendo tanto com o edifício do Congresso Nacional como com o daCatedral, dois ícones da arquitetura de Brasília. Podemos recuperar a reflexão de Lefeb-vre (2001) segundo a qual o direito à vida urbana se traduz pelo seu uso como lugar deencontro e de interações sociais, onde inúmeras possibilidades humanas de vida em so-ciedade podem se apresentar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CATTEDRA, R.; MEMOLI, M. La réappropriation du patrimoine symbolique du cen-tre historique de Naples. In: BIDOU-ZACHARIASEN, C. (org.). Retours em Ville. Pa-ris: Descartes, 2003.CORREIO BRAZILIENSE. Lucio Costa: o legado do humanista. 13.06.2008.COSTA, L. Brasília revisitada. Diário Oficial do DF, 14.10.1987.__________. Brasília: a cidade que inventei (Relatório do Plano Piloto de Brasília). Brasí-lia: Codeplan/GDF, 1991.COUTINHO, E. O espaço da arquitetura. Recife: UFPE, 1970.FORQUET, F.; MURAND, L. Les équipements du pouvoir: villes, territoires et équipementscollectifs. Paris: Union Générale d’Editions, 1973.GIDDENS, A. A estrutura de classes das sociedades avançadas. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.HOLANDA, F. O espaço de exceção. Brasília: EDUnB, 2002.__________. Arquitetura sociológica. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais,v.9, n.1, Anpur, 2007.HOLANDA, F. De vidro e concreto: relações espaço interno x espaço externo na arqui-tetura de Oscar Niemeyer. Brasília, 2007. (Mimeo.)HOLSTON, J. A cidade modernista: uma crítica de Brasília e de suas utopias. São Paulo:Cia. das Letras, 1993.KOHLSDORF, M. E. A apreensão da forma da cidade. Brasília: EDUnB, 1996.LEFEBVRE, H. Direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001.LYNCH, K. A imagem da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1999.MARTORELLI, I. B. A visibilidade das exposições da FUNARTE em Brasília: o projetoAtos Visuais como exemplo. Brasília: CEAD, 2008.MICOUD, A. L’écologie urbaine comme utopie contemporaine. Paris, Quaderni, n.43,2001.OSTROWETSKY, S. L’imaginaire bâtisseur: les villes nouvelles em France. Paris: Librai-rie dês Meridiens, 1983.PANERAI, P. Análise urbana. Brasília: EDUnB, 2006.SENNET, R. Les tyrannies de l´intimité. Paris: Ed. du Seuil, 1979.SILVA, I. E. M. Brasília, a cidade do silêncio. Brasília, 2003. Tese (Doutorado) – Depar-tamento de Sociologia da Universidade de Brasília.

E I X O M O N U M E N T A L D E B R A S Í L I A

154 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Brasilmar Ferreira Nunesé professor do Depto. deSociologia e do Programade Pós-Graduação em So-ciologia e Direito (PGSD) daUniversidade Federal Flumi-nense; colaborador do Pro-grama de Pós-Graduaçãoem Sociologia da UnB e pes-quisador do CNPq e FAPERJ.E-mail: [email protected].

Artigo recebido em maio de2009 e aprovado para publi-cação em setembro de 2009.

Page 155: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

SILVEIRA, C. B. Projetos urbanos-culturais na cidade do Rio de Janeiro: experiências re-centes nas áreas da Lapa e da Praça Tiradentes. In: JEUDY, H. P.; JACQUES, P. B. (org.).Corpos e cenários urbanos. Bahia: EDUFBA; PPG-AU/FAUFBA, 2006.WIRTH, L. O urbanismo como modo de vida. In: VELHO, O. (org.) O fenômeno ur-bano. Rio de Janeiro: Zahar, 1974.

A B S T R A C T We seek in this text to analyze the impact of the new museum andpublic library built in the Monumental Axis in Brasilia, supplementary part of the originalproposal from Lúcio Costa of a cultural corridor to attend some functions of city-capital. Theanalysis relies primarily on intra-urban, in a sense that seeks to capture the implications ofthese new artifacts in the everyday life of residents of the District and use that opens to a sub-area hitherto relatively idle within the “Plano Piloto”. Our hypothesis is that its constructionas it expands and diversifies its use makes space available to other social groups and willproduce changes in ownership of the “Plano Piloto” for Brasília's population as a whole,increasingly consolidating the designed city. The new accessibility to the new space caused byits constitutive elements allows us to decode the dynamics and process of ownership of thisterritory. To do so an ethnographic study will be made in order to realize the expansion of theinfluence of other groups in the space until then restricted on the Monumental Axis, in aneffort to take back criticism of the concept of socio-spatial segregation.

K E Y W O R D S Brasilia; museum; urban culture; socio-spatial segregation; urbanplanning.

B R A S I L M A R F E R R E I R A N U N E S

155R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 156: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA
Page 157: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

A FORMA URBANA COMOPROBLEMA DE DESEMPENHO

O IMPACTO DE PROPRIEDADES ESPACIAIS

SOBRE O COMPORTAMENTO URBANO

V I N I C I U S M . N E T T OR O M U L O K R A F T A

R E S U M O O artigo traça crítica a indicadores urbanos usuais, baseados na intensi-dade de presença de características ou propriedades, e aponta a necessidade de indicadores decomportamento definidos pelo conhecimento do impacto da trama de propriedades espaciaissobre as dinâmicas da cidade – indicadores verdadeiramente de desempenho, aptos a avaliara cidade como fenômeno dinâmico e relacional, no qual seus componentes e dimensões têmefeitos uns sobre os outros. Indicadores capazes de capturar, por exemplo, os modos como dife-rentes padrões de morfologia podem impactar a vida microeconômica, a socialidade urbanaou o ambiente em níveis de influência sobre tendências de menor ou maior dependência vei-cular na movimentação intraurbana. Para tanto, lança os fundamentos teóricos e metodológi-cos para um novo sistema de indicadores arranjados em dois eixos: metaindicadores de desem-penho (equidade, eficiência, qualidade espacial e sustentabilidade) e dimensões urbanas(morfologia, dinâmica socioeconômica, limiares urbanos e relações cidade–ambiente).

P A L A V R A S - C H A V E Desempenho e comportamento urbano; indicadoressistêmicos; planejamento.

INTRODUÇÃO

As ações de produção urbana parecem estar atingindo preocupantes limiares em nos-so país – limiares que evidenciam riscos para o próprio funcionamento das cidades brasi-leiras. Formas de crescimento espacial, ora por densificação possivelmente excessiva deáreas intraurbanas ora induzindo padrões de dispersão periférica, vêm esgotando infraes-truturas e impactando sua dinâmica, impondo dificuldades severas de mobilidade e, pa-radoxalmente, aumento do grau de dependência de transporte. As externalidades de pa-drões potencialmente perdulários de urbanização parecem repercutir sobre a própriaequidade, eficiência e continuidade da cidade como suporte à vida social e sobre suasinserções ecossistêmicas. As relações entre produção econômica e urbanização têm se ca-racterizado por uma desconexão entre ações de urbanização e seus efeitos, tanto inter-namente em nossas cidades quanto externamente. A problemática relação entre cresci-mento, industrialização, impactos ambientais e a limitação de recursos energéticos temafirmado a cidade – principal locus da produção expressa no próprio processo de urbani-zação do país – como tema central na discussão do desenvolvimento, eficiências e inefi-ciências econômicas e energéticas, e impactos sobre o ambiente natural.

No entanto, parecemos atravessados por uma dificuldade em identificar quais sãoexatamente os problemas de nossa urbanização – quais aspectos da forma e do crescimen-to de nossas cidades gerariam impactos negativos sobre quais dinâmicas socioeconômicas

157R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 158: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

e seu ambiente externo. De forma mais grave, observa-se um distanciamento entre estacrescente preocupação e o desenvolvimento de estratégias e instrumentos que permitamidentificar de forma sistemática o problema urbano como relacionado a aspectos de com-portamento tidos como desejáveis.

Atento ao caráter potencialmente problemático dos padrões espaciais da cidade bra-sileira e a importância do seu conhecimento, teceremos uma crítica aos indicadores urba-nos usuais, baseados na intensidade de cobertura ou presença de características ou pro-priedades – e não verdadeiramente de desempenho. Apontaremos a necessidade deprodução de indicadores focados no impacto da trama de características e propriedadesurbanas sobre as dinâmicas muiltidimensionais de nossas cidades. Propomos a constru-ção de um método para objetivação desses comportamentos e problemas urbanos sobforma de duas contribuições: (i) os indicadores propostos operam sobre propriedades dourbano capturadas na sua natureza sistêmica, partem de uma visão da cidade como com-plexo de interações e inter-relações ativas entre elementos constitutivos, características mor-fológicas e implicações socioeconômicas e ambientais; (ii) tais propriedades são usadas paraa definição de indicadores capazes de identificar sua influência no comportamento urba-no, considerando de forma explícita o problema da mudança em tais elementos, caracte-rísticas e implicações como fatores ativos nas dinâmicas da cidade como um todo. Esseconjunto de indicadores sistêmicos é desenvolvido em dois eixos de abordagem: catego-rias de desempenho (qualidade espacial e eficiência, equidade, e sustentabilidade urbanas)e indicadores do estado de dimensões urbanas (estados da morfologia da rede urbana e daforma construída, dinâmicas socioeconômicas, os limiares da estrutura urbana face a pro-cessos de auto-organização e relações entre cidade e ambiente).

DE INDICADORES DE PROPRIEDADES A INDICADORESSISTÊMICOS DO COMPORTAMENTO URBANO

As dificuldades da cidade brasileira tornam explícitas as fissuras entre o ideal dasprescrições generalistas dos planos normativos e a complexidade das transformações ur-banas, bem como a seriedade dos impactos delas sobre as dinâmicas sociais e econômicas.Tais fatores são de difícil captura discursiva: eles envolvem a análise de intensidades de pre-sença e relacionalidade, as quais terminam por requerer uma metodologia também quantita-tiva. A maneira mais eficaz de conhecer o comportamento de sistemas urbanos, dada amultiplicidade e simultaneidade de seus processos, mostra-se através de indicadores daforma e dinâmica urbana como parâmetros centrais em estratégias de aumento da viabi-lidade urbana. Recentemente, o debate em torno de formas urbanas sustentáveis tem en-volvido a produção de indicadores variados, a maior parte produzida fora do país, essen-cialmente baseada em correlações entre aspectos do urbano capturados através demensurações simples de estado com base em características da forma visível – uma abor-dagem que pode ser traçada de volta aos estudos da relação entre geometria (implantação,volumetria e tipologias resultantes) e capacidade de densidade ou potencial construtivo(Martin & March, 1972).

Entretanto, tais abordagens têm mostrado limitações: (i) grande parte dos indicado-res ou são meros apontamentos de taxas de proporção entre fatores como compacidade,distâncias internas, tempos de viagem, consumo de combustível e estímulo à eficiência nouso do transporte coletivo (Burton, 2002), e a promoção de economias de escala e provi-

A F O R M A U R B A N A C O M O P R O B L E M A D E D E S E M P E N H O

158 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 159: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

são de serviços e facilidades (Chen et al., 2008). Elas têm apontado correlações simples(graus de co-incidência) positivas ou negativas entre a presença ou ausência de certos fa-tores, como a compacidade, e certos efeitos urbanos, como externalidades ambientais oudisponibilidade de serviços, sem apontar com firmeza as relações causais que explicariamtais co-incidências ou amarrar sistemicamente como tais fatores da morfologia de fato in-fluenciam essas dinâmicas – através da identificação de quais seriam as linhas de causali-dade (e o que haveria de contingência) ligando aspecto identificado e efeito urbano; (ii) descrições de desempenho fixadas nas características superficiais da forma urbana têmse mostrado pouco aptas a considerar a morfologia como suporte a atividades e agentesem constante interação e mudança. A relação entre morfologia como um sistema de uni-dades espaciais, arquitetônicas, irregularmente distribuídas, social e economicamente in-terativas dentro da dinâmica da cidade, e mediadas por uma rede espacial de caminhosapresentando níveis diversificados de acessibilidade interna, não é problematizada. Essesitens mostram uma severa inadequação de avaliações baseadas em aspectos profundamen-te não sistêmicos em sua consideração do urbano.

O ponto de partida para a concepção de um sistema de análise de desempenho sis-têmico, dinâmico e espacial foi estabelecido por Bertuglia et al. (1994). A ideia central é a constituição de um sistema de representação da cidade que permita descrever seus su-cessivos estados e analisar seu desempenho integradamente. Isso pressupõe consistênciaentre aspectos, suas relações e diferentes parâmetros. O núcleo seria um método capaz derepresentar a dinâmica socioespacial, secundado por um conjunto de indicadores queusem as mesmas variáveis, acionadas sistematicamente a cada cenário. Desde 1994, a re-presentação do urbano evoluiu dos modelos multicausais de equilíbrio aos modelos com-plexos, em que as relações causa—efeito são verificáveis a priori somente no plano dasrelações entre componentes elementares do sistema (nível micro), a forma macro é emer-gente, e a dinâmica é fora do equilíbrio. A partir disso, uma extensa produção de novosmeios analíticos de conhecimento da dinâmica urbana tem ocorrido, sem que, entretan-to, a proposta de Bertuglia tenha sido revisitada e atualizada. Estes instrumentos, conhe-cidos como Sistemas de Suporte ao Planejamento (SSP – Planning Support Systems), tra-zem indicadores baseados na análise de benefícios locacionais para consumidores eprovisão de oportunidades para fornecedores finais. Desempenho é entendido como a efi-ciência da localização de serviços, verificada pela sua acessibilidade em relação a um pa-drão de localização de potenciais consumidores, em abordagens baseadas no trade off en-tre custos de transporte e localizações que maximizam as vantagens do consumidor.Indicadores sociais incluem variáveis de qualidade de vida. Tais sistemas têm importânciacentral para servir ao planejamento urbano em tempo real – e têm sido apontados comouma tendência para a próxima década, na aproximação entre as instâncias de pesquisa ede decisão (Batty, 2007).

