Upload
carlo-damiao
View
217
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
A Roda da Vida ou Roda do Devir (Bhavacakra), ocupa um lugar importante na arte religiosa
popular tibetana, sendo representada em tamanho gigante nas paredes dos templos (gompa),
usualmente no vestíbulo, bem como, em escala reduzida, em rolos pintados (tibetano: thang-
ka).
A Roda da Vida é uma representação do Samsâra (samsara, literalmente: "perambular
perpétuo", ou "ciclo de renascimentos"), e descreve o processo autoperpetuador de delusão e
sofrimento: a causa de todo mal e seus efeitos, espelhados nos fenômenos terrenos
exatamente tais quais estão sendo experimentados por cada homem desde o berço até o
túmulo. Quadro após quadro ela nos lembra que cada um é sempre seu próprio juiz e, sozinho,
responsável pelo seu próprio destino. A Roda é segura por Yama, o Senhor da Morte, que
simboliza a inexorabilidade do tempo e do processo, a inescapabilidade da causa e seu efeito.
A Roda da Vida é dedicada a todos os seres animados que ainda não tenham atingido o estágio
de liberação espiritual (Nirvana). Portanto, ela ilustra de uma maneira popular a essência do
ensinamento budista, as Quatro Nobres Verdades: a existência do sofrimento, sua origem e
sua causa, a cessação do sofrimento e o caminho que leva à cessação do sofrimento. De fato,
estão nela contidos três próximos ensinamentos inter-relacionados: os três básicos fatores
mentais insalutares (ou inábeis); os seis mundos ou existências; e os elos (nidânas) da cadeia
duodécupla da condicionalidade. Adicionalmente, há que se mencionar as duas interpretações
coexistentes da Roda — aceitas por todas as Escolas, exceto a mais recente delas, a Yogâcârin
—, como uma teoria de renascimento e como uma teoria de desordem mental.
Para melhor entendermos o significado simbólico da Roda e para maior clareza quando da
descrição de seus quadros pictóricos, será útil e conveniente que façamos inicialmente, e de
maneira sucinta, uma apresentação daqueles ensinamentos budistas nela contidos.
A – ORIGEM DA RODA E O ENSINAMENTO BUDISTA
A origem da Roda remonta, conforme já mencionado, a um dos ensinamentos básicos do
budismo: as Quatro Nobres Verdades, especificamente às duas primeiras — a origem do
sofrimento e a causa do sofrimento. Ela é inserida na descrição que Buda faz da maneira de se
atingir o estado de Arahat (último estágio do progresso espiritual), quando o discípulo, tendo
passado pelos estágios de moralidade e concentração, alcança o conhecimento da destruição
dos influxos cármicos, e acaba conhecendo a dor, sua causa, sua cessação, e o Caminho que
conduz à cessação.
1. Os Três Sinais da Existência
O Buda ensina que todas as coisas existentes são marcadas por três características: (a)
impermanência (anicca); (b) insatisfatoriedade ou sofrimento (dukkha); e (c)
insubstancialidade ou "não-eu" (ausência de uma essência permanente de si próprio) (anattá).
As duas primeiras características são relativamente fáceis de entender, mas a terceira é, antes,
mais difícil Ela é também uma das mais importantes facetas do ensinamento especificamente
budista, e por isso receberá uma consideração muito cautelosa.
a. Impermanência (anicca)
O termo implica que tudo o que sabemos, tanto no mundo interno quanto no externo,
encontra-se em constante estado de mudança. "Muito antes de a Química e a Física haverem
descoberto a transitoriedade e instabilidade da matéria/energia, o Buda já se dera conta da
impermanência fundamental de todos os fenômenos — inclusive de tudo aquilo que um
homem poderia chamar de seu "eu"; o corpo e a mente, as sensações, percepções e
sentimentos são instáveis e sujeitos a mudanças."1
As ciências exatas nos ensinam que os objetos, aparentemente sólidos, não são o que
aparentam ser. Os físicos nos contam que a natureza da matéria é extremamente complexa,
sendo ela composta de diminutas partículas em movimentação violenta, e tendo essas
partículas uma realidade apenas relativa. O mesmo pode ser dito de cada e toda célula em
cada e toda coisa viva, incluindo o homem. Essas células estão constantemente se
modificando. A velocidade de mudança nas células do cérebro e, portanto, da mente não é
menos rápida. De fato, nada no nosso mundo físico ou mental permanece o mesmo por dois
consecutivos instantes. Estabilidade real é uma ilusão, e mesmo a estabilidade relativa, que
parece prevalecer, é, quando muito, um estado temporário de equilíbrio, passível de ser
deslocado a qualquer momento. "O universo todo está num estado de fluxo, em incessante
mudança. Passagem ou consumação condiciona nova originação, originação leva à mudança e
passagem renovadas. Não há de ser constante, somente vir-a-ser; nada é, tudo acontece. Se
existência fosse um estado permanente de ser, ela não seria vida. Esta incessante mudança é
percebida mais distintamente no nosso próprio curso de vida. Nascimento, envelhecimento,
adoecimento e morte são suas fases." 2, 3
b. Insatisfatoriedade, Sofrimento (dukkha)
A conseqüência para nós do anicca ou impermanência é que, admitamos isto ou não,
padecemos de um sentimento perpétuo de insegurança e frustração. Não podemos vislumbrar
nada que dure indefinidamente. Coisas que gostaríamos de manter são arrebatadas de nós, ou
somos afastados delas antes que possamos gozá-las. A maioria do tempo não tentamos ver a
vida dessa maneira porque isto é muito enervante. Ansiamos por algum estado de segurança,
por satisfação duradoura, por felicidade, mas isto sempre está fora de alcance, ou está se
mudando no instante que tentamos agarrá-lo. Isto é o sofrimento básico ou insatisfatoriedade
da vida, do qual nenhum de nós está excluído.
