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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES PRÓ-REITORIA DE PLANEJAMENTO E DESENVOLVIMENTO DIRETORIA DE PROJETOS ESPECIAIS PROJETO “A VEZ DOS MESTRE” “A SAÚDE MENTAL DO TRABALHADOR” CRISTIANE DA COSTA CARDOSO ORIENTADOR: Prof. Mestre Robson Materko RIO DE J ANEIRO – RJ AGOSTO – 2001

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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES

PRÓ-REITORIA DE PLANEJAMENTO E DESENVOLVIMENTO

DIRETORIA DE PROJETOS ESPECIAIS

PROJETO “A VEZ DOS MESTRE”

“A SAÚDE MENTAL DO TRABALHADOR”

CRISTIANE DA COSTA CARDOSO

ORIENTADOR:

Prof. Mestre Robson Materko

RIO DE JANEIRO – RJ

AGOSTO – 2001

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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES

PRÓ-REITORIA DE PLANEJAMENTO E DESENVOLVIMENTO

DIRETORIA DE PROJETOS ESPECIAIS

PROJETO “A VEZ DOS MESTRE”

“A SAÚDE MENTAL DO TRABALHADOR”

CRISTIANE DA COSTA CARDOSO

Trabalho monográfico apresentado como

requisito parcial para a obtenção do Grau de

Especialista em Reengenharia e Gestão de

Recursos Humanos.

RIO DE JANEIRO – RJ

AGOSTO – 2001

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A MEUS PAIS, QUE SEMPRE APOIARAM MEUS

PROJETOS DE VIDA.

A SILVIA E FAMÍLIA, PELA AMIZADE E

APOIO.

A MARA LUZ A. DE AZEVEDO PELA

ORIENTAÇÃO E COOPERAÇÃO.

AO HENRIQUE DE F. CAMPOS SILVA PELO

INCENTIVO E MOTIVAÇÃO.

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DEDICO ESTE TRABALHO A TODOS AQUELES

QUE ACREDITAM, PERSEGUEM SEUS

IDEAIS, NÃO SUCUBEM DIANTE DOS

OBSTÁCULOS QUE A VIDA APRESENTA.

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SUMÁRIO

página

RESUMO ................................................................................................................... 5

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 6

1. UMA COSMOVISÃO: A VIDA, O HOMEM, O TRABALHO .......................... 8

2. O HOMEM E O TRABALHO ............................................................................... 10

3. A SAÚDE DO TRABALHADOR ......................................................................... 15

3.1. O Sofrimento Invisível ................................................................................... 15

3.2. Distúrbios Mentais .......................................................................................... 17

3.3. Dirtúrbios Somáticos ...................................................................................... 19

3.3.1. A Doença Somática .............................................................................. 19

3.4. A Interface Família-Trabalho ......................................................................... 22

3.4.1. Da Vida Familiar à Vivência do Trabalho ............................................ 23

3.4.2. Reflexos da Situação Familiar Atual .................................................... 27

3.5. Reflexões do Trabalho sobre a Vida Familiar ................................................ 27

3.5.1. Repercussão Familiar da Exposição a Neurotóxicos ............................ 29

3.5.2. A Complexidade dos Processos Envolvidos ........................................ 30

4. TRABALHO E SAÚDE ........................................................................................ 32

4.1. O Levantamento dos Riscos e sua Explicação Sócio-política ........................ 34

4.2. A Saúde Relacionada com a Condição Operária ............................................ 36

4.3. A Problematização da Relação Trabalho/Saúde ............................................. 38

CONCLUSÃO ............................................................................................................ 40

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 47

ANEXOS .................................................................................................................... 48

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RESUMO

O presente trabalho tem como tema central a Saúde Mental do Trabalhador nas

organizações.

O objeto deste estudo foi o profissional, sua relação com o ambiente, as vezes

hostil no processo de uma organização, as conseqüências de um trabalho onde o homem é

sufocado, gerando as doenças.

É necessário conceituar as cargas existentes no trabalho, uma cosmovisão, da

vida, do homem, os mecanismos de defesas utilizados. A seguir, constata-se a importância

da psicopatologia, como um instrumento de ajuda quando implantado dentro da

organização, aliviando e, consequentemente, trabalhando, permitindo ao empregado se

engajar no processo produtivo, culminando com isso, suas faltas (absenteísmo) devido aos

sintomas psicossomáticos oriundos de uma inadaptação ao seu meio de trabalho, visando o

bem-estar global do trabalhador.

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INTRODUÇÃO

Esta monografia, ao tratar do tema saúde mental do trabalhador, tem por

objetivo, averiguar que as cargas de trabalho, o ambiente hostil é determinante no

desencadeamento dos distúrbios mentais, no sofrimento do homem.

O interesse pelo tema surgiu ao verificar-se que não são respeitadas as

necessidades biopsicossociais do trabalhador, pois o ambiente, a carga excessiva diante da

produção, provocam grande desgaste individual e podem prejudicar o seu rendimento, sua

saúde e o seu bem-estar, assim como sua vida familiar e social.

O objeto deste estudo foi o trabalho em organizações e sua relação com o

trabalhador.

Foi a partir da Primeira Guerra Mundial, que apareceu o interesse pela saúde

do trabalhador. A guerra favoreceu as iniciativas em favor da proteção de uma mão-de-

obra gravemente desfalcada pelas necessidades do front. Surge a introdução do taylorismo,

que coloca o trabalho e suas conseqüências sobre a saúde mental, ao separar radicalmente

o trabalho intelectual do trabalho manual e assim neutralizando a atividade mental dos

operários. Deste modo, não é o aparelho psíquico que aparece como primeira vítima do

sistema, mas sobretudo o corpo dócil e disciplinado, entregue, sem obstáculos, à injunção

da organização do trabalho.