Contudo, processos geradores de aglomeração, como aumentos de produtividade naeconomia urbana, não são considerados: a cidade é tida como um estado sobre o qual seextraem indicadores de intensidade e distribuição de benefício locacional. Observa-se nes-ses estudos, ainda, a ausência de elementos de avaliação de desempenho: os graus de efi-ciência, equidade e sustentabilidade das distribuições espaciais (sob forma de padrões dedensidades compactas ou fragmentadas, com diferentes graus de dispersão) sobre as dinâ-micas dos agentes urbanos. Têm-se produzido medidas de intensidade da presença deuma certa característica em dada condição ou contexto, o que dá ideia de maior ou me-nor adequação ou qualidade da característica em si (por exemplo, maior ou menor aces-

V I N I C I U S M . N E T T O , R O M U L O K R A F T A

159R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 160: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

sibilidade), mas não da implicação desta característica no desempenho urbano (os efeitosde um certo nível de acessibilidade para as dinâmicas do sistema urbano ou no consu-mo de recursos energéticos). Tais implicações permanecem apenas no campo das supo-sições. A ideia de desempenho deveria pressupor o comportamento relacional de com-ponentes e processos urbanos no tempo: o conhecimento do grau de vínculo entre aspec-to urbano e seus efeitos. Em outras palavras, o papel dos indicadores – o ponto-chave nadefinição de parâmetros seguros de avaliação – é capturar os efeitos da presença e intensidadede uma certa característica na natureza e qualidade dos comportamentos urbanos, e dar res-postas à perguntas fundamentais do ponto de vista das correntes preocupações com a via-bilidade urbana, como “qual o impacto na variação de uma dada característica espacialsobre a sustentabilidade social ou microeconômica de uma cidade?”. Vemos, assim, a ne-cessidade de instrumentos capazes de mostrar as implicações de padrões e transformaçõesmorfológicas (observadas empiricamente, simuladas em cenários hipotéticos ou decorren-tes de ações de planejamento), sobretudo nos potenciais de interação de agentes socioeconô-micos, as localizações das atividades futuras em áreas da cidade e as configurações edifica-das envolvidas – digamos, o efeito do aumento da compacidade sobre a compressão deinterações e o apontamento dos possíveis ganhos ou perdas de produtividade com o au-mento de interatividade socioeconômica como externalidade da densificação em um ce-nário urbano. Os indicadores disponíveis simplesmente não têm feito tais conexões: elesapontam a intensidade de propriedades, mas não indicam suas implicações ou seus efei-tos potenciais sobre outras propriedades, dimensões e dinâmicas do urbano.

Epistemologicamente, a pesquisa de desempenho urbano depende da demonstraçãode relações ao menos parcialmente causais entre fatores e características da forma e dinâ-micas urbanas, ou, de modo menos linear, entre forma e dinâmicas urbanas sobre outrasdinâmicas frequentemente mais complexas, voláteis e imprevisíveis. Sua utilidade na ver-dade depende da identificação, entre todas as contingências e não linearidades inerentes ouno entorno dessas relações, de “feixes de causalidades” intrínsecos a elas. Tais métodos de-vem ser úteis também para demonstrá-las, ao confrontarem-se com casos reais, especial-mente comparativamente. Em outras palavras, no centro da preocupação com desempe-nho e da construção de um método de análise, há a necessidade de se estabelecer pontos decausalidade (ao menos parciais) que nos permitam reconhecer dependências entre proprie-dades urbanas e qualidades do comportamento urbano, e isolar aspectos problemáticos aserem tratados com ações de planejamento, em uma cidade analisada. Portanto, um méto-do de análise de desempenho deve buscar primeiramente consistências na identificaçãodessas causalidades parciais, pois sua construção depende da aferição da existência das im-plicações entre presença de fatores e efeitos, traduzida na quantificação das propriedades eoperações entre indicadores. Em outras palavras, as operações internas de um método deanálise inevitavelmente dependem de (e evidenciariam) tais feixes de causalidade, seus li-miares e pontos de inflexão, criticalidade e mudança e possibilidades de bifurcação e mes-mo inversão – quando a presença de uma propriedade com base em certa intensidade (ouna presença de outra propriedade) passa a ter efeitos eventualmente inversos sobre o siste-ma urbano. A dependência entre análise de desempenho e a identificação de causalidadesparciais, condicionais, certamente ligadas a contingências e imersas em complexidade, sãosimultaneamente a fraqueza metodológica e também a raison d’être destes métodos: semapontar a probabilidade de certos efeitos sob certas condições, tais métodos tornam-se inúteis.

Metodologicamente, uma forma de fazer isso é termos o usual indicador específicoapontando a intensidade de presença de determinada propriedade; e uma segunda opera-

A F O R M A U R B A N A C O M O P R O B L E M A D E D E S E M P E N H O

160 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 161: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

ção: sua ligação a um segundo indicador geral, de comportamento, mostrando o efeitopotencial da propriedade sobre outros aspectos do sistema urbano. As diferenças na in-tensidade de uma propriedade (como a compacidade) e seus efeitos (como a intensifica-ção de centralidades, interatividade socioeconômica ou oportunidades espaciais) podemser definidas e testadas através de simulações teóricas do aumento de unidades/agentes es-paciais envolvidos, simulações então confrontadas com observações de casos reais – con-fronto que permitirá a calibragem das relações entre propriedades e dinâmicas, e a conso-lidação das ponderações obtidas pelos indicadores. O confronto a priori com o empíricona definição das causalidades entre propriedades e efeitos – a aferição da sua implicaçãosistêmica sob forma de diferenças conhecidas nos graus de sua relação – é o item central tan-to na afirmação da relevância dos indicadores verdadeiramente sistêmicos de proprieda-des como na sua utilidade na geração de indicadores do desempenho urbano em geral.

Propomos que a análise de desempenho vinculando características, dinâmicas, rela-ções ou fatores urbanos, diversos em sua natureza, seus efeitos mútuos entre si e sobre osistema urbano em geral, seja conduzida em dois eixos analíticos, como formas alternati-vas, mas complementares, de verificação. Através de metaindicadores de desempenho, co-incidentes com paradigmas de diferentes fases do desenvolvimento teórico-urbano: efi-ciência (foco das preocupações urbanas da década de 1960); equidade (paradigma nosanos 1970) e qualidade espacial; e, mais recentemente, sustentabilidade. Ou por meio daverificação direta de dimensões urbanas empiricamente reconhecidas, sob forma de meta-indicadores de morfologia que combinam qualidades tanto do edificado como da rede es-pacial; dinâmica socioeconômica ou relação entre agentes mediadas por espaço; dinâmicasde auto-organização e os limiares do sistema urbano; relações entre sistema urbano e sis-tema natural ou cidade-ambiente. Tanto os metaindicadores de desempenho como as di-mensões urbanas envolvem aspectos particulares – conjuntos de fatores capturados e re-construídos teoricamente através de combinações de séries de indicadores específicos1

(como compacidade ou acessibilidade). Indicadores específicos de características e propri-edades (largamente o caso dominante na literatura em desempenho), estados e dinâmicasserão propostos de modo a compor relacionalmente mais de um metaindicador. Este se-gundo caminho de análise de desempenho tem a vantagem de certo apelo intuitivo parao planejador; ambos são naturalmente afins metodologicamente (utilizam combinaçõesde indicadores e operações). Também serão formas de aplicação empírica, somadas à pos-sibilidade de análise direta por meio dos indicadores específicos. Vejamos o modo deabordagem ou reconstrução teórica do “urbano” de modo a permitir o nível analítico e re-lacional demandado por essas intenções.

REPRESENTANDO O URBANO

O exame do desempenho demanda a análise das relações ativas entre um sistema dematerialidade marcada por sua durabilidade, rigidez e opacidade (o espacial) e um siste-ma substancialmente volátil (na forma de práticas e socialidades) (Netto, 2008b). O pre-sente método de análise de desempenho considera níveis ontológicos independentes comoelementos reconhecidamente diferenciados, mas dependentes como elementos essencial-mente interativos:

V I N I C I U S M . N E T T O , R O M U L O K R A F T A

161R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

1 Veja trabalhos do grupo depesquisa Sistemas Configu-racionais Urbanos (UFRGS,UFPel e UFF – Krafta, 1994;1997); na literatura de indi-cadores, veja, entre outros,Bertuglia et al. (1994), Bur-ton et al. (2002), Hasse &Lathrop (2003), e Chen et al.(2008); em estudos no Bra-sil, veja Ribeiro & Holanda(2006) e Ribeiro (2009).

Page 162: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

Sistema espacial ambientalurbano

Sistema social agentes pluralizados, individuaisagentes arranjados (ou reconhecidos) em redes

Relações exógenas estímulos macroeconômicosrelações interurbanas e regionais

Figura 1 – Os níveis ontológicos na análise do comportamento de cidades.

A série de indicadores para o tratamento relacional dos elementos, relações e dinâ-micas urbanas opera dentro e entre estes níveis. O sistema espacial aqui considerado é umsistema de materialidades não exclusivamente físicas, mas fundadas na rigidez e durabi-lidade do espaço, composto pelo sistema espacial urbano e sua relação com um ambien-te geográfico natural, imediato e ativo, tanto como cenário dos impactos das externali-dades dos processos urbanos como na dependência do urbano sobre quantidades derecursos nele disponíveis. O sistema espacial urbano é analisado em atratores (edificaçõese seus conteúdos socioeconômicos e cognitivos), rede de espaços públicos de acesso (ruas) esuas áreas de ocupação (lotes, bairros etc.). O sistema social é constituído de agentes plu-ralizados, incluindo indivíduos e agrupamentos na forma de instituições e firmas, eventual-mente arranjados em redes de agentes por semelhança de condição social (caso dos indi-víduos e suas classes sociais) e papel econômico (consumidor, fornecedor, firma produtorade bens finais e bens intermediários), e atividades produtivas e reprodutivas. Temos, as-sim, a possibilidade de incluir redes de agentes dentro e fora do sistema urbano analisado– os quais completariam o leque de relações socioeconômicas constituintes do urbano e permitiriam investigações diretas da relacionalidade nas redes de agentes, como seu graude coesão ou conectividade interna e externa, transmissão de informação etc. para fins deavaliações direcionadas ao comportamento dos agentes em si. A abordagem ainda permi-te considerar as conexões entre o sistema urbano localizado (a cidade sob análise) e dinâ-micas econômicas mais amplas, sob forma de suas relações macroeconômicas ou regionais.Sugere-se que tais conexões sejam acrescentadas oportunamente ao método sob forma de

A F O R M A U R B A N A C O M O P R O B L E M A D E D E S E M P E N H O

162 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 163: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

índices de crescimento econômico como fatores exógenos de estímulo à produção de bense serviços internos (taxas de crescimento econômico da região que tendem a se replicar naprodutividade das firmas internamente à cidade em análise).2 Propõe-se a inclusão das re-des de agentes (envolvendo sobreposições) apropriando-se ativamente do espaço e com-petindo por localização para fins de sua própria reprodução, ligadas a itens de eficiênciae equidade, produzindo e interagindo no espaço urbano:

I. Redes de agentes individualizados ou parte de grupos sociaisII. Redes de interação Fornecedor final–Consumidor finalIII.Redes de ligação Firmas intermediáriasIV.Redes Firma–Trabalhador V. Redes Produtor espaço–Consumidor espaço

A rede espacial que viabiliza as ligações entre agentes coloca-se como elemento cen-tral nas relações e na definição de hierarquias naturais de suas localizações e suas vantagensaglomerativas. Ganhos de acessibilidade na produção (nas ligações entre firma e entre setor)são tão importantes quanto nas ligações entre fornecedor final e consumidor final, ou en-tre oportunidades de trabalho e a localização residencial dos trabalhadores. Indicadores de-vem permitir avaliar as condições da interação entre agentes a partir da nuvem atual de suaslocalizações e avaliar a capacidade da estrutura urbana em dar suporte à rede de interaçõesatual e potencial (orientada para análise comparativa), como o grau de interferência do es-paço urbano no potencial de interação nas redes de agentes, ou, mais detalhamente, o grau deinterferência da localização dos agentes e da configuração da malha de acessos na interati-vidade nas redes e entre redes. Um sistema de análise focada em comportamento urbanodeve verificar padrões de proximidade/distância entre agentes, e ganhos/perdas em cenáriosde novas localizações ou modificações na malha de acessibilidade sobre o desempenho esustentabilidade econômica do sistema urbano. Apontamos aqui para as relações entre inte-ratividade dos agentes e a conectividade do sistema espacial: a correspondência entre essas di-mensões do fenômeno urbano é item fundamental para seu desempenho. Parece relevantecolocar a questão do papel da estrutura física urbana, suas possíveis transformações e mo-dificações em padrões urbanos e produção de centralidades como hipótese central no exa-me do desempenho e dos estímulos urbanos, e modelar as redes de agentes que produzemaglomeração, competem por localização, geram fluxos dentro e entre cidades e dependemtanto de distribuição de localizações como de acessibilidade para sua produtividade e paraa distribuição dos efeitos de suas externalidades sobre a cidade.

Uma vez definidos os fundamentos teóricos da abordagem ao problema urbano co-mo profundamente sistêmico, ativamente correspondente em suas dimensões ontológicas(suas espacialidades e estruturas e suas socialidades e redes de interação), passemos à de-finição dos indicadores de tais relações e dinâmicas.

METAINDICADORES DE DESEMPENHO

Os indicadores individuais podem ser endereçados em suas combinações. Iniciemospela rápida definição das formas de abordar o urbano de modo explicitamente sistêmico– a fim de preparar teoricamente o caminho para a definição de indicadores capazes decapturar relações entre diferentes elementos e dinâmicas do urbano.