Consideremos o fato fundamental de que toda vida é insatisfatória. Obviamente dor, miséria,
mágoa, desespero, infelicidade, tristeza, ansiedade, frustração e outras numerosas
experiências desagradáveis são insatisfatórias. Mas, para se chegar a uma visão equilibrada, é
necessário reconhecer que mesmo experiências agradáveis são insatisfatórias, porquanto
nunca vão completamente ao encontro das expectativas, e, ademais, elas não duram. Este
último ponto é de grande importância, porque é um axioma do budismo de todas as Escolas de
que "todas as coisas compostas ou combinadas são impermanentes, e tudo que for
impermanente é insatisfatório". O que significam "coisas compostas ou combinadas"?
Significam tudo o que conhecemos na vida — nossos próprios corpos físicos e mentes, e
também os objetos materiais pelos quais labutamos em nossa sociedade: carros, televisão,
equipamento de alta-fidelidade, etc. Elas incluem também o que na terminologia psicológica
se chama de "construções", isto é, os conceitos, as invenções, as imaginações, as idéias, os
princípios nos quais o mundo ocidental põe tanto valor. Todas as coisas físicas e mentais que
conhecemos na vida levam no final das contas ao dukkha — sofrimento.
Dukkha poderá também ser visto como uma das coisas mais fundamentais dentro de nós,
porque ela parece ser a força motivadora em tudo quanto fazemos. Qualquer que seja a ação
do corpo ou da mente que executemos, nós a realizamos porque pensamos que nos levará a
uma situação mais satisfatória. Isto é válido para todas as nossas ações, pequenas e grandes.
Se coçamos nosso nariz é para alterar alguma coisa, para aliviar alguma condição que neste
instante não se mostra satisfatória.
Tratamos, até aqui, de conhecer a força motivadora fundamental que está atrás da mente.
Agora abordaremos a maneira pela qual nossas mentes trabalham. Elas trabalham de acordo
com o que nós chamaremos aqui de lei aparente de causa e efeito, ações e seus resultados.
Não estamos aqui preocupados se, filosoficamente, isso é ou não é verdadeiro. Estamos, sim,
preocupados com o fato de que nós modelamos nossas vidas sobre a suposição de causa e
efeito, e toda a nossa compreensão do mundo é colorida por essa maneira de pensar.
Freqüentemente perguntamos, após algum evento, "por que isto ocorreu?", ou "qual era a
causa disto?", ou "o que fiz para merecer isto?". Todas essas perguntas são concernentes às
ações passadas tendo resultados no presente, mas nós as fazemos também com relação às
ações presentes tendo resultados no futuro. "Se eu faço isto, aquilo acontecerá". Um jogador
de xadrez faz isto o tempo todo. Todas estas questões são baseadas no desejo de ver o que fez
surgir os resultados no presente, ou na tentativa de predizer o futuro a partir das ações
presentes. O fato de que toda esta atividade, no passado e no futuro, nos obscurece o aqui e o
agora, é omitido ou negligenciado.
Baseado nessa aparente lei de ações e resultados, o Buda ensinou que a origem ou a causa do
dukkha é desejo ou anelo. Tal como um bom médico que, após ter reconhecido a natureza do
mal, diagnostica-lhe a causa, assim Buda define a origem da dor e sofrimento: "É a sede, que
conduz ainda ao renascimento, acompanhada do apego ao prazer, encontrando o seu prazer
aqui e ali, é a sede do desejo, a sede da existência, a sede da inexistência." (Samyutta Nikâya, V
421).
Mas, se o desejo é a causa do dukkha, qual é a causa do desejo? É o estado de "não-saber", da
"ignorância", que é o pano de fundo impiedoso de tudo que pensamos e fazemos, se bem que
inconscientemente. Uma insatisfatória condição de sofrimento está fadada a surgir porque nós
não entendemos claramente a maneira pela qual operamos, ou de como a mente está
condicionada a atuar automaticamente em dadas situações. Nós, no Ocidente, somos
ensinados a considerar a aquisição de coisas quase uma virtude. É-nos ensinado que a ambição
é a atitude natural do homem inteligente. Daqui estamos a um pequeno passo da corrida de
ratos. Na maioria dos países ocidentais, os resultados da nossa ignorância são muito
claramente vistos na incidência das doenças coronárias, apoplexias, colapso mental, colapso
nervoso, etc.
Mas, como essa ignorância origina-se? A explicação ortodoxa é que ela surge no nascimento,
como decorrência de uma vida prévia. Como vivíamos num estado de ignorância naquela vida,
nossa mente e consciência nesta presente vida são coloridas e condicionadas por aquela
ignorância, e isto continuará na vida vindoura e na seguinte, e assim interminavelmente, a não
ser que a erradiquemos agora.
Outra e menos ortodoxa explicação é que, desde o nascimento parentes, professores, vigários
e outros ensinam-nos a sair do nosso estado original de inocência para sermos "bons e
valorosos membros da sociedade". Gradualmente, no correr de anos de condicionamento, a
harmonia com o mundo natural, o equilíbrio que existe entre todos os objetos naturais, é
perdido, e a separação da Natureza causa um estado de ignorância da real situação que surge.
Aquilo que nós somos treinados a ser obscurece aquilo que de fato somos. A natureza torna-se
"eu", e todas as coisas são vistas através dos "meus" olhos. Qualquer das duas explicações que
se admita, esta terá de ser validada pela própria experiência.
Ignorância poderá ser resumida dizendo-se que nós baseamos nossas ações nas três
suposições erradas de permanência, satisfação e entidade-em-si; quando, de fato, tudo é
impermanente, insatisfatório e carente de qualquer entidade-em-si. Ao basearmos nossas
ações (causas) em suposições erradas, não é surpreendente que os resultados (efeitos) sejam
diferentes daquilo que esperávamos4.
