A. S. Franchini - Resumo da ópera _ As histórias que contam as melhores óperas de todos os tempos.txt

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A. S. FranchiniResumo da pera: as histrias que contam as melhores peras de todos os temposTexto de acordo com a nova ortografiaCapa: Ivan Pinheiro Machado Ilustrao: Alhobik/ShutterstockPreparao: Patrcia YurgelReviso: Lia CremoneseCip-Brasil. Catalogao na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJF89rFranchini, A.S. (Ademilson S.), 1964-Resumo da pera: as histrias que contam as melhores peras de todos os tempos / A.S. Franchini. - 1. ed. - Porto Alegre, RS: L&PM, 2013.ISBN 978.85.254.3031-11. Fico brasileira. I. Ttulo.13-03579 CDD: 869.93CDU: 821.134.3(81)-3 A.S. Franchini, 2013Todos os direitos desta edio reservados a L&PM EditoresRua Comendador Coruja, 314, loja 9 - Floresta - 90220-180Porto Alegre - RS - Brasil / Fone: 51.3225.5777Pedidos & Depto. comercial: [email protected] conosco: [email protected]:Prefcio - peras para ler - A.S. FranchiniFidlio - Ludwig van BeethovenI - Na porta da prisoII - No calabouoNorma - Vincenzo BelliniI - Um sonho terrvelII - O sacrifcioCarmen - Georges BizetI - A cigana e Don JosII - O toureadorIII - Nas montanhasIV - Sangre y muertePellas e Mlisande - Claude DebussyI - No bosqueII - O anelIII - Os cabelosIV - A espadaV - A morteLucia di Lammermoor - Gaetano DonizettiI - O castelo de RavenswoodII - O casamentoIII - A louca na escadaO elixir do amor - Gaetano DonizettiI - O Dr. DulcamaraII - O casamentoO guarani - Carlos GomesI - O castelo de Dom AntnioII - A gruta do selvagemIII - Os prisioneirosIV - O fim do casteloFausto - Charles GounoudI - O gabinete do Dr. FaustoII - A tabernaIII - No jardimIV - O dueloV - A noite de WalpurgisRinaldo - Georg Friedrich HaendelI - O rapto de AlmirenaII - O rapto de RinaldoIII - A gruta do magoA flauta mgica - Wolfgang Amadeus MozartI - A demanda do prncipeII - A provaoLa Gioconda - Amilcare PonchielliI - A bruxaII - O rosrio e a fugaIII - O canto dos gondoleirosIV - A mrtir do amorLa Bohme - Giacomo PucciniI - Vspera de natalII - A musa do MomusIII - A barreira do infernoIV - Primavera do adeusTosca - Giacomo PucciniI - O fugitivoII - A torturaIII - A farsa macabraO barbeiro de Sevilha - Gioacchino RossiniI - Figaro qua, Figaro lII - A intil precauoSalom - Richard StraussEugene Onegin - Piotr TchaikovskyI - As duas irmsII - Crime e castigoTristo e Isolda - Richard WagnerI - A viagemII - Na corte do Rei MarkenIII - A noite eternaA valquria - Richard WagnerPrembulo: o ouro do renoI - A casa do freixoII - BrunildeIII - O anel de fogoComplementoAida - Giuseppe VerdiI - A princesa escravaII - O triunfadorIII - O traidorIV - A punioLa traviata - Giuseppe VerdiI - A Camlia que eu te deiII - A casa no campoIII - A morte da CamliaBibliografiaPrefcioperas para lerA. S. FranchiniA pera um gnero musical que se caracteriza pela intensidade dramtica. Tudo ali se faz por meio da exacerbao - exacerbao vocal, antes de tudo. Uma pera o triunfo da voz exclamada, no havendo ato importante que no se pratique sem o acompanhamento de um bom d de peito. Herdeira direta do teatro grego, em que os coros tinham papel de destaque, a pera se tornou um gnero dramtico no qual o canto assumiu o protagonismo da representao. Apesar de, na maioria dos casos, tambm possuir o chamado recitativo - parte do texto que falado, e no cantado -, o canto, nesta modalidade de representao, foi elevado categoria de arte suprema, a ponto de, muitas vezes, os compositores ingressarem no exagero das chamadas coloraturas, meras peas de exibio vocal destinadas a pr em destaque as virtudes vocais de prima-donas e tenores excepcionalmente dotados.Alguns estudiosos sugerem que a voz elevada tenha se originado em razo da acstica precria dos primeiros teatros, e que, com o passar do tempo, os dotes vocais privilegiados dos cantores tenham se imposto naturalmente apreciao do pblico, a ponto de se tornarem o centro das atenes. Seja como for, toda essa exacerbao vocal se coaduna com perfeio alta dramaticidade de uma pera. Numa pera triunfa, cenicamente falando, quem expressa suas emoes de maneira mais intensa, da a sucesso de gritos, espasmos, punhais em riste e outros paroxismos dramticos que acabam fazendo com que a trama derive, muitas vezes, para a extravagncia. Pois uma pera s verdadeiramente boa quando caminha, em perfeito equilbrio, sobre dois fios estendidos: do sublime e do pattico.A msica, no entanto, no a nica coisa que importa em uma boa pera. Alm de expresso musical, ela tambm uma forma de expresso literria, uma vez que conta uma histria, criada e desenvolvida no chamado libreto, que nada mais do que o seu roteiro. Talvez exista alguma pera abstrata perdida por a, mas a regra tradicional exige o enredo, a histria palpitante que faz mover todas as engrenagens da encenao.E aqui chegamos justamente ao propsito deste livro: o de divulgar as histrias que os personagens representam em cima do palco, j que todas elas surgiram de adaptaes de obras literrias famosas, ou mesmo de histrias originais que inspiraram posteriormente os compositores das partituras a criarem suas melodias. A msica, nesse caso, nada mais do que a ornamentao meldica de um texto, no constituindo exagero, portanto, definir-se a pera como uma literatura cantada.As peras que voc vai ler a seguir so, antes de mais nada, criaes literrias dos mais diversos autores - escritores e libretistas que se empenharam em nos contar histrias de amor, de renncia, de herosmo e de todos os sentimentos que enobrecem (e, eventualmente, tambm envilecem) o esprito humano. Todas gozam de um sucesso persistente e so, sem exceo, consideradas obras-primas do gnero. Os textos aqui apresentados so recriaes livres dos textos originais e seguem o mesmo esquema cnico proposto nos libretos, com o desenvolvimento romanceado de todos os seus atos e cenas. A fim de acentuar a impresso de estarmos assistindo s peras ao vivo, como se estivessem transcorrendo num palco, escolhi narr-las no modo presente.Fidliode Ludwig van BeethovenFidlio, de 1805, foi a nica pera composta por Beethoven.Ainda que alguns crticos considerem que a pera no seja o melhor meio de expresso para o talento do clebre compositor alemo, a maioria admite que a sua nica experincia no gnero possua qualidades incontestveis. Para muitos, ela alcanou a estatura de obra-prima graas grandiosidade do tema e aos voos lricos incomparveis desse verdadeiro gnio musical.Fidlio tem uma trama simples e altamente melodramtica, como manda a boa regra do gnero. Subintitulada O amor conjugal, esta pera exalta a conduta exemplar de uma esposa cuja devoo ao marido no se detm diante de nada, nem mesmo do sacrifcio da sua prpria vida. O enredo foi inspirado num fato real ocorrido durante a Revoluo Francesa, dramatizado por Nicolas Bouilly. O elemento rocambolesco da troca de sexo - modo empregado pela esposa devotada para infiltrar-se na priso onde jaz seu esposo - era um expediente muito utilizado nas tramas da poca.Beethoven fez mais duas verses desta pera, j que a original havia sido um completo fracasso. A ltima, de 1814, tornou-se finalmente um sucesso, sendo a mesmaque, ainda hoje, circula pelos palcos.INA PORTA DA PRISOEstamos em fins do sculo XVIII.Nos arredores de Sevilha existe uma priso imunda, onde os inimigos do rei esto encarcerados. Ali tambm esto presos, em muito maior nmero, os desafetos dos amigosdo rei. Sob o pretexto de proteger a coroa, esses cortesos inescrupulosos conseguem levar priso qualquer miservel que, por um motivo qualquer, tenha se tornadoum empecilho s suas ambies.Numa masmorra ftida est um prisioneiro chamado Florestan, homem ntegro e desgraado. Por ter, num momento de total imprevidncia, resolvido denunciar os crimes do diretor da priso, Florestan viu-se obrigado a desfrutar dos horrores daquele antro infernal.A priso uma espcie de vespeiro maldito, em torno do qual dezenas de vidas miserveis gravitam. Como um polvo insacivel, ela lana para alm dos muros os seus tentculos, tornando todos, dentro e fora, seus virtuais prisioneiros.Ao p da torre est a pea minscula e sufocante onde moram o carcereiro e a sua filha. O pai se chama Rocco; e a filha, Marzelline. Os dois so criaturas infelizes, pois no passam de lacaios de Don Pizarro, o diretor da priso.Marzelline est do lado de fora, engomando os trapos dos presidirios, um luxo irnico dispensado pela administrao prisional. Ao p dela est Jaquino, o porteiro da priso, empenhado na sua luta diria e inglria de cativar a ateno da bela moa.Um sujeito acabou de transpor o porto que d acesso ao presdio e j se afasta rapidamente, permitindo que Jaquino retome as suas investidas sobre Marzelline.- Pronto, agora me oua! - diz ele, como um pedinte.- Que sujeito maante! No v que estou trabalhando? - diz ela, baixinho, a si mesma.Marzelline tenta enfrentar com resignao a sua sesso diria de assdio, mas a insistncia do porteiro mostra-se superior s suas foras.- Por que no me deixa em paz, hein? - diz ela, afinal.- Por favor, d-me s um pouquinho da sua ateno!A jovem, exausta, suspira, vencida.- Est bem, fale de uma vez!- Ah, assim emburrada eu no quero! Olhe-me com ternura! sempre assim. A simples ateno j no basta, devendo ser temperada com o condimento da ternura.Definitivamente, no devo ceder-lhe um palmo a mais de terreno!, pensa ela, antes de escutar algo absolutamente imprevisto:- Marzelline, por que voc no se casa comigo? J escolhi at o dia!- O qu?!Neste momento uma batida salvadora soa no porto.- Chifres de Belzebu! - exclama Jaquino.Enquanto ele vai ver quem , a jovem suspira, aliviada, pois em certos momentos a teimosia do importuno chega a parecer-lhe assustadora.Jaquino recebeu um embrulho, que pe logo de lado.Se o coitadinho soubesse que j escolhi Fidlio para meu esposo!, pensa ela, com alguma piedade.E se a coitadinha soubesse que Fidlio no um homem, mas uma mulher!, podemos bem pensar ns, pois a verdade que Fidlio no passa de Leonora, esposa de Florestan, o prisioneiro mais odiado pelo srdido Pizarro. Disfarada de homem, Leonora conseguiu obter uma vaga de auxiliar do pai de Marzelline, o que lhe possibilita ter contato direto com o infeliz esposo.Jaquino volta carga, mas Marzelline sequer o olha, pois tem seu pensamento voltado para Fidlio.- Que tal me dar j o seu sim? - diz Jaquino.- No, no! Jamais o darei, entendeu?Diante da recusa categrica, Jaquino recomea a ciranda das suas queixas: Marzelline fria e feita de pedra, e seu corao desconhece a piedade.A jovem, porm, mostra-se irredutvel, pois sabe que diante do menor descuido o importuno pode readquirir novas esperanas.- Por favor, Jaquino, deixe-me em paz!- Mas como?! No posso sequer estar na sua presena?Neste momento batem novamente porta. Oh, aquelas sacrossantas batidas! Aos ouvidos da jovem elas soam sempre como uma libertao!Jaquino, rogando uma nova praga, vai ver quem . Parece-lhe que j abriu aquela porta amaldioada mais de duzentas vezes. Quando ele regressa, porm, uma voz catarrosasurge do interior do cubculo, chamando-o sua presena.- Sangue de Judas...! - exclama Jaquino.