V I N I C I U S M . N E T T O , R O M U L O K R A F T A

163R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

2 A inclusão das redes de in-teração entre Produtor deespaço e Consumidor de es-paço em um submodelo decrescimento urbano serácontemplada em um estágioavançado da pesquisa. Ou-tros estímulos econômicossob forma de demanda e en-trada de bens e serviçosconsiderados em quantida-des de fluxos trocados nãoserão tema do método deanálise de desempenho urba-no. Veja a inclusão destes flu-xos no trabalho recente deWilson (2007).

Page 164: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

QUALIDADE ESPACIAL

A análise de qualidade espacial refere-se às qualidades inerentes do casco da cidade,e tem sido tratada, no universo do planejamento urbano, de modo trivial, limitada a as-pectos locais de microacessibilidade, conforto, “bom desenho” ou habitabilidade, todosatributos puramente locais. Sugerimos indicadores de cunho mais amplo e sistêmico. Aanálise de características espaciais e seu potencial impacto sobre habitantes não implicamjuízos de valor formal, mas de aferição da interação entre forma construída, atividade ur-bana e habitante. Trata-se de um campo aberto, cujas explorações existentes se resumemà formulação de conceitos e, quando muito, à explicitação de uma forma de aferição semexperimentação empírica e muito menos associação a sistemas de indicadores de desem-penho mais avançados. A presença das características espaciais não é garantia de existên-cia de qualidade espacial, entretanto, é certo que sua presença contribui para situaçõesurbanas com potencial de mais alta qualidade espacial. Qualidade espacial trata de indi-cadores diretos da estrutura e das características do espaço urbano (compacidade da for-ma edificada, acessibilidade, permeabilidade, distributividade e continuidade da redeespacial, mobilidade), da qualidade informacional desses espaços (identidade, navega-bilidade, capacidade informacional), e das características locais do espaço urbano emestreita relação com aquelas globais (continuidade da forma construída, microeconomi-cidade e socialidade). Traz em si a implicação dessas características com a prática e uso doespaço. Qualidade espacial, neste sentido, não se refere a propriedades apenas “locais”,compacidade, por exemplo, é uma medida também usada para analisar a cidade como umtodo ou suas partes isoladamente. Qualidade espacial considera implicitamente o impactode características morfológicas sobre tais dinâmicas a partir das correlações reconhecidasa priori entre propriedades espaciais (digamos, o aumento de compacidade) e efeitos so-bre o sistema urbano (o aumento de centralidade e interatividade socioeconômica), per-manecendo, no âmbito espacial, restrita às propriedades referentes às característicasespaciais, sem incluir variáveis socioeconômicas em sua formulação. Propomos um indi-cador geral de “qualidade espacial” que combine fatores de morfologia, indicadores dire-tos do tecido urbano local (por exemplo, cobertura vegetal), elementos de informaçãoespacial (o quanto o espaço local ajuda na navegação do habitante) e da qualidade am-biental destes espaços.

EQUIDADE

A análise de equidade evidencia impactos da estrutura física sobre as atividades degrupos e classes sociais distintos no sistema urbano. Foca na distribuição de benefícios lo-cacionais e mobilidade como capacidades de geração de renda e como fatores de aumen-to ou redução de custo (relacionados a transporte, tempo, eficiência de deslocamentos,número e intensidade de atividades realizadas e, em última instância, produtividade doindíviduo) para agentes socialmente diferenciados. Supõe-se que certas localizações egraus de mobilidade potencializam essas capacidades, o que torna a relação agente–estru-tura urbana um item relevante de equidade social (Harvey, 1973) – ainda que uma re-lação direta entre ambas seja, naturalmente, de difícil demonstração e, portanto, contro-versa. Se considerarmos que um sistema urbano se beneficia com o aumento deprodutividade distribuída entre seus agentes, supõe-se que as condições espaciais para queagentes sejam equanimamente produtivos também sejam itens de eficiência urbana. A

A F O R M A U R B A N A C O M O P R O B L E M A D E D E S E M P E N H O

164 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 165: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

análise da equidade urbana estende a atenção aos impactos da estrutura física (como o dasdistâncias internas) sobre a eficiência da produção (incluindo a produção da própria ci-dade) e do comportamento de consumo ao problema dos custos e benefícios aos indiví-duos. Quando o objetivo é capturar o quanto o espaço interfere nas condições de acessoa atividades e produtividade dos indivíduos por classe, o uso de indicadores econômicosou sociológicos de diferença de renda ou educação – mais afeitos a capturar equidade co-mo um problema social mais geral – são menos elucidativos. Indicadores como oportu-nidade espacial (análise do privilégio locacional; Krafta, 1997), acessibilidade (indicandoinfluência da estrutura da rede urbana sobre alcançabilidade),3 mobilidade (sensível paradiferentes grupos sociais e formas de transporte predominante) e segregação espacial (graude concentração e distância entre localizações de habitantes de classes diferentes) mos-tram-se formas mais aptas de capturar esses impactos. Operacionalmente, o indicador ge-ral de equidade se vale principalmente do indicador de oportunidade espacial de trabalhoe consumo (serviços/comércio), sendo sensível a diferenças: quando uma classe tem maisprivilégios locacionais que outra, o indicador deve apontar queda da equidade. Equidadeinclui a valorização de mobilidades similares entre classes, usando valores simples de pon-deração para diferentes modalidades de transporte. O indicador de mobilidade segue re-levante em razão das fricções da distância que se abatem sobre indivíduos socialmente di-ferentes4 – e das modalidades de transporte usados para burlar o efeito dessas fricçõesconstantes. O indicador de acessibilidade captura de forma simples a distância entre umalocalização em relação a todo o sistema, sendo verificada para cada ponto residencial eagregada de acordo com classe (acessibilidade média dos residentes/classe), cuja média se-gue mesmo princípio de harmonização. Segregação espacial mostra o grau de concentra-ção entre residentes de mesma classe como indício de uma equidade de oportunidade nalocalização: sistemas urbanos em que haja concentração dos semelhantes e distância entreos diferentes indica que a inequidade é uma característica que atravessa o sistema urbanona produção de seu padrão locacional. É verificada como a diferença entre a média da dis-tância topológica entre agentes similares e a média entre diferentes classes, como umaponderação para apontar sistemas menos e mais equâmines na sua produção e formaçãode padrões de localização residencial.

EFICIÊNCIA URBANA

Trata-se da análise da relação entre morfologia e dinâmicas socioeconômicas intraur-banas. Em princípio, “eficiência urbana” refere-se tanto à eficiência das dinâmicas emuma dada condição espacial como à eficiência da estrutura urbana em seus impactos so-bre tais dinâmicas. A primeira possibilidade envolve a análise da rede das conexões entreagentes face a rede espacial como fator de custos e eficiência nas trocas, ou seja, as rela-ções entre agentes econômicos complementares em relação à proximidade espacial (cená-rio atual) e entre agentes potencialmente complementares (cenário potencial).5 A segundapossibilidade analisa o quanto a estrutura urbana atua para efetivar trocas atuais e poten-ciais, analisando o comportamento da rede espacial em confronto com as possibilidadesde conexão da rede dos agentes. A análise da eficiência é fundamental para verificarmoso quanto as atividades e trocas entre indivíduos e firmas sofrem “atritos espaciais.” A vidaurbana cotidiana, diferente para cada indivíduo porque montada a com base na sua redeparticular de relações e dependências, pode, não obstante, ser equiparada a um contínuoprocesso de deslocamentos e interações intermitentes. Com efeito, independentemente

V I N I C I U S M . N E T T O , R O M U L O K R A F T A

165R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

4 Uma pessoa de menor ren-da dependente do transportecoletivo e pedestre localiza-do, digamos, em favela in-tersticial central, sofre me-nos o atrito das distânciasdo que uma localizada perife-ricamente, mas tende a sofrermais fricção para acessar anuvem de oportunidades es-paciais das quais teorica-mente dispõe do que a pes-soa que tem veículo privado.

5 Proximidade espacial entrefirmas é um fator considerá-vel na eficiência econômicade um sistema urbano; é re-conhecidamente um fator ge-rador de externalidades, nãoconsideradas no presentemétodo.

3 Alcançabilidade se refere auma capacidade de bem-suceder na movimentação in-traurbana na busca por ativi-dades ou outros agentes.

Page 166: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

do que cada indivíduo realize ao longo de seu dia, seu procedimento envolve deslocamen-tos e atividades localizadas, sequenciais. A eficiência desse procedimento envolve dis-tribuição espacial de atividades e minimização de distâncias, ambas associadas à formaurbana. A universalidade desse problema se deve a características fundamentais da repro-dução e produção socioeconômica baseadas na mobilidade de objetos, consumidores etrabalhadores, e no confronto desses com um dado inescapável: a distância entre as loca-lizações e suas implicações nos tempo de deslocamentos e custos de transporte, bem comoa configuração da estrutura espacial urbana produzida coletiva e historicamente como res-posta à necessidade de proximidade entre a diversidade de agentes. Tal estrutura, contu-do, pode apenas minimizar (em graus diferentes para estruturas urbanas diferentes) o pro-blema da distância, criando inevitavelmente problemas adicionais de restrições para oconhecimento de agentes potencialmente interativos e alcançabilidade (e uma redistribuição depotenciais) entre agentes. Em outras palavras, a estrutura espacial urbana, rígida e opaca,produzida como solução material ao problema das distâncias nas interações, implica con-tudo novas restrições nas possibilidades do indivíduo quanto ao conhecimento dessa pró-pria estrutura e da sua exposição a outros agentes – possibilidades construídas através daexperiência heurística do espaço urbano (Portugali & Casakin, 2003). Mesmo uma vezconhecidas as possibilidades de agentes para interação – sendo todas as outras condiçõesiguais –, a distância tende a ser um critério de escolha de interações em função dos cus-tos de transporte nas trocas entre agentes. O metaindicador “eficiência” se refere essencial-mente ao exame dos diferentes graus de interferência do espaço sobre essas possibilidades,sobre escolhas para efetivar interações, e a intensidade de possibilidades e de interações efe-tivadas (“sustentabilidade”, por sua vez, incluiria também a diversidade e longevidade nageração de possibilidades de interação e de interações efetivas). A urgência típica nas in-terações diárias na cidade, a centralidade das condições espaciais propícias para maximi-zar as mobilidades e viabilizar a efetivação desse emaranhado de interações e o problemados custos e tempo de transporte inerentes ao cenário do consumo e sobretudo na pro-dução evidenciam a necessidade de abordagem de sua eficiência face as fricções impostasfisica e cognitivamente pela estrutura urbana. A eficiência urbana é uma forma de buscareconomia de meios, ganhos de produtividade, funcionalidade. Nesta abordagem, eficiên-cia é voltada para o estado do sistema urbano.

1 A eficiência de um padrão de localização de atividades (distâncias relativas) para agen-tes potencialmente interativos e vinculados a estas atividades – isto é, os impactos daacessibilidade da rede urbana sobre a movimentação entre atividades: o grau de faci-lidade para novas relações entre agentes emergirem e se efetivarem no espaço urbano,com menos esforço material.

2 O grau de intensidade com o qual essas trocas entre agentes complementares emerge,em diferentes instâncias de produção e consumo dentro de uma configuração de loca-lizações e acessibilidade.

Como mencionado, uma forma sintética de verificar estas eficiências é através dopotencial de conexão nas redes de agentes, na passagem da nuvem de possibilidades deconexões de agentes complementares para a rede das conexões efetivadas, mediadas pela redematerial das localizações espaciais destes agentes apontando maior potencial de conexões.Uma cidade eficiente teria uma rede de ligações físicas conectando um padrão de lo-calização tal que facilitasse a passagem entre a rede de ligações possíveis para a rede das

A F O R M A U R B A N A C O M O P R O B L E M A D E D E S E M P E N H O

166 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 167: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

ligações efetivas – e eficientes –, entendendo a proximidade topológica como ingredien-te-chave para a atualização de conexões socioeconômicas ou para a prática dos agentes.Graus de dispersão entre agentes mutuamente dependentes quanto a trocas físicas impli-carão maiores distâncias e, portanto, atividades mais ineficientes quanto ao uso de recur-sos e tempo, o que afeta o comportamento do sistema social e microeconômico, geran-do ainda externalidades negativas, como impactos sobre rede urbana (tráfego) ou novosriscos sobre a sincronia na produção. A análise da eficiência urbana passaria então pormedidas de relação topológica entre pares de agentes e sua distância em relação a umarede ideal de posições de total conectividade (passo 1) entre esses conjuntos de agentesem um “espaço virtual, líquido”, mostrando o quanto um sistema espacial está próximode oferecer distância mínima entre conjuntos de agentes complementares ou potencial-mente interativos. Considera ainda o tamanho do sistema urbano em análise como fatordeterminante – mas que pode ser relativizado, se a eficiência dos padrões de localizaçãofor relativizada em função do tamanho do sistema, sobretudo para fins comparativos daeficiência das localizações e alcançabilidades em diferentes cidades. A aferição de eficiên-cia pode ainda:• dirigir-se a subsistemas específicos de agentes (como serviço-consumidor ou firma-firma)

verificando o grau de eficiência destas ligações físicas (ou proximidade dessa distribui-ção com a rede de conexão ideal) –, usando-se, por exemplo, distância topológica mé-dia entre localizações;

• considerar a eficiência geral de diversos subsistemas de agentes, ponderados numa consi-deração sintética do sistema urbano. Portanto, as propriedades da rede de ligações fí-sicas que conectam essa nuvem potencial de agentes/localizações passam a ser centraisna análise da eficiência urbana;

• mostrar ganhos de eficiência com a qualificação de componentes urbanos; por exemplo,com o eventual aumento de acessibilidade em razão de melhorias na rede de acessos oude modificações no panorama de localizações de agentes complementares; com o ga-nho de compactação/centralidade (interna e global para uma área); ou com o ganhode informação espacial a respeito de agentes complementares, avaliados em cenárioshipotéticos;

• a análise da dessincronia entre a rede de ligações potenciais e a rede das localizaçõesentre potenciais agentes em interação pode apontar a hierarquia dos espaços mais apro-priados para futuras localizações de agentes dentro destes campos de complementa-ridade. Essa é uma aplicação possível da análise para fins de tomada de decisões deplanejamento;

• o exame de eficiência pode ainda ser dirigido no sentido contrário: a análise da eficiên-cia das ligações existentes entre agentes, e o quanto elas se beneficiam do espaço (ou even-tualmente ignoram vantagens locacionais ou agentes complementares melhor localiza-dos para possíveis interações). A eficiência das interações entre agentes, obtida peloconfronto da análise das redes de agentes versus a análise da centralidade ou hierarquiana rede espacial das localizações reais, depende, contudo, da existência de dados de li-gações efetivadas.