O sofrimento, portanto, está fundado na estrutura real da existência; a isso os budistas
chamam a verdade da causa do sofrimento (a segunda Nobre Verdade).
Sofrimento (dukkha) é um termo filosófico e abrange tudo que está sujeito ao ciclo de vir-a-ser
e decadência (samsara).
Aqui alguém poderia objetar dizendo que, embora existência não fosse puro prazer, ela não
obstante mantém de reserva suficiente alegria para uma valorização mais positiva. De fato, o
Buda de maneira alguma nega prazeres e experiências prazerosas. Ao contrário, ele os encara
como parte fixa da vida, pois de outro modo não apareceriam tão sedutores quanto o são.
Seus critérios de julgamento são mais profundos: é da permanência que ele faz seu padrão de
verdadeira felicidade. Toda coisa alegre e querida termina em sofrimento porque é transitória;
é uma falsa felicidade, porquanto ela terá de ser contrabalançada com tristeza e lágrimas.
Quando de sua estadia em Sâvathi, a doadora do "Mosteiro do Parque Leste", a matrona
Visâkhâ, aproximou-se de Gotama numa hora imprópria e com seus cabelos e roupas
molhados (do banho ritual) para contar-lhe da morte de sua amada neta, ele consolou a
mulher lamentosa com estas palavras: "Aquele que tem uma centena de coisas queridas,
Visâkhâ, tem uma centena de sofrimentos; aquele que tem noventa…, dez…, cinco…, duas…
coisas queridas, tem noventa…, dez…, cinco…, dois sofrimentos. Para aquele que não tem coisa
querida não há sofrimento. Aqueles, eu declaro, são sem pesar, sem paixão e livres de
desespero.
Quaisquer múltiplos pesares, tristezas e sofrimentos que haja neste mundo, estes surgem em
dependência das coisas queridas; eles não surgem quando não há nada querido". (Udâna, VIII
8)
c. Insubstancialidade, "não-eu" (anattá)
"Esta doutrina budista de insubstancialidade foi e continua a ser um assunto de muita
controvérsia, e portanto deverá ser considerada calmamente. Ela se refere não somente às
pessoas, mas aos animais também. Ela é a chave do ensinamento de Buda e, uma vez vista
com clareza, ela porá o restante em perspectiva.
Fundamentalmente, o ensinamento concernente à anattá significa que todas as coisas, físicas
e mentais, são sem uma essência permanente, contínua de "eu", e que a idéia que nós temos
do "eu" é errônea. Cada momento de cada dia é vivido como se tivéssemos um "eu", no
entanto isto não é o que aparenta ser. O que então é este "eu" que parece ser real mas o não
é? Buda menciona, num dos discursos, um "eu-adquirido". O eu é adquirido — mas, como?
Behavioristas modernos poderão demonstrar que influências impostas sobre um animal de
tenra idade poderão gerar reações condicionadas automáticas, pelo resto da vida. Os seres
humanos não são diferentes. A virada da cabeça quando alguém é chamado pelo nome, é uma
resposta condicionada automática; assim são também comer com garfo e faca, beber d um
copo, falar, escrever, vestir roupas, e outras miríades de coisas diárias.
Parece mais provável que o conceito de um eu duradouro e permanente surja como resultado
da faculdade de memória. Consciência é um fenômeno momentâneo. A lembrança do passado
e especulação acerca do futuro não têm realidade exceto no momento imediato da
consciência, que nós chamamos de presente. Ao tentar compreender anattá será útil
considerarmos o que ocorre quando os liames da memória são quebrados. Um homem sofre
acidente que causa amnésia. Subitamente sua vida de antes do acidente torna-se um vazio, ele
não pode lembrar-se de nada. Consciência como tal, no entanto, não fica prejudicada. Seria ele
agora o mesmo que antes? Onde está o eu que supostamente existia no período anterior ao
acidente? A faculdade da memória começará imediatamente a reconstruir o conceito do eu,
mas, se o homem sofrer contínuos ataques de amnésia, o senso de continuidade dado pela
memória não teria tempo de se estabelecer, embora a consciência continuasse a existir.
Como é que o dukkha surge desta situação? Em resumo, podemos dizer que desde a infância
estamos sendo constantemente condicionados pelos pais, parentes, instituições sociais, etc.
Existe uma tensão constante entre as ações naturais que gostaríamos de empreender — mas
que nos são proibidas pela sociedade — e outras impostas pela mesma, mas que não nos
permite viver em plena felicidade. Essa tensão projeta-se na nossa mente e influencia nossa
personalidade. Todos os condicionamentos da infância vão surgir na vida adulta e são a causa
direta do dukkha."4
Finalmente, devemos compreender que falar de um ego, uma alma ou eu, é mera convenção
lingüística e não se refere a uma entidade objetiva. "Verdade" tem diferentes níveis. Na
linguagem convencional, uma pessoa é considerada como existindo e até ter renascido após a
morte, porquanto na vida diária é legítimo falar do "eu" e de "mim mesmo" da mesma
maneira que o físico tem de se referir aos objetos como "sólidos", ainda sabendo não serem,
no último caso, sólidos. É importante compreender que tais referências são corretas somente
em termos de verdade relativa e não de absoluta.
No budismo a questão de "o que o homem é" é sempre respondida pela enumeração dos
Cinco Agregados (da Existência): Forma ou Matéria, Sensação ou Sentimento, Percepção,
Formação Mental e Consciência, os quais, combinados, formam a pessoa empírica.
O que é chamado existência individual é na realidade nada mais que um mero processo destes
fenômenos mentais e físicos, em contínuo fluxo, representando o "indivíduo" em qualquer
momento da história de sua vida; em diferentes estágios dessa história ele exibe diferentes
aparências e características que são auto-evidentes.