A última onda de medidas sociais relativas à saúde dos trabalhadores data da

Segunda Guerra Mundial e resulta da relação de forças recém-conquistadas na Resistência,

faz nascer novas esperanças para a melhoria das condições de vida e uma frente própria

concernente à saúde. Esse período da história da saúde dos trabalhadores, caracteriza-se

pela revelação do corpo, da sua exploração e suas conseqüências no aparelho psíquico.

A partir desse período começaram a surgir, com a introdução da medicina do

trabalho, uma preocupação com a satisfação, bem-estar do trabalhador. A insatisfação em

relação ao conteúdo significativo da tarefa, engendra um sofrimento cujo ponto de impacto

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é antes de tudo mental e com isso o surgimento das doenças psicossomáticas, que em

muitos casos, levam á licenças médicas, que resultam diretamente na produção.

É importante salientar que a satisfação do trabalhador está intrinsecamente

relacionada aos seus desejos e motivações, conseguir equilibrar sua tarefa e suas aptidões,

isto é, fornecer atividades melhor adaptadas à sua descarga de energia, respeitando seus

limites, proporcionando tarefas que estejam em sintonia com sua economia psicossomática

individual, a história de vida, sua estrutura de personalidade.

O homem integrado ao seu ambiente de trabalho, sendo respeitado pela

organização, tendo prazer em realizar sua tarefa, é o que esse estudo pretende mostrar. Os

avanços na área da saúde mental nas empresas e o que ainda se tem de conquistar.

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1. UMA COSMOVISÃO: A VIDA, O HOMEM E O TRABALHO

Nossa história começa há mais ou menos 20 bilhões de anos, quando uma

gigantesca explosão formou toda a matéria, energia, o tempo e o próprio espaço vazio do

universo atual. Com a evolução do ambiente, foram aparecendo seres, num processo que

levou alguns milhões de anos, a sua parte de percepção e apreensão do mundo deu um

salto no sentido de uma nova etapa cósmica de organização: a consciência, saber que

aprende, saber que sabe e inclusive saber como aprender. Este ser tem algumas

características peculiares e uma delas é a de dar nomes às coisas e chamou-se a si próprio

de Homo Sapiens.

Outras conseqüências apareceram: a modificação da natureza (trabalho) e a

sociedade. Ambas são complementares e quase indissociáveis. O homem, ser social,

trabalha. Esta modificação da natureza para seu proveito não é livre de riscos, e os

problemas decorrentes deste processo surgiram precocemente na nossa vida.

Nos últimos séculos, especialmente após a Revolução Industrial, o processo de

apropriação da natureza ganhou contornos mais nítidos e as conseqüências mais diretas,

acometem os indivíduos da linha de frente: os trabalhadores.

A cosmovisão é que somos parte de um processo de 20 bilhões de anos em um

meio com características bem definidas e relativamente estáveis: neste nunca existiram

ruído elevado e constante, poluição do ambiente, não fomos preparados para isso e quando

tal ocorre, há lesões. O nosso desenvolvimento biológico, antigo e condicionante, não

suporta tais agressões, assim com não suporta atividade monótona e repetitiva, jornadas

prolongadas, trabalho noturno e ritmos alucinantes: são agressões. Essas são as bases da

questão Saúde dos Trabalhadores e temos que avaliar e solucionar a agressão sofrida pelos

trabalhadores, o que não é facilitado pela nossa organização social que está baseada na

apropriação do trabalho.

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Este é o cenário com o qual nos defrontamos de um processo iniciado há

bilhões de anos, no qual somos sujeitos e agentes, precisamos ficar alertas para o caminho

que estamos percorrendo, o homem não foi preparado para essa organização, a esse modo

de produção e as seqüelas mentais estão surgindo, o desgaste de horas realizando uma

tarefa.

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2. O HOMEM E O TRABALHO

Em torno das perguntas dos poetas construíram-se a filosofia, a antropologia, a

sociologia, a psicologia e outros ramos do conhecimento. Não há uma resposta única a

elas, mesmo porque o Homem, enquanto objeto de estudo, é extremamente rico e variado,

apresentando diferenças étnicas, culturais, evolutivas no tempo. De qualquer forma,

colocar-se diante destas perguntas já é uma faculdade exclusivamente humana...

Do ponto de vista biológico, o homem acumula os avanços dos demais seres na

escalada de complexidade do processo evolutivo. O seu marco diferencial em relação aos

ancestrais relaciona-se, em grande parte, ao Sistema Nervoso.

Conservamos o complexo reptiliano de nossos parentes próximos (estria

olfativa, corpo estriado e globo pálido), que desempenha importante papel no

comportamento agressivo, na demarcação territorial, no ritual e no estabelecimento da

hierarquia social.

Ampliamos o Sistema Límbico, relacionado aos comportamentos altruísticos,

às emoções e parte da memória, O Neocórtex, amplamente expandido, realiza as operações

da razão, como a deliberação da ação, a integração de informações, a percepção complexa,

a memória, a linguagem e seus diversos símbolos, as abstrações.

Temos também muitos limites. Não conhecemos nem utilizamos vastas áreas

de nosso Sistema Nervoso. Temos dificuldades em articular as dimensões racional e

afetiva, individual e social. A morte é um fato insuperável, e a consciência desta finitude

nos angustia.