Avanços no exame da eficiência urbana podem incluir outros itens: eficiência da co-bertura e tempos para modalidades de transportes e sua relação com graus de alcançabi-lidade entre atividades, sob forma de relação entre graus de acessibilidade intrínsecos àuma rede espacial em um dado estado e os graus de mobilidade estimulados morfologi-camente, vinculados ainda à eficiência da cobertura e velocidades das modalidades de

V I N I C I U S M . N E T T O , R O M U L O K R A F T A

167R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 168: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

transporte. Pode-se ainda apontar para a eficiência de infraestrutura urbana, a qual nãoserá tema neste artigo.

SUSTENTABILIDADE URBANA

Exatamente pela grande extensão de fatores envolvidos e a consequente indefinição(e eventual contradição entre) conceitos propostos e intenso – e largamente desinfor-mado – uso do termo (Netto, 2008a), “sustentabilidade” é uma categoria de desempe-nho de difícil tratamento. As noções de sustentabilidade referidas à cidade estão frequen-temente associadas a ideias de escassez de recursos e não poluição, centrando-se nanecessidade de permanência de recursos ou de qualidade de vida – mecanismos que seencarregam de sustentar sua continuidade (Polidori & Krafta, 2004). O metaindicadorde sustentabilidade consiste de uma análise da continuidade de sistemas urbanos diante deperturbações internas e externas, de sua dependência de recursos e das externalidades geradasem seus processos de produção e reprodução. Requer atenção por questões também meto-dológicas: dada a impossibilidade teórica de uma aferição de “sustentabilidade geral” deuma sociedade ou mesmo de uma região, tal análise deve iniciar-se na escala individualde cidades, sendo relacionável na análise de redes de cidades e suas interfaces com seuambiente ou região. Metodologicamente, é necessária a abordagem local da “sustentabi-lidade” como problema sistêmico, que afeta regiões e relações em cadeias entre ambien-tes urbanos e ecossistemas.

As hipóteses usuais da relação entre forma e sustentabilidade têm apontado paraconsiderações como: cidades mais compactas tendem a ser mais sustentáveis do que as menoscompactas; cidades mais fragmentadas tendem a ser menos sustentáveis do que as menos frag-mentadas (cf. Burton, 2002; Chen et al., 2008; Ribeiro & Holanda, 2009). Polidori eKrafta (2004) argumentam contra superssimplificações, considerando que fragmentaçãoe compacidade são processos que implicam movimentos necessários na continuidade dacidade (veja também Abramo, 2009). Em outras palavras, observações de sustentabilida-de têm se focado em análises de estado e não como processos urbanos em direção a solu-ções menos ou mais sustentáveis ao longo do tempo. O problema do tempo nos leva areconhecer o papel da estabilidade e instabilidade de sistemas urbanos – e a rejeitar apriori a definição desinformada de sustentabilidade urbana como associada à estabilidadeou continuidade linear de processos. A questão que se coloca é como avaliar instabilidade:se como uma ameaça à sustentabilidade ou, ao contrário, como um sinal de vitalidade.Estas duas possibilidades espelham a essência do debate sobre sustentabilidade hoje exis-tente, a oposição entre uma sustentabilidade buscada mediante redução do desenvolvi-mento e outra, que aposta na capacidade de resolução de problemas alcançada justamen-te no desenvolvimento.

Instabilidade é um componente intrínseco do processo urbano, pois mudança e transfor-mação estão na essência do conceito de urbano. Entre os fatores centrais em sustentabilida-de como processo e sua relação com instabilidade estão: a oscilação dos processos detransformação urbana como manifestação de mudanças em dinâmicas socioeconômicas,sujeitas a estímulos exógenos das conexões entre cidade, região e a macroeconomia; oproblema dos limiares na constituição de estruturas ao longo da evolução urbana, e a in-termitente consolidação e mudança de padrões urbanos. Tais processos espaciais ocor-rem em diferentes escalas implicadas no tempo e espaço, em uma distribuição descontí-nua de frequências e estruturas, em que as descontinuidades marcam a transição de uma

A F O R M A U R B A N A C O M O P R O B L E M A D E D E S E M P E N H O

168 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 169: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

para outra escala. O problema da transformação e instabilidade urbanas, fundamen-tal para a compreensão das condições reais de sustentabilidade, aponta para o problemados limiares de transformação presentes em diferentes escalas: limiares locais que impli-cam mudanças de padrões globais da cidade, e vice-versa. Estímulos de mudança e ins-tabilidade, limiares estruturais e pontos de criticalidade se relacionam com a capacidadedo sistema urbano em absorver e reorganizar-se frente a tais mudanças: a capacidade deautoorganização torna-se um item essencial na sua continuidade e sustentabilidade. Sus-tentabilidade inclui, assim:• o comportamento de eficiência da cidade quanto a seus processos, agora avaliado no

tempo, incluindo análise da evolução para a continuidade do sistema urbano; • a capacidade estrutural do sistema urbano de responder a variações de estímulos (auto-

organização) geradas internamente ou externamente à cidade quanto à sua morfologiae suas dinâmicas internas na geração ou mudanças em seus padrões espaciais aparen-tes (limiares),5 e a possibilidade de mudanças estruturais ou parciais em áreas urbanassob tensão de crescimento por densificação/expansão: a capacidade de absorção etransformação da estrutura urbana, as quais assegurariam formas – adequadas ou ina-dequadas – de continuidade do urbano.

• a consideração da dependência da cidade face à disponibilidade de recursos para ali-mentação das suas dinâmicas, e as externalidades negativas de tais dinâmicas sobre oseu ambiente, as quais potencialmente voltam a comprometer a continuidade do sis-tema urbano (relações cidade–ambiente);

• comportamento do sistema urbano quanto à equidade, item de continuidade e daeficiência;

• a análise dos limiares da estrutura urbana diante de seus efeitos sobre dinâmicas socio-econômicas e o comportamento urbano de modo geral: limiares de crescimento eestruturação de morfologias de desempenhos mais sustentáveis: limiares superiores e inferiores de expansão, ocupação e densificação de cidades e presença de atividademicroeconômica e seus impactos sobre a capacidade de interação dos agentes socio-econômicos; limiares de recursos e energia disponíveis para sistemas urbanos; limiarpara externalidades ambientais negativas de dinâmicas urbanas (conforme indicadordetalhado mais adiante).

A análise de desempenho baseada em sustentabilidade deve fundamentar-se na aná-lise da evolução de estados urbanos e seus comportamentos, confrontando-os com indi-cadores do ambiente ao longo do tempo e traçando projeções de cenários futuros funda-mentados em parâmetros encontrados na análise temporal. “Sustentabilidade” coloca-se,portanto, como uma “categoria maior” que sumariza e estende as anteriores, reunindo emsua ponderação itens destas categorias mais aspectos capturados nos indicadores de limia-res e relações cidade–ambiente.

METAINDICADORES: AS DIMENSÕES EMPÍRICAS DO URBANO

A análise de sistemas urbanos naturalmente esbarra no problema da diversidade: acomplexidade do número e diversidade de elementos e dinâmicas envolvidos na cidadeabre a possibilidade de geração de uma quantidade de indicadores quase tão grande

V I N I C I U S M . N E T T O , R O M U L O K R A F T A

169R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

5 Exemplos são a capacida-de e limiares de substituiçãode morfologia edificada, desubstituição de usos e novasinteratividades entre usos;capacidade da rede de aces-sibilidade absorver deman-das de novos atratores ou aintensificação de fluxos; mo-dificações na rede que pos-sam colocar o sistema urba-no em novo patamar deeficiência até novo ponto de criticalidade.

Page 170: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

quanto o número de variáveis identificadas. Um aspecto, portanto, conveniente – e umponto a ser explorado metodologicamente – é a seleção, combinação e eventual síntese deindicadores específicos. Como vimos, tais indicadores podem ser agrupados de várias for-mas, de acordo com as categorias sustentabilidade, eficiência, equidade e qualidade espa-cial. Por questão de facilidade de aplicação, sugerimos agora uma segunda forma de agru-pamento em metaindicadores que combinarão a variedade de medidas em um elencoconciso diretamente ligado às dimensões mais evidentes do fenômeno urbano. Leques mí-nimos de indicadores, diretamente ligados ou aos critérios principais ou às característicasdo fenômeno, tendem a ser mais facilmente entendidos e operados no momento da aná-lise. Assim, “indicadores de morfologia” se referirão a características do sistema espacialcuja mensuração pode trazer dados do desempenho da cidade sobre este aspecto; “indica-dores de dinâmicas socioeconômicas” capturarão relações entre sistema espacial e sistemade agentes; “indicadores cidade–ambiente” capturarão a relação entre funções urbanas eseu sistema ambiental circundante; e assim por diante. Estas “dimensões” poderão ter seucomportamento avaliado sob critérios de desempenho agrupados anteriormente; elastambém poderão ser reformuladas; outras, adicionadas etc. A estrutura de indicadores su-gerida (Figura 2) consiste de uma reorganização de medidas já desenvolvidas ou a seremdesenvolvidas, com a intenção de enfatizar o caráter intuitivo e um rápido poder explica-tivo sobre o fenômeno e seus critérios de desempenho.

INDICADORES DE MORFOLOGIA URBANA

Estes indicadores são de suma importância para o conhecimento por parte do pla-nejador das características da estrutura espacial da cidade e suas implicações de desempe-nho – sendo análogos aos indicadores da categoria de desempenho “qualidade espacial”.Temos três instâncias de investigação da morfologia: suas condições globais (a cidade co-mo um sistema espacial completo), a geração de informação útil para a navegação e prá-ticas sociais a partir desta configuração, e a escala morfológica local (de caráter de ocupa-ção e densificação do lote e quarteirão) como manifestação de tendências e demandasmorfológicas globais, a qual volta a impactar as dinâmicas globais.

INDICADORES DA CONFIGURAÇÃO GLOBAL URBANA

Endereçam propriedades diretas do sistema espacial, especialmente quanto a itensligados à alcançabilidade e potencial de interação espacial. Podem ser divididas emsubjconjuntos de acordo com a abordagem da forma urbana: por características geomé-

A F O R M A U R B A N A C O M O P R O B L E M A D E D E S E M P E N H O

170 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Figura 2 – Dimensões do problema urbano e os meta-indicadores correspondentes.

Page 171: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

tricas absolutas (áreas, volumes, distâncias métricas) ou por características geométricas rela-cionais (conectividade, distância topológica etc.). Para fins de operacionalização e, sobre-tudo, de facilidade de aplicação, propõe-se abaixo uma seleção, agrupamento e, eventual-mente, combinação das medidas desenvolvidas – dispostas em dois conjuntos: morfologiaedificada e morfologia da rede espacial.

MORFOLOGIA EDIFICADA

Compacidade: O problema da compacidade vem recebendo grande atenção em de-bates sobre sustentabilidade urbana, por seu natural envolvimento em questões de distân-cias internas, dependência veicular e suas implicações. Indicadores atuais são baseados emmedida métrica em três formas: relação entre área construída e área urbana; área ocupa-da e área urbana; e população e área urbana (indiretamente, supondo que cidades maisdensas também serão mais compactas). Contudo, indicadores baseados em área e alturade cobertura edificada não capturam com precisão o que a compacidade implica para osistema urbano: a questão não se refere meramente à característica do espaço físico, maso que esse espaço físico de fato sedia de práticas e atividades sociais. É esta relação que impor-ta para o desempenho urbano. Um mesmo caso pode ter intensidades de ocupação dife-rentes, e formas de atividade com níveis certamente bastante diferentes quanto à sua in-teratividade com o restante do sistema urbano, ou com grau de dependência com relaçãoà proximidade a agentes e atividades complementares. Estas duas características, abriga-das por morfologias menos ou mais densas, só podem ser capturadas se considerarmos oespaço arquitetônico urbano como um sistema de unidades espaciais irregularmente dis-tribuídas, social e economicamente interativas dentro da dinâmica urbana. O tratamentometodológico mais adequado seria, portanto, não o da compacidade como intensidade deáreas brutas construídas sobre área de solo, mas um indicador da compressão de unidadesde atividade/residência por área ou trecho de rua. A consideração de população não é o su-ficiente, por não mostrar sua interatividade, assim como a do número de economias.6 Éurgente retirarmos o item “compacidade” da mera descrição de densidade geométrica ab-soluta e o relacionarmos com a ideia de “configuração” como relações entre entidadesurbanas articuladas, na forma do número de unidades de atividades e residências por uni-dade espacial (métrica ou topológica). Essa adequação, além de oferecer mais riqueza des-critiva, retira a imprecisão de cascos semelhantes com intensidades de ocupação diferen-tes, ainda oferece natural compatibilidade metodológica com os demais indicadoressistêmicos: o tratamento de seus aspectos em relação àqueles de outras propriedades ficaalinhado e explícito. Aqui também temos o problema do limiar de compactação: se os efei-tos da compacidade sobre a alcançabilidade/mobilidade na cidade ainda deve ser demons-trada apropriadamente, ela também deve incluir o problema do limiar superior, a com-pactação em excesso pode levar ao problema da baixa habitabilidade. Esses limiares devemser introduzidos.