Todos estes Cinco Agregados pode-se provar serem impermanentes, insatisfatórios e sem
nenhuma essência de eu. De nenhum deles poderíamos dizer: "Isto sou eu, isto é meu, isto é
eu mesmo". Tampouco há qualquer entidade-ego fora deles5. Indagado por um monge se
qualquer um dos agregados é permanente, o Buda responde: "Não há, bikxu, corpo qualquer
que seja permanente, fixo, duradouro, não sujeito à lei da decomposição e eternamente
permanecendo o mesmo.
Não há, bikxu, sensação qualquer…, percepção qualquer…, fenômeno mental qualquer…,
consciência qualquer que seja permanente, fixa, duradoura, não sujeita à lei da decomposição
e eternamente a mesma." (Samyutta Nikâya, III 22.97).
Morte, a desintegração destes Agregados, não libera uma alma.
2. Renascimento e Carma
A transitoriedade da existência seria bem acolhida se o sofrimento cessasse com o advento da
morte. No entanto, este não é o caso. Desejo, ódio e ignorância não permitem a aniquilação
do homem na morte; antes, efetuam seu renascimento. Enquanto não tiver ele realizado em si
próprio a consumação destes definhamentos, ele fica perambulando no samsara.
Dado que o budismo rejeita a existência de uma alma, seria errado falar de uma transmigração
de alma. O que o budismo ensina, isto sim, é renascimento. "Imagine uma mesa de bilhar com
as três bolas. Quando se impele a primeira bola, o impulso cinético é transferido à segunda e
daquela à terceira, sem que qualquer coisa material venha a ser transmitida da primeira à
terceira bola. Similarmente, cada forma de existência condiciona a subseqüente, que é então
considerada como seu renascimento. No entanto, nenhuma alma transmigra através da
corrente de renascimentos. Entre pessoa "A" e seu renascimento "B" não há, nem mesmo
parcialmente, identidade, mas sim uma relação de Originação Condicionada e dependência. A
pessoa "B" é contingente da pessoa "A", nada mais."2
No budismo, o pensar em termos de substâncias é substituído pelo pensamento em termos de
condicionalidade, expresso na fórmula da Originação Condicionada (paticcasamuppâda). Diz-se
que a Cadeia de Originação tem um número determinado de elos (nidânas), e cada elo surge
tendo o anterior como precondição. O esquema com doze "elos" é considerado como a forma
estereotipada que ela assumiu finalmente. No Cânone Páli existem diversas outras variantes
mais curtas.
A forma clássica na qual a fórmula é melhor conhecida aparece, entre outras, no Samyutta
Nikâya II 1, que diz:
"Condicionadas pela ignorância surgem as atividades intencionais; condicionada pelas
atividades intencionais, a consciência; condicionados pela consciência, o nome-forma (mente e
matéria); condicionados pelo nome e forma, os sentidos; condicionado pelos sentidos, o
contato; condicionada pelo contato, a sensação (sentimento); condicionado pela sensação, o
desejo; condicionado pelo desejo, o apego; condicionado pelo apego, o devir; condicionado
pelo devir, o nascimento; condicionados pelo nascimento surgem a velhice e morte, pesar,
lamentação, sofrimento, tristeza e desespero. Tal é o surgimento desta inteira massa de males.
[…] pela cessação da ignorância ocorre o cessar das atividades intencionais; pela cessação das
atividades intencionais, o cessar da consciência; … pela cessação do nascimento cessam a
velhice e morte, o pesar, a lamentação, o sofrimento, a tristeza, e o desespero. Tal é a
cessação desta inteira massa de males".
"O próprio nome originação condicionada indica como é que a relação entre os elos da cadeia
devem ser entendidos. Esta não é dependência causal porquanto causa é o termo técnico para
uma causa que por si só, sem nenhum fator assistente, produz um efeito. A dependência dos
elos, conforme já foi mencionado acima, é mais de condicionamento, porque cada elo é um
conditio, isto é, uma condição ao lado de outras para os elos sucessivos virem à tona."2
A originação condicionada é somente um processo cíclico de vida e morte; não é a teoria de
que a evolução do mundo procede da matéria primordial. Trata das causas do nascimento e da
morte, e não cogita, em absoluto, em mostrar qual a origem da vida. Ela vem, portanto,
elucidar a seqüência dos renascimentos que excedem a pessoa singular. Seus doze elos
cobrem três existências de renascimento e incluem três vezes a série dos Cinco Agregados.
Também "… os doze elos do paticcasamuppâda se aplicam, quer consideremos um único
momento da vida, quer o tempo de vida inteiro." Esta doutrina "[…] é um dos ensinamentos
mais sutis das escrituras mundiais; o próprio Buda afirmava: profundo de fato é este
ensinamento do paticcasamuppâda[…] Quem não compreende e penetra nesta doutrina se
embaraça, como um novelo emaranhado. (Dighá Nikâya, II). Penetrar nesta doutrina é
penetrar no âmago da existência."1
"O desenvolvimento interpretativo posterior da escola Maaiana veio renegar qualquer
conexão real entre os elos, e até a natural seqüência causal entre contato e sensação,
nascimento e velhice, esvaziando assim a fórmula de qualquer sentido como uma teoria de
condicionalidade (causal). No seu lugar, colocaram a doutrina da relação interdependente, na
qual a causalidade (condicionalidade) mantida pelas velhas escolas tornou-se uma ilusão."6
Nos escritos considerados os mais antigos, a seqüência não era fixa. Buddhaghosa (séc. V) foi
dos primeiros a comparar o esquema a uma roda, embora não a uma roda girante como
ocorre com a interpretação usual da Cadeia. Mas, o tipo facilmente prestou-se para tal
apresentação. No Divyâvadâna (séc. II-III) é imputado ao próprio Buda o ter ordenado a
inscrição, por sobre o portão do Mosteiro Veluvana em Râjagaha, da Roda de Cinco Raios,
descrevendo-a em todos os seus pormenores construtivos.