A complexidade anátomo-funcional do Homo Sapiens abre novas

possibilidades para a espécie. Se, por um lado, continuamos fazendo parte da natureza e

tendo que nos adaptar às modificações ambientais, por outro lado, podemos

progressivamente, junto com os outros homens, realizar nossas potencialidades e modificar

a natureza, possibilitando a sobrevivência, expansão e evolução da espécie.

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Este processo, que é fruto da natureza criadora e social dos homens, inicia-se

no período neolítico e prossegue até os dias de hoje, constituindo toda a nossa história.

Representa um nível mais elevado de complexidade organizativa no qual os homens,

dotados de intencionalidade, constróem a sociedade - e suas contradições.

Os modos de relação do homem com a natureza e com os outros homens

modificam-se ao longo do tempo, tomando formas cada vez mais profundas e sofisticadas.

É a evolução histórica do processo de trabalho, do artesanato à automação. Em seu curso,

prossegue também a evolução biofisiológica da espécie, articulando o aumento do volume

cerebral com o desenvolvimento da cultura humana, o aperfeiçoamento de aptidões, a

comunicação e a organização social, numa delicada fronteira entre a biologia e as ciências

sociais.

São inegáveis os frutos dos 200.000 anos de trabalho de nossa espécie. No

mínimo, fomos capazes de construir uma sociedade onde vivem - embora em níveis

diferenciados - 6 bilhões de pessoas. Desenvolvemos, para isto, ciência e tecnologia.

Dominamos progressivamente a natureza. Os destinos do planeta e de suas formas vivas -

inclusive a nossa - estão em nossas mãos:

Se avançamos muito em relação ao homem das cavernas, temos também

muitos problemas a enfrentar, todos eles com impactos diretos sobre a vida e a morte, a

saúde e a doença:

“O planeta Terra vive um período de intensas transformações técnico-científicas, em contrapartida das quais engendram-se fenômenos de desequilíbrio ecológico que, se não forem remediados, no limite, ameaçam a implantação da vida em sua superfície. Paralelamente a tais perturbações, s modos de vida humanos individuais e coletivos evoluem no sentido de uma progressiva dterioração. As redes de parentesco tendem a se reduzir ao mínimo, a vida doméstica vem sendo gangrenada pelo consumo da mídia, a vida conjugal e familiar se encontra frequentemente ‘ossificada’ por uma espécie de padronização dos comportamentos, as relações de vizinhança estão geralmente reduzidas a sua mais pobre expressão...” 1

Problemas como contradições, desequilíbrios e ameaças, infelizmente, não são

escassos.

1 SILVA, Edith Seligmann. Desgaste Mental no Trabalho Dominado. São Paulo: Cortez, 1994, p.7.

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Também a evolução do processo de trabalho, se por um lado contém inovações

que possibilitam a produção de bens cada vez mais sofisticados, em grande escala, e a

redução de algumas cargas de trabalho; por outro lado tem trazido muitos problemas, que

podem colocar em xeque o próprio sentido do trabalho humano.

No modo de produção capitalista o trabalhador é progressivamente alienado do

seu trabalho. Ele executa o trabalho que outros conceberam, muitas vezes sem

compreender sua destinação social. Há administradores, engenheiros, chefes, supervisores

que determinam como o trabalho deve ser feito e controlam o ritmo da produção.

O trabalho no Brasil, nos últimos quinze anos, levou pelo menos 60.000

pessoas à morte e 300.000 a mutilações incapacitantes. O “progresso” gerado pelos 60

anos de industrialização não resolveu os problemas básicos que levam às “doenças da

miséria” e ainda levou a elevação das doenças crônico-degenerativas, cardiovasculares,

profissionais, mentais e do câncer.

O avanço técnico-científico das forças produtivas tem tornado disponível uma

quantidade cada vez maior do tempo da atividade humana; mas esta possibilidade de ócio

tem sido aproveitada para o enriquecimento dos modos de vida e de sensibilidade ou tem

resultado no desemprego, na solidão, na angústia?

Nosso amanhã passa necessariamente pelo enfrentamento de vários problemas,

que podemos identificar cotidianamente. Como o faremos não está predeterminado. Há

vários caminhos e nós, sujeitos sociais, é que construiremos o futuro, a partir de nossas

ações e do sistema de valores que as balizam.

“Desconfiai do mais trivial na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual. Nada deve parecer natural. Nada deve parecer impossível de mudar.” 2

Neste ponto é necessário situar nosso poder de construção/transformação da

sociedade humana, seja enquanto indivíduos, profissionais ou cidadãos. Certamente, não

somos onipotentes: intervimos dentro de uma esfera de possibilidades, desenhada a partir

de nossa inserção no espaço e no tempo e muitas vezes temos que conviver com a

frustração, a angústia e a espera.

2 SILVA, Edith Seligmann. Ib idem, p.7

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Mas isto não significa realizar um movimento pendular ao pólo oposto da

impotência, como se nada houvesse a fazer, o que apenas mascara uma postura de

alienação de nossa própria condição humana: somos sujeitos da história. Se, em relação ao

tempo e espaço do Universo, parecemos minúsculos, em relação à sociedade que

construímos temos poder.