- Vamos, v ver logo o que deseja meu pai! - diz a jovem, outra vez aliviada.Enquanto o infeliz vai ver o que quer o velho, Marzelline volta a pensar no seu amado Fidlio. Desde a sua chegada ao presdio que a possibilidade de casar-se com Jaquino virou fumaa no seu esprito. Fidlio passou a ser a nova chama a arder em seu corao. De olhos fechados, ela pensa no quo feliz ela ser no dia em que puder cham-lo de esposo! Que felicidade quando puder desfrutar junto dele todas as doces rotinas de um lar!Como que respondendo a uma invocao, dali a instantes surge Fidlio em pessoa. O jovem vem carregando um enorme embrulho. Os olhos de Marzelline brilham ao avistar seu amado.- Papai, Fidlio est aqui! - exclama ela, alterada.O jovem tem os cabelos presos por baixo de um gorro, enquanto o rosto, sujo com um pouco de carvo, d a aparncia de uma barba cerrada h pouco raspada.- Ah, ele j voltou do ferreiro? - diz o velho pai de Marzelline, surgindo do interior do cubculo.- Salve, mestre! - cumprimenta Fidlio, depositando no cho a sua pesada carga. - Aqui esto as provises para os detentos, conforme o senhor pediu.Junto com as provises, ele deixa cair uma grossa corrente.- Eis a maldita serpente de ferro! Atrasei-me porque o ferreiro demorou a consert-la.O velho Rocco toma a corrente nas mos.- Est slida o bastante?- Nem dez prisioneiros num cabo de guerra conseguiro arrebent-la! Aqui est a fatura.O velho toma o papel e analisa os custos, ansioso. O danado consegue sempre extrair um descontinho a mais!, pensa ele, satisfeito. Quer provar-me que ser um bom esposo para a minha Marzelline!- Continue assim, rapaz, e ter logo o seu prmio!- Oh, no fao isso pela promessa! - diz Fidlio, sem jeito.- Vamos, vamos! Sei bem o que quer!Ao ouvir isto, Marzelline sente o corao palpitar. Fidlio sequer a cumprimentou, mas pelo empenho demonstrado fica mais do que evidente que no deixou de pensar nela um nico instante. Ela o olha com esta certeza intensa e possessiva.Pobre menina! No devo lhe encorajar mais as esperanas!, pensa Leonora-Fidlio.Ao mesmo tempo, porm, sabe que no deve perder as graas do velho carcereiro, nico meio que tem de obter acesso ao seu esposo aprisionado.Enquanto isso, do vo da porta, um Jaquino aflito a tudo observa.- Inferno e danao! A esto todos a tramarem novamente contra a minha felicidade!- Assim que o governador retornar de Sevilha, farei de voc o meu genro! - diz Rocco, para deleite de Marzelline e apreenso de Fidlio. Quanto ao pobre Jaquino, sente o desespero envolver-lhe a alma como uma mortalha gelada.Ao perceber que sua filha est apaixonada, o velho decide lembr-la tambm de algo que julga ainda mais importante para a felicidade conjugal: o ouro.- O amor!... Bela coisa, sem dvida! Mas no esqueam que um casamento no se alimenta somente de amor, mas tambm de dinheiro. o ouro reluzente que afasta as trevas das preocupaes! Quem, noite, janta somente o amor, na manh seguinte levanta sempre com fome!Neste momento, o esprito nobre de Fidlio sente o impulso de rebater a tese mercantil do velho.- De fato, o ouro importante, mestre Rocco, mas o que realmente importa para a felicidade conjugal o amor. o verdadeiro tesouro que h sobre a Terra!Ento, antes que o velho se inflame na defesa das suas convices, Fidlio invoca um novo assunto.- Mas h algo que considero to importante quanto o amor: a confiana. E esta, infelizmente, ainda lhe falta com relao a mim.- Ora, mas o que est dizendo? - diz o carcereiro, atnito.- Perdoe a impertinncia, caro mestre, mas isto sempre me vem cabea quando o vejo retornar dos calabouos, exausto e sem flego. Por que no permite que eu o acompanhe em suas descidas?- Por mim aceitaria a sua ajuda, mas todos sabem que o regulamento probe que outra pessoa, alm de mim, se aproxime dos prisioneiros.- Fidlio tem razo - diz Marzelline, tomando o partido do amado. - O senhor no pode mais atender sozinho s necessidades de todos os detentos.- Bem, talvez eu possa abrir uma exceo - diz Rocco, cedendo. - Mas h uma cela da qual voc no dever jamais se aproximar!- Trata-se daquela onde jaz aquele pobre miservel, preso h mais de dois anos, no mesmo? - diz, ansiosa, a esposa disfarada.- Ele mesmo.- E por que o cercam de tanto mistrio?- A ns isso no interessa. Alm do mais, ele no permanecer preso por muito tempo.- Oh, ento ele ser libertado? - exclama Fidlio, agradavelmente surpreso.O velho sorri cinicamente.- Completamente libertado, meu jovem. Ningum mais liberto que um morto.Fidlio fica branco e as pernas fraquejam.- O que diz?! Ento iro execut-lo?- No ser preciso. Recebi ordens do diretor para reduzir drasticamente a sua rao. Nos ltimos dias ele tem comido menos que um pinto, e logo dever morrer de inanio, na mais completa escurido.A verdade que o marido de Leonora, alm de mal alimentado, vive completamente s escuras, sem direito a um toco de vela.- Sem comida e sem luz! - exclama Marzelline, horrorizada. - Bem faz em evitar que Fidlio o acompanhe, poupando-o dessa negra viso!- Por qu? A mim nada importaria! - diz Fidlio, num engasgo.Rocco, neste instante, parece impressionado com o destemor de Fidlio.- Pensando bem, talvez seja bom que presencie essas coisas - diz ele, finalmente convencido. - Se pretende tornar-se meu sucessor, deve aprender a endurecer, desde j, o seu corao!E, assim, o carcereiro decide solicitar ao governador autorizao para que seu assistente passe a acompanh-lo nas suas visitas ao mais infeliz dos prisioneiros.Antes, porm, que Rocco tome suas providncias, o diretor da priso chega junto com alguns soldados. Imediatamente o velho ordena a Marzelline e aos demais que se retirem.- Vamos l, carcereiro, alguma novidade? - diz Pizarro, no seu tom rspido habitual.- Nenhuma, sr. Diretor.- E os documentos, onde esto?- Ei-los.Pizarro comea a ler os documentos, uma srie de memorandos do governador destinados a melhorar as condies de vida dos infelizes prisioneiros.- A mesma lenga-lenga demaggica de sempre! - diz ele, revirando as pginas. - Se fosse seguir risca cada regrinha destas, concedendo-lhes todos estes privilgios, Sevilha inteira iria querer mudar-se para trs das grades!No meio do palavrrio burocrtico, porm, h uma advertncia endereada expressamente a ele, diretor. O governador alerta-o de que o ministro pretende fazer, a qualquer momento, uma visita surpresa priso. Chegou-lhe orelha o boato de que andam ocorrendo muitas prises irregulares em todo o reino, e Sua Excelncia deseja saber se tal coisa verdade, diz o governador.- O miservel pretende cortar despesas outra vez, mandando soltar os malfeitores! - rosna o vil Pizarro, encolerizando-se de uma vez. - Aqui s h malfeitores e conspiradores!Ento, subitamente lhe ocorre que o ministro, ao avistar Florestan atirado na mais srdida das masmorras, certamente haver de querer saber o motivo de tal tratamento.Ele bem capaz de querer escutar o que esse miservel tem a dizer em sua defesa!, pensa ele, ao mesmo tempo em que concebe um meio de impedir que isso acontea. Muito bem, chegou a hora desse conspirador maldito saber que a vitria finalmente minha!- Capito, suba torre de vigia e faa soar a corneta assim que avistar uma carruagem vindo pela estrada real de Sevilha! - diz Pizarro, num sonoro berro. - E muita ateno, pois a sua cabea responder por qualquer descuido!Volta-se para Rocco. Na sua mo h uma bolsa recheada.- Muito bem, carcereiro, chegou a sua hora de dar adeus misria. Tome isto; trata-se apenas de um adiantamento.O velho, cujo amor pelo ouro bem conhecemos, fica encantado, o que deixa o diretor agradavelmente surpreso: no ser preciso oferecer mais.- O que devo fazer, sr. diretor, em troca de tamanha generosidade?- No se trata de generosidade, mas de um negcio. Conheo bem o seu imperturbvel sangue frio. Por isso encarrego-o, agora, de uma altssima misso.- Uma altssima misso! - exclama Rocco, numa ansiedade feliz. - Que misso essa, senhor?O diretor aproxima a boca da orelha do carcereiro e lhe sussurra:- Matar um patife...!- O que disse?- No entendeu? O Estado precisa que voc liquide um de seus piores inimigos!Rocco, porm, apesar de amar o ouro, sente-se horrorizado diante da ideia.- Lamento muito, sr. Diretor, mas no posso faz-lo!- Imbecil! No se trata de poder ou no poder, mas de executar uma altssima ordem!- Lamento, sr. Diretor, mas a atribuio de matar compete ao carrasco.- Co desdentado...! Est bem, ento eu mesmo o farei! Desa j masmorra e cave uma cova ao lado da cisterna. Eu descerei em seguida, sob a proteo de um disfarce.Rocco, sem meios de desobedecer, tenta aliviar a sua conscincia repisando o seu argumento de que a morte para aquele desgraado ser uma coisa boa, afinal.- O punhal, para ele, talvez seja a sua verdadeira libertao - diz o velho.- Para mim, estou certo de que ser - diz Pizarro. - V, estrupcio, v de uma vez!Rocco parte, enquanto o diretor toma o sentido contrrio. Quase ao mesmo tempo emerge das sombras a figura de Fidlio. Seu rosto est tomado por uma profunda angstia.- Ento verdade que o corao desse tigre desconhece, de todo, a piedade? - diz a esposa disfarada.Subitamente, porm, em meio tormenta do desespero, volta a brilhar em seu peito a luz da esperana.- Vem, esperana! Desce sobre a minha alma e expulsa dela o desnimo, para que eu possa cumprir com o meu sagrado dever de esposa!Neste instante, Marzelline surge do interior da casa, a fugir sempre do seu incansvel perseguidor.- Oh, Jaquino, pelo amor de Deus, poupe-me dos seus odiosos lamentos!- Mas para voc eu era antes o doce Jaquino! O que houve para que tudo mudasse?- Tudo no passou de um lamentvel engano! No v, ento, que h muito tempo amo Fidlio?- Marzelline! Como espera que eu escute isso sem sentir rancor? Acha que irei tolerar tal desprezo sem buscar uma vingana?Rocco, que esquecera de algo, reaparece e d de cara com a filha e o pretendente.- Brigando os dois, outra vez?- O que quer, meu pai? Ele como um sabujo, a me perseguir por toda parte!Fidlio, ao ver que Rocco retorna, lhe dirige a palavra.- Por que no permite, senhor, que os prisioneiros tomem um pouco de sol no jardim? Est um dia to bonito, e isso certamente lhes dar um aspecto melhor.- No posso permitir sem a autorizao do governador - diz Rocco.Marzelline, contudo, ajuda Fidlio a convenc-lo, de tal sorte que logo em seguida os prisioneiros so conduzidos at a entrada do jardim. Entre os desgraados, porm, no est o esposo de Leonora-Fidlio.Um coro de alvio escapa do peito dos prisioneiros, quando veem-se finalmente transferidos das celas midas e trevosas para o brilho e o frescor da manh.- Que maravilha contemplar este sol! - entoam as vozes. - Que bno aspirar este ar! Sim, a cela um tmulo, enquanto a vida est aqui!Um lamento, contudo, vem juntar ao jbilo uma nota amarga:- Liberdade, oh, doce liberdade! Quando tornars a ser nossa?Ao mesmo tempo em que festejam e lamentam, os prisioneiros tm olhos e ouvidos atentos, acostumados que esto vigilncia dos seus opressores.O dia transcorre at que Rocco, que havia sado para solicitar a autorizao para que Fidlio pudesse acompanh-lo s masmorras, retorna.- E ento...?! - diz Fidlio, agoniado.- Hoje mesmo voc descer comigo aos calabouos - diz o velho, sorridente.Fidlio, agradecido, lana-se aos braos do carcereiro, num transporte de gratido.- Iremos quando? Agora, j?- Sim, mas leve consigo uma p, pois devemos cavar uma sepultura.Fidlio torna-se plido como um sudrio.- Em nome de Deus! Enterrar quem?- Florestan, o desafeto do diretor.- Ento ele j est morto...?