MORFOLOGIA DA REDE ESPACIAL

Acessibilidade: indicador topológico global de centralidade considerando cada uni-dade espacial ligada ao sistema viário em relação a todas as outras. Cada unidade espacialterá uma distância média em relação às demais, a qual expressa a acessibilidade dessa uni-dade; se as distâncias médias de todas as unidades espaciais forem comparadas, obtém-seum ranking de acessibilidade expressando diferenciação espacial existente (Krafta, 1994).O indicador pode relacionar diferenciações a aspectos do funcionamento das cidades, tais

V I N I C I U S M . N E T T O , R O M U L O K R A F T A

171R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

6 Compacidade indica a in-tensidade da presença deatividades, enquanto os indi-cadores sistêmicos de cen-tralidade, oportunidade econvergência (Krafta, 1994;1997) mostram o potencialde interatividade latente nu-ma área ou trecho axial en-tre si (passo menor) ouquanto a todo o sistema(passo n) resultante dessascompacidades.

Page 172: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

como probabilidade de localização de zonas comerciais e localização de áreas potencial-mente segregadoras. Ele é vinculado explicitamente ao problema da mobilidade e à equi-dade, eficiência e sustentabilidade urbanas.

Profundidade: consiste do grau de distanciamento entre unidades espaciais do siste-ma espacial urbano. O indicador de profundidade pode ser associado a avaliações de efi-ciência e equidade urbanas. A eficiência pode ser denotada pelo fato de sistemas mais oumenos profundos produzirem viagens mais ou menos extensas; a equidade decorre da in-ferência de que sistemas profundos tendem a produzir mais segregação socioespacial. Éútil para responder questões como: “o que o aumento de profundidade de um sistemaparticular – no caso, por exemplo, de expansão urbana – provoca sobre as distâncias per-corridas na cidade e itens como consumo de combustível? O quanto reduz eficiência esustentabilidade da morfologia da cidade?”. A primeira forma de aferir profundidade écalcular a distância média do sistema, obtida pelo somatório de todos os caminhos míni-mos ligando todos os pares de unidades espaciais do sistema. A segunda forma (verificaro diâmetro ou o maior caminho mínimo existente, indicando as duas unidades espaciaismais distantes entre si no sistema urbano) é sujeita a distorções em razão de formas urba-nas menos convexas ou mais dendríticas. A terceira usa as distâncias de um determinadoponto, tomado como referência, ordenando o sistema a partir desse ponto. Contudo, oindicador isolado pode ser pouco informativo se não incluir a relativização da proprieda-de em função do tamanho do sistema: uma cidade pode ter uma morfologia mais eficien-te que outra cidade menor (menos profunda), se tiver, por exemplo, maior compacidade.

Distributividade: indicador topológico do grau de conectividade da rede viária urba-na associada à quantidade de percursos alternativos existentes entre dois pontos quaisquerde um sistema. Uma rede é não distributiva quando, entre um par qualquer de localiza-ções, há apenas um caminho possível (como nas formações urbanas compostas de apenasuma via principal e várias outras transversais). Pode ser obtido pela quantidade de “ciclosfechados” existente em um sistema, comparada com uma grelha retangular perfeita como mesmo número de nós (a grelha retangular, por ser a forma mais comum de organiza-ção espacial existente, embora não seja a mais distributiva), e varia de acordo com o ta-manho do sistema (grau de conectividade e continuidade de caminhos). Um item com-plementar envolve a eficiência dos caminhos alternativos – caminhos alternativos maiscurtos aumentam a fluidez ou distributividade.

Permeabilidade: indicador métrico de penetrabilidade do espaço (global ou local) eda intensidade da interface entre o espaço público e o privado resultante da quantidadede oportunidades de troca entre eles. Funda-se na noção de que essa interação, chave pa-ra a existência da cidade e consecução das atividades humanas, é a oportunidade de con-tato entre os universos do público e do privado, propiciada pelas linhas de contato entrevias públicas e lotes de terra privados. Pode ser obtida pela relação entre extensão total devias existentes em uma zona urbana e a área desta zona: razão entre comprimento das viaspela área do sistema ou proporção entre áreas de quarteirão ocupadas e cobertura de ruas.Supõe-se que tramas mais permeáveis sejam mais eficientes; entretanto, considera-se queo aumento na área viária possa levar a ineficiências quanto à ocupação do espaço cons-truído, e uma distributividade tal que dispersa quantidades veiculares e pedestres para ní-veis menores que os necessários para sustentar comércios locais, por exemplo. Aqui há ou-tro problema de limiar: se baixas permeabilidades são claramente problemáticas para asdinâmicas socioeconômicas, altamente dependentes de mobilidade, permealibilidades al-tas demais impactam a proporção entre áreas de ocupação e atividade (quarteirões) e de

A F O R M A U R B A N A C O M O P R O B L E M A D E D E S E M P E N H O

172 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 173: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

movimento (rede de ruas), e consequentemente a densificação e compacidade, e a centra-lidade e intensidade de interações na cidade.

Continuidade da rede espacial: captura a importância de redes com fluidez, visibili-dade e alta conectividade de suas ruas: sistemas viários com baixa descontinuidade deseus caminhos internos têm redução em suas distâncias internas e ganhos de acessibili-dade, mobilidade e inteligibilidade, com possíveis efeitos sobre outras propriedades ur-banas como a eficiência dos padrões de localização e centralidade, e sobre formas de de-sempenho de equidade e eficiência urbanas. A aferição interna da continuidade da redesubstitui indicadores mais simples, voltados para a relação entre perímetro urbano e suaárea interna.

Mobilidade: relaciona acessibilidade topológica, distância métrica interna (depen-dente da compacidade) e alcance por meio pedestre e veicular (vinculada com a disponi-bilidade de transportes).

INDICADORES DE INFORMAÇÃO ESPACIAL

Verificam a relação cognitiva entre agente, morfologia urbana e graus de inteligibi-lidade da rede espacial, e os conteúdos práticos e semânticos de seus espaços edificadoscomo informação espacial para a navegabilidade e como meio para o conhecimento so-cial dos agentes sobre atividades sendo produzidas por outros agentes (o conhecimentodo sistema social e econômico local). Indicadores de informação espacial são relevantes naanálise das dinâmicas de apropriação do espaço e do crescimento urbano (como aspectosde reforço à interatividade e à auto-organização dos agentes), e analogamente, na aná-lise da eficiência e sustentabilidade urbanas.

Identidade: explicitamente vinculada com a leitura cognitiva, analisa a extensão dosistema de espaços públicos de uma cidade que está sob o controle da sua estrutura pri-mária, supondo que ela ancora os processos de cognição espacial e navegação urbana.

Capacidade informacional: capacidade de difusão de informação sobre atividades eagentes produzida e contida na estrutura da cidade (Faria &Krafta, 2003).

INDICADORES DE MORFOLOGIA LOCAL FRENTE A TENDÊNCIAS GLOBAIS URBANAS

Considerando o número de variáveis espaciais constituintes da morfologia urbana eseu grau de interdependência, é relevante expandir a análise do desempenho de morfolo-gias gerais da cidade ao exame das características “microestrututurais” do tecido urbano,a fim de capturar comportamentos locais e relacioná-los ao comportamento global urba-no. Naturalmente, modificações na escala local apresentam-se como manifestações detensões produzidas nas dinâmicas globais na cidade (como as tendências de adensamen-to, de atividade ou distribuição de tráfego menor ou maior em certas áreas). Modificaçõeslocais (adensamentos em lotes e quarteirões, trocas de usos, mudanças na configuracaodas ruas, reconexões), por sua vez, têm impactos sobre dinâmicas globais em vários aspec-tos: mobilidade e limiar de mobilidade, diversificação de usos, consolidação e modifi-cações na hierarquia de centralidades etc. Os indicadores mais adiante apresentam pro-priedades de relacionamento entre escalas. Quanto ao universo dos indicadores, há umconsiderável potencial para inovação neste item: instrumentos existentes tendem a focarnessas diferentes escalas como independentes, sem retroalimentação – tanto em modelosde produção do espaço (quando tendências globais de centralidade, densificação e atrati-vidade irrompem como novas edificações) como em modelos de análise de estado. A aná-lise do desempenho da morfologia em âmbito local permite estender tendências espaciais

V I N I C I U S M . N E T T O , R O M U L O K R A F T A

173R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 174: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

verificadas na escala global (como densificação ou expansão) ao seu item constitutivo: aconstituição do edifício, lotes e quarteirão.7 O indicador também oferece a possibilidadede avaliação da capacidade de tecidos locais prevendo limiares de ocupação e compactação emfunção tanto da capacidade edilícia dos lotes e quarteirões como das condições de sua ha-bitabilidade, que pode retroalimentar a análise de compacidade global da cidade, seus li-mites e seus efeitos sobre suas dinâmicas.

Continuidade da forma construída: relaciona as superfícies construídas e a extensãodas vias públicas, assumindo fachadas como suporte ao uso de pedestres e ocupação detérreos por comércio e serviços. É relacionada com a eficiência do espaço edificado em re-lação à rede pública como cenários para troca social e econômica.

Vida microeconômica: análise da morfologia das implantações edificadas quanto a seupotencial para oferta de serviços; analisa o grau de suprimento e oportunidades de ser-viços em raio de alcance pedestre; como indicadores de desempenho microeconômico(Netto, 2008a).

Socialidade: análise da morfologia das implantações quanto a seu potencial para es-timular o uso pedestre do espaço público, com possíveis benefícios, como aumento de se-gurança pública (Jacobs, 2000; Hillier & Sahbaz, 2005), constituindo um indicador decomportamento social do espaço urbano (Netto, 2008a).

A relação destes indicadores com indicadores usuais de desempenho de habitabili-dade urbana (sombreamento, ventilação, conforto sonoro etc. – veja Ratti et al., 2003)como outro limiar importante na ocupação também qualifica a análise da morfologia lo-cal. A análise local, alimentada pela consideração global da cidade, é útil sobretudo no tes-te de cenários possíveis – incluindo o impacto de decisões de planejamento sobre a densida-de e ocupação em trechos da cidade ou sobre a cidade como um todo.

INDICADORES DE DINÂMICA SOCIOECONÔMICA

Uma série de indicadores permite a análise de estado da relação entre agentes intrin-sicamente mediados pelo espaço, na instância da reprodução social.

Centralidade: identifica gradientes de diferenciação espacial no interior das cidades,correspondentes a gradientes de intensidade de atividades urbanas diversas como os flu-xos viários e de pedestres, atividade comercial etc. – relações estruturais entre configura-ção e distribuição espacial de atividades urbanas. Usos do solo adicionam à configuraçãoespacial um fator de centralidade específico, diferente para cada atividade, o que deve serconsiderado quando se procura descrever centralidade urbana (Krafta, 1994; Palma &Krafta, 2001; 2007).

Convergência: indicador de distribuição potencial de usuários de um determinadoserviço em relação a seus diversos pontos de oferta, baseados no critério de localização es-pacial, em uma análise direcionada que considera apenas os pares de unidades espaciaisque tenham como origem as localizações residenciais e como destino as que ofertam o ser-viço em questão. Denota o poder de cada ponto de oferta de serviço para capturar pro-porções de usuários distribuídos irregularmente no espaço urbano (Krafta, 1997).

Oportunidade: indicador do privilégio locacional residencial, relativamente a um ser-viço ou conjunto de serviços. Relaciona-se fortemente com a análise de equidade e efi-ciência urbanas, ao descrever as facilidades de acesso de cada ponto de localização residen-cial a um sistema de serviços existente. A população é analisada em suas localizaçõesurbanas (trecho de quadra ou esquina) e serviços detalhados por porte, atratividade, com-plexidade e tipo. Faz uso de uma análise direcionada (origens e destinos especificados),

A F O R M A U R B A N A C O M O P R O B L E M A D E D E S E M P E N H O

174 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

7 Naturalmente, esse graude análise não pode ser con-siderado na escala geral dacidade, por razões de volu-me de dados e pertinênciada informação.

Page 175: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

incluindo mobilidade de cada residente e atratividade de cada serviço. Relaciona cada lo-calização residencial a todos os serviços localizados no alcance do residente, utilizando adistância e a atratividade como variáveis discriminantes (Krafta, 1997).

Polaridade: efeito de um determinado uso do solo ou, mais especificamente, um de-terminado equipamento urbano, sobre a centralidade urbana. O indicador tensiona o ti-po de equipamento em relação a todos os consumidores possíveis, carregando os espaçosaté eles, acumulando mais em certos espaços, mais bem servidos do que em outros (Kraf-ta, 1997).

Segregação dinâmica: grau de sobreposição das redes sociais de diferentes classes ougrupos sociais no espaço urbano, considerada através das movimentações e padrões deapropriação do espaço típicas dessas categorias, incluindo atratores e a rede espacial (Net-to & Krafta, 1999; Netto, 2010).

Mobilidade: indicador que vincula acessibilidade topológica, distância métrica inter-na (dependente da compacidade) e alcance por meio pedestre e veicular (vinculado coma disponibilidade de transportes).

INDICADORES DE LIMIAR

Verificam a capacidade do sistema urbano (a estrutura espacial e suas relações às re-des de agentes) para absorver e rearranjar-se diante de mudanças em um e em outro sis-tema, ou flutuações nas interações com ambiente, região ou macroeconomia. Não se tra-ta de um indicador de “grau de ordem” ou “estabilidade,” mas da capacidade do sistemade reagir frente à natural desestabilidade dinâmica das ações de agentes em relação ao sis-tema de localizações de atividades e o estado de redes espaciais. Os indicadores de limiaresurbanos operam com os principais indicadores de dinâmicas socioeconômicas, tais comocentralidade, relacionados de forma a capturar explicitamente indícios de auto-organiza-ção e emergência de padrões urbanos face a limiares de criticalidade. Incluem, entretan-to, aspectos específicos, a saber:

Tensão estrutural: intensidade de atividade urbana, definida com base na configuraçãoe no uso do solo. Seria lógico supor que lugares de maior centralidade coincidissem comos de maior acessibilidade, já que esta denota potencial para centralidade, mas essa relaçãoapresenta dissonâncias. O indicador considera a correlação entre as posições dos espaçosnum e noutro núcleo, particularmente em cidades onde o crescimento é mais intenso.