Somos profissionais de saúde, somos também trabalhadores e temos um papel

a cumprir neste processo. Como enfermeiro, médico, psicólogo, entre outros, nosso

trabalho consiste em contribuir para a elevação dos níveis de saúde dos homens. Mas a

saúde está profundamente imbricada com a forma pela qual nos relacionamos com a

natureza e organizamos a vida social. Nem mesmo entre as quatro paredes do consultório é

possível desconsiderar isto: ser profissional de saúde significa, em última instância,

participar da avaliação / transformação / construção da sociedade, de maneira a “articular

ético-politicamente o meio ambiente, as relações sociais e a subjetividade humana”. Há um

leque muito amplo de formas de participar deste processo - do espaço doméstico às

associações políticas, do campo profissional ao da cidadania - e a singularidade de cada um

de nós orienta as escolhas que faremos. O que não há é a possibilidade de estar fora dele

pois, mesmo que queiramos nos esconder atrás de uma ação “puramente técnica”, nosso

cotidiano é sempre uma prática social, que é incorporada ao processo histórico. Não há a

neutralidade.

Um exemplo simples de nossas possibilidades de intervenção situa-se na

relação com os pacientes. A percepção da amplitude e gravidade dos problemas de saúde

que eles nos apresentam - especialmente quando da classe trabalhadora, freqüentemente

evidenciam nossos limites de atuação profissional e nos angustiam.

Num mecanismo de defesa contra a angústia, criamos barreiras em relação a

estes pacientes, que despejam em nossa mesa a miséria humana. Passa-se a não escutá-los,

ou limita-se a dirigir sua fala. Por outro lado, podemos contribuir com a recuperação de sua

identidade e dignidade humanas - freqüentemente negada nas ruas, nas fábricas, no seu

cotidiano - relacionando com eles enquanto sujeitos sociais, seres capazes de pensar, agir,

lutar historicamente por seus interesses; estabelecendo com eles uma “conversa reflexiva”,

onde pessoas com experiências e conhecimentos diferentes, porém igualmente relevantes,

se ouvem, problematizam as situações concretas da vida e buscam compreendê-las,

solucioná-las ou transformá-las.

Em qualquer forma de inserção no processo histórico, dois pilares podem nos

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balizar. O primeiro é o da Ética. Como seres humanos, vivemos tensionados entre uma

dimensão particular-individual - que busca a satisfação das necessidades do eu, e uma

dimensão humano-genérica - relacionada à consciência do nós.

O segundo pilar é o da Esperança, “elemento decisivo em qualquer tentativa

para ocasionar mudança social na direção de maior vivência, consciência e razão”. A

realidade que aí está foi por nós construída e por nós pode ser transformada - ainda que

este processo não seja muito facilmente visível no estreito limite de tempo de nossas

existências individuais, que não é o tempo da História.

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3. A SAÚDE DO TRABALHADOR

Até agora, nosso esforço de pesquisa e interpretação foi no sentido de revelar

um sofrimento não-reconhecido, provocado pela organização do trabalho.

A questão é saber se a exploração do sofrimento pode ter repercussões sobre a

saúde dos trabalhadores, do mesmo modo que podemos observar com a exploração da

força física.

Talvez o mais insólito, na abordagem psicopatológica da organização do

trabalho, é que a exploração mental seja fonte de mais-valia nas tarefas desqualificadas,

cuja reputação é a de serem estritamente manuais. Para avaliar os efeitos da exploração

mental sobre a saúde, necessitamos recorrer a noções de psicopatologia mais clássicas, mas

mais especializadas.

Para encontrar, em algumas doenças, a organização do trabalho como sua

causa principal, faremos referência à economia psíquica e somática global.

3.1. O SOFRIMENTO INVISÍVEL

Com raras exceções, todas as situações não deixam entrever nenhuma doença

mental caracterizada. Mesmo intenso, o sofrimento é razoavelmente bem controlado pelas

estratégias defensivas, para impedir que se transforme em patologia.

Resta saber se as descompensações são sempre evitáveis ou evitadas. As

neuroses, psicoses e depressões em situação de trabalho são compensadas, precisamente,

pela utilização dos sistemas defensivos descritos anteriormente. Se for admitida a

possibilidade de descompensação, devemos nos perguntar porque não vemos nenhum

vestígio dela na fábrica, na oficina, no escritório.

Toda descompensação psiconeurótica traduz-se, provavelmente, por uma

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queda no desempenho produtivo. Assim, as neuroses e psicoses descompensadas são

imediatamente detectadas através dos critérios de rendimento na produção. A punição

sistemática é a exclusão imediata do trabalho.

A organização do trabalho é, indubitavelmente, a causa de certas

descompensações. Esse fenômeno pode ser observado em duas circunstâncias, que nos

servirão aqui como exemplos.

A primeira concerne ao aumento dos ritmos de trabalho na indústria eletrônica.

A análise do trabalho nesse ramo industrial mostra que o aumento da cadência, a

aceleração dos tempos e a exigência de desempenhos produtivos de rendimento crescente

conduzem a descompensações rápidas, que se desencadeiam como epidemias. O pessoal,

basicamente feminino, descompensa em crises de choro, dos nervos e desmaios, que

atingem, como uma doença contagiosa, toda uma seção dê trabalho. Agitada, uma operária

começa, de repente, a tremer e a gritar. Alguns momentos depois, uma outra tem uma crise

de choro e abandona sua função. Segue-se, em cadeia, então, “uma série de

descompensações”. Enquanto esse incidente fica isolado, a contraventora é conduzida à

enfermaria. Mas se diversas operárias descompensam a chefia direta intervém, geralmente

com uma diminuição dos ritmos de trabalho.

Basta diminuir a pressão organizacional para fazer desaparecer toda

manifestação do sofrimento.