- Ainda no, mas como se j estivesse. Vamos cavar a sua sepultura ao lado da cisterna. Como no deve mais receber alimentos, o melhor mesmo que morra de uma vez.- E quem ir cravar-lhe o odioso punhal? O senhor?- Sou um carcereiro, e no um carrasco! - diz o velho, indignado. - O sr. Diretor se encarregar disso. Voc parece j no ter mais a mesma vontade de descer, no ?- Oh, tenho sim, sr. Rocco! Fao questo de acompanh-lo!- Ento basta de conversa. Cumpramos com o nosso dever.Neste momento Marzelline d um grito de alerta.- Papai! O sr. Pizarro est retornando!O velho espreme o queixo, nervoso.- Maldio! Ele no gostar nada de ver esta gente respirando ar puro! Vamos, recolham imediatamente s celas os prisioneiros!Mas j no h mais tempo para nada, e Pizarro, com o ar encolerizado, vem pedir explicaes ao carcereiro imprudente.- Idiota! Quem lhe deu ordens para trazer para fora estes criminosos?- Bem, sr. Diretor, que, sendo hoje aniversrio do rei, achei que seria digno de sua misericrdia conceder a desgraados uma migalha de liberdade.Os olhos de Pizarro procuram avidamente por entre a turba o prisioneiro odiado.- Fique tranquilo, sr. Diretor - diz Rocco, compreendendo tudo. - Florestan ainda jaz em sua masmorra, disposio da vossa ira. Por que desperdi-la com esses outros?- Muito bem, mas devolva-os imediatamente s suas celas! No quero saber de confuso aqui em cima. E que isso nunca mais se repita! Agora v fazer a sua parte: cave de uma vez a maldita tumba e no torne a subir sem ter concludo a tarefa!Fidlio e o velho carcereiro tomam o rumo indicado, mas, enquanto Rocco demonstra m vontade, Leonora traz o semblante repleto de radiosa esperana, pois ter a chance de impedir que o punhal de Pizarro desa sobre o peito do seu amado esposo.IINO CALABOUOEstamos agora no horrendo calabouo onde Florestan jaz prisioneiro. Agrilhoado parede de pedras midas e escuras, ele est sentado no cho, quase sem foras. Ao lado da cela est a cisterna, coberta de entulhos. Um nico candeeiro ilumina com sua luz mortia o ambiente soturno. Um odor insuportvel de morte e degradao parece desprender-se de cada pedra daquele covil.- Trevas e solido!... Silncio e abandono! - balbucia o sentenciado.Aps relancear as vistas pelo ambiente, algo que j fez vezes sem conta, ele parece deixar-se tomar por um impulso repentino de resignao.- Cumpro a pena que me imps a justia divina, e dela no devo me queixar, pois, na poca em que a primavera sorria para mim, atrevi-me a falar a verdade. Pois bem, a recompensa aqui est!Florestan chacoalha as correntes, que parecem gargalhar.- Consolao, s possuo verdadeiramente esta: a de ter cumprido com o meu dever.As correntes movem-se sozinhas, produzindo nova risada.Neste momento Rocco e Leonora-Fidlio chegam ao antro, por uma escada escura. Florestan observa, atentssimo, aquela luz pequenina crescer, e com o corao aos pulos que ouve a voz daquela que ainda no sabe ser sua esposa dizer:- Vento do Glgota! Que frio terrvel faz aqui!O rudo das ferramentas que trazem abafa o som da voz adorada, e Florestan agua ainda mais os ouvidos.- Comece a cavar, e logo passar o frio - diz o velho.Leonora, com a mo em viseira sobre os olhos, tenta enxergar algo na penumbra.- Onde est o prisioneiro?- Ali, no canto - diz Rocco, apontando-o.Leonora mal avista a figura encolhida do esposo.- Parece morto!- Tanto melhor. Vamos usar as ferramentas e fugir deste antro gelado.O velho e a jovem travestida de homem pem-se a cavar no entulho, at que o primeiro finca a picareta numa slida laje.- Ajude-me a ergu-la - diz ele.Rocco e Leonora consomem seu flego no esforo de erguer a laje.- Vamos, fora! - geme o velho, vergando as juntas, mas o esforo resulta intil. - Teremos de quebr-la! - diz ele, sentando-se sobre o entulho para tomar um gole da botija que trouxe consigo.Enquanto isso, Leonora descobre que o prisioneiro se movimenta.- O morto acordou - diz o velho. - Cave, enquanto converso com ele.Rocco pergunta a Florestan se ele conseguiu repousar um pouco.- Como hei de repousar nesta cloaca? - lamenta-se o cativo.Esta voz! de Florestan!, pensa Leonora, caindo desmaiada sobre o entulho.- Diga-me, pobre infeliz: deseja algo de mim? - diz o velho.A pergunta traz uma entonao de quem j concede um ltimo pedido.- Sei que o senhor possui um bom corao, os seus olhos o dizem! - sussurra o prisioneiro. - D-me notcias de minha adorada esposa! Ela est em Sevilha!Pobre homem! Se soubesse que ela ali ao seu lado, cavando a sua sepultura!- Sinto muito, mas isso no posso fazer - diz Rocco, com uma entonao amigvel.- Canalha! Por que no? - grita o prisioneiro, tornando-se subitamente irado. - Diga-lhe que estou aqui, algemado a estas correntes!Florestan, no seu desespero, encontra foras para chacoalhar mais uma vez as vboras de ferro que o mantm preso parede.- Patife! Avise-a de que estou aqui!- No insista, pois isso no posso fazer.Durante uma terrvel frao de segundos o prisioneiro se v, numa nvoa de delrio, a estrangular o velho com suas prprias correntes, at o instante em que se reconhece sem foras para faz-lo.- Um gole dgua... - pede ele suplicante.- Fidlio, traga o cntaro - diz Rocco.Leonora, j recobrados os sentidos, corre at ambos, carcereiro e prisioneiro.- Vamos, beba - diz Rocco, encostando o cntaro aos lbios secos do sentenciado.Florestan reconhece, aps o primeiro gole, que vinho o que bebe. Os olhos de Florestan pousam, meio brios, sobre Fidlio.- Quem este? carcereiro, tambm?- o meu aprendiz - diz Rocco, aproveitando a pausa para tomar, ele prprio, um bom gole. - Este jovem ser o meu futuro genro.- Aprendiz de carcereiro? - diz Florestan. - Bela profisso!Leonora treme como uma vara, o que no escapa ao velho.- Ainda treme, rapaz?- Esta voz... Ela ecoa no fundo do meu corao!- Sim, uma voz terrvel a dos sentenciados! - resmunga o velho, empinando a botija.Subitamente, o vinho faz com que o prisioneiro seja possudo por uma espcie de ternura.- Obrigado, bom velho! - diz ele, devolvendo a botija. - Que os cus o recompensem!- Pobre homem! Antes do que imagina, h de estar l! - diz o velho, parte.Leonora, porm, sente o corao vacilar entre a dor e a euforia: Aproxima-se a hora, esposo adorado, de v-lo perecer sob o punhal ou de v-lo libertado pelas minhas mos!.Leonora saca, ento, do bolso um pedao de po.- Tome! - diz ela, estendendo-o ao prisioneiro.- Pare, no podemos aliment-lo! - diz o velho, alarmado.- Ora, pois o senhor j no lhe deu de beber? Que importa que tambm coma um naco de po?- Est bem, d-lhe logo o alimento!Florestan, a um passo do martrio, faz a sua ltima ceia de vinho e de po. Depois, repete ao aprendiz a promessa, como se Deus fora, de tambm recompens-lo no cu.- Muito bem, basta de pieguices! - exclama Rocco. - hora de levar adiante a coisa.Apesar de meio embebedado, ele ruma at a porta e d um assovio estridente.- O horrendo sinal! - exclama Leonora, gelada de pavor.Florestan tambm pressente que esse assovio o anncio fatal da sua morte.- A catstrofe, afinal...! Ento verdade que jamais tornarei a ver minha amada Leonora!- No se desespere, pobre homem! - diz-lhe a esposa, sem poder se revelar. - No esquea que h uma Providncia que vela incessantemente por voc!Neste instante surge porta no a Providncia, mas a Fatalidade sob a figura diablica do diretor da priso. Pizarro traz o rosto velado pelo manto, e com a voz abafada que indaga ao carcereiro:- Est tudo pronto?- Sim, sr. Dire...Um piso providencial obriga Rocco a interromper-se.- Ai! S falta abrir a cisterna!- Idiota! Se ainda falta abrir a cisterna, no est tudo pronto!Depois, voltando-se para Fidlio, ordena-lhe que retire as correntes que mantm o cativo preso parede.- Mas mantenha-o algemado - acrescenta Pizarro, vilo precavido.Ento, sacando o punhal das profundezas do manto, ele avana na direo de Florestan.- Afaste-se, lacaio! - diz Pizarro a Fidlio, brandindo o ao.Pizarro permanece com o brao erguido, tapando o rosto. Seus olhos, porm, lanam em direo a Florestan chispas de um dio mortal.- Que se rompa, de uma vez, o selo do segredo! - diz ele, descobrindo o rosto, afinal. - Sou eu quem vai executar a punio pela qual clamam todos os cus!- Pizarro! - diz Florestan, aps reconhecer os traos do seu rival. - Ento voc, vilo infernal?- Sim, sou aquele a quem denunciaste, e de quem tens, agora, todos os motivos para temer!- Nada temo de um vil assassino!O punhal se retorce nas mos de Pizarro como um ente dotado de vida.- Sangue de Lcifer! - diz ele, se arremessando na direo do condenado.Antes, porm, que o ao penetre o corao de Florestan, Leonora, em suas vestes de homem, interpe-se entre ambos.- Para trs, monstro perverso!Diante da surpresa, as olheiras de Pizarro tornam-se ainda mais negras.- Inferno e danao! Como ousa intrometer-se, vil lacaio?- Antes que mate este homem, ter de perfurar o meu corao!Leonora expe o peito audaz.- Saia da frente! - diz Pizarro, afastando com um empurro a mulher que todos ainda supem um intrpido jovem.Leonora, contudo, em novo arremesso, interpe-se outra vez diante do assassino.- Antes que mate Florestan, ter de matar sua esposa!Ento, um estupor tremendo desce sobre o assassino e a vtima.- Leonora! voc! - exclama Florestan.A esta altura Fidlio j retirou o gorro, deixando escorrer sobre os ombros a cascata negra dos seus cabelos.- Troves do inferno! - grita o diretor. - Mas o que isso?Sem saber o que fazer, Pizarro mantm o punhal paralisado, at o instante em que decide levar adiante a sua ira.- Pois morrero ambos! - diz ele, apontando o punhal para o peito de Leonora. - A megera morrer primeiro!Leonora, porm, saca das profundezas do seio uma pistola engatilhada.- o que veremos! - diz ela, colando o cano ao nariz do diretor.Neste exato instante soa ruidosa, l fora, a trompa do vigia. a carruagem do ministro, que chega para a providencial inspeo ao presdio.- Sangue de Judas! - exclama o assassino. - o ministro!Pizarro fica paralisado, at que Jaquino e dois guardas da comitiva ministerial surjam pela porta do calabouo.- Os malditos j zombam de mim! - diz ele, ao ver Leonora abraar-se a Florestan. - Vamos, carcereiro, saiamos daqui!Rocco, porm, une-se alegria do casal, deixando que Pizarro suba sozinho.***Estamos no ptio, outra vez. No mesmo jardim onde outrora os prisioneiros haviam respirado um pouco o ar da liberdade, esto o ministro Don Fernando e Pizarro. Os prisioneiros, apesar de momentaneamente libertos, esto de joelhos diante daquela autoridade que representa o rei. Suas vozes erguem louvores ao ministro, na esperana, talvez, de obterem um perdo providencial das suas penas.- Justia e clemncia, de mos dadas, nos vm porta do calabouo!Pizarro, desgostoso de clemncias, opta por imaginar-se a personificao da justia.- De p, todos - ordena o ministro. - Vocs no so escravos, mas homens livres.Neste instante Leonora, j em vestes de mulher, surge com seu esposo Florestan. Rocco, o velho carcereiro, os acompanha.- Que fazem aqui? - exclama Pizarro, lvido outra vez.- Quem so estes? - pergunta o ministro.- So Florestan e sua esposa Leonora - diz o carcereiro.- Imbecil! Quem lhe permite falar? - diz o diretor.- Silncio, voc! - exclama Don Fernando, voltando-se para o casal. - Ento voc Florestan, o homem nobre e amante da verdade, a quem julgava j morto?- Sim - diz Rocco -, e ela, a glria das mulheres da Espanha! Leonora apresentou-se a mim como um aprendiz chamado Fidlio, um rapaz to devotado que j o havia eleito para ser o meu futuro genro.Marzelline, ao escutar essas palavras, quase sucumbe, fulminada pela mais horrenda decepo.- E este homem prfido que jaz ao seu lado - diz o velho, empolgado pelo exemplo de coragem daquela mulher - pretendia fazer-me cmplice do assassnio do mais justo dos homens.Encolerizado, Don Fernando ordena que prendam Pizarro, e que seja concedida a liberdade a Florestan.- Que sua virtuosa esposa o liberte das cadeias!Leonora, radiante de felicidade, libera o esposo dos grilhes, que caem, embolando-se no cho como serpentes para sempre desprovidas de vida.Normade Vincenzo BelliniA pera Norma, baseada na tragdia Norma ou O infanticdio, do dramaturgo Louis Alexandre Soumet, constitui-se, na verdade, na quarta verso de uma mesma obra. Soumet baseou sua pea num romance do ultrarromntico Chateaubriand, que, por sua vez, pescou o tema de Eurpedes. Norma, com efeito, uma recriao do mito de Medeia, pois tal como na tragdia grega a herona desta pera tambm se v enganada por um dominador estrangeiro e, louca de cimes, intenta vingar-se dele repetindo o mesmo crime hediondo perpetrado pela mtica amante de Jaso. Norma, porm, vivendo em tempos menos brbaros, termina por dar um rumo mais nobre sua ira.Vincenzo Bellini, apesar de ter vivido apenas 34 anos, comps onze peras, das quais Norma, estreada em 1831, tornou-se a mais famosa. Criada para causar arrepios de horror, segundo a esttica belliniana, ela um tpico exemplar do bel canto, um tipo de pera voltado brilhatura vocal da protagonista (foi composta especialmente para Giuditta Pasta, uma das divas do canto lrico do sculo XIX). Sua ao transcorre na Glia, durante a ocupao romana, e se constitui, entre outras coisas, num veculo de exaltao do glorioso passado druida, conforme preconizava o exotismo romntico da poca.IUM SONHO TERRVELGlia, sculo I a.C.Nesta poca, os romanos, senhores de quase toda a Europa, tambm dominam os gauleses. Submetidos tirania romana, os druidas, sacerdotes do culto celta, constituem-se no principal instrumento de defesa da populao gaulesa contra as arbitrariedades praticadas pelo invasor.Ao lanarmos um primeiro olhar sobre a Glia oprimida, avistamos um bosque fechado, no interior do qual um punhado de sacerdotes nativos presta culto a uma de suas principais divindades, o deus Irminsul. Cultuar os deuses a forma que os gauleses tm de preservar diante do invasor a sua identidade e a sua cultura, e por isso no abrem mo de realizar esse ato a um s tempo religioso e poltico. noite, e diante do carvalho sagrado e do altar de pedra est Oroveso, o sacerdote supremo dos druidas. Ao redor dele esto os demais sacerdotes e um nmero expressivo de guerreiros gauleses, pois a f, naqueles dias, anda sempre com a espada ao alcance das mos.Oroveso ordena aos druidas que observem o horizonte:- Quando a lua nova aparecer, a sacerdotisa vir podar o carvalho sagrado! - diz ele, repetindo a velha frmula ancestral.A sacerdotisa hbil nas artes da poda se chama Norma, e filha de Oroveso. Seu pai espera que ela induza o deus ao dio contra o invasor.- A paz nos funesta! Que Irminsul volte sua ira contra o prfido romano! - clama Oroveso, hbil em misturar a religio com a poltica.Terminada a sua invocao, Oroveso ordena a todos que se retirem para o interior do bosque, onde aguardaro o momento de retornar juntamente com a podadora sagrada.Livre da presena dos druidas, o local torna a estar em paz e silncio, mas por pouco tempo, pois logo em seguida surgem dois romanos. Um deles a mais alta figura da Glia: o procnsul romano Pollione. Junto dele est o jovem Flvio, seu ajudante e confidente.- Pode vir. Os brbaros supersticiosos j partiram - diz Pollione, avanando.- Graas a Jpiter! - diz Flvio, espiando para todos os lados. - No suporto essa ral e suas prticas brbaras! Esses degenerados so to atrasados que ainda praticam o sacrifcio humano!Pollione observa o carvalho e o altar com uma expresso que beira o asco.- So uns pobres coitados, adoradores de deuses falsos. No possuem inteligncia bastante para compreenderem nossos majestosos deuses, os nicos verdadeiros.- Deveramos, em honra de Diana, derrubar esta rvore e fazer em pedaos esta mesa de pedra blasfema! - diz Flvio. - No est vendo as marcas de sangue e a calha maldita por onde o sangue sacrificial escorre? A natureza no inventa essas coisas!- Esquea. Ainda no julgo necessrio destruir as suas crenas.- Pois eu as considero perigosssimas. Elas tm sido o instrumento ideal para esses druidas malditos disseminarem as suas ideias de revolta. Norma no lhe disse, certa feita, que a morte vive neste bosque? Ela bem sabe o que diz!Ao escutar este nome, Pollione sente um calafrio nervoso.- Norma! Norma! Estou farto dessa louca!Pollione foi amante da sacerdotisa e teve dois filhos com ela. Mas, com o passar do tempo, a paixo esfriou e uma segunda sacerdotisa, chamada Adalgisa, usurpou o seu lugar no corao instvel do procnsul romano.- Quer dizer que agora odeia Norma? - pergunta Flvio, divertido.- Sim, desde que ela tomou o partido do seu deus colrico e inimigo de Roma. Em nome dele, Norma capaz de praticar as piores atrocidades! Prefiro lanar-me da Rocha Tarpeia a permanecer ao lado dessa bruxa demente!Flvio sorri discretamente: incriminar a infeliz que se abandona , sem dvida, um bom recurso para tirar o peso da conscincia.- E quando conhecerei Adalgisa? - pergunta ele curiosssimo.- Em breve. Oh, se voc a visse! Ela uma flor de candura!- Mas ela no tambm sacerdotisa do falsssimo deus?- Sim, mas no fantica como a outra.- mesmo? Ento ela ama mais a voc do que ao deus?Pollione, em que pese a sua vaidade colossal, no pode ocultar os seus temores.- Francamente, ainda no sei. Mas o que realmente me preocupa a reao que Norma ter ao saber que pretendo voltar a Roma com a sua rival.Flvio, ento, na tentativa de descontrair o clima, explode num riso franco:- R, r! Se bem conheo a megera, voc h de passar por um mau bocado!O procnsul se torna bruscamente irado.- Silncio, idiota! No brinque com isso! Mal sabe voc que nesta mesma noite tive um sonho ruim, que me pareceu o mais negro e tormentoso pressgio!- Que sonho horrendo?!- Estvamos eu e minha adorada Adalgisa no templo de Vnus, em Roma, a nos casarmos - comea Pollione a dizer. - Ela, envolta em alvssimos vus e com os cabelos enfeitados de flores, tomava diante de mim o aspecto da perfumada Flora, a solicitar as bnos da deusa. Os turbulos emanavam alvssimo incenso, at que, de repente, tudo se escureceu e um horroroso manto negro, vindo do nada, desceu sobre Adalgisa. Ao mesmo tempo, um raio pavoroso, mais terrvel que todos os j lanados por Jpiter, destruiu o altar, enchendo o meu corao do mais negro pavor!Pollione faz uma pausa para enxugar o suor da terrvel recordao.- Isso foi tudo...? - pergunta Flvio.- Calado! H, ainda, o pior! Nem bem cessara o terrvel estrondo quando Adalgisa, envolta no manto, desaparece, tragada pelo Trtaro profundo, de onde ouo os pedidos desesperados de socorro dos meus dois filhos amados. Enquanto eles gritam, Norma, como se estivesse encarnada na esttua de Vnus, vomita um riso cruel de vingana!Flvio, mais assombrado que o prprio sonhador, tenta acalmar o procnsul:- Cr, ento, que Norma seria capaz de se vingar nos prprios filhos? No, no! Fique tranquilo, Pollione: Vnus suprema no permitiria tal monstruosidade!- Idiota! Pois no foi exatamente o que o sonho me disse?Neste instante o sino ritual soa sinistramente no interior do bosque, anunciando o retorno da procisso dos druidas e da sua temvel escolta armada.- Os sacrificadores esto retornando! - diz Flvio, assustado. - Vamos sair daqui!Mas o procnsul, tomado de ira contra os devotos de Irminsul, desvencilha-se e grita:- Nada disso! Vamos ficar e dizer a esses ces druidas algumas boas verdades romanas!Flvio, atarantado, agarra o manto do procnsul e tenta tir-lo fora dali.- Jpiter misericordioso! Iro sacrific-lo sobre a pedra se o descobrirem aqui!- Pois tome a espada e impea-os! - diz o procnsul, urrando com todas as foras: - Filhos de uma cadela gaulesa! Venham provar o ao romano!- No, no! Pelo amor de Vnus!- Largue-me, patife! Vou botar fogo neste bosque maldito e destruir o deus que tem me separado de Adalgisa! Venham, ces infernais!Felizmente, antes que os druidas irrompam do bosque, Flvio consegue convencer o procnsul a segui-lo na fuga.***- Que gritaria era essa? - pergunta Oroveso, ao reaparecer.O velho druida dirige a pergunta sua filha Norma, que tanto pavor tem infundido no procnsul. A mulher, cujo nome sugere um anagrama das palavras Roma e Amor, uma jovem de aspecto aparentemente sereno. Seus olhos, porm, denunciam um dio ardente a borbulhar em seu peito.- Devem ser os gritos de algum centurio beberro - diz a druidesa.Alguns risos explodem entre os guerreiros.- Esteja certa, , suprema sacerdotisa, de que se o tal centurio nos casse nas mos, lhe arrancaramos as vsceras pelas costas! - diz um deles.Ao escutar isso, os olhos de Norma quase chegam a fechar-se.- Calado, estpido! Quem vos deu autorizao para fazer comentrios?Norma segura uma foice dourada, e ningum duvida de que seja capaz de us-la para propsitos muito mais terrveis do que a singela poda de uma rvore.Os druidas espalham-se ao redor do altar e do carvalho sagrado, enquanto o coro entoa versos piedosos a Irminsul, o deus que anuncia, nos cus, o horror.Norma, empunhando a foice, aproxima-se do carvalho sagrado. Tomada por uma espcie de transe mstico, ela d incio ao ritual da poda, enquanto aconselha os gauleses a esperarem a hora certa para empunharem, outra vez, a espada de Breno, o heri gauls.Ao escutarem o nome heroico, todos os peitos se inflamam de um patriotismo ardente, desejosos de saber da sacerdotisa que predies ela tem a fazer acerca da libertao da Glia.Norma declara enxergar nos livros secretos do cu uma pgina encharcada de sangue.- Ali est inscrito o nome maldito de Roma! - grita ela, com uma estridncia rouca.Entrando em detalhes, ela anuncia que Roma perecer por si mesma, como um cupinzeiro apodrecido cujas paredes implodem.Essa revelao no provoca grande entusiasmo entre os guerreiros, sedentos que esto de uma pilhagem apocalptica na cidade inimiga, e menos ainda a conclamao que Norma faz, em seguida, lua, aps cortar o primeiro ramo do carvalho.- Virai para ns, lua, o vosso semblante, sem nuvens ou vus, e difundi sobre estes bosques sagrados a vossa paz! - diz a druidesa, encerrando o rito.Para aplacar, no entanto, a sede de vingana que borbulha em seu peito, ela pe s suas palavras este acrscimo viril e reanimador:- Que o bosque sagrado seja liberto dos profanos malditos! E, quando o deus irado clamar pelo sangue romano, minha voz se erguer, conclamando ao massacre!Oroveso, inflamado pela parte final, acrescenta mais esta ameaa:- Massacrados sejam todos! E que o infame procnsul seja o primeiro!Norma no pode juntar ao coro a sua voz. Seu corao, apesar de repleto de dio contra o invasor, ainda mantm intacta a paixo pelo antigo amante. Mal sabem todos que ela se sente capaz de abjurar at mesmo da f e da ptria em favor do adorado procnsul.Que peream nas chamas Irminsul e a Glia!, pensa ela, em sua alucinante paixo.Norma, porm, despertada do seu devaneio blasfemo com o anncio da disperso do grupo. Cumprido o ritual, os revoltosos j podem retornar s suas casas para mais um dia de vil sujeio.***Depois que Oroveso e os druidas se retiraram, Adalgisa, a nova amante do procnsul, surge solitria no bosque.- Graas a Vnus que os loucos j se foram! - diz ela, num suspiro.Adalgisa, apesar de tambm ser druidesa, atualmente s tem olhos para a figura do procnsul, a ponto de ter adotado secretamente a crena romana.Naquele local ermo e misterioso ela e o supremo mandatrio da Glia se conheceram, tendo desfrutado de momentos trridos de luxria sobre o altar de Irminsul.- Que Irminsul e a Glia afundem no oceano! - diz ela, irritada, ao ver espalhadas pelo cho as marcas das sandlias dos guerreiros gauleses. - Gentalha! Brbaros! - diz ela, num mau latim, sentindo-se j uma autntica cidad romana.Uma espcie de gozo se apodera da boca de Adalgisa enquanto ela repete estas injrias hipnticas como um mantra hindu. Diana sagrada, como ser maravilhoso o dia em que eu no fizer mais parte dos piolhos gauleses, como diz Pollione!, pensa ela, num jbilo secreto. Que homem viril! Com que desdm superiormente romano pronuncia expresses deliciosas como a escria brbara ou o rebotalho da Glia! Ah, que adorvel ser odiar junto dele!Enquanto Adalgisa devaneia, Pollione e seu ajudante a espiam, ocultos entre os arbustos.- Est vendo? - diz Pollione. - a minha adorvel Adalgisa!Flvio a observa, admirado da sua beleza.- linda, de fato! - diz ele, enquanto o procnsul toma a sua mo.- No h perigo. Vamos at ela!Ao ver o seu amado aproximar-se, Adalgisa abre um sorriso divinal.- Pollione amado! Voc, aqui! - diz ela, com a voz entrecortada pela emoo.De repente, porm, ela altera drasticamente a sua conduta.- Por favor, deixe-me! - diz ela, espalmando a mo. - Estava orando a Irminsul.- O que quer ainda com este Irminsul maldito, inimigo do nosso amor? - pergunta Pollione, frustrado. - Ore a Cupido, o deus que nos h de favorecer!- No quero mais saber de amor nenhum! - diz ela, negaceando.Pollione est certo demais do seu amor, pensa ela. preciso, pois, que sinta o medo da perda. Afinal, no foi justamente pela extino desse medo que ele deixou de amar a Norma?Pollione, com os lbios trmulos, enche-se de mgoa.- Ore, ento, ao seu deus, e oferea-lhe o meu sangue numa bandeja!- Diante de Irminsul eu era pura e casta, e agora me tornei perjura e leviana!- Pois venha comigo, e torne a ser pura e casta em Roma! - grita ele. - Cupido a receber de braos abertos!Ao escutar isso, a vez de Adalgisa sofrer o temor da perda.- Quer dizer que vai mesmo partir?- Amanh, ao amanhecer - diz o procnsul.- Amanh?! Mas e eu?- Venha comigo!- Est bem, partirei com voc amanh!- Nos encontraremos aqui?- Sim, aqui mesmo!E assim, docemente jurados, ambos se separam.***Estamos agora na casa de Norma. Ela mora num recanto escondido do bosque, juntamente com os dois filhos e uma serva chamada Clotilde.Norma est inquieta e no para de abraar e beijar ardentemente os seus filhos. De repente, porm, sem qualquer transio, repele-os brutalmente.- Basta, deixem-me!Virando-se para o interior da casa, d um grito rouco:- Clotilde! Leve estas crianas daqui!A serva, mais espantada da mudana brusca do que as crianas, arregala os olhos.- Por que repeliu as pobrezinhas? - pergunta ela, aps t-las levado para o quarto.- No sei dizer! H algum tempo sinto uma mistura de sentimentos com relao a elas! Ora as amo com fervor louco, ora as abomino como se no fossem filhas do meu ventre!- Por Irminsul! O que est dizendo, minha senhora?Norma sente um mpeto selvagem de mandar Irminsul, a serva e as prprias crianas para os abismos de Pluto, o deus brbaro dos romanos, mas se contm.- Pollione foi convocado para regressar a Roma - diz ela, como a explicar-se.Muito bem, o procnsul outra vez!, pensa Clotilde. Sempre o miservel!- E pretende lev-la?Norma chacoalha a cabea, angustiada.- Nada me disse a respeito.- Ento porque no pretende - diz Clotilde.- No pode ser! No ter a coragem de abandonar a mim e s crianas!Neste ponto ouvem-se, l fora, os passos apressados de algum.- Veja quem ! - diz Norma, esperanosa. - Certamente Pollione!Mas no Pollione, e sim Adalgisa.- O que quer aqui a estas horas? - diz-lhe Norma, sem saber, ainda, que est diante da rival.- Preciso revelar-lhe um segredo! - responde a visitante, com olheiras de aflio.Assaltada pelo terror sbito da deciso que acabara de tomar, Adalgisa resolvera aconselhar-se com a suprema druidesa antes de partir. Nas ltimas horas ela descobrira que um deus a quem se amamentou no bero no se desmama num instante, e que Irminsul colrico, com certeza, ir sepult-la nas profundezas do oceano antes mesmo que desembarque em Roma.Atropelando as palavras, ela revela, ento, a paixo que a obriga a abandonar a sua ptria e o prprio deus da sua devoo.Norma escandaliza-se ao escutar o relato.- Louca! Abandonar nosso deus majestoso por um reles homem?- Um romano! - balbucia a jovem. - Para minha vergonha, um romano!Norma suspende o rosto da jovem e aplica-lhe uma vigorosa bofetada.- Sua vil! Pretende, ento, trair Irminsul e a Glia por causa de um romano opressor?Irada, Norma obriga a jovem a contar toda a histria. Enquanto ouve o relato, Norma relembra sua prpria histria, to infamante quanto aquela que agora escuta. Adalgisa no sonega sequer os instantes delirantes de luxria transcorridos sobre o altar de Irminsul.- Blasfema! - grita Norma, aplicando-lhe outra bofetada, embora esteja tomada pela piedade. - Muito bem. Em nome de Irminsul, voc est perdoada.- Perdoada? - gagueja a jovem.- Sim, nosso deus pleno de amor. Parta com o homem que ama e que sejam ambos felizes, sob as bnos de Irminsul!Norma declara Adalgisa liberta dos votos, possibilitando-lhe, assim, casar-se com o estrangeiro. Depois, tomando o rosto da outra nas mos, lhe diz com voz afetuosa;- Diga, agora, minha querida, quem o homem a quem tanto ama.Adalgisa no chega a pronunciar o nome de Pollione, j que o prprio ingressa pela porta naquele exato instante. Pelo olhar ardente que a jovem lhe lana, Norma compreende imediatamente que se trata do mesmo homem que ela ambiciona.- Ento este o romano?! - exclama Norma, com a voz rouca de ira.Pollione empalidece horrivelmente.- Traidor! - grita Norma ao procnsul, ao mesmo tempo em que se desvencilha da outra como de uma vbora. - Trema por mim, traidor, e trema tambm pelos seus filhos!Depois, voltando para Adalgisa, lhe grita, num mesmo tom:- Desgraada! Antes tivesse morrido que amado esse monstro, pois assim como ele repudiou a mim ir tambm repudi-la!Agora a vez de Norma revelar o seu segredo.- Este romano maldito foi meu amante, e dele so os meus dois filhos!- Basta, louca! - grita Pollione, tomando Adalgisa pela mo. - Vamos embora!- Prfido! - grita Norma, com os olhos em brasa e as unhas em garra.Pollione, mais que assustado, est impressionado com essa demonstrao prodigiosa de dio. Nem nos momentos mais ardentes de luxria Norma mostrara-se to empolgada!- No, no! Eu tambm ficarei! - grita, de repente, Adalgisa, inconformada em descobrir-se a segunda. - Prefiro morrer do que tomar por esposo um marido perjuro!Nesse instante soam os sinos drudicos, convocando Norma ao seu ofcio sagrado. Os sinos badalam o toque da morte - o toque que convoca os gauleses finalmente para a revolta contra o invasor.- Est ouvindo? - diz Norma ao procnsul com um sorriso. - Os sinos ordenam o extermnio do invasor!Pollione, tornando-se perverso outra vez, lana este desafio antes de retirar-se:- Sua estpida! Este sino no dobra para Roma, mas para a Glia e o seu falsssimo deus!IIO SACRIFCIOMesmo aps a partida de Pollione e Adalgisa, Norma permanece transtornada. Enquanto perambula pela sala, ela escuta a tosse de um de seus filhos. Eles dormem placidamente em seu quarto, sem desconfiar do propsito terrvel que, a alguns passos dali, o corao da prpria me comea a engendrar.Tomando um lampio, Norma entra silenciosamente no quarto. Ao avistar a cama onde as duas crianas dormem, lado a lado, seu corao experimenta um misto de raiva e ternura. Num gesto automtico, ela saca das profundezas do seu manto o punhal sacrificial, que sempre carrega consigo.Pobres infelizes!, pensa ela, enxugando com a prpria lmina uma lgrima furtiva. Que destino os aguardar aqui ou em Roma, na condio de bastardos e enjeitados?De repente, porm, ao lembrar do procnsul, sua piedade se converte em ira punitiva. preciso que os filhos paguem pelo crime paterno! Que dor maior poderia sofrer o vil traidor?Nesse instante, porm, uma voz interior lhe grita, desesperada: Louca! Pretende, ento, executar nos inocentes a sua srdida vingana?.- Pois muito bem, uma vingana! - rosna Norma, desafiadoramente. - So filhos do criminoso, e devem expiar pelo seu crime!Agora ela est aliviada: o dio triunfou, e ela j pode utilizar o punhal. A alguns centmetros da ponta est o peito da primeira criana, a respirar placidamente. Basta um nico gesto para que Norma a dispense dos trabalhos e aflies deste mundo.- Amada! - sussurra a louca. - De quantos dissabores estou prestes a liber-la!Ento, quando o punhal j se despenca para a morte, Norma d um grito, atirando-o para longe:- No! No!Abraada aos filhos, ela entrega-se a um pranto cheio de remorso.***Ao escutar a gritaria, a serva entra no quarto de olhos esbugalhados.- Em nome de Irminsul, o que se passa aqui? - grita ela, mais alto que os gritos da me e dos filhos.- Clotilde! - grita Norma. - Traga Adalgisa de volta, imediatamente!A serva sai correndo para executar a ordem, enquanto Norma sente-se radiante.- Os culpados devem morrer, no os inocentes! - diz ela, convicta do que deve ser feito.Dali a pouco, Adalgisa reaparece.- Tome para si os meus filhos - diz a superiora.- Seus filhos... para mim?- No posso t-los ao meu lado: um destino funesto me aguarda. Leve-os at o acampamento romano, onde est o pai deles.- Entreg-los a Pollione?- Sim, voc e ele os criaro! Espero que aquele homem, de quem no me atrevo mais a pronunciar o nome, lhe seja um marido menos cruel.- Pollione, meu marido? Jamais!- preciso! o nico meio que tenho de livrar meus filhos de um futuro de ignomnia!Adalgisa, porm, j tomou a sua deciso.- No, no pode ser! A voc, e no a mim, pertence o procnsul! - diz ela, empenhada em tornar-se, ela prpria, a mrtir suprema do amor.- Mas, minha menina... voc no o ama? - diz Norma.- Nem a ele, nem a homem algum! Doravante, ocultar-me-ei, para sempre, de todos os homens!Diante disso, Norma se lana aos prantos nos braos da amiga, e assim abraadas as duas sacerdotisas selam seu pacto divino de unio e amizade.***Enquanto as duas amigas se reconciliam, em meio s trevas da noite o dio da revolta continua a incendiar os coraes dos gauleses. Um grupo deles, armado at os dentes, anda em busca do procnsul e acaba de chegar prximo do bosque sagrado dos druidas.- O miservel ainda no partiu! - diz o lder guerreiro, rangendo os dentes. - Isso significa que ainda pretende enfrentar-nos!- Ouam, algum se aproxima! - diz outro, de repente, sacando a espada.O lder gauls se adianta e logo descobre a identidade do intruso.- No se assustem, Oroveso! - anuncia ele.O velho druida aproxima-se com a face marcada pelo desgosto.- Trago pssimas notcias! Pollione no mais o procnsul!- Pssima notcia? - exclama o soldado. - Ora, isso uma tima notcia!- No , no! - exclama Oroveso. - Um general romano, mil vezes mais impiedoso, tomou o seu lugar! Em breve seremos caados como lebres por toda a Glia!O guerreiro retira o capacete e arranca os cabelos.- E Norma, o que diz? Ainda deseja a paz?Oroveso faz um gesto de impotncia.- S ela sabe. No quis me dizer.- E o senhor, o que pretende fazer?Curvando a cabea, Oroveso deixa vir tona toda a sua impotncia:- Pretendo curvar-me completamente ao destino e apagar, o mais rpido possvel, os vestgios desta malfadada revolta.Ao escutar isso, o guerreiro exclama iradamente:- Quer dizer que vamos recair na submisso abjeta?- Submisso no, mas dissimulao. Vamos nos aquietar para que Roma pense estar tudo em paz outra vez. Infelizmente, a hora da vitria ainda no soou para ns.E assim os gauleses se veem mais uma vez na triste contingncia de terem de se submeter.***Enquanto Oroveso e seus guerreiros preparam-se para mais alguns anos de subservincia, Norma est no templo do bosque. Adalgisa lhe avisara que Pollione pretendia encontr-la naquele local para empreenderem juntos o retorno a Roma.- Pollione, arrependido, terminar por levar-me! - diz ela, esperanosa.Mas, em vez do ex-procnsul, quem surge de repente a sua serva.- Clotilde, que faz aqui?No melhor estilo gauls, a serva responde:- Trago ms notcias. Seja forte!- Diga logo o que houve!Pollione pretende raptar Adalgisa, dentro ou fora do templo!- Patife! - grita a druidesa, arremessando-se ao altar de Irminsul.Enfurecida, Norma aplica trs golpes sobre o escudo do deus, perturbando o sono das aves que ainda teimam em habitar as cercanias das moradas dos deuses.- J chega! - diz Norma, com os olhos incendiados. - A partir de agora o sangue romano jorrar em torrentes por toda a Glia!Oroveso e os guerreiros acorrem at Norma, tomados de espanto.- Minha filha! O que a levou a brandir o escudo de Irminsul? - diz o velho.- O escudo chama ao combate! Vamos, guerreiros, entoem j o cntico de fria e de sangue!Sem esperar uma nova convocao, os guerreiros comeam a entoar em unssono a verso gaulesa do seu velho canto marcial. Era um belo canto: falava de quo numerosos os guerreiros eram - sendo tantos quantos os troncos dos bosques gauleses - e do quanto a sua ferocidade se igualaria das feras quando cassem sobre o prfido romano. Havia a promessa de que os machados gauleses, ao fim do combate, estariam tintos de sangue at o cabo e de que as guas impuras do Loire correriam com um rumor fnebre. As palavras sangue e morte pontuavam majestosamente os versos, como dois estribilhos aterradores, enquanto a marcha evolua para um tom vagamente buclico ao comparar as hostes romanas com espigas de milho ceifadas, at que a guia romana despencava ao solo, enquanto o deus Irminsul, montado gloriosamente sobre o sol, contemplava o triunfo gauls e a derrocada romana.Tudo entusiasmo e confiana, at que Clotilde surge com mais uma funesta notcia:- Horror! - grita a serva.- Sangue de Irminsul! O que foi desta vez? - diz Norma.- Um romano blasfemo invadiu o claustro das virgens novias!Logo em seguida, Norma sente um arrepio de jbilo ao ver o ex-procnsul surgir escoltado por quatro gauleses enfurecidos. Ele traz o manto em tiras e o rosto coberto de hematomas. A vingana divina comea a surtir seus maravilhosos efeitos!Oroveso, no ltimo grau do enfurecimento, agarra Pollione pelos cabelos e grita:- Co romano! Quem lhe deu autorizao para invadir o claustro sagrado?Pollione, num mpeto de dio, cospe um catarro sangrento nas barbas alvas do druida.- Pode me matar, bode gauls, mas nada direi!Ento Norma, adiantando-se, lana este brado irado, que retumba pelo bosque:- Afastem-se todos! Cabe a mim punir o sacrlego!Pollione observa com espanto a face irada e ao mesmo tempo deliciada da druidesa. Como ama odiar...!, pensa ele, enquanto a ex-amante, aps extrair do interior do manto o mesmo punhal com o qual quase matara seus filhos, avana em sua direo.Mas Norma continua a no ter foras para matar o homem que ama.- O que houve? Mate-o de uma vez! - grita Oroveso, sedento da vida do romano profanador.- No posso, no posso! - grita ela, deixando cair o punhal.- Vamos, maldita! Vingue o nosso deus!- No posso... Antes preciso interrog-lo...Ela implora que a deixem a ss com o homem que deve matar. Oroveso e os soldados obedecem, deixando-a com Pollione.- Agora somente eu posso salvar a sua vida! - diz a druidesa, saboreando o seu momento de vingana. - O que acha disso?Pollione, ingressando na diplomacia, abaixa a cabea e resmunga, vencido:- O que deseja que eu faa?- Quero que deixe Adalgisa em paz para sempre.- No, isso no! O meu amor maior do que o temor da prpria morte!Norma sente um desfalecimento interior. Quem lhe dera ser ainda capaz de inspirar quele homem palavras parecidas!- Prometa que a esquecer, ou terei de mat-lo! - grita ela.- No...! Prefiro morrer a renunciar a Adalgisa!- Desgraado, est vendo isto? - grita ela, mostrando o punhal. - Por sua causa cheguei a apont-lo contra o peito dos meus prprios filhos!- Louca! Seria capaz de mat-los por uma estpida vingana?- Sim! Graas a voc, maldito, cheguei a esse ponto!- D-me ento o punhal para que eu mesmo o enterre em meu peito!- pouco! S voc no basta, preciso que todas as vboras romanas peream!- Mas e quanto a Adalgisa?- A perjura ser queimada viva!- No! Poupe a vida dela e enterrarei agora em meu peito o punhal!Pollione tenta tomar a arma, e Norma grita pelos druidas:- Venham todos!Oroveso e os demais retornam s pressas.- Este co romano aliou-se a uma sacerdotisa do templo! - diz ela.Gritos de ira levantam-se entre os gauleses.- Maldita seja! Quem a perjura?Ento, Norma, arremessando longe o punhal e as insgnias de druidesa suprema, anuncia, para espanto supremo de todos, que a traidora ela prpria.- O que disse? - grita Oroveso.- Acendam a fogueira! - ordena ela, soturnamente.- Ela mente! No somos amantes! - grita Pollione.Mas Norma est determinada a pr um fim ao seu dilema.- Uma arquidruidesa no mente jamais - diz Norma, serena.Depois, voltando-se para Pollione, lhe diz meia-voz:- Se este o nico meio de estarmos juntos, que pereamos juntos na morte!Pollione, transtornado, no sabe se admira ou amaldioa aquele gesto extremo de amor, mas, ao ver que a fogueira j arde e que o desfecho inevitvel, decide reconciliar-se com a me dos seus filhos.- Pois seja assim. Morreremos juntos, selando a nossa reconciliao!Ento, quando os dois j esto amarrados ao p da fogueira, Norma pede, pela ltima vez, que seu velho pai lhe d ateno.- Minta, minha filha! Declare-se inocente e eu a salvarei! - sussurra-lhe o pobre velho.- No, meu pai. A verdade sagrada - diz Norma. - E em nome dela que agora lhe digo que sou me de dois filhos. So filhos meus e do homem com o qual morrerei.- Filhos... do romano?- Sim, meu pai. Agora pode ver a quanto chega a minha culpa.- Os bastardos no podem viver! So crias do prfido romano!- Salve-os! Salve-os! Tenha piedade dos inocentes!Ento, diante da ltima splica da filha, Oroveso cede.- Est bem, eu os pouparei - diz ele, com os olhos lavados de lgrimas.Oroveso d um beijo na filha e afasta-se, a fim de que a pira vingativa seja acesa.- Adeus, meu pai! - grita Norma, enquanto uma nuvem de fumaa comea a ocult-la das vistas dos vivos. - Que Irminsul o abenoe!Pollione, apesar de amarrado, consegue desvencilhar uma das mos e, aps agarrar a mo da mulher que voltou a amar, morre resignadamente ao seu lado.Carmende Georges BizetUma das peras mais populares de todos os tempos, Carmen considerada tambm uma das mais inovadoras. Seu formato ecltico (que inclui, alm do canto, dilogosfalados) e o tema realista (tachado, na poca, de imoral e vulgar) provocaram severas crticas, a ponto de a pera tornar-se um verdadeiro escndalo. Alm da insubmissa cantora de habaneras, Georges Bizet pe em cena coros entoados por meninos de rua, operrias e at mesmo foras da lei, como os contrabandistas do terceiro ato. Bizet conseguiu introduzir quase tudo em sua obra-prima, desde a farsa mais alegre at a mais intensa tragdia, a ponto de transform-la numa obra atpica no universo sisudo e esquemtico das peras tradicionais.Adaptada da famosa novela de Prosper Mrime, Carmen estreou nos palcos franceses em 1875. Bizet jamais chegou a ver o reconhecimento pblico da sua pera favorita, j que morreu trs meses aps a sua mal recebida estreia, com apenas 37 anos de idade.IA CIGANA E DON JOS um dia de sol numa fervilhante plaza de Sevilha. O quartel militar dos drages de Alcal arde sob um calor escaldante. Ao lado est a fbrica de tabaco, de onde sai um grupo ruidoso de operrias. Os drages ficam eufricos diante do surgimento das alegres cigarreiras.Um cabo, chamado Morales, pe logo os olhos em Micaela, uma das mais belas jovens do grupo.- Vejam todos, a pombinha parece perdida! - diz ele aos companheiros. - Vamos ver o que ela procura!Morales aproxima-se de Micaela e lhe diz, sem rodeios:- Procura algum, minha querida?- Sim, procuro um cabo - diz a bela jovem.- Ora, viva! Pois no precisa procurar mais!- No voc - diz ela, imperturbvel. - Procuro por Don Jos; conhece-o?- Don Jos? claro que o conheo!Micaela fica subitamente alegre.- Que bom! E onde posso encontr-lo?- Aqui mesmo, mas somente quando houver a troca da guarda. Enquanto ele no vem, no quer esper-lo em nossa modesta casa?Morales indica o quartel, enquanto os demais drages exultam.- Obrigada, eu volto quando se der a troca - diz ela, afastando-se s pressas.- Espere, a troca vai acontecer logo!Mas Micaela, assustada, j partiu, enquanto Morales deixa cair os braos.- Ai de mim, a rolinha voou!O cabo e seus companheiros retomam a viglia at que uma marcha militar anuncia a chegada dos soldados que os devem render. frente do grupo vem o tenente Zniga, e, misturado aos soldados, est Don Jos. Zniga ordena aos soldados que descansem, enquanto Morales cochicha a Don Jos:- Uma doce pombinha de saia azul e tranas pendentes esteve sua procura!Don Jos a reconhece imediatamente.- Micaela...!Enquanto se procede troca da guarda, um grupo de crianas de rua aproveita para entoar uma marcha infantil.Tar-tat, toca a corneta!Com a guarda que entra, entramos tambm!Ombros pra trs, peito pra fora! a guarda que vai, e a guarda que vem!O tenente, que novo no destacamento, est curioso sobre a fbrica de cigarros e as suas operrias.- ali que elas trabalham? - pergunta ele a Don Jos.- Sim, senhor - responde o soldado.- E que tais so elas?- As mais levianas possveis, senhor.- Levianas, hein? Mas isso no o impede de estar de olho na mais bela delas!O tenente sorri maliciosamente, enquanto Don Jos, vexado, admite:- verdade, senhor, eu a amo. Mas, veja, elas esto retornando!Os soldados e os desocupados das ruas observam o desfile das operrias. Todas trazem cigarros nos lbios e um sorriso provocante de desdm. Elas cantam uma cano cujo refro diz assim:Sobe a fumaa como a nuvem ao cu,E as almas envolve num doce vu.Juras de amor; h quem no as faa?Promessas vazias, tudo fumaa!Os soldados e os desocupados negam veementemente, em tom jocoso, que pratiquem a falsidade, at que uma voz se levanta:- E a Carmencita, onde est?Como num passe de mgica, surge, ento, Carmen, uma belssima mulher com trejeitos alegres de cigana.- Ol, rapaziada! - diz ela, em festiva descontrao.Todos gritam, eufricos.- Diga, Carmen, quando nos amar? sempre a mesma pergunta, e para ela Carmen tem sempre a mesma resposta:- Quando? Quem sabe amanh! Ou talvez nunca! Mas hoje eu sei que no ser!Um oh! magoado sai das bocas dos seus admiradores.- Seus bobinhos. No sabem, ento, que o amor uma ave esquiva, que no se deixa aprisionar? - diz ela, num tom professoral. - O amor um ciganinho, sem lei e nem rei: uma hora est aqui, dali a pouco j no est!Ao ver, porm, Don Jos, Carmen atira uma rosa na sua direo.- O amor um ciganinho inconstante. Se no me ama, eu o amo. E quando am-lo, o melhor se precaver...!Neste momento a sirena da fbrica ordena s operrias que voltem ao trabalho. Don Jos, depois de ver as operrias desaparecerem, olha para a rosa que jaz aos seus ps.- Se existem bruxas, Carmen uma delas! - diz ele, aspirando a rosa.O aroma inebriante provoca sobre ele o mesmo efeito de um disparo. Como quem foi picado por um espinho, ele deixa cair a rosa novamente a seus ps.- Jos!... Finalmente o encontrei!Quem diz isso a sorridente Micaela, que ainda no retornou ao interior da fbrica.- Meu anjo, que alegria! - responde ele, escondendo a flor com o p.- Veja, trouxe uma carta de sua me - diz ela, estendendo-lhe o envelope.Jos toma a carta, enternecido.- Dentro h um algum dinheiro, mas h outra coisa ainda mais valiosa que ela me encarregou de lhe entregar.- O que ?- Isto.Micaela fica na ponta dos ps e um beijo maternal estala na bochecha do soldado, fazendo com que ele reviva a sua infncia feliz, transcorrida na saudosa aldeia natal.De repente, ao enxergar a rosa cada aos seus ps, Jos descobre que aquele beijo lhe parece mesmo enviado pela Providncia.Minha me certamente me protege, mesmo de longe! Quem sabe no estive a um passo de ver-me prisioneiro daquela feiticeira?- Volto hoje mesmo para a aldeia - diz Micaela, cortando o fio dos pensamentos do jovem cabo. - Amanh estarei novamente com sua me.- Ento diga a ela que seu filho Jos a ama e venera. E transmita a ela este beijo.Jos beija a face de Micaela e comea a ler a carta.- Daqui a pouco eu volto - diz a jovem, afastando-se.Jos l a carta, firmando cada vez mais em sua alma o propsito de casar-se com Micaela, at que uma gritaria infernal, vinda da fbrica, pe fim sua concentrao.- Bruxas danadas, o que esto aprontando ali? - pergunta o tenente Zniga.As cigarreiras chegam, espavoridas, clamando por socorro e discutindo entre si.- Foi a Carmencita quem comeou a briga! - diz uma, com as mos nas ancas.- No, sua mentirosa, no foi ela! - diz outra, apontando-lhe o dedo.O certo que Carmen, por um desentendimento qualquer, se atracara com uma tal Manuelita.- Basta deste berreiro! - diz Zniga, berrando mais alto que as mulheres. - Jos, pegue dois homens e faa aquelas sirigaitas sossegarem!Dali a pouco Jos retorna, trazendo pelo brao a irrequieta Carmen.- Muito bem, o que houve? - diz o tenente.- Uma briga, senhor - diz o cabo.- O que tem a dizer, rapariga?Carmen, porm, em vez de responder, cantarola mais uma de suas canes debochadas.- Basta de cantorias, responda o que lhe perguntei!Mas ela prossegue a cantar.- Meus segredos eu os guardo, e os guardo muito bem! Tralal, tralal!- Quer cantar, ento? Pois vai cantar para as paredes da priso! Guardas!As inimigas de Carmen se adiantam, comemorando.- Muito bem, para a priso!- Bruxas! - diz ela, atirando-se aos cabelos de duas adversrias ao mesmo tempo.- Vamos, levem-na! - diz o tenente, irritadssimo.Ento Carmen, liberando as mos, as oferece docilmente a Jos.- Docinho! Vai mesmo me levar para a priso? - sussurra-lhe ela ao ouvido.- So ordens, seorita - diz Jos, forando uma sisudez que a sua pouca idade torna ridcula.- Oh, malvadinho! No quer mesmo livrar a sua seorita?- No posso, j disse.- Oh, vai me livrar, sim, e sabe por qu? Porque voc me ama!- O que diz? Eu, amar voc?- Sim, docinho, pois a flor que lhe atirei estava enfeitiada.Jos pisoteia com fria a flor, para divertimento da seorita.- R, r, r! Bem se v que o encanto j fez efeito!- Basta! Nem mais uma palavra!Carmen, provocadora, se aproxima ainda mais.- Deixe eu lhe dizer uma coisinha, querido. Amanh vou cantar a seguidilha na taberna de Lillas Pastia, perto das muralhas de Sevilha. Eu pretendia ir com meu namorado, mas o despachei ainda outro dia, e agora no tenho mais com quem ir! to triste a uma seorita divertir-se sozinha, e um prazer verdadeiro s se desfruta a dois!Jos permanece indiferente, mas atentssimo s palavras sussurradas por ela.- Sim, meu soldadinho, tenho mil pretendentes, mas que posso fazer se todos j me aborrecem? A minha alma est livre para um novo amante que quiser consol-la.- Silncio, j disse!- No embrabea, docinho, falo para mim mesma! Amo um certo soldado que no tenente nem oficial. Mas, para uma cigana como eu, como se fosse um general!Neste momento Jos sente suas resistncias rurem.- Carmen...! - sussurra ele. - verdade o que diz?- Sim, meu docinho! A sua Carmencita jamais lhe mentiria. Danaremos a seguidilha e beberemos a manzanilha!- Soldado, o que est esperando? - diz, de repente, o tenente.Jos empertiga-se, escarlate feito um pimento.- Quando partirmos lhe darei um empurro - diz a cigana. - Caia, e o resto comigo.Jos cumpre a sua parte atrapalhadamente, mas o bastante para que Carmen, desvencilhando-se da patrulha, consiga livrar-se e desaparecer na multido.Um coro de risos explode entre as mulheres, deixando o tenente desmoralizado diante dos seus comandados.IIO TOUREADORO tempo passou, e o tenente Zniga, esquecido j da desonra sofrida s mos da cigana, est agora sentado ao lado de Carmen e de outras seoritas numa ampla mesa da taberna de Lillas Pastia. O rudo feroz de guitarras, pandeiros e castanholas quase ensurdecedor. Enquanto sapateadores exmios fazem tremer as tbuas de pinho, metralhando-as com os golpes vertiginosos dos seus taces, bailarinas rodopiantes fazem esvoaar, como aves epilticas, os seus vus difanos e escarlates. Carmen, adiantando-se, comea a cantar a sua seguidilha, na qual, com palavras vibrantes, reproduz tudo quanto se passa naquela zorra infernal.Ao terminar a cano, Frasquita, uma das ciganas, dirige-se ao tenente.- Seor, o taberneiro Pastia avisou que o fiscal pretende fechar a taberna.- Ento, vou-me embora - diz ele, com a taa cheia na mo. - Voc vem, Frasquita?- Lamento, esta noite no posso, teniente!- E voc, Carmencita, ainda est zangada comigo?- Claro que no! - diz ela, alisando-lhe as suas grisalhas e respingadas de cerveja.- No est braba por eu ter mandado prender aquele soldado inepto que, no outro dia, deixou voc escapar?- Se mereceu a pena...- Fique tranquila, j mandei solt-lo.- Tanto mejor - diz ela, quase indiferente.Neste momento se ouve, de fora da taberna, um coro ruidoso:- Viva o toureiro! Viva Escamillo!O toureiro irrompe, em seguida, na taberna, conduzido nos braos do povo. Seus dentes reluzentes esto todos mostra, pois acabou de chegar, vitorioso, de uma vibrante tourada em Granada.- Oh, a esto os valorosos soldados! - diz Escamillo, ao ser colocado no cho. - Os toureiros se entendem s mil maravilhas com os soldados, pois ambos adoram lutar!Seu bigodinho fininho, que mais parece uma risca traada a lpis, est perfeitamente reto sobre o sorriso triunfante.- Amigos, um toureiro sempre sonha acordado em combate, pois sabe que em pleno desafio uns ojos negros o admiram, e que o amor o espera!Um coro de concordncia une-se voz de Escamillo.- Ento, compaeros, quando o touro, finalmente liberto, arremete e derruba o cavalo, tudo na arena fica em suspenso! As bandarillas vibram nas suas costas, enquanto seus cascos, furiosos, pisoteiam o seu prprio sangue! Toureiro, em guarda! a sua vez!, ruge a plebe, a uma s voz! Mas ele, toureiro, ainda assim no esquece que os ojos negros o admiram, e que o amor ainda o espera!- Oh, sim, o amor! - gritam todas as vozes, e, mais que todas, a voz apaixonada de Carmen, pois percebe os olhos do toureiro postos apaixonadamente sobre si.- Diga-me, bela cigana, quem voc?O bigodinho do gal est, agora, radicalmente inclinado.- Carmen...! - diz ela. - Carmencita, se preferir...- Pois, Carmencita de Sevilha, na prxima tourada gritarei bem alto o seu nome!Escamillo, com a pressa que governa os coraes turbulentos, anuncia sua nova admiradora que, desde j, a ama perdidamente.- Seor, talvez fosse melhor no me amar - diz ela, indicando disfaradamente o tenente, que a reclama.- Muy bien! - diz o toureiro, suspendendo o seu mpeto viril. - Eu saberei esperar!Carmen lhe diz baixinho que doce ter esperanas, antes de ir despedir-se do tenente.***Aproveitando a sada dos soldados, dois contrabandistas conhecidssimos em Sevilha penetram furtivamente no recinto da taberna. Frasquita, uma das ciganas da casa, chama-os, apressada.- Vamos, digam logo quais so as novidades!- Temos belos planos, mas precisamos de vocs! - diz Dancairo, um dos contrabandistas.- So mesmo bons planos?- timos, Frasquita! - diz Remendado, o segundo contrabandista.- E precisam mesmo de ns, mulheres?- Por supuesto! - diz Dancairo, animadamente. - Quando se trata de ludibriar, sempre bom ter mulheres por perto!- Est bem, iremos! - diz a cigana, lisonjeada.- Nada disso! Eu no irei! - diz Carmen, para surpresa geral.Os dois contrabandistas insistem, mas ela se mostra irredutvel.- Por que no quer ir? - pergunta um deles.- Querem mesmo saber? - diz ela, pousando as mos nas ancas. - No irei porque estou apaixonada!Um coro de risos explode por toda a taberna.- Esta boa! A Carmencita apaixonada!- Que seja! Mas por que no conciliar o amor com o dever? - diz Remendado.Carmen, porm, balana energicamente a cabea.- Desta vez, meus caros, darei primazia ao amor!- Mas quem o novo felizardo? - diz Dancairo, curioso.- Ningum importante - diz Carmen. - Um soldadinho que, outro dia, se deixou prender por minha causa.- Ora, vejam s! Um milico galante e caballero!Como em resposta, todos veem o prprio Don Jos surgir na entrada da taberna.- um drago muy guapo! - dizem todos, admirados.- Por que no o leva conosco? - sugere Dancairo, com a imediata concordncia de Remendado.Jos se aproxima de Carmen, enquanto os demais partem, deixando-os sozinhos na taberna.- Ora, viva! J saiu da priso? - diz ela, sem qualquer culpa ou remorso.- Estive preso por dois meses - responde o cabo, num tom amuado.- Mas por que esta cara? Ser que o meu soldadinho valiente est arrependido?No mesmo instante a mgoa do soldado cede ao terror de perder a amada.- Oh, no, Carmencita! Se o fiz por voc!- Sabia que o seu tenente esteve aqui se divertindo conosco?Jos fica subitamente escarlate.- Como?! Com voc, tambm?- Oh, com cimes, agora?- claro! Eu sou muito ciumento!Carmen, em resposta, vibra as castanholas e se requebra ao redor do jovem atordoado.- Espere, oua! - diz ele, alterado. - Os clarins do regimento esto soando!- E da?- o toque de recolher! Preciso voltar ao quartel para a chamada!- Ora, tolinho! Ento prefere ir perfilar-se diante do tenente do que estar junto a mim?- Carmencita! Eu tenho que ir!- Ento v!Carmen arremessa longe o quepe do soldado, num trejeito que torna impossvel definir se de raiva ou de alegre deboche.- Carmen, eu te amo!- R, r, r! Diga isso ao tenente quando ele chamar o seu nome!- Voc no tem o direito de duvidar do meu amor!- Pois eu duvido!Ento Jos saca algo do bolso, que Carmen olha com desdm.- O que isso?- a rosa que voc me lanou! Durante os ltimos dois meses a tive sempre comigo, no inferno da priso! A rosa est murcha, mas o amor que devora o meu corao est mais vivo do que nunca. Carmen, eu te amo!- Mentira! Se me amasse me levaria para longe, para as distantes montanhas! Iria comigo, e somente comigo, esquecido para siempre de tenentes e quartis!- No, isso seria desertar!- Prefere, ento, desertar do nosso amor? Pois v, eu j disse!- Carmen...!- Eu te odeio! Adeus!Neste momento algum esmurra a porta.- Carmen, voc ainda est a?- o tenente! - diz Jos, atarantado.Uma mo cheia de bijuterias suadas tapa a sua boca.- Silncio...!Subitamente, a porta vem abaixo com um estrondo terrvel. Na moldura esfacelada da porta Jos e a cigana veem a figura descomposta do tenente.- Um oficial graduado trocado por um reles soldado! No , com certeza, uma bela troca! - diz Zniga, com os olhos chispantes.Depois, fixando os olhos em Jos, ele ruge:- Vamos, soldado, apresente-se!- No, senhor... - balbucia Jos.- O que disse?!- No irei...!Zniga desembainha o seu sabre, que assovia na bainha, enquanto Carmen vai postar-se entre ambos. Diante dos seus gritos, surgem das escadas as ciganas, alm do taberneiro e dos dois contrabandistas.Com dificuldade, os trs homens conseguem desarmar Zniga, que imediatamente reconhece Dancairo e Remendado como dois perigosssimos foras da lei.- Em muito m hora o meu tenente ciumento resolveu voltar - diz Carmen, enquanto os contrabandistas, de garruchas na mo, o mantm imobilizado.- Queremos convid-lo para um delicioso passeio - diz Dancairo, zombeteiramente.Remendado enfia o cano gelado na narina do oficial.- Ento, teniente, o que acha de vir conosco?Zniga no precisa pensar muito para tomar a sua deciso. Enquanto isso, Carmen volta-se para Jos.- E quanto a voc, rapazinho? De que lado est?- Estou do seu lado - balbucia Jos, intimidado diante do tenente.- Ora, ora! Um tanto desanimado! Bem, quando descobrir como bela a vida em liberdade se mostrar mais entusiasmado!E assim partem todos para a sua jornada infernal pelas montanhas.IIINAS MONTANHAS noite escura na regio montanhosa e desabitada situada nos arredores de Sevilha. Uma srie de rochedos se recorta contra o cu como silhuetas agachadas de gigantes. O vento cortante espalha com sua vassoura gelada o cascalho solto em todas as direes.Um rudo de passos anuncia o surgimento, em seguida, de uma figura humana no topo do rochedo mais alto. um contrabandista. Ele traz dependurado num dos ombros o clavinote caracterstico dos bandoleiros. Do outro ombro pende um fardo.Esse contrabandista o primeiro de vrios que, do mesmo modo que ele, vo fazendo suas aparies intercaladas ao som do vento que assovia sem cessar.Uma voz indistinta anuncia:- Vejam, compaeros! L embaixo est o caminho da nossa fortuna! Mas, cuidado! A estrada, como sempre, oculta vrias ciladas!Don Jos, Carmen e os dois contrabandistas da taberna tambm ali esto, irmanados com os demais na mesma conspirao. Dancairo e Remendado esto alegres e cantarolam uma rapsdia rstica, espcie de hino dos bandoleiros que infestam as montanhas.Muito boa esta nossa profisso,Mas olho vivo e rijo corao!Pois, na estrada, o vil soldado,Escondido est por todo lado!Sbito, uma voz forte de comando pe fim cantoria.- Vamos fazer pouso aqui. Deste ponto controlaremos a estrada e veremos se o contrabando poder passar sem problema algum.Enquanto todos se acomodam, Jos tem os olhos fitos na plancie que se estende bem abaixo dos seus olhos tristes.- L embaixo - diz ele a Carmen - vive uma pobre e idosa mulher que ainda acredita que eu seja um homem bom e honesto!Carmen d um bocejo e diz com ar de desentendida:- Quem essa velha chata?- Por favor, no deboche! - diz o ex-soldado, remodo pelo remorso. - Estou falando da minha pobre me!- Pois ento v correndo para o colo da sua madrecita! J vi que voc no hombre bastante para estar entre ns, nem para tomar parte em nosso plano!Neste momento, Jos se torna ameaadoramente sombrio.- Por que est sempre sugerindo que a deixe? Se voc disser mais uma vez que no me quer...Sua voz tornou-se rouca e seus olhos parecem lanar fascas.- Vamos, mocito valiente, complete a sua ameaa! Ir me matar, isso?Jos no diz mais nada, e mesmo que dissesse a coisa se tornaria inaudvel, j que Mercedes e Frasquita resolveram colocar ruidosamente as cartas para ver que espcie de sorte feliz as aguarda neste mundo. Aps submeterem os papeluchos a um estudo atentssimo, elas recebem a revelao de que, num tempo muito prximo, conhecero velhotes ricos que no tardaro a morrer, deixando-as livres e ricas como rainhas. Carmen, sedenta de bons prognsticos, tambm deseja consultar as cartas.- Vejamos o que elas reservam para mim...!As cartas, porm, reservam-lhe apenas a morte.- Inferno e danao! - diz Carmen, atirando as cartas no cho.Aps embaralh-las outra vez com os dedos trmulos, a cigana puxa novamente a primeira carta, apenas para deparar-se, novamente, com a figura sarcstica da caveira. O rudo de gravetos sendo empilhados para uma fogueira parece soar como o riso da Morte, e Carmen, atirando para o alto todas as cartas, corre na direo de Dancairo, que havia sado para inspecionar as redondezas.- Alegria, pessoal! - diz ele, sorridente. - Tudo indica que no h soldados pela estrada!Depois, ordena a Jos que v vigiar do alto da montanha.- O caminho est completamente livre? - indaga Frasquita.- Sim, pelo menos at o desfiladeiro, onde avistei trs guardas fronteirios. Mas eles no sero problema! - diz o bandoleiro, acariciando a sua adaga.- No, esquea a violncia! Deixe os fiscais conosco! - diz Carmen, descendo o decote at quase o umbigo, enquanto um coro de risonha concordncia explode entre as outras ciganas.Estando acertado, ento, que as ciganas iro frente para ludibriar os fiscais, todos retiram-se para o interior de uma gruta, onde decidem passar o restante da noite.***Assim que os malfeitores adormecem, uma figura esquiva surge cautelosamente. Micaela, a jovem cigarreira apaixonada por Jos. O amor mais puro e devotado a conduziu at ali.Eu sinto que o meu pobre Jos est aqui!, pensa ela, a esgueirar-se por entre as pedras com passos de verdadeira cora. Ele foi raptado por aquela feiticeira infame!Na verdade, no foi somente o amor, mas tambm o dever que a levou s montanhas, pois a me de Jos a incumbira de vigiar os passos do seu filho.De repente, ao olhar para o alto de um rochedo, os olhos de Micaela surpreendem a imagem do seu amado soldado.Madre de Dis! Jos...!, pensa ela, arremessando-se naquela direo.Jos, porm, ao divisar aquele vulto que avana rapidamente nas trevas, no hesita em fazer a pontaria no seu clavinote.- Quem vem l? - grita ele, pronto para efetuar o disparo.Micaela, apavorada, atira-se para detrs de uns arbustos. Agachada, ela v flutuar no alto a figura do seu amado, at que uma segunda figura surge do nada, respondendo pergunta do vigia.- Por todos os chifres de todos los toros de Espaa! No atire! Sou Escamillo, o toureiro!- Damnacin! O que um maldito toureiro veio fazer aqui? - grita Jos.- O amor me trouxe at aqui! Onde est Carmen?Mais um que o amor arrasta perdicin!, pensa Jos, antes de ordenar ao intruso que d meia-volta:- V embora, ela no lhe pertence! Um passo mais e o matarei!Escamillo, porm, no se deixa impressionar.- Eu seria indigno do meu amor se lhe obedecesse, pois um apaixonado no hesita em arriscar a prpria vida para estar ao lado da mulher que idolatra!Uma vertigem de cime quase faz Jos disparar a sua carga mortal.- Carmen pertence a outro homem! V embora! - diz ele, sem revelar que ele prprio.- No, no! Ela era amante de um soldadinho miservel que desertou do exrcito! Felizmente, pela gracia de Dis, esse romance j deve ter acabado, pois os amores de Carmen no duram mais que seis meses!- Se veio busc-la, h um preo para que a entreguemos! - ruge Jos.- Um preo? Muito bem, eu o pagarei, seja qual for!- O preo uma espada atravessada no seu corao!Neste instante Escamillo compreende tudo. Aquele homem armado no topo do rochedo Jos! Com a coragem revigorada pelo cime, porm, ele ousa desafi-lo.- Ora, ento quer dizer que voc o desertor...! - exclama o toureiro.Jos desce correndo do rochedo at estar face a face com o rival. Jos abandona a arma de fogo e empunha seu florete. Escamillo faz o mesmo, e logo ambos comeam a duelar ferozmente.O rudo dos gritos e do retinir dos metais acabam acordando a maioria dos quadrilheiros, que se arremessam para fora da gruta. Carmen e Dancairo so os primeiros a chegar, no exato instante em que Escamillo, aps tropear, est merc do ao do rival.- Perros del infierno! Parem j com isso! - diz a cigana, impedindo o golpe fatal.Escamillo ergue-se, encantado por ver-se salvo pela amada.- Carmen! Salvo por usted...!Depois, j em total segurana, promete para Jos a sua revanche.- Ainda tornaremos a nos enfrentar!Antes de sair, Escamillo ainda encontra nimo para convidar a todos para compaream tourada que executar em Sevilha.- Muito bem, chega de arruaa! - diz o chefe dos contrabandistas. - Todos ao dever!O dever sagrado de um criminoso cometer os seus crimes, e assim todo o grupo comea a dirigir-se para a estrada, onde dever levar a cabo o plano longamente arquitetado. Antes, porm, Remendado avista algum escondido entre os arbustos e logo consegue capturar a jovem espi.- Micaela! O que faz aqui? - diz Jos, aturdido.- Vim para lev-lo de volta sua me, que no cessa de chorar por voc!Um coro de risos explode entre os bandoleiros e as ciganas, mas Carmen quem pe fim baguna.- A garotinha est certa! - diz a cigana a Jos. - V de uma vez!- Est me mandando embora de novo? - diz ele, ofendidssimo.- Sim, o seu lugar no aqui, mas com a sua madrecita!- O que voc quer eu bem sei! ficar com o seu novo amante!- Jos, oua o que ela diz e venha comigo! - diz Micaela, lavada em lgrimas.- No, meu anjo, eu no posso! - diz ele, pesaroso. - V sozinha, pois j estou condenado!- Sua me est morrendo, Jos!Diante dessa horrenda revelao, ele decide reconsiderar.- Est bem, eu vou. E quanto a voc - diz ele, mirando a cigana -, alegre-se com a minha partida, mas no se esquea de que eu voltarei!E assim Jos parte com Micaela, deixando Carmen e os bandidos livres para executarem o seu plano criminoso.IVSANGRE Y MUERTEO tempo passou, e estamos agora numa ensolarada plaza de Sevilha. dia de corrida de toros, e, tal como sucede em todos os feriados, o povo est agitadssimo. dia de comer e de beber at cair. Os vendedores esto por toda parte, vidos por arrancar at a ltima moeda do povo.- A dois quartos! A dois quartos! - o refro que mais se ouve por toda praa.Vinho, leques e laranjas so os artigos mais disputados, e o comrcio s cessa quando os toureiros irrompem na plaza. Uma algazarra infernal se levanta entre o povo ao avistar o brilho das lanas dos matadores, que esto suspensas ao cu. Logo atrs, surgem os picadores e os bandarilheiros, quase to enfeitados quanto os toureadores.E ento que vemos surgir, finalmente, o grande astro, Escamillo. Tendo ao lado a sua nova amante - uma linda e esfuziante Carmen -, ele surge na praa, em triunfo. Os dentes do toureador reluzem ao sol, enquanto sua amante, magnificamente trajada, arremessa rosas para o povo.Escamillo faz juras de amor sua nova amante.- Adorado! Eu tambm o amo! - diz ela, radiante. - Quero cair morta neste i