Auto-organização: habilidade do sistema urbano em responder a forças desestruturado-ras e retomar suas dinâmicas uma vez perturbado; é a capacidade de absorver transformação.O indicador demanda conhecer relações causais entre estímulos e seus efeitos no urbano, ea maneira como ele absorve tais estímulos e se rearranja espacialmente e/ou socialmente.

Limiares de morfologia: verificam o grau de saturação dos espaços para substituição eadensamento; centralidade verifica limiares de centralidade e possibilidade de emergênciade novas centralidades urbanas; e mobilidade vincula qualidades espaciais de acessibi-lidade, continuidade da malha e mobilidade considerando limiares de saturação face à ca-pacidade das vias e quantidade de veículos.

INDICADORES DAS RELAÇÕES CIDADE–AMBIENTE

Avaliam o grau de uso e de externalidades do uso de recursos energéticos na reprodu-ção e produção urbana (risco extração indiscriminada, não sustentável), e as externali-dades negativas oriundas das interações entre sistema de agentes e sistema espacial(espaço consumido em urbanização e impactos negativos da expansão sobre o natural;

V I N I C I U S M . N E T T O , R O M U L O K R A F T A

175R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 176: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

poluição etc.). A representação do sistema ambiental se dá por valores de recursos dispo-níveis que alimentam o sistema urbano, e as externalidades dos processos urbanos sobreo ambiental. Interessa aferir esses aspectos da dependência entre ambos do ponto de vistada dinâmica urbana. Avalia recursos a serem consumidos na reprodução urbana, como:• a relação entre espaço, crescimento e consumo de áreas não urbanas (Polidori e

Krafta, 2004);• os recursos e energia usados pelo sistema urbano (disponibilidade, custo de recursos

e limiares);• as externalidades ambientais negativas das dinâmicas urbanas, como efeitos como

a poluição, que passam a prejudicar o comportamento dos agentes e do sistemaurbano.

COMBINAÇÕES: OS METAINDICADORES DE DIMENSÕES URBANAS E CATEGORIAS DE DESEMPENHO

Os indicadores do sistema de análise urbana devem ser usados de forma indepen-dente pelo planejador, permitindo analisar ora um aspecto específico (digamos, o grau deacessibilidade global de uma cidade ou de ruas em particular), ora uma dimensão do ur-bano (como o indicador de morfologia ou de qualidade espacial), ora categoria de desem-penho urbano (como o grau de sustentabilidade urbana envolvendo os itens anteriores eoutros). Devem ainda permitir aplicação de forma relacional (como a verificação de grausde acessibilidade como fator de sustentabilidade urbana). Devem, portanto, ajudar o pla-nejador a obter respostas bastante diretas a questões como “o quanto um aumento nacompacidade aumentaria a qualidade espacial ou a eficiência geral do sistema urbano emquestão”. A composição da coleção de indicadores em metaindicadores referentes às cate-gorias de desempenho e às dimensões urbanas se dá através de ponderações baseadas emmédias harmônicas dos seus indicadores específicos (Tabelas 1 e 2).

A F O R M A U R B A N A C O M O P R O B L E M A D E D E S E M P E N H O

176 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 177: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

V I N I C I U S M . N E T T O , R O M U L O K R A F T A

177R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Tabe

la1

–C

ateg

oria

sde

dese

mpe

nho

com

om

etai

ndic

ador

esur

bano

sese

usin

dica

dore

scom

pone

ntes

Met

aind

icad

orde

dese

mpe

nho

Qua

lidad

ees

paci

alEq

uida

deEf

iciê

ncia

Sust

enta

bilid

ade

urba

naIn

dica

dore

sesp

ecífi

cos

Com

paci

dade

Opo

rtun

idad

ees

paci

alC

entr

alid

ade

Qua

lidad

ees

paci

alAc

essib

ilida

deAc

essib

ilida

deO

port

unid

ade

espa

cial

Com

paci

dade

Prof

undi

dade

topo

lógi

caM

obili

dade

Con

verg

ênci

aAc

essib

ilida

deet

c.D

istrib

utiv

idad

eSe

greg

ação

espa

cial

Inte

rativ

idad

ede

rede

sEq

uida

dePe

rmea

bilid

ade

Tens

ãoes

trut

ural

Mob

ilida

deC

ontin

uida

dere

deC

ompa

cida

deSe

greg

ação

Mob

ilida

deC

ontin

uida

dede

rede

espa

cial

Efic

iênc

iaId

entid

ade

Aces

sibili

dade

Cen

tral

idad

eN

aveg

abili

dade

Mob

ilida

deO

port

unid

ade

espa

cial

etc.

Cap

acid

ade

info

rm.

Crit

ical

idad

eC

ontin

uida

dede

form

aTe

nsão

estr

utur

alM

icro

econ

omic

idad

eAu

to-o

rgan

izaç

ãoSo

cial

idad

eLi

mia

res

Hab

itabi

lidad

eC

idad

e-am

bien

teC

onsu

mo

área

sC

onsu

mo

recu

rsos

Exte

rnal

idad

esne

gativ

as

Tabe

la2

–D

imen

sões

urba

nasc

omo

met

aind

icad

ores

urba

nose

seus

indi

cado

resc

ompo

nent

esD

imen

são

urba

naM

orfo

logi

aD

inâm

ica

soci

oeco

nôm

ica

Crit

ical

idad

eC

idad

e-am

bien

teIn

dica

dore

sesp

ecífi

cos

GLO

BAL

Cen

tral

idad

eTe

nsão

estr

utur

alC

onsu

mo

área

sC

ompa

cida

deC

onve

rgên

cia

Con

sum

ore

curs

osAc

essib

ilida

deO

port

unid

ade

espa

cial

Auto

-org

aniz

ação

Exte

rnal

idad

esne

gativ

asP r

ofun

dida

deto

poló

gica

Pola

ridad

eR

esili

ênci

aD

istrib

utiv

idad

ePe

rmea

bilid

ade

Segr

egaç

ãodi

nâm

ica

Con

tinui

dade

rede

espa

cial

Mob

ilida

deLi

mia

res

Mob

ilida

deM

orfo

logi

aLO

CAL

Cen

tral

idad

eC

ontin

uida

defo

rma

Mob

ilida

deM

icro

econ

omia

Soci

alid

ade

Hab

itabi

lidad

eIN

FOR

MAÇ

ÃOES

PAC

IAL

Iden

tidad

eC

apac

idad

ein

form

acio

nal

Page 178: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

CONCLUSÃO: O DESENVOLVIMENTO DE UMMÉTODO DE ANÁLISE

O modelo conceitual para um sistema de análise de desempenho baseado em in-dicadores de fatores relacionados prevê o desenvolvimento quantitativo dos indicado-res apontados. Os metaindicadores serão construídos a partir da síntese matemática dosseus indicadores específicos componentes, cuja formulação encontra-se disponível comos autores. Alguns dos indicadores propostos serão objeto de tradução quantitativa noestágio seguinte de pesquisa. Em razão da complexidade das propriedades analisadas ea natureza e volume de suas intensidades, a pesquisa envolve a construção de uma ar-quitetura de indicadores sistêmicos na forma de método computacional, já em desen-volvimento com base nos estudos do grupo de pesquisa. Há ainda possibilidade de in-dicadores mais dirigidos, por exemplo, ao comportamento das redes sociais ou aodesempenho de trechos de escala local em uma cidade, a serem exploradas em estágioposterior da pesquisa, tal como de interatividade social, apontando as características dasredes sociais urbanas (graus de conectividade, intensidade de interações efetivas e trans-missão de informação nas relações sociais ou microeconômicas, como nas redes de pro-dução e de oferta-consumo) como item vital para a auto-organização, eficiência e sus-tentabilidade do sistema urbano, por capturar a efetivação, na forma de interações, dacapacidade de informação e de mobilidade latentes no sistema urbano. O uso dos indi-cadores deve ser, entretanto, implicado: o método deve ser útil para demonstrar possí-veis relações de causalidade, como as hipóteses referentes aos efeitos de aumentos nacompacidade urbana (Tabela 3).

Tabela 3 – Exemplos da influência de características capturadas por indicadores específi-cos sobre metaindicadoresIndicador específico Indicador dependente Dimensão urbana Categoria desempenho ↑ compacidade ? – ↑ morfologia ↑ qualidade

↑ eficiência↑ sustentabilidade

↑ compacidade ↑ centralidade ↑ dinâmica ↑ eficiência↑ sustentabilidade

↑ compacidade ↓ habitabilidade ↓ morfologia ↓ qualidade[limiar] ↓ sustentabilidade

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABRAMO, P. A cidade com-fusa: mercado e a produção da estrutura urbana nas grandescidades latino-americanas. In: Anais do XIII Encontro da Associação Nacional de Pós-Gra-duação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional. Florianópolis: Anpur, 2009.BATTY, M. Planning Support Systems: Progress, Predictions, and Speculations on theShape of Things to Come. CASA Working paper. In: http://www.casa.ucl.ac.uk/publica-tions/workingPaperDetail.asp?ID=122. Acesso em: 2007.BERTUGLIA, C.; CLARKE, G.; WILSON, A. Modelling the City: Performance, Policyand Planning. London: Routledge, 1994.

A F O R M A U R B A N A C O M O P R O B L E M A D E D E S E M P E N H O

178 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Vinicius M. Netto é profes-sor adjunto da Escola de Ar-quitetura e Urbanismo daUniversidade Federal Flumi-nense (UFF). E-mail: [email protected].

Romulo Krafta é professortitular da Faculdade de Ar-quitetura da UniversidadeFederal do Rio Grande doSul (UFRGS) e do Programade Pós-Graduação em Pla-nejamento Urbano e Regio-nal (PROPUR), e pesquisa-dor do CNPq. E-mail: [email protected].

Artigo recebido em maio de2009 e aprovado para publi-cação em setembro de 2009.

Page 179: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

BURTON, E. Measuring urban compactness in UK towns and cities. Environment andPlanning B: Planning and Design, 29(2), p.219-50, 2002.CHEN, H.; JIA, B.; LAU, S. Sustainable urban form for Chinese compact cities: chal-lenges of a rapid urbanized economy. Habitat International, p.(32), p. 28-40, 2008.FARIA, A.; KRAFTA, R. Representing urban cognitive structure through spatial differen-tiation. In: HANSON, J. (ed.) Proceedings of 4th Space Syntax International SymposiumLondon: UCL Press, p.53.1–18, 2003.HARVEY, D. Social Justice and the City. Baltimore: John Hopkins University Press,1973.HASSE, J.; LATHROP, R. Land resource impact indicators of urban sprawl. Applied Geo-graphy, (23), p.159-75, 2003.HILLIER, B.; SAHBAZ, O. High resolution analysis of crime patterns in urban streetnetworks: An initial statistical sketch from an ongoing study of a London borough. In:http://www.ipam.ucla.edu/programs/chs2007/. Acesso em: 2005.JACOBS, J. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000.KRAFTA, R. Modelling Intraurban configurational development. Environment andPlanning B: Planning and Design, (21), p.67-82. 1994.__________. Urban convergence: morphology and attraction. In: TIMMERMANS, H.(org.) Decision Support Systems in Urban Planning. London: E&FN Spon, 1997.MARTIN, L.; March, L. Urban Space and Structures. Cambridge: Cambridge UniversityPress, 1972.NETTO, V. Morfologias para uma sustentabilidade arquitetônico-urbana. In: NUTAU2008 – 7o Seminário Internacional: O Espaço Sustentável – Inovações em Edifícios e Cida-des. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2008a.__________. Practice, space, and the duality of meaning. Environment and Planning. D,Society & Space, (26), p.359-79, 2008b.__________. The segregation upon the body: sociospatial differentiation and the invisi-bility of the other. In: Everyday Life In The Segmented City, Florence, 2010.NETTO, V.; KRAFTA, R. Segregação dinâmica urbana: modelagem e mensuração. Re-vista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, (1), p.133-52, 1999.PALMA, N.; KRAFTA, R. Specific Centralities Spatial configuration linked to socioeco-nomic complementarity between urban spaces. In: Proceedings of the 3rd InternationalSpace Syntax Symposium. London: 2001.__________. POTENTIAT model: transformation and socioeconomic relationship un-der a complexity science approach. In: Proceedings of the 10th International Conference onComputers in Urban Planning and Urban Management. São Paulo, 2007.POLIDORI, M.; KRAFTA, R. Environment – urban interface within urban growth. In:Proceedings DDSS. Eindhoven, 2004.PORTUGALI, J.; CASAKIN, H. Information communication and the design of cities.In: Proceedings of the Conference on Creating Communicational Spaces. Edmonton: J Fres-cara, 2003.RATTI, C.; RAYDAN, D.; STEEMERS, K. Building Form and Environmental Perfor-mance: Archetypes, Analysis and an Arid Climate. Energy and Buildings, 35(1), p.49-59,2003. RIBEIRO, R. Índices de qualidade configuracional urbana. In: Anais do XIII Encontro daAssociação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional. Flo-rianópolis, 2009.

V I N I C I U S M . N E T T O , R O M U L O K R A F T A

179R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 180: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

RIBEIRO, R.; HOLANDA, F. Proposta para análise do Índice de Dispersão Urbana. Ca-dernos Metrópole, (15), p.49-70, 2006.WILSON, A. Urban and regional dynamics – 1: a core model. CASA Working Paper Se-ries, (128). In: http://www.casa.ucl.ac.uk/publications/workingPaperDetail.asp?ID=128.Acesso em: 2007.