Entre as pinturas de caverna em Ajanta (séc. VII d.C.) está uma representação pictórica
identificada pelo Dr L.A.Waddell como sendo a Roda do Vir-a-Ser (Bhavacakra). A forma
usualmente representada no Tibet tem 6 raios. Os cinco destinos foram aumentados para seis
fazendo dos asuras, os deuses rebeldes, carreira separada.
Dissemos antes, ao falar do renascimento e originação condicionada, que renascimento
(pessoa) B é contingente da pessoa A. Se a existência B será mais propícia à libertação ou
menos não é uma questão de acaso. Aqui, também, a originação condicionada está em jogo.
São os feitos (kamma, carma), consciente e intencionalmente cumpridos, que determinam a
qualidade da próxima forma de existência. Ações-intenções salutares conduzem a um
renascimento salutar, ações-intenções insalutares a um renascimento insalutar. Depende de
cada um amoldar seus próprios renascimentos futuros.
O budismo não conhece "pecado", isto é, ofensa contra os mandamentos do Deus ou de um
deus. Ele só distingue entre feitos salutares (hábeis) e insalutares (inábeis) — aqueles que
conduzem à libertação e aqueles que conduzem para longe desta. O balanço entre estes dois
tipos de feitos de um ser ao final da sua vida determina o tipo e qualidade de sua próxima
existência.
"Feito divide os seres em inferiores e superiores." (Majjhima Nikâya, III 135).
"Seria completamente errado interpretar a doutrina do carma ao longo de linhas
determinísticas. Somente a qualidade, isto é, o meio ambiente social, a aparência física e as
habilidades mentais de uma pessoa são fixadas pelos feitos de suas prévias existências, mas de
modo nenhum suas ações. O Buda dá por assentado que o caráter inato de cada ser deixa-lhe
a liberdade de decidir acerca de suas ações, que determinam seu futuro.
Carma é uma lei natural neutra que não admite exceção ou interferência, mas do qual, agindo
concordantemente, o homem poderá se valer para obter o renascimento desejado.
Desnecessário se torna mencionar que mesmo o renascimento mais feliz não é ainda
libertação.
Mas, se ações salutares enredam o homem no samsara tanto quanto feitos insalutares, como é
que alguém deveria agir? Seria aconselhável, seria de todo possível, abster-se de qualquer
ação?
A resposta de Buda é psicológica. Não é a ação em si, ele explica, que determina o futuro
cármico, mas sim seu motivo, a atitude mental que a precede: não a execução da ação, mas a
ação-intenção amolda a existência futura. Suponhamos alguém que seja impedido de executar
uma ação intencionada, por circunstâncias externas: a mera ação-intenção é suficiente para
produzir o efeito cármico correspondente. Somente aqueles feitos que a pessoa realiza sem
avidez, ódio e delusão, estarão livres de resultados cármicos. Agir mas sem avidez pelo
sucesso, livre do desejo de prejudicar qualquer um e usando a razão — este é o caminho
budista da libertação.
A maneira de funcionar do mecanismo cármico acima mencionada implica, ademais, em que o
mesmo feito possa provocar diferentes efeitos com diferentes pessoas. Uma ação que
influencia uma pessoa eticamente instável por longo tempo de uma maneira negativa, no caso
de uma pessoa eticamente sadia poderá ser confinada a efeitos mínimos. Um torrão de sal
numa xícara torna seu conteúdo imbebível; a mesma quantidade de sal no rio Ganges deixa
suas águas tal qual eram. (Anguttara Nikâya, I 3.99)."2
Além das ações resultantes em renascimento, o budismo distingue aquelas que já nesta vida
dão frutos cármicos. Considera-se mesmo uma vantagem quando um feito aviltante é
redimido na presente existência. Um exemplo típico é o caso do ladrão Angulimâla. Após ter
percebido a depravação de sua conduta e tendo vestido a roupa de monge, um dia ele fora
agredido a pedradas durante sua ronda da mendicância. Quando Buda o viu sangrando e com
a roupa rasgada, observou:
"Ature isto, brâmane! O amadurecimento de um feito (kamma) pelo qual tu podias ferver
muitos anos… no inferno, o amadurecimento deste feito tu agora experimentas nesta tua
vida." (Majjhima Nikâya, II 86).
Usualmente, cinco domínios de renascimento são distinguidos. Renascimento no mundo
humano é considerado o mais favorável por oferecer as melhores perspectivas de libertação.
Conforme declaração de Buda, uma boa forma de existência provê melhores chances para
erradicação dos definhamentos que mantêm o ciclo dos renascimentos em movimento, a
saber, desejo, ódio e ignorância.
Destas premissas filosóficas e religiosas o Buda deriva sua ética. Bons, isto é, salutares, são
todos aqueles tipos de conduta que enfraquecem o desejo, o ódio e a ignorância:
Abster-se de todo mal,
cultivar o bem,
purificar a própria mente —,
este é o ensinamento dos Budas.
(Dhammapada, 183)
Após o falecimento do mestre, os filósofos monásticos elaboraram a doutrina da Originação
Condicionada, desenvolvendo-a numa teoria clara e abrangente. De acordo com esta, todos os
seres são compostos de fatores condicionados de existência (Páli: dhamma; Sânscrito: dharma)
de curta vida, isto é, entidades de várias categorias de pensamento que, mediante a força
formativa do carma (kamma), ajuntam-se por algum tempo formando aquelas estruturas que
nós experimentamos como "eu" e o mundo. Dentro de breve tempo eles desintegram-se
novamente para dar lugar a novos dhammas e novas conglomerações de dhamma. O processo
toma lugar numa escala menor, assim oferecendo uma explanação sobre o constante fluxo da
nossa consciência, o conteúdo caleidoscópico em mudança da nossa mente, e nossos
processos vitais — e em maior escala onde ela serve para explicar o processo de renascimento
sem uma Alma. No decorrer do tempo, a teoria do dhamma tornou-se a doutrina central do
budismo.
RODA DO VIR-A-SER (Esquematizada)
B – ESTRUTURA E SIGNIFICADO DA RODA DA VIDA
Embora haja variações entre as diversas thankas tibetanas quanto a pequenos pormenores
pictográficos, todas elas permanecem fiéis à tradição viva, obedecendo rigidamente aos
antigos princípios iconográficos tibetanos. Consoante mencionamos no último parágrafo da
introdução, a interpretação da Roda do Devir dá-se em dois níveis, no nível popular/religioso e
no nível filosófico/psicológico.
Na descrição que damos a seguir, adotamos uma interpretação mista, fundindo os dois níveis,
com o fito de permitir ao leitor, em concordância com suas inclinações, formar uma idéia,
embora magra, desta tradição tibetana. Não lhe faltará, certamente, perspicácia suficiente
para poder desintegrar a descrição, se assim o desejar, nos seus dois constituintes
interpretativos.
A Roda compõe-se de três anéis concêntricos (veja Fig.1) e a trilha a seguir começa no centro
(cubo) da roda, que contém os três venenos espirituais, ou "raízes insalutares": (a) o porco da
ignorância e delusão; (b) a serpente da inveja e ódio; e (c) o galo do desejo e avidez, cada qual
mordendo a cauda daquele à sua frente. Estes venenos são, naturalmente, as três fontes de
todo o processo da mente reativa, a segunda e a terceira sendo as duas principais emoções
negativas, e a primeira a escuridão da insciência espiritual, da qual as outras se originam. O
morderem uma a cauda da outra significa sua interdependência, ou o fato de o círculo ser um
círculo vicioso.
Quem quer que se entregue a estes males básicos andará ao longo da Senda Escura, que leva
aos infernos e aos maus renascimentos. O outro caminho é a Senda da Bem-aventurança, que
conduz a melhores renascimentos e às alturas, à libertação final (Nirvana). Ambas as sendas
são ilustradas pelo anel que circunda o centro do thanka, um escuro e outro claro. Na metade
clara, à esquerda, vêem-se pessoas modestamente vestidas e de aparência feliz, em
movimento ascendente; e na outra metade, escura, miseráveis nus, acorrentados juntos, são
vistos mergulhando para baixo com expressões de angústia e terror. "Como resultado de
vitórias ou derrotas relativas na sua contenda com o ego, os seres sensitivos ascendem ou
tombam dentro da esfera do Samsâra, cada ascensão sendo sucedida por uma queda se um
mau carma (ação) for adquirido na nova existência; e cada queda sendo sucedida por uma
ascensão quando o mau carma for eliminado ou se o ser adquirir mérito. Todos estes seres
perambulam infinitamente entre os seis estados da existência."7
"A regressão, portanto, em forma de transição do segmento claro ao escuro, é possível de
ocorrer a qualquer tempo. O segmento branco poderá ser encarado como representando
estados de consciência intermediários entre a mente reativa e a mente criativa e do qual
alguém ou desliza de volta ao anterior ou eleva-se ao posterior. Conforme sugere a presença
dos cilindros-mani e as oferendas religiosas, o segmento branco representa também a piedade
convencional que, sendo parte do processo da mente reativa, não é por si só um meio
suficiente rumo à iluminação, e do qual, portanto, uma reação à vida de maldade e impiedade
— ao segmento preto — é sempre possível."8
O anel seguinte mostra os seis domínios ou reinos de existência. A ilusão movida pelas doze
nidânas (elos) expressa-se em seis estilos, produzindo seis mundos específicos, representando
os seis estados da existência separadamente. Estes são (a partir do topo): (I) A morada dos
assim chamados deuses (devas). Esta é um paraíso temporal alcançado por boas ações. Na
parte superior, o Buda é visto com o alaúde, lembrando aos deuses os seus prazeres limitados
e guarnecendo-os contra vaidade e altivez, o que os encoraja a acreditar na sua própria
imperecibilidade. Mas estes deuses não estão ainda liberados da tristeza; eles também, após
milhares de anos humanos, estão sujeitos à velhice e morte. Seu sofrimento especial é a ilusão
da eternidade de seu estado paradisíaco; sua miséria está na sua eventual compreensão do
erro. (II) À direita, o reinado dos deuses ciumentos, os Titãs, é ilustrado: eles estão
permanentemente guerreando com os deuses e combatendo pela realização de seus próprios
desejos. Seu sofrimento é a infindável guerra, o resultado da inveja e ambição insaciável, a
competição e empenho por supremacia. Aqui o Buda aparece com uma espada. (III) Ainda na
metade superior do anel, à esquerda, o mundo dos homens é representado. Movidos pelo
egoísmo e ignorância, eles sofrem do permanentemente repetido ciclo de renascimento,
doença e morte. O reino humano é o único no qual o Dharma (ensinamento) pode ser
claramente ouvido e realizado. Mesmo assim, este é carregado com o sofrimento da infindável
procura por uma situação ideal. O Buda, com a tigela de mendicância, aparece para ajudá-los.
(IV) Na metade inferior do anel, à esquerda, o mundo dos animais ilustra o seu sofrimento
especial: opressão por outros seres. Eles devoram-se uns aos outros e tornam-se bestas de
carga. Aqui Buda aparece com um livro. (V) O quinto mundo, embaixo à direita, é o domínio
dos duendes famintos, insaciáveis, monstros ávidos, padecendo de fome e sede que eles nem
podem mitigar e tampouco apagar. Apresentam um quadro macabro, com gargantas
entesadas qual agulhas, bocas qual olhos de agulhas e imensas barrigas intumescidas. Aqui
Buda aparece com uma caixa de tesouro simbólica, cheia de jóias espirituais. (VI) O último
domínio é o dos infernos frios e quentes ou purgatórios. Estes são lugares de tormento para
todos aqueles que tenham cometido feitos aviltantes movidos pelo ódio e raiva. Mas esta vida
infernal, conquanto longa, não é eterna; após a redenção do pecado, renascimento em um
mundo melhor é sempre possível. No mundo dos infernos um assistente do Senhor da Morte
(Yama) sopesa os atos dos falecidos que estejam adentrando seu reinado, mas isto é apenas
um trabalho administrativo, porquanto o destino dos mortos já tem sido decidido por eles
próprios. Aqui o Buda aparece portando uma chama, para trazer luz e esperança a estas
paragens escuras.
"Embora as cinco ou seis esferas da existência condicionada sejam usualmente interpretadas
cosmologicamente, como mundos objetivamente existentes, tão reais para os seres que os
habitam como o nosso próprio mundo o é para os seres humanos, não obstante é possível
interpretá-las psicologicamente como representando estados diferentes da consciência e vida
humanas —, interpretação esta que tem alguma sanção na tradição. Vista por este ângulo, a
esfera dos deuses representa uma vida de contentamento e segurança; aquela dos titãs uma
de inveja, competição e agressividade; aquela dos fantasmas famintos uma de dependência
neurótica e sede; aquela dos seres no inferno uma de sofrimento físico e mental; aquela dos
animais uma de barbarismo e ignorância; enquanto que a esfera dos homens representa um
misto estado de existência, onde nem o prazer nem a dor predominam. No decurso de uma
vida singular alguém poderá experimentar todos os seis estados, vivendo ora no céu , ora no
inferno , etc."8
O quarto e último anel ou "aro" da Roda é dividido em doze segmentos, cada um contendo
uma ilustração correspondente a cada uma das nidânas acima descritas e discutidas.
Começando na parte superior e seguindo o sentido dos ponteiros do relógio, temos:
Ignorância é cegueira espiritual, ilustrada por um homem cego apoiado em seu bastão, incapaz
de achar seu caminho. O segundo quadro mostra um oleiro, seus vasos sendo símbolos de
seus próprios feitos (agindo, falando e pensando) com os quais ele molda seu próprio carma,
popularmente chamado de destino. O terceiro quadro representa uma árvore e um macaco
pulando de galho em galho: isto simboliza a mente, que em pessoas ignorantes pula
incontrolada de objeto em objeto. Por esta razão, por meio de análise que leva ao
entendimento dos fenômenos internos e externos, a psicologia budista sempre visa o
completo controle da mente. O quarto quadro mostra um barco com duas pessoas,
simbolizando nome e forma, energia espiritual e física, inseparavelmente flutuando sobre a
corrente da vida. O quinto quadro é o de uma casa com cinco janelas e uma porta,
simbolizando os cinco sentidos e a faculdade de pensamento, aquelas entradas (isto é, os
órgãos sensoriais) pelas quais o mundo externo é percebido. O sexto quadro, um homem e
uma mulher abraçando-se, demonstra contato, a conseqüência de percepções sensuais. O
sétimo quadro é dedicado às emoções, pelas quais alguém é atingido como que por uma
flecha nos olhos. O oitavo quadro, de uma mulher oferecendo bebida a um homem, ilustra
desejo, estimulado por percepções e emoções, e levando à assim chamada sede pela vida. O
nono quadro ilustra enleio sensual: o anseio em preservar aquilo que é desejado,
representado por um homem colhendo as frutas duma árvore. O décimo quadro simboliza a
procriação de uma nova vida, aqui representada por uma bonita mulher recém-casada. O
décimo-primeiro quadro mostra a conseqüência: a procriação é seguida pelo nascimento, uma
mulher dando à luz uma criança, mostrada aqui na posição natural de agachamento. O
décimo-segundo e último quadro mostra a velhice e morte, o fim inevitável de toda existência
terrena, ilustrado aqui por carregadores de ataúde, o cadáver enfaixado e na postura fetal,
pronto para o próximo renascimento e adicional miséria num dos seis mundos simbólicos.
Completando o simbolismo, a arte religiosa tibetana apresenta mais duas figuras exteriores à
Roda: (I) Yama, o Senhor da Morte, representa a delusão primordial (avidhya), com o universo
inteiro nas suas garras. Meramente ascender de um estado a outro, mesmo que isto seja à
bem-aventurança celestial dos deuses (devas), não traz nenhuma libertação da delusão; cedo
ou tarde os deuses tombarão de volta aos estados mais insatisfatórios — nenhum ganho
permanente advém da utilização do mérito para obter um renascimento agradável. As cinco
caveiras no penteado de Yama representam os cinco sentidos, as cinco percepções ilusórias, os
cinco tipos de malfazer, os cinco agregados do ser. Psicologicamente, o Yama é tido como
sendo o demônio da Impermanência ou o grande princípio de mudança, que, embora
aterrador para a maioria, contém a promessa e potencialidade do desenvolvimento, da
evolução.
(II) Perto do topo do desenho, à direita, está o Buda no seu manto açafrão de mendicante,
apontando a um entendimento apropriado do Ensinamento e conformidade com a Lei
Universal como o único caminho rumo à libertação. Em outras versões, o Buda aponta não na
Roda, mas numa outra, menor e muito bonita, com oito raios — "a roda de Asoka", que por
mais de dois mil anos tem servido como símbolo do Dharma, isto é, o ensinamento de Buda, e
em outro sentido, a Lei Universal.
"Entre as muitas lições a serem aprendidas da contemplação deste símbolo está a futilidade de
se acumular bons trabalhos sem que se faça um progresso espiritual genuíno. Os bons
trabalhos, quando muito, qualificam as pessoas para alegrias transitórias no mais elevado dos
seis estados de existência, onde elas estão ainda sujeitas ao sofrimento, mesmo que isto seja
na forma de insatisfação geral ao invés de sofrimento agudo. Os Céus não oferecem, nas suas
formas severas, nenhum caminho permanente que leve para longe do sofrimento. Ação moral
é, em si, admirável; ela beneficia tanto o fazedor quanto o receptor, mas ela não leva à
conquista da delusão. Se os benefícios de uma vida virtuosa são para durarem eternamente,
deverá haver uma revolução da consciência que se estenda para muito além da moralidade e
piedade."7
Notas
1. Ven. H.Saddhatissa - O Caminho do Buda (V. bibliografia).
2. H.W.Schumann - Buddhism: an outline of its teachings and schools (London, Rider, 1976)
3. A compreensão deste fenômeno vivencialmente, e não intelectualmente, é de suma
importância no budismo e faz parte integral do tradicional esquema de desenvolvimento
mental adotado por todas as Escolas. Damos o seguinte exemplo ilustrativo tomado à Escola
T'ien T'ai (Tendai no Japão):
"O treinamento de acordo com o método de incorporação do real consiste, enquanto sentado
em meditação, em fechar os olhos e em dirigir para trás a contemplação, ponderando sobre
este corpo humano que cresce da infância à idade adulta e então à velhice e termina na morte,
e sobre cada uma das suas células que muda e é substituída por uma nova a cada segundo,
ininterruptamente, e que é, portanto, totalmente irreal: isto mostra que não há realidade de
um ego existente que possa ser evidenciado. Então o praticante deverá dirigir para o seu
interior a contemplação olhando para dentro dos pensamentos que emergem na sua mente e
fluem incessantemente; ele descobrirá que pensamentos do passado se foram, que os
presentes não permanecem e que os do futuro ainda não chegaram. Então deverá indagar a si
próprio: Qual dentre estes pensamentos é minha mente? Deste modo ele perceberá que sua
falsa mente, que assim surge e cai, é também irreal e destituída de Realidade. Gradualmente,
ele tornar-se-á familiar com esta irrealidade e sua falsa mente chegará então a um término por
si mesma. Onde a falsa mente queda, a Realidade aparece."
(Yin Shih Tsu: Meditação Experimental para a Promoção de Saúde "Ching Tso Wei Shang Shih
Yen T an"; do livro, Lu K uan Yu - The Secrets of Chinese Meditation, London, Rider).
4. Buddhist Society, London - Buddhism (curso e palestras).
5. Nas escrituras budistas, existem outras divisões destes agregados em 2 e 3 grupos. Assim,
não há nada absoluto ou final acerca destes cinco agregados; eles são simples classificações
abstratas usadas na análise budista da existência humana, úteis como categorias analíticas,
mas eles próprios conceitos, assim como "indivíduo" é um mero conceito, não tendo nenhuma
realidade permanente.
6. E.J.Thomas - The History of Buddhist Thought (Routledge&Kegan Paul, London, 1971).
7. J.Blofeld - The Tantric Mysticism of Tibet (V. bibliografia).
8. Ven. S.Sangharakshita - The Wheel and the Path (V. bibliografia).
Bibliografia Sumária
(a) A Roda da vida no contexto da arte tibetana:
B.Ch.Olschak & Geshé T.Wangyal - Mystic Art of Ancient Tibet (G.Allen & Unwin, London,
1973).
Ch.Trungpa, Rinpoche - Visual Dharma: The Buddhist Art of Tibet (Shambhala, Berkeley, 1975).
J. & M.Arguelles - Mandala (Shambhala, Berkeley, 1972).
(b) A Roda da Vida no contexto da filosofia/religião tibetana:
L.A.Waddell - Tibetan Buddhism (Dover Publications Inc., New York, 1972).
Lama Anagarika Govinda - Foundations of Tibetan Mysticism (Rider, London, 1975).
E.J.Thomas - The History of Buddhist Thought (Routledge & Kegan Paul, London, 1971).
J.Blofeld - The Tantric Mysticism of Tibet (E.P.Dutton&Co.,Inc., New York, 1970).
D.I.Lauf - Secret Doctrines of the Tibetan Books of the Dead (Shambhala, Berkeley, 1977).
W.Y.Evans-Wentz - The Tibetan Book of the Dead (Oxford University Press, NY, 1971).
Ven. S.Sangharakshita - The Wheel and the Path (em The Middle Way, Nov. 1971, Vol.XLVI,
Nº3).
Lama Chime Rinpoche - The Wheel of Life (idem).
G. Du Pre - Science and the Wheel of Life (em The Middle Way, Febr.1978, Vol.52, Nº4).
(c) O ensinamento do Buda no vernáculo:
M.Percheron - O Buda e o Budismo (Livraria Agir Editora, SP, 2ª ed., 1968).
Ch.Humphreys - O Budismo e o Caminho da Vida (Editora Cultrix, SP, 1976).
Ven. H.Saddhatissa - O Caminho do Buda (Zahar Editores, RJ, 1977).
A.Bareau - Buda (2ª ed., Colecção Aquarius, Editorial Presença, Lisboa, 1975).
R.A.Gard - Budismo (Zahar Editores, RJ, 1964; Editorial Verbo, Lisboa/São Paulo 1981).
E.Conze - Budismo: Essência e Desenvolvimento (Civilização Brasileira, RJ, 1973).
Dr G. da Silva & R. Homenko - Budismo: Psicologia do Autoconhecimento (Editora Pensamento,
SP, s.d.)
Dennis Gira - Budismo: História e Doutrina (Editora Vozes, Petrópolis, 1992)