O outro exemplo nos mostra que nos fins de semana, quase que regularmente,

o ambiente da seção fica bem especial. Voam parafusos pelo ar, ressoam gritos, apesar do

barulho das máquinas, quebram-se ferramentas, aumentam as peças quebradas durante a

produção, e rejeitadas ao final. Explode, diretamente, a agressividade contra as chefias. E

geralmente nesses momentos que se vê também algumas brigas de socos. Com a desordem

instalada, muitas vezes a linha de produção pára; qualquer anomalia ou irregularidade, até

mesmo a parada da produção, provocam irrupções coletivas de agressividade. No fim, os

carros que saem da fábrica naqueles dias têm muito mais defeitos do que os que saem no

começo da semana.

Quando o limiar coletivo de tolerância não é ultrapassado, pode acontecer que

um trabalhador, isoladamente, não consiga manter os ritmos de trabalho ou manter seu

equilíbrio mental. Forçosamente, a saída será individual. Duas soluções lhe são possíveis:

largar o trabalho, trocar de posto ou mudar de empresa. São as fórmulas encobertas pela

rotatividade.

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A segunda solução é representada pelo absenteísmo. Mesmo sabendo que não

está propriamente doente, o operário esgotado e à beira da descompensação psiconeurótica

não pode abandonar a fábrica sem maiores explicações. O sofrimento mental e a fadiga são

proibidos de se manifestarem numa fábrica. Só a doença é admissível Por isso, o

trabalhador deverá apresentar um atestado médico, geralmente acompanhado de uma

receita de psicoestimulantes ou analgésicos.

A consulta médica termina por disfarçar o sofrimento mental: é o processo de

medicalização, que se distingue bastante do processo de psiquiatrização, na medida em que

se procura não-somente o deslocamento do conflito homem-trabalho para um terreno mais

neutro, mas a medicalização visa, além disso, a desqualificação do sofrimento, no que este

pode ter de mental.

3.2. DISTÚRBIOS MENTAIS

Contrariamente ao que imaginamos, a exploração do sofrimento pela

organização do trabalho não cria doenças mentais especificas. Não existem psicoses de

trabalho, nem neuroses do trabalho.

Até os dias atuais não conseguimos provar a existência de uma patologia

mental decorrente do trabalho. Apenas algumas interpretações simplistas atribuem à

sociedade a causa de todas as doenças mentais.

Isso significa que a organização do trabalho não tem nenhuma importância nas

doenças mentais?

As descompensações psicóticas e neuróticas dependem da estrutura das

personalidades, adquirida muito antes do engajamento na produção. O surgimento de uma

descompensação psiconeurótica não deixa de colocar algumas questões que ainda não

foram resolvidas.

A estrutura de personalidade pode explicar a forma sob a qual aparece a

descompensação e seu conteúdo. Mas não é suficiente para explicar o momento

“escolhido” pela descompensação. Mesmo que a realidade tratada nas descompensações

psicóticas e neuróticas não tenha nenhum poder patogênico, admitamos que a realidade,

mesmo sem nenhuma ocorrência específica, pode favorecer o surgimento de uma

descompensação.

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Deve-se levar em consideração três componentes da relação homem-

organização do trabalho: a fadiga, quê faz com que o aparelho mental perca sua

versatilidade; o sistema frustração-reativa que deixa sem saída uma parte importante da a

organização do trabalho, como correia de transmissão de uma vontade externa, que se opõe

aos investimentos das pulsões e às sublimações. O defeito crônico de uma vida mental sem

saída mantido pela organização do trabalho. tem provavelmente um efeito que favorece as

descompensações psiconeuróticas.

Em geral, se a organização do trabalho não pode ser considerada como fonte de

doença mental, entretanto, poderia talvez encontrar assim uma explicação original. Trata-

se da “síndrome subjetiva pós-traumática”. Essa síndrome aparece, em geral, após a

cicatrização de uma ferida, a consolidação de uma fratura ou a cura de uma intoxicação

aguda. Caracteriza-se por uma grande variedade de problemas “funcionais”, ou pela

persistência anormal de um sintoma que apareceu depois do acidente.

Assim, uma ferida no couro cabeludo provocada pela queda de uma pedra,

depois da raspagem e cura, continua durante meses a produzir pruridos na superfície do

crânio, cefaléias, impressões estranhas na cabeça, vertigens etc.

Convencido da realidade do risco e excluído da ideologia ocupacional, o

trabalhador acidentado deverá enfrentar o perigo e o medo. Nessas condições,

compreende-se que o trabalhador acidentado recuse energicamente retomar o trabalho. Ao

mesmo tempo, tal comportamento é difícil de ser assumido por um operário que, até então,

partilhava da ideologia ocupacional defensiva. Seria, de algum modo, reconhecer sua

falência, sua impotência, seu medo.

Assim, recusar-se a retomar o trabalho, por ansiedade, equivaleria à demissão,

automaticamente, sem indenização nem pensão. Somente uma doença mental caracterizada

permitiria a aquisição de um status de invalidez. Ora, o medo, longe de ser inadequado,

não pode absolutamente ser considerado uma doença mental. A única saída é, então, uma

“medicalização” do medo. A persistência de cefaléias, vertigens, problemas visuais, de

equilíbrio sine materia é bem adequada, servindo de ponto de apoio e de apelo ao processo

de medicalização.

A síndrome subjetiva pós-traumática é, assim, a única entidade clínica

reconhecidamente de origem bem limitada à organização do trabalho. Na prática, ela é

reconhecida com pouca freqüência, embora atinja, anualmente, milhares de trabalhadores

acidentados. Como regra geral, depois de alguns meses ou alguns anos de evolução, os

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doentes são tratados por psiquiatras.

3.3. DISTÚRBIOS SOMÁTICOS

Os pacientes com síndrome subjetiva pós-traumática mostram que encontramos

entre eles uma grande variedade de estruturas mentais, e não uma estrutura neurótica única,

pré-formada e característica dessa síndrome.

Mesmo se médicos e psiquiatras costumam atribuir à síndrome subjetiva pós-

traumática uma hipotética estrutura neurótica, é preciso notar que, diferente dos outros

domínios da psicopatologia das neuroses, essa síndrome revela uma resistência

excepcional ao tratamento psiquiátrico. Não conhecemos nenhuma publicação de sucesso

psícoterápico nessa patologia. Há casos, de reclassificação profissional ou de admissão da

condição de invalidez, que conseguiram redirecionar a sintomatologia. A impossibilidade

de analisar essa síndrome resulta, provavelmente, de seu determinismo, antes de tudo

socioprofissional, e não psicoafetivo. Seu sentido e seu significado não podem ser

desvelados pela história passada do sujeito; residem, ao contrário, na natureza das

condições e da organização do trabalho.

3.3.1 – A DOENÇA SOMÁTICA

Uma observação sobre uma desorganização psicossomática num operário

diabético insiste, basicamente, nos efeitos possíveis da inadequação entre a estrutura da

personalidade e o conteúdo ergonômíco do trabalho. Quando as defesas caracteriais e

comportamentais não conseguem se exercer durante o trabalho, há o risco de uma

acumulação de energia pulsional, que não consegue se descarregar.

Para ser mais exato, é preciso saber que o inverso também é possível: a

contribuição exagerada de uma defesa comportamental ou de um sistema defensivo

caracterial, em detrimento de outros mecanismos de defesa não colocados em prática, pode

conduzir à desorganização. O efeito principal da neutralização das defesas caracteriais e

comportamentais é o a aparecimento de uma doença somática.

Há um ponto fundamental que deve ser lembrado, para que compreendamos os

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efeitos da organização do trabalho na economia psicossomática:

- As doenças somáticas aparecem sobretudo em indivíduos que apresentam uma estrutura

mental caracterizada pela pobreza ou ineficácia das defesas mentais

- As defesas que não são psiconeuróticas, ou seja, as defesas de caráter e de

comportamento são menos flexíveis que as defesas mentais.

- Quando as defesas caracteriais e comportamentais não conseguem conter a gravidade dos

conflitos ou a realidade, tais sujeitos não descompensam de um modo neurótico, nem de

um modo psicótico.

- Ao contrário, a maioria das doenças somáticas aparece em sujeitos que já apresentavam

uma estrutura caracterial ou comportamental.

Quando se ocupa de uma tarefa, o trabalhador, espontaneamente, procura arrumá-

la numa ordem, numa seqüência de gestos, escolhendo os instrumentos adequados, enfim,

executando de certa maneira uma organização de trabalho de compromisso.

A elaboração de um modo operatório espontâneo, ao longo de sucessivas

modificações, vai se aperfeiçoando em função de critérios que não são nada ao acaso. A

mesma tarefa, realizada por diferentes trabalhadores, nem sempre é realizada segundo um

mesmo e único protocolo. A observação demonstra que os diferentes modos operatórios,

espontâneos, são extremamente personalizados.

A organização do tempo em fases de trabalho e em fases de descanso respeita as

necessidades da economia psicossomática, protege o corpo contra uma sobrecarga

comportamental, que poderia ser prejudicial, e possibilita ao sujeito meios de canalizar

suas pulsões durante o trabalho.

A organização do trabalho é causa de uma fragilização somática. na medida em

que ela pode bloquear os esforços do trabalhador para adequar o modo operatório às

necessidades de sua estrutura mental.

O que acontece ao sujeito que apresenta uma estrutura neurótica autêntica, na

situação de contradição que o opõe à organização do trabalho?

Parece-nos que as aptidões ligadas à mentalização e à produção de fantasmas

constituem a melhor válvula de escape à tensão imposta a economia psicossomática.

Numerosos casos clínicos comprovam que, em situações semelhantes, as doenças

somáticas são extraordinariamente mais raras do que em sujeitos com menor capacidade de

mentalizar Ainda assim, é preciso que a organização do trabalho facilite o livre jogo do

funcionamento mental.

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Nós propomos a seguinte hipótese: a organização do trabalho e, em particular, sua

caricatura no sistema taylorista e na produção por peças é capaz de neutralizar

completamente a vida mental durante o trabalho. Nesse sentido, o trabalhador encontra-se,

de certo modo, lesado em suas potencialidades neuróticas e obrigado a funcionar como

uma estrutura caracterial ou comportamental. Efetiva-se assim, artificialmente, pelo

choque com a organização do trabalho, o primeiro passo para uma desorganização

psicossomática experimental.

Em nossa opinião, uma das maiores causas da doença somática é o bloqueio

contínuo que a organização do trabalho pode provocar no funcionamento mental. Mesmo

não sendo precisamente ortodoxa, em relação à teoria psicossomática, essa proposição

parece ter sido pressentida de longe por alguns autores.

Clinicamente, o fracasso do funcionamento mental e a inadequação da

organização do trabalho conteúdo ergonômico) às necessidades es a economia

psicossomática não se traduzem, imediatamente, em uma doença somática. Primeiro,

aparece uma vivência de insatisfação, cuja expressão é especifica e distingue-se da

insatisfação em relação ao conteúdo significativo da tarefa. Essa vivência exprime-se,

sobretudo, pela fadiga. Na realidade, não há nada mais surpreendente do que observar essa

vivência subjetiva tornar-se uma queixa somática, mesmo não havendo uma doença

autêntica. Talvez fosse mais correto dizer mesmo que não há ainda uma doença somática.

Compreendemos melhor, nesta perspectiva, porque à fadiga não corresponde sempre uma

excessiva carga física de trabalho. Vários autores já debateram a fisiopatologia dessa

fadiga misteriosa, que não corresponde a nenhuma fisiopatologia concreta. Não há

nenhuma necessidade, na realidade, de se ter um desempenho físico excessivo para

justificar a sensação de fadiga. Quando a organização do trabalho entra em choque com a

economia psicossomática, o trabalhador deve desenvolver todos os recursos de que dispõe

para compensar o estreitamento - pela organização do trabalho - de todos os canais

comportamentais, caracteriais e mentais, para sua energia pulsional. Por ser uma vivência

subjetiva, vários autores desqualificam a fadiga como se ela fosse “psicogênica”, ou seja,

quase uma simulação.

Essa afirmação é, ao mesmo tempo, falsa e verdadeira; mas, sobretudo, está

incompleta, errada. A fadiga é simultaneamente psíquica e somática. E psíquica porque

corresponde a um obstáculo para o psicossomático; e também por ser uma vivência

subjetiva. Mas é também, e principalmente, somática porque sua origem está claramente

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no corpo, O que pode parecer estranho é que não corresponde a um esforço muito grande

dos órgãos do corpo, mas a uma repressão da atividade espontânea desses órgãos (motores

e sensoriais).

A fadiga não provem somente da sobrecarga de um órgão ou de um aparelho. Tal

concepção é fortemente influenciada pela herança histórica da biologia, da fisiologia e das

experiências clássicas sobre energética e esforço muscular. A fadiga pode encontrar sua

origem também na inatividade. Essa inatividade é fatigante porque não é um simples

repouso mas, ao contrário, uma repressão - inibição da atividade espontânea.

Contrariamente a certas afirmações, os operários não reivindicam o direito à ociosidade

permanente. A maioria das pessoas, a exemplo das crianças, não têm prazer nenhum com a

inatividade duradoura. Um exemplo caricatural foi-nos dado por uma empresa, na qual a

redução da atividade tinha provocado o repouso forçado de uma seção inteira. Entretanto,

as secretárias estavam submetidas à disciplina dos horários e ao controle de uma chefia.

Durante alguns meses, quase nenhum trabalho lhes foi dado. Ao mesmo tempo, foi-lhes

proibido terem atividades não-profissionais (proibição de tricotar, fazer palavras cruzadas

etc.). O efeito principal, resultante dessa “organização do trabalho” foi o aparecimento de

uma fadiga considerável que levou a ... “licenças de trabalho”!

Estudamos atentamente a questão, para sabermos que não havia, além da

diferença dos métodos de trabalho, um outro fator susceptível de explicar essa

recrudescência da intoxicação.

O trabalho de diferentes pesquisas e estudos realizados mostrou que as condições

de trabalho eram praticamente as mesmas, pelo menos do ponto de vista dos tóxicos.

Podemos supor, então, que a fadiga e a difícil adaptação a um ritmo de produção elevado

provocaram perturbações passageiras nas defesas do organismo.

3.4. A INTERFACE FAMÍLIA-TRABALHO

Existem numerosas ligações tecendo a interface família/trabalho. Acreditamos

que se constitui, aí, um novo terreno que desafia os pesquisadores do campo da S.M.T..

Ainda pouco explorada, a trama complexa dessa interface, numa visão preliminar, deixa

entrever uma via de mão dupla: de um lado, há o fluxo em que a subjetividade desloca

experiências familiares para o mundo do trabalho; de outro, a corrente que transporta para

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a vida familiar determinações emanadas do trabalho. Mas os dois fluxos se entrecruzam

muitas vezes, ao mesmo tempo em que dão lugar a dinâmicas pelas quais se realimentam

reciprocamente. Não teremos a pretensão de examinar todas as diversidades que pode

apresentar essa Interface nas diferentes atividades laborais, setores da economia e

contextos sociopolíticos e culturais. Tentaremos, apenas, uma aproximação que permita

identificar alguns componentes das duas correntes acima mencionadas. Essa aproximação

se apoiará, em parte, em nossas observações de pesquisa de campo.

Vale alertar para o fato de se encontrar já em desenvolvimento uma vertente

especial destes estudos, dirigida ao trabalho e à condição feminina, da qual não teremos

ocasião de tratar neste capítulo.

Poderiam ser examinadas, aqui, aquelas conexões família-trabalho que

resultam em prazer, bem-estar e incremento da saúde psicossocial. Elas existem e

constituem um importantíssimo aspecto. Pais e mães que extraem prazer de um trabalho

que lhes é significativo, que lhes permite exercer sua autonomia, desenvolver seus

potenciais e interesses, sentindo-se socialmente reconhecidos e justamente remunerados,

certamente enriquecerão afetiva e intelectualmente o convívio familiar. Infelizmente, essa

não é a constatação mais freqüente nas pesquisas que realizamos e nem na literatura

examinada, assim como não parece ser a mais comum, especialmente na realidade social

dos países de economia dependente.

3.4.1. DA VIDA FAMILIAR À VIVÊNCIA DO TRABALHO

Bruschini e Rosemberg (1982) analisam Importantes aspectos referentes aos

modos pelos quais a estrutura familiar suscita ressonâncias nas hierarquias do mundo do

trabalho, mostrando que duas situações, em especial, marcam a aproximação entre estas

instâncias: a situação de dependência e a situação de crise. Ambas atuam agravando as

confusões de sentimentos que dificultam a discriminação entre as relações de trabalho e as

relações afetivas familiares.

De acordo com os autores:

“Os compromissos são muito diferentes, nas situações de família e de trabalho, porém as forças de apropriação favorecem a confusão de

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sentimentos. Também, cada vez que se emprestar uma figura paternal ou maternal à hierarquia do trabalho, não se fará senão reforçar um mito inexistente na realidade”. 3

A análise sobre a dependência pode ser estendida a outras profissões, onde o

papel maternal freqüentemente é assumido pelo profissional e está incorporado nas

expectativas e atitudes daqueles que são objeto de suas atividades.

É o que ocorre nas profissões em que o conteúdo do trabalho muito se

aproxima das tarefas maternais de prestação de cuidados - alimentar, vestir, proteger,

ministrar atenção em situações de doença.

Neste caso, profissões e ocupações da área de Saúde (enfermagem e atividade

médica) e da área de serviço social, junto a creches, abrigos e outras Instituições ou

modalidades de assistência social. As mesmas confusões de sentimentos podem ser

propiciadas no caso das atividades de professores, cuja essência, de formar e preparar os

alunos para a vida, em muito evoca o papel parental.

O grau de fragilidade e desamparo das pessoas cuidadas certamente é uma

variável importante na facilitação para que o papel maternal seja assumido com maior

ênfase - como pode acontecer aos que cuidam de doentes, crianças pequenas, idosos

dependentes ou pessoas inválidas. Nessa situação, o papel maternal assumido pelo

profissional, que em grande parte das vezes é do sexo feminino e nem sempre teve filhos,

pode se desenvolver fortemente.

O suficiente para que a exploração deste profissional seja bastante facilitada:

ele se deixará explorar por não admitir mudar de emprego e, assim, “abandonar os filhos”.

Em tais circunstâncias, a enfermeira ou a assistente social (ou outro profissional) estão

assumindo um outro papel que advém também da “cultura maternal” - o de mãe que aceita

sacrifícios pelo bem dos filhos. A sobrecarga de trabalho destas pessoas leva, com o

decorrer do tempo, a rupturas de estabilidade emocional. A síndrome resultante apresenta

algumas características especiais, tendo sido denominada burn out e correspondendo ao

que no Brasil é popularmente conhecido por “esgotamento” ou estafa, conforme já

mencionado no tópico em que tratamos do estresse.

O trabalho nas usinas do século XIX favoreceu um tipo de família nuclear,

onde as ligações entre as pessoas se fundavam sobre a responsabilidade e a culpa. Pois

3 BRUSCHINI, M.C.A. e ROSEMBERG, F. Trabalhadoras do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982, p.89.

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responsabilidade e culpa, na época, marcavam as relações recíprocas entre todos os

membros de cada pequeno grupo familiar, servindo à sua coesão. A situação familiar

corresponderia a uma atitude de fidelidade com relação ao trabalho, sempre que o contrato

social permanecesse respeitado. O mesmo não ocorreria para os que vivessem a

experiência de uma família de laços menos estáveis que, fornecendo uma imagem de

relatividade das estruturas e de finitude dos sentimentos, conduziria a apego menos intenso

e a maior possibilidade de transformação, mudança e, por conseguinte, menos investimento

afetivo e fidelidade para com o empregador.

No decorrer da recessão do início dos anos 80, nas entrevistas com

trabalhadores Industriais que haviam perdido o emprego, captamos muitas vezes

sentimentos Intensos de mágoa e perplexidade. Era muito claro que as dispensas revelaram

que, na percepção dos trabalhadores, o vinculo rompido era muito mais do que

simplesmente empregatíclo.

Os conflitos com chefia são uma situação potencializadora da intensificação de

confusão afetiva. O sofrimento pode ser desencadeado por críticas ou manifestações de

desconsideração por parte de chefias, que são visualizadas como figuras parentais. Em

estudos de casos individuais, foram encontradas várias vezes esse aspecto. Assim, à

vivência de uma opressão ou humilhação reais e ao autoritarismo factual e atual, soma-se a

reatualização de vivências infantis, o que, obviamente, não costuma ser percebido de forma

consciente.

A presença deste tipo de confusão afetiva merece uma compreensão adequada

por parte dos pesquisadores e dos terapeutas. Entretanto, é preciso estar alerta para que tais

fenômenos, uma vez reconhecidos, não conduzam à psicologização de fatos concretos e

atuais, escamoteando a realidade da opressão e da injustiça presentes no cotidiano do

trabalho.

No que se refere a sentimentos de perda de poder sobre o próprio corpo

“robotizado”, o que se acentua pela repetitividade das tarefas e pela aceleração dos ritmos,

induzindo a um estado de fragilidade emocional. Fenômenos de despersonalização

ocorrem dentro destas situações de dominação, marcadas pela instalação de uma total

dependência do corpo diante do sistema hierárquico imperante na organização do trabalho.

Passa a vigorar, assim, uma situação que, do ponto de vista psicológico, é profundamente

regressiva, e que, por outro lado, favorece a intensificação da dominação.

As leis internas da fábrica são fortalecidas pelas “leis” do mundo interno de

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cada um. Leis que foram, por sua vez, forjadas ao longo da vida familiar e de toda a

experiência cultural anterior, no mundo rural ou no mundo urbano. Assim, a catar as

determinações e evitar reacender conflitos dolorosos foram, para alguns, as tônicas destes

“regulamentos do íntimo