A B S T R A C T The present work proposes concepts and indicators intended to graspfeatures and effects of urban form; in fact, systemic indicators defined to tackle cityscapes asrelational processes whose constituents are pervaded by mutual effects. Firstly, it brings acritique of indicators found in the literature, asserting that most indicators are featureindicators rather than performance indicators. Secondly, it advances theoretical andmethodological grounds for new indicators geared to assess the impacts of urban structure onaspects of social life, equity in the access to jobs and facilities, the efficiency of locationalpatterns in economic interactions, and the sustainability of urban reproduction. Thirdly, anew set of indicators is proposed and arranged in two major groups: (i) performance indicators(spatial quality, urban equity, efficiency and sustainability), and (ii) meta-indicators forurban dimensions (general indicators of urban morphology, socioeconomy, criticality, and city-environment relations). Finally, the paper discusses possibilities of application and furtherdevelopment, and brings mathematical definitions of the systemic indicators.

K E Y W O R D S Urban performance; systemic indicators; criticality.

A F O R M A U R B A N A C O M O P R O B L E M A D E D E S E M P E N H O

180 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

Page 181: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

RESENHAS

Page 182: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA
Page 183: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

PHILIP GUNN – DEBATES E PROPOSIÇÕES EM ARQUITETURA, URBANISMOE TERRITÓRIO NA ERA INDUSTRIAL Telma de Barros Correia (Org.)Annablume, FAPESP, São Paulo, 2009

Celso Monteiro Lamparelli Professor titular da FAU-USP

O livro Philip Gunn – Debates e proposições em ar-quitetura, urbanismo e território na era industrial, orga-nizado por Telma de Barros Correia, professora doCurso de Arquitetura da EESC-USP, apresenta cincotextos dentre os inúmeros produzidos por PhilipGunn, professor titular da FAU-USP, que nos deixouprematuramente. As leituras da “Apresentação”,“Philip Gunn: uma trajetória intelectual”, e do “Prefá-cio”, “O século XX como objeto de história ou Phil e astrês estrelas”, escritos respectivamente pela organizado-ra e pela professora da Faculdade de Arquitetura da UF-

BA, Ana Fernandes, nos comoveu profundamente, ecertamente isso acontecerá com os demais amigos quetambém sentem sua falta.

Os títulos do livro e dos seus capítulos são claros,precisos e representam, admiravelmente, os principaisinteresses de Philip Gunn como pesquisador, professore viajante incansável. Os leitores encontrarão em cadaum deles, os resultados das cuidadosas pesquisas emmúltiplas fontes, documentos, entrevistas e observa-ções diretas que passaram pelo crivo de suas posiçõesteórico-metodológicas e interpretação crítica.

Os dois primeiros capítulos, “O paradigma da ci-dade-jardim na via fabiana de reforma urbana” e “Asquerelas do urbanismo nos anos vinte e trinta”, reto-mam temas bastante explorados, mas são inovadores, erepresentam valiosas contribuições para a historiogra-fia de dois períodos marcantes nos processos de urba-nização induzidos pela industrialização.

O primeiro capítulo procura situar os movimen-tos de reforma urbana nas Ilhas Britânicas com desta-que para a contribuição da Sociedade Fabiana e suaspropostas nas dimensões política, fiscal e administrati-va, além de incorporar uma análise dos modelos utópi-

183R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

cos das cidades-jardins de Ebenezer Howard. Mas, aoapresentar a “noção de uma via fabiana de reforma ur-bana”, o autor ressalta: “Este artigo, entretanto, nãopretende passar a ideia de que o projeto de cidade-jardim de Howard se transformou numa utopia espe-cificamente Fabiana, apesar de vários autores citaremHoward, Unwin e Parker como fabianos” (p.19).

O texto também salienta o papel do paradigmada reforma urbana defendido pelos adeptos da posiçãosocialista da Sociedade Fabiana, com ênfase nas fun-ções regulatórias do Estado. Disserta com mais deta-lhes como as novas exigências do novo mercado de tra-balho no capitalismo fabril, mesmo não dispensando o“saber fazer” dos operários, altera as relações entre ca-pital e trabalho na Inglaterra e na Europa. Dedica al-gumas páginas às mudanças do modo de produção in-dustrial, à nova relação capital–trabalho, à revisão dosaber e das práticas urbanísticas e à história do movi-mento socialista britânico.

Como aprofundamento do seu olhar para a tra-ma da história, na passagem do século XIX para o XX,abre o subtítulo “As raízes de economia política noparadigma da cidade-jardim”, em que realiza uma ex-celente revisão da literatura sobre a época, demons-trando sua erudição e suas preferências. O eixo da ar-gumentação continua sendo a evolução da SociedadeFabiana como movimento socialista atuando em múl-tiplas questões, inclusive na reforma urbana em plenodesenvolvimento. Nos subtítulos “Versões fabianas darenda de terra” e “A herança fabiana e Letchworthcomo ‘ponto de virada’”, Philip Gunn revisita as dis-cussões e posições das diferentes correntes de pensa-mento, o que nos proporciona poder apreciar a indis-sociação entre história e arquitetura presente emGunn – como o arquiteto se torna historiador.

Ao recuperar a gênese do planejamento urbanoneste primeiro capítulo, o leitor pode sentir o peso dacomplexidade contida num simples modelo, cidade-jardim, que aprendemos a admirar e discutir desde osprimeiros sonhos de estudante.

No segundo capítulo, “As querelas do urbanismonos anos vinte e trinta”, a narrativa deixa para traz aPrimeira Grande Guerra e, para demonstrar a posiçãode recuo em relação ao paradigma da cidade-jardim,inicia com um trecho da conferência de Philip Arctan-der no XXXI Congresso Mundial da IFHP (Internatio-nal Federation of Housing and Planning): “Planeja-

Page 184: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

mento não é um plano, planejamento é um processo.O planejador não faz ‘os canais em que a vida flui’…”.Esta citação representa o fim do ciclo de racionalidademecanicista, incitando o debate entre as duas princi-pais posições, separadas pelo Canal da Mancha, sobreurbanismo e planejamento urbano no interregno dasduas Grandes Guerras.

A pesquisa bibliográfica realizada permite ao autoruma penetrante interpretação das trajetórias históricasdas duas posições: • a do projeto da cidade-jardim que se difunde em di-

ferentes modos de realização nas primeiras décadasdo século XX e se incorpora a outras realizações dosprofissionais de Town-Planning organizados no In-ternational Federation for Town and Country Plan-ning and Garden Cities (IFTPGC). Esta análise por-menorizada pode ser apreciada nos sete primeirossubitens dedicados a este projeto em suas gêneses,complexidades, múltiplas formas de aplicação e des-dobramentos nas práticas urbanísticas nos países sobinfluência britânica;

• a do Movimento da Arquitetura Moderna com suaspropostas urbanísticas difundidas pelos CongressosInternacionais de Arquitetura Moderna (CIAMs) eaplicadas pelos seus associados, tema tratado nos úl-timos três subitens.

Para terminar o capítulo o autor reafirma sua crí-tica: “No CIAM o mecanicismo do século XIX chegou aum novo patamar. Sua ascendência no fim dos anos trin-ta abre e prepara o caminho para o reino dos sistemasnos planejamenteiros dos anos quarenta e cinqüenta”.

O terceiro capítulo, “Frank Lloyd Wright e a pas-sagem para o fordismo”, o autor explicita uma inusita-da interpretação da vida e obra do grande arquitetoamericano, cujos objetivos são assim resumidos: “Aprópria tentativa de uma leitura da obra de Wrightatravés da Escola da Regulação representa uma ruptu-ra com as interpretações existentes baseadas na teoriada urbanização. Esta ruptura constitui o objeto da pri-meira parte deste artigo, enquanto a aplicação dos con-ceitos da Escola da Regulação à obra de Wright é dis-cutida ao final” (p.81-2).

Inicialmente apresenta a Escola da Regulação co-mo objeto teórico e, posteriormente, sua aplicação nosdois principais períodos da história econômica dos Es-tados Unidos: o período anterior à grande crise dosanos trinta dominado pelo processo extensivo de acu-

R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 1 1 , N . 2 / N O V E M B RO 2 0 0 9184

R E S E N H A S

mulação capitalista, e o período após os anos trinta,com a predominância da forma intensiva da acumula-ção capitalista. Na mesma dicotomia, são desenvolvidasas posições e atuações de Wright, inicialmente com osargumentos pró-agrários e as críticas às grandes cidades.

O capítulo introduz o princípio da fronteira e domaterialismo geográfico como bases fortes da ideologiadominante na passagem do século XIX para o XX e seuenfraquecimento a partir dos anos trinta, preparandoas mudanças de posição de Wright num segundo pe-ríodo, que o autor interpreta como: “O caminho paraa acumulação intensiva iria encerrar outras tantas críti-cas socialmente conservadoras, contudo, o que deve serressaltado é a maneira como Frank Lloyd Wright tam-bém viria igualmente a ser porta-voz de outros aspec-tos do novo modo de acumulação” (p.93).

As mudanças de Wright são comprovadas no seudiscurso, nos projetos e obras como a proposta utópicada Broadacre City, e das casas pré-fabricadas usonianas.

Em “Transições no planejamento modernista defábricas em São Paulo, 1945-1955: a influência dasideias de projetos inglesas e americanas” concentra-sena história da arquitetura fabril, desenvolvida em re-giões de maior crescimento da indústria paulista nafase de transição dos prédios tradicionais para os pro-jetos modernos das grandes indústrias.

Nos esforços de guerra, as indústrias inglesas eamericanas aceleraram suas produções e acumularamexperiências, dando origem à expressão “enxuta e efi-caz” para qualificar a excelência dos prédios industriais.O autor recupera grande parte dessas experiências,mostrando o amadurecimento das concepções fordis-tas para a aceleração da produção. Com inúmeras cita-ções, referências bibliográficas e ilustrações, o capítulopropicia um enriquecimento da historiografia daarquitetura fabril. Mais uma vez Gunn mostra sua ma-neira abrangente de conduzir suas pesquisas e seu mé-todo de expor um problema: em 35 páginas são con-catenados desde os fatos das práticas do projeto, ossistemas construtivos, a eliminação das atividades derecreação nos programas das fábricas, até as novas rela-ções de salário e as particularidades do “fordismo” bra-sileiro em São Paulo.

O quinto capítulo, “A indústria automobilísticanos anos recentes: as inflexibilidades da globalização”,desloca o objeto de estudo para fins de século XX. Nosubtítulo inicial, “Mudança nos termos de um debate”,

Page 185: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

o texto prepara a análise desenvolvida no segundo subi-tem “A geopolítica de ‘globalização’ na década de1980”. Um parágrafo (p.142) resume os objetivos destecapítulo: “Neste trabalho analisam-se três temas, neces-sários para uma compreensão dos problemas enfrenta-dos na indústria automobilística brasileira e particular-mente nos segmentos sediados no município de SãoBernardo do Campo. Em primeiro lugar a globalizaçãoda produção; em segundo lugar as aplicações de moder-nização tecnológica com novos modos de organizaçãodo trabalho; e em terceiro lugar as inovações nas rela-ções empresariais e nas relações empresa/governo”.

Estes três temas estão presentes de uma forma ououtra nos cinco textos escolhidos para o livro objetodesta resenha e, mesmo sendo tratados em épocas epaíses diferentes, explicitam as preocupações e as li-nhas de pesquisa do colega e amigo Phil, cujos resulta-dos fazem parte do grande legado que nos deixou.

VIVER EM RISCO – SOBRE A VULNERABILIDADE SOCIOECONÔMICA E CIVIL Lúcio KowarickSão Paulo: Editora 34, 2009

Cibele Saliba Rizek Profa. livre docente do Depto. de Arquitetura e

Urbanismo da USP/São Carlos e pesquisadora do CNPq

Este livro se dedica a descrever e analisar a vulne-rabilidade ou, mais precisamente, as vulnerabilidadesque caracterizam as condições de vida da populaçãopobre da maior cidade brasileira. Produzido a partir deuma longa trajetória de pesquisa e reflexão, é uma fon-te preciosa de informações, mas também de questõesque se repõem a cada capítulo, nos quais se ancoramconceitos e dimensões teóricas como matrizes que po-dem e devem ser interrogadas, merecer contrapontos,passar pelo crivo dos processos e das dinâmicas obser-vadas e, assim, em confronto com o presente, passarpor atualizações. São velhas e novas questões relativas àheterogeneidade da pobreza urbana, da população vul-nerável, nomeada e observada de perto por meio dassituações de moradia precária – cortiços na área cen-tral, periferias autoconstruídas e favelas.

185R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

R E S E N H A S

Lúcio Kowarick, como se sabe, tem um lugarúnico por sua longa e fértil trajetória na pesquisa e naelucidação dos enigmas urbanos brasileiros. Não é de-mais lembrar, entre outros títulos, São Paulo – 1975.Crescimento e pobreza (Camargo, C. P. F.; Cardoso, F.H.; Kowarick, L. et al., São Paulo, Edições Loyola,1976), A espoliação urbana (São Paulo, Editora Paz eTerra, 1980) ou Escritos urbanos (São Paulo, Editora34, 2000), em que algumas das questões presentes emViver em Risco já estavam se desenhando. Mas se Escri-tos urbanos apontam temas e desdobramentos cujospontos de inflexão constituem uma coletânea de en-saios sobre os temas então emergentes, na virada domilênio, Viver em risco traz um novo panorama. Partedos achados do livro é resultante de incursões etnográ-ficas que fornecem os elementos e informações analisa-dos a partir de uma ancoragem histórica, assim comode uma visão sociológica construída, inclusive, combase em informações estatísticas secundárias. Este cru-zamento de fontes de pesquisa permitem que as três si-tuações urbanas – cortiços, favelas e periferias – ofere-çam, com a ajuda das fotografias de Antonio Saggese,um quadro muito preciso do que significa viver em ris-co na São Paulo de nossos dias.

Se as etnografias são inéditas, parecem instigartambém novas incursões no debate sobre as vulnerabi-lidades e a pobreza, novas proposições para duas arti-culações teórico-conceituais – a norte-americana e afrancesa – como horizontes que propõem ângulos devisão e formas de inserção e de diálogo entre a produ-ção acadêmica, a ordenação social e as proposiçõespolíticas. Os ecos e ressonâncias destes contrapontostambém se fazem sentir na produção brasileira, quergraças a essas literaturas e à sua utilização em pesqui-sas e investigações empíricas, teses e dissertações, pu-blicações, quer porque, imersas em nossas especifici-dades, as questões relativas ao vínculo entre produçãoacadêmica, ordenação social e proposições políticas te-nham passado por redefinições e inflexões nesse últi-mo decênio, o que também redesenhou legitimidades,constituiu novos consensos ou novos modos de encap-sulamento e isolamento da reflexão sobre as cidades,para além das práticas e dos modos mais ou menosimediatos de gestão urbana. Assim, o livro recoloca osdois grandes feixes de leitura da pobreza urbana e desuas vulnerabilidades, tal como se se redefiniram de-pois do esgotamento das sociedades salariais constituí-

Page 186: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

das ou imaginadas como horizonte a ser alcançado: adiscussão americana, pautada pela individualização epela ótica da culpabilização das vítimas, mais ou me-nos moduladas pelo debate entre conservadores e libe-rais; e, por outro lado, a discussão francesa em tornoda responsabilização do Estado pelas formas da “ex-clusão” e pelo seu combate, contra o que se identifi-cou como fratura social ou desfiliação. Uma ascensãoconservadora em torno das responsabilidades indi-viduais como contraponto ao Estado do bem-estar,por um lado – o que de resto se comprova nas dificul-dades recentes em alterar o sistema de saúde públicanos EUA –, e, por outro, a forte tradição republicanaapoiada nas virtudes cívicas e na solidariedade em tor-no do Estado como elemento central, também bastan-te alquebrada e questionada pelo governo Sarkozy, en-tre outros, na França, demonstram a importânciaestratégica desse debate. Apontam também para umembate entre perspectivas distintas e ao mesmo tempodistanciadas das matrizes explicativas da vulnerabi-lidade socioeconômica e civil na sociedade brasileira ena cidade de São Paulo, em particular.

A vulnerabilidade brasileira e paulistana, analisa-da no Capítulo 2, nem se vincula estreitamente à ma-triz norte-americana, nem à francesa. Está emolduradapela superação de um déficit de democracia política epela longa e persistente permanência de um déficit dedireitos civis e sociais. Lúcio Kowarick, na procura dacaracterização de nossa especificidade, remonta odebate brasileiro, desde a questão da marginalidade ede seus desdobramentos e articulações com a teoria dadependência, passando pelas críticas e desdobramentosem torno das questões do chamado “desenvolvimentodependente”, das formas de exclusão e inclusão perver-sa e funcional, instável e precária. Uma citação parecedar o tom dessa recuperação dos marcos teóricos emsuas atualizações brasileiras e latino-americanas: “se osocialismo saiu do horizonte dos ideais e das utopias ese, ademais, a ideia de revolução perdeu força mobili-zadora porque, entre outras razões, como Saturno, elatem devorado seus filhos, permanece o vasto fosso quecaracteriza o apartheid social de nossas cidades” (p.75).Entre as “experiências de derrota” e a mentalidade deextermínio, as estratégias de evitação, a desconfiança eo medo como elementos estruturadores da sociabili-dade, Lúcio Kowarick nos apresenta uma pergunta que desenha diálogos e confrontos entre perspectivas:

“quais discursos e ações dão conteúdo às questões so-ciais de nossa atualidade urbana em torno da proble-mática da desigualdade e injustiça?” (p.95). Insatisfei-to com as versões que explicam essa atualidade a partirde uma espécie de maldição de origem essencializadaem um ethos de tristeza, cordialidade, miscigenação econciliação, persegue as questões de pesquisa a que sepropôs enfrentar, em busca de algumas respostas e denovos desafios que tragam para o primeiro plano osmodos de vida da população em situações de vulnera-bilidade urbana, o que permite apreender um movi-mento pendular entre o reconhecimento de perma-nências e a constatação de sinais de transformação.

O primeiro feixe de questões, itinerários e perso-nagens se desenha a partir do centro da cidade de SãoPaulo e de seus cortiços. Nômades urbanos, andarilhosde lugar em lugar, de emprego em emprego, de cortiçoem cortiço, em contiguidade com migrantes que cons-tituíram famílias e se instalaram de modo um poucomais estável em casas de cômodos, a questão da proxi-midade que caracteriza a moradia no centro ganha ni-tidez. Potencialidades e vulnerabilidades, políticas ur-banas moldadas por diferentes concepções – que oraenfatizam a participação ora a delegação –, além dasfotografias que flagram fluxos e situações da cidade,permitem que a experiência de seus moradores, flagra-da em sua história, em suas dimensões sociológicas eetnográficas, tomem corpo.

A periferia e as moradias autoconstruídas são ob-jeto do capítulo seguinte, sua constituição como mo-mento da história da cidade e como conformação ter-ritorial comparece acompanhada de seu duplo – a casaprópria autoconstruída e seus significados. Ao gosto ede certo modo como uma necessidade da estruturanarrativa e de análise, o capítulo termina com um per-gunta – vale a pena construir? – e muitas respostascomplexas, difíceis, variáveis, “mas, na opinião daque-les que entraram neste espoliativo processo, no finaldas contas, por vários motivos, se chega a uma opiniãofavorável: apesar de todos os pesares” (p.219).

O Capítulo 5 discute a forma mais recente de mo-radia popular na cidade – as favelas. É preciso observarque favelas e periferias são lugares de algum estranha-mento recíproco, ainda que se aproximem crescen-temente, tanto territorialmente quanto como modos de inserção urbana. Alvo de políticas públicas e de in-tervenções as mais variadas, portadoras de estigmas e

R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 1 1 , N . 2 / N O V E M B RO 2 0 0 9186

R E S E N H A S

Page 187: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

objeto de violência simbólica e real, as favelas são a for-ma de moradia de algo como 8,7% da população da ci-dade. Entre urbanizações e remoções, entre ter e não terdireitos, ter e não ter a propriedade do terreno, esta po-pulação bastante heterogênea se equilibra, ora se estabe-lecendo, ora – quando possível –, desejando se mudar.

Nos três capítulos sobre as situações de moradia ede vulnerabilidade uma questão se faz presente, atra-vessando práticas, discursos e formas de um saber quenasce no solo dessas experiências. Trata-se das dimen-sões da violência, frequentemente agravadas pela im-posição do silêncio, que modulam relações e modos devida com seu crescimento. Na percepção de vulnerabi-lidades e de violências, na experiência do desrespeito ena denegação do reconhecimento e dos direitos, ga-nham corpo as heterogeneidades, as vantagens e des-vantagens das situações de moradia e de inserção urba-na daqueles que vivem em risco, que vivem na cordabamba na maior e mais rica cidade brasileira. Uma úl-tima referência dá concretude ao título deste livroindispensável para quem deseja conhecer as quebradas,a viração, os modos de morar das classes populares da cidade de São Paulo: em todas as situações de pes-quisa (loteamentos, favela e cortiços), “os entrevistadosconhecem o local onde estão os bandidos... tiveramparentes próximos assassinados, viram pessoas mortaspelas ruas e todos sabem onde se localizam os trafican-tes... Também as crianças não são poupadas, pois se fa-lasse o assassino ‘vinha me pegar’, diz o menino de seteanos (...) são trabalhadores que evitam e temem a pre-sença de criminosos, pois sabem do perigo de ser atin-gido pelas balas ou ser confundido pelo arbítrio daação policial: a sensação de ‘viver em risco’ é algo arrai-gado no cotidiano das pessoas, principalmente nos lo-cais ermos, mal iluminados, onde a política só chegadepois do crime” (p.297). Depois de descrever este vi-ver em risco, como alguém que acompanhou e anali-sou os movimentos sociais da cidade, Kowarick con-clui seu livro com um aceno menos sombrio: “É deesperar que a ‘experiência do desrespeito’... venha a seconstituir na matéria-prima de resistência e lutas cole-tivas que façam os grupos escanteados escaparem davulnerabilidade socioeconômica e civil que caracterizao cotidiano de suas existências” (p.301). Talvez o tomde aposta traga uma esperança e um quê de nostalgiade um autor fiel aos temas e questões que brotam daexperiência social na cidade e da cidade de São Paulo.

187R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

R E S E N H A S

Page 188: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA
Page 189: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

189R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

ESTUDOS URBANOSE REGIONAIS

REVISTA BRASILEIRA DE

publicação da associação nacional de pós-graduação

e pesquisa em planejamento urbano e regional

NORMAS PARA PUBLICAÇÃO

1) São publicados apenas textos inéditos. Todos os artigos recebidos são submetidos a dois pareceristas, que recomen-dam ou não a publicação.

2) Envio do texto:Os trabalhos devem ser encaminhados em CD ou DVD (Word 6.0 ou 7.0) e em (1) uma via impressa. O arquivo e a via impressa do texto não devem conter qualquer identificação do(a) autor(a).Devem constar em arquivo e folha separados:a) Um resumo em português e outro em inglês, contendo entre 100 (cem) e 150 (cento e cinquenta) palavras, comindicação de 5 (cinco) a 7 (sete) palavras-chave.b) Nome do(a) autor(a), formação, titulação acadêmica, atividade que exerce, instituição em que trabalha, e-mail, te-lefone e endereço para correspondência.

3) Os textos devem ter, no máximo, 20 (vinte) páginas, incluindo tabelas, gráficos, figuras e referências bibliográficas.Fonte Arial tamanho 11, margens 2.5, espaço 1,5. Tabelas e gráficos em Excel.

4) Todas as figuras devem ser enviadas em grayscale, em formato EPS ou TIF, com resolução de 300 dpi (figuras colori-das devem ser readequadas a esse padrão).

5) O título e os subtítulos deverão ser ordenados da seguinte maneira: Título 1: Arial, tamanho 14, normal, negrito; Tí-tulo 2: Arial, tamanho 12, normal, negrito; Título 3: Arial, tamanho 11, itálico, negrito.

6) Critérios bibliográficos:As referências bibliográficas devem seguir as normas estabelecidas pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).As referências bibliográficas deverão ser colocadas no final do texto, em ordem alfabética, de acordo com os exem-plos abaixo para LIVRO e ARTIGO:

BENEVOLO, L. História da arquitetura moderna. São Paulo: Perspectiva, 1981.GODARD, O. “Environnement, modes de coordination et systèmes de légitimité: analyse de la catégorie de patrimoine naturel”. Revue Economique, Paris, n.2, p.215-42, mars 1990.

Se houver até três autores, todos devem ser citados; se mais de três, devem ser citados os coordenadores, organizado-res ou editores da obra, por exemplo: SOUZA, J. C. (Ed.). A experiência. São Paulo: Vozes, 1979; ou ainda, a expres-são “et al.” (SOUZA, P. S. et al.). As menções a autores, no correr do texto, seguem a forma (Autor, data) ou (Autor, data, página), como nos exem-plos: (Harvey, 1983) ou (Harvey, 1983, p.15). Se houver mais de um título do mesmo autor no mesmo ano, eles sãodiferenciados por uma letra após a data: (Harvey, 1983a) (Harvey, 1983b) etc. Quando não houver a informação, utilizar “s.n.”, “s.l.” e “s.d.” para, respectivamente, sine nomine (sem editora), sineloco (sem o local de edição) e sine data (sem referência de data)

9) Colocar como notas de rodapé apenas informações complementares e de natureza substantiva, sem ultrapassar 3linhas, em fonte Arial, tamanho 9.

10) Os editores se reservam o direito de não publicar artigos que, mesmo selecionados, não estejam rigorosamente deacordo com estas normas.

Os trabalhos devem ser encaminhados para:Prof. Assoc. Sarah Feldman – Editora ResponsávelUniversidade de São Paulo, EESC – Depto de Arquitetura e UrbanismoAv. Trabalhador Saocarlense, 400, CEP 13566-590 – São Carlos – SP 31270 901 Email: [email protected]

Page 190: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA
Page 191: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

191R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

ESTUDOS URBANOSE REGIONAIS

REVISTA BRASILEIRA DE

publicação da associação nacional de pós-graduação

e pesquisa em planejamento urbano e regional

VENDAS E ASSINATURAS

EXEMPLAR AVULSO: R$ 25,00À venda nas instituições integrantes da ANPUR e nas livrarias relacionadas nesta edição.

ASSINATURA ANUAL (dois números): R$ 45,00

Pedidos podem ser feitos à Secretaria Executiva da ANPUR, enviando a ficha abaixo e um cheque nominal em favor da:

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISAEM PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL – ANPUR

(Gestão 2009 – 2011) Programa de Pós-graduação em Geografia

Centro de Filosofia e Ciências Humanas – CFH

Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC

Campus Universitário, Trindade, CEP 88.040-900 – Florianópolis / SC

E-mail: [email protected]: [55] 48 37219983

Preencha e anexe um cheque nominal à Anpur

Assinatura referente aos números ____ e ____.

Nome: __________________________________________________________________________________

Rua: _______________________________________________________ nº:________ Comp.: _________

Bairro: ______________________________________________________ CEP: _______________________

Cidade: _______________________________________ UF:______________________________________

Tel.: ______________________ Fax: ________________________ E-mail: __________________________

Instituição e função: ________________________________________________________________________

Data______________ Assinatura _________________________________________

Page 192: A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA