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VI Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar 20 a 24 de setembro de 2010 ISSN 2177-0417 - 373 - PPG-Fil - UFSCar A relação representação – sujeito – homem em As palavras e as coisas, de Michel Foucault Fillipa Silveira UFSCar/ Pós-Graduação em Filosofia (Doutorado) CAPES Resumo: Este artigo pretende interpretar determinadas passagens do texto As palavras e as coisas de Michel Foucault onde os conceitos de representação, de sujeito e de homem são tratados de maneira explícita e significativa. O propósito é o de examinar de uma maneira aproximativa o significado de cada um destes elementos nessa obra, além de testar a possibilidade de compreendê-los numa relação de co-implicação sequencial. Isto quer dizer que cada um dos elementos supra-citados emergiria de dentro da exposição do elemento anterior. As passagens a serem examinadas encontram-se no capítulo 3 da parte I (Representar) e na parte II da obra, que anuncia os limites da representação e o nascedouro do sujeito do conhecimento, que estaria vinculado, numa relação ainda a ser examinada, ao nascimento do homem – objeto das ciências humanas. A pergunta diretora do artigo seria: Qual o lugar do sujeito ou da subjetividade na representação e, no sujeito, o lugar arqueológico do homem? O artigo se insere no contexto de uma pesquisa mais ampla que procura localizar a relação entre sujeito e homem na filosofia e indicar um espaço viável para a pergunta antropológica no entrecruzamento da filosofia e das ciências humanas, mais especificamente da antropologia cultural. Palavras-chave: representação – sujeito – homem – antropologia As palavras e as coisas não é, a rigor, um texto de filosofia, apesar de encerrar, sem dúvida, uma epistemologia. O pensamento de Foucault passeia de tal maneira por entre os liames de diferentes ramos do saber que encontra, exatamente aí, o solo fecundo do desenvolvimento de importantes questões filosóficas. A inclinação de Foucault para outras disciplinas e o tratamento das questões de acordo com um viés distinto daquele da tradição filosófica o colocaria numa posição de crítico imparcial destas mesmas questões, como se nosso autor falasse a partir de um ponto neutro. Mas não parece ser isso o que ocorre. Parece haver antes uma valorização dos elementos históricos e empíricos na configuração dos saberes dos quais a própria filosofia seria apenas um expoente. O texto de 1966 tem o propósito de fazer uma arqueologia das ciências humanas, mas, para além disso, discute a fundo questões típicas da filosofia ocidental como o conceito de representação, a questão do sujeito, e a pergunta antropológica. É, sobretudo, a pergunta antropológica o aspecto que move os anseios intelectuais do

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ISSN 2177-0417 - 373 - PPG-Fil - UFSCar

A relação representação – sujeito – homem em As palavras e as coisas, de Michel

Foucault Fillipa Silveira

UFSCar/ Pós-Graduação em Filosofia (Doutorado) CAPES

Resumo: Este artigo pretende interpretar determinadas passagens do texto As palavras

e as coisas de Michel Foucault onde os conceitos de representação, de sujeito e de homem são tratados de maneira explícita e significativa. O propósito é o de examinar de uma maneira aproximativa o significado de cada um destes elementos nessa obra, além de testar a possibilidade de compreendê-los numa relação de co-implicação sequencial. Isto quer dizer que cada um dos elementos supra-citados emergiria de dentro da exposição do elemento anterior. As passagens a serem examinadas encontram-se no capítulo 3 da parte I (Representar) e na parte II da obra, que anuncia os limites da representação e o nascedouro do sujeito do conhecimento, que estaria vinculado, numa relação ainda a ser examinada, ao nascimento do homem – objeto das ciências humanas. A pergunta diretora do artigo seria: Qual o lugar do sujeito ou da subjetividade na representação e, no sujeito, o lugar arqueológico do homem? O artigo se insere no contexto de uma pesquisa mais ampla que procura localizar a relação entre sujeito e homem na filosofia e indicar um espaço viável para a pergunta antropológica no entrecruzamento da filosofia e das ciências humanas, mais especificamente da antropologia cultural. Palavras-chave: representação – sujeito – homem – antropologia

As palavras e as coisas não é, a rigor, um texto de filosofia, apesar de encerrar,

sem dúvida, uma epistemologia. O pensamento de Foucault passeia de tal maneira por

entre os liames de diferentes ramos do saber que encontra, exatamente aí, o solo

fecundo do desenvolvimento de importantes questões filosóficas. A inclinação de

Foucault para outras disciplinas e o tratamento das questões de acordo com um viés

distinto daquele da tradição filosófica o colocaria numa posição de crítico imparcial

destas mesmas questões, como se nosso autor falasse a partir de um ponto neutro. Mas

não parece ser isso o que ocorre. Parece haver antes uma valorização dos elementos

históricos e empíricos na configuração dos saberes dos quais a própria filosofia seria

apenas um expoente.

O texto de 1966 tem o propósito de fazer uma arqueologia das ciências

humanas, mas, para além disso, discute a fundo questões típicas da filosofia ocidental

como o conceito de representação, a questão do sujeito, e a pergunta antropológica. É,

sobretudo, a pergunta antropológica o aspecto que move os anseios intelectuais do

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nosso autor desde a década de 50�� que mais interessa ao presente artigo. As palavras e

as coisas objetivou, numa clara crítica à tradição humanista, às correntes

fenomenológicas, ao kantismo, enfim, indicar que o conceito de homem, que teria

impregnado de tal maneira o saber ocidental desde o final do século XVIII, nasce, com

efeito, de apenas uma “dobra” (pli) na passagem de um a outro paradigma (épistémè) do

pensamento. O homem seria uma invenção. E como toda invenção, criação, estaria

fadado ao fim, com o possível advento de uma nova épistémè, uma nova configuração

do saber na modernidade.

Há uma razão bastante importante para o desenvolvimento desta pequisa, que

procura fazer um apanhado da pergunta antropológica no decorrer do pensamento

filosófico com o intuito de investigar sua relevância ainda nos dias atuais, que o referido

texto se debruce sobre a questão das ciências humanas. É que tais ciências correm

paralelamente ao desenvolvimento da questão filosófica sobre o homem, alimentando-se

dela e constituindo todo um espaço empírico de investigação deste ser histórico, social,

e dotado de uma dimensão interior, ou psicológica. Contudo, este vem a ser apenas um

apêndice, uma decorrência recente do saber antropológico que já se viu diante de

inúmeros outros entraves como o problema dos humanismos e anti-humanismos, do

racionalismo e suas consequências, e da metafísica essencialista e dualista que desde os

princípios da filosofia fixou e cindiu o homem e sua suposta natureza.

A ciências humanas seriam esta novidade do saber que, não encontrando espaço

estruturado no triedro dos saberes de Foucault, parasitaria as outras ciências, tendo a

noção de homem como conceito chave e oscilando entre a positividade do saber e uma

espécie de domínio transcendental da pergunta antropológica.

A questão da representação e a do sujeito são examinadas nessa arqueologia,

também no contexto do que ele denomina “positividades do saber”, quais sejam a vida,

o trabalho e a linguagem. É que estes domínios do saber são, para nosso autor, tão

determinantes para a constituição dos saberes em geral, quanto o kantismo enquanto

divisor de águas na filosofia. Tanto que o capítulo VII, intitulado Os limites da

�� Uma espécie de inquietude antropológica permeia o conjunto de pesquisas de Foucault desde a década de 50, o que vem a culminar na arqueologia das ciências humanas. O conteúdo deste pensamento inclui a crítica a um crescente movimento de antropologização da filosofia nos séculos XIX e XX, como decorrência da valorização da filosofia kantiana: o homem teria sido erigido como uma estrutura autônoma, como uma certeza fundadora do saber. Cf. D. Defert. F. Ewald et. al. Présentation. In : M. Foucault. Introduction à l’Anthropologie, 2008, pp. 7-9.

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representação terminará com a tese de que estas positividades ganham, no avento da

idade moderna, um estatuto transcendental (FOUCAULT, 2002, p.335-337).

O conceito de representação tem um sentido polimórfico para a filosofia.

Destaquemos dois sentidos principais. De um lado, temos a representação como a

capacidade da parte de expressar um todo, e o uso do conceito destaca-se no

pensamento de Leibniz, em que cada mônada é a parte expressiva do todo do universo

(LALANDE, 1993, p.953-954). De outro, representar tem um sentido que será bastante

caro não só ao kantismo, mas em boa parte da filosofia alemã, e que consiste no

“colocar diante” (vor-stellen), a colococação do objeto para um sujeito. Em suma: o ato

de fazer algo tornar-se “presente ao espírito”, e que guarda íntimas relações também

com o sentido que o verbo représenter tem em francês (se représenter = imaginar)

(LALANDE, 1993, P. 953-954). Tais acepções não são eximidas da investigação

foucauldiana do tema da representação. No entanto, ela será tratada como um advento,

como um crivo arqueológico, um marco da delimitação e da passagem da épistémè do

Renascimento à idade clássica.

Dese modo, a representação guarda em si uma relação. Ela é a apresentação de

algo para um espírito, uma consciência, um sujeito, poderíamos dizer. É estranho,

porém, que o o sujeito, aquele para o qual a representação seria representação não é

explorado a esta altura do texto de Foucault. Qual o lugar do sujeito na representação tal

qual examinada em As palavras e as coisas? Esta insígnia característica do pensamento

moderno tem um nascimento arqueológico posterior, como veremos adiante.

Durante o período que a arquelogia de Foucault identifica como Renascimento,

reinaria uma espécie de harmonia entre a linguagem e mundo. É a idade do acordo, do

encontro, da semelhança, da similitude enfim, como se as palavras estivessem

efetivamente “depositadas”, “assinaladas na superfície das coisas”, e dadas à

interpretação (FOUCAULT, 2002, p.36). A épistémè do Renascmento gira em torno do

idêntico da assinalação.

Com a passagem do Renascimento à épistémè clássica, dá-se o advento daquilo

que marcaria para sempre o teor do pensamento ocidental: a cisão, a fissura ontológica e

epistemológica da relação palavras/coisas, o desacordo entre o pensamento e o mundo.

É o início da era da diferença. O método e a linguagem foucauldianos identificam aí o

que a filosofia em muitas teorias da correspondência compreenderam como o antigo

problema da relação linguagem/mundo, e que a tradição fenomenológica, sobretudo,

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identifica ao nascimento e à ruptura da metafísica moderna. É o tempo do Barroco, diz

Foucault, a era do erro, do desencontro: “as similitudes decepcionam, conduzem à visão

e ao delírio” (FOUCAULT, 2002, p. 65). Os sentidos são questionados em sua validade

epistemológica e o espírito científico e racionalista põe em cheque a ingenuidade do

espírito humano, que cria encontrar entre a natureza e o conhecimento uma relação de

concordância: “A Idade Clássica instaura o racionalismo e a ordem científica”

(FOUCAULT, 2002, p.75).

Mas o que significa, finalmente, para Foucault, representação, e o que é o ato de

representar? A representação é “uma disposição geral que define um modo de ser da

linguagem, dos indivíduos da natureza e dos objetos da necessidade e do desejo”

(FOUCAULT, 2002, p. 287-288). Antes de ser o ato de um sujeito, antes de ser a

apresentação de uma coisa ao espírito, e também antes de ser a apresentação da parte

expressiva de um todo, representar significa em As palavras e as coisas cindir, duplicar,

para tornar próprio a uma Ordem: “Esta relação com a Ordem é tão essencial para a

idade clássica quanto foi para o Renascimento a relação com a Interpretação”

(FOUCAULT, 2002, p.80). Essa Ordem é a ordem do conhecimento, a ordem da

mathêsis, do cálculo universal a que está submetido todo o saber nesse que a tradição

filosófica identificou como o pensamento moderno e que Foucault associa a uma fase

ainda anterior à modernidade.

Em suma, a representação é o sinal da descontinuidade, da diferença e do

pensamento que se dobra sobre mesmo (FOUCAULT, 2002, p.67) obedecendo à ordem

do conhecimento. De acordo com esta ordem, o signo, que no Renascimento era o feliz

encontro da coisa com sua interpretação numa relação de similitude, passa a ser algo

gerado, constituído, a consequência de um ato. Interessa-nos de perto que, até esta

altura, não tenha sido identificado como elemento importante neste processo o ator do

movimento: a análise da épistémè clásica guarda um lugar arqueológico específico para

o nascimento do sujeito do conhecimento.

O advento desta Ordem significará o nascimento das três ciências empíricas

cujos objetos são aqueles domínios positivos a que nos referimos: a gramática geral

(ciência da linguagem), a história natural (ciência da vida) e da análise das riquezas

(ciência do trabalho). É como se Foucault identificasse na sua arqueologia a

positividade do saber como bem mais determinante para o que conhecemos hoje como a

história da filosofia moderna do que o mero advento da subjetividade, que ele vai

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associar ao desenvolvimento da filosofia crítica de Kant. Entretanto, não haveria como

interpretar esta ordem do conhecimento na idade clássica sem que o conhecimento, ele

mesmo, viesse a ser compreendido como um ato, o ato de conhecimento: “porque o

espírito analisa, o signo aparece” (2002, p. 84), diz Foucault. O nascimento do sujeito

do conhecimento, no entanto, não vincula-se somente ao acabamento desta conjuntura

epistemológica clássica, mas à sua falência. Examinemos com cuidado esta pasagem:

O espaço de ordem que servia de lugar-comum à representação e às coisas, à visibilidade empírica e às regras essenciais, que unia as regularidades da natureza e as semelhanças da imaginação no quadriculado das identidades e das diferenças, que expunha a sequência empírica das representações num quadro simultâneo e permitia percorrer, passo a passo, segundo uma sequência lógica, o conjunto dos elementos da natureza tornados contemporâneos deles próprios – esse espaço de ordem vai doravante ser rompido: haverá coisas, com sua organização própria, suas secretas nervuras, o espaço que as articula, o tempo que as produz; e, depois, a representação, pura sucessão temporal, em que elas se anunciam sempre parcialmente a uma subjetividade, a uma consciência, ao esforço singular de um conhecimento, ao indivíduo “psicológico” que, do fundo de sua própria história, ou a partir da tradição que se lhe transmitiu, tenta saber. A representação está em via de não mais poder definir o modo de ser comum às coisas e ao conhecimento. O ser mesmo do que é representado vai agora cair fora da própria representação” (FOUCAULT, 2002, p. 329-330).

A idade clássica havia encontrado na representação um solo identitário, a

possibilidade do encontro entre a coisas e o conhecimento, unidade esta que havia sido

rompida desde o fim do Renascimento. Esta unidade seria a ordem do conhecimento e

da razão. Mas a arqueologia, que tem por meta o exame das continuiade e

descontinuidades do pensamento ocidental, depara-se com um novo impasse ao

identifcar um lapso entre as coisas elas mesmas e a representação, que aparece como

apenas uma “sucessão temporal”. Falta algo à representação. Falta-lhe um fundamento.

Uma vez cindido o espaço da similitude no Renscimento e instaurada a ordem da

mathésis na idade clássica, o pensamento ocidental, e por isso ele teria sido desde então

transformado e marcado definitivamente, vai girar em torno da ordem do fundamento.

Conhecer passa a ter uma relação de interdependência com o ato de fundar. Mas o que

Foucault nos tenta mostrar é o passo-a-passo do advento desta figura da filosofia que só

agora encontra seu lugar arqueológico – o sujeito do conhecimento.

É portanto de um fundamento que aqui se trata, mesmo se esse termo nao venha

a ser abordado detalhadamente em As palavras e as coisas. E é no âmbito do advento da

filosofia kantiana que Foucault vai observar o nascimento dessa estrutura

epistemológica. Porque se a representação, em seu período de crise torna-se “pura

sucessão temporal”, o mesmo não se pode dizer do sujeito que estreitará laços com a

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antropologia kantiana, numa relação ainda não esclarecida aqui. O que nos faz pensar

que o sujeito do conhecimento viria suprir aqui uma necessidade de fundamento? O

caso é que a dobra, a reflexão do pensamento sobre si mesmo vai fazer surgir a

necessidade da representação da própria representação:– “A representação só representa

alguma coisa na condição de se representar ela mesma como representação” (SABOT,

2006. p. 39). Remeter à representação da representação é remeter ao sujeito e sua

condição de fundamento.

A categoria “sujeito”, ela mesma, não é examinada como categoria moderna

com a mesma dedicação que a de representação recebeu na abordagem do período

clássico. O sujeito nasce de dentro da representação e de sua crise no contexto da

análise do pensamento transcendental de Kant. A Crítica da Razão Pura teria chegado

ao sujeito como unidade fundamental da apercepção, a síntese de todas as

representações possíveis. O desfazimento do campo estável e da ordem das

representações faz nascer no pensamento uma necessidade de fundamento, de unidade:

põe assim a descoberto um campo transcendental em que o sujeito, que jamais é dado à experiência (pois não é empírico), mas que é finito (pois não tem intuição intelectual), determina na sua relação com um objeto = x todas as condições formais da experiência em geral; é a análise do sujeito transcendental que extrai o fundamento de uma síntese possível entre as representações” (p. 335)

Foucault associa, assim, ao nascimento da era moderna, que se sobrepõe à configuração

clássica, a emergência do sujeito como unidade do conhecimento e o consequente

advento do pensamento transcendental, aquele que se ocupa das condições de

possibilidade da representação como tal. Mas não é só à filosofia crítica de Kant a que

Foucault alude no exame desta fase do pensamento ocidental. O domínio da

positividade do saber remanesce como horizonte fundamental para nosso autor, de

maneira que, aqui, o sujeito jamais se tornaria simples recurso do aspecto formal e

lógico do conhecimento. Com a indicação do advento do sujeito, Foucault passa a

evocar aquele que seria também o espaço do desenvolvimento da reflexão

transcendental sobre o domínio da positividade:

A partir de Kant, o problema é inteiramente diverso, o saber não pode mais desenvolver-se sobre o fundo unificado e unificador de uma máhtêsis. Por um lado, coloca-se o problema das relações entre o campo formal e o campo transcendental (...) e, por outro lado, coloca-se o problema das relações entre o domínio da empiricidade e o fundamento transcendental do conhecimento (FOUCAULT, 2002, p. 340-341).

Esse lugar onde se encontram as relações entre o domínio da empiricidade e o

fundamento transcendental é exatamente a antropologia. A estrutura que será

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encontrada no limiar do campo formal/transcendental do conhecimento com o domínio

da empiricidade é o homem – objeto das ciências humanas. As Palavras e as coisas

aborda a questão antropológica, apontando, no nascimento da modernidade, o advento

de uma “perigosa” antropologia, uma ciência do homem e do fundamento e, mais do

que isso, uma verdadeira antropologização do saber ocidental nos séculos XIX e XX.

Sujeito e homem interligam-se aqui tão simplesmente porque o pensamento de

Kant foi aquele que, encontrando no sujeito a uniade básica, síntese do conhecimento,

representou também a abertura para a reflexão transcendental-empírica: o sujeito

garantindo a unidade da representação, o homem garantindo que este sujeito não seja

relegado a simples categoria do pensamento formal, ou estrutura da razão pura, mas que

permaneça referido à experiência: o homem vive um mundo concreto, empírico,

histórico, finito:

Sem dúvida, não é possível conferir valor transcendental aos conteúdos

empíricos nem deslocá-los para o lado de uma subjetividade constituinte, sem

dar lugar, ao menos silenciosamente, a uma antropologia, isto é, a um modo

de pensamento em que os limites de direito do conhecimento (e,

consequentemente de todo saber empírico) são ao mesmo tempo as forma

concretas da existência, tais como elas se dão precisamente nesse mesmo

saber empírico” (FOUCAULT, 2000, p.342).

A antropologia e o homem estão, assim, relacionados de maneira indissociável

ao nascimento do sujeito formando, com ele, o horizonte fundamental da relação entre o

saber empírico e o transcendental. O perigo desta relação repousa, poderíamos supor,

sobre a negação de toda diferença e descontinuidade em favor de um sentido unitário da

natureza humana. No limite, o perigo das ciências humanas, estas que seriam parasitas

dos outros saberes, é a redução da vida, da linguagem e do trabalho, em suas diferentes

formas, a uma estrutura episemológica que reinaria como garantia e fundamento das

positividades, como se um “modelo”, um padrão “homem” ameaçasse toda a

humanidade. Trata-se porém de uma mera “ilusão antropológica”, este movimento que

teria feito o saber encontrar no Homem o solo, o fundamento de todas as positividades:

Esse fato – e não se trata aí da essência em geral do homem, mas pura e

simplesmente desse a priori histórico que, desde o século XIX, serve de solo

quase evidente ao nosso pensamento [...] é, sem dúvida decisivo para o

estatuto a ser dado às “ciências humanas” (FOUCAULT, 2000, p.475)

O lugar arqueológico do homem repousa assim, em As palavras e as coisas,

num horizonte de fundamentação do saber. As ciências humanas teriam partido deste

solo e aberto o espaço para a perigosa reflexão sobre uma natureza humana. Mas a

história das descontinuidades das épistémès mostra-nos que a incongruência desse

fundamento pode estar próxima. Foucault anuncia o fim próximo do homem. A

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pergunta que se deixa aqui para um desenvolvimento ulterior seria: caindo a hegemonia

do homem como essa estrutura doadora de unidade ao saber empírico e transcendental,

caindo por terra ainda a validade do fundamento, invalida-se igualmente o horizonte de

toda e qualquer pergunta antropológica?

Referências Bibliográficas

FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. 8. ed. Trad. Salma Muchail. São Paulo,

Martins Fontes, 2002.

_____________. Introduction à l’Anthropologie, Paris, J. Vrin, 2008.

LALANDE, A. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. Trad. Fátima S. Correia et.al.

São Paulo, Martins Fontes, 1993.

SABOT, P. Lire Les mots et les choses. Paris, Quadrige/PUF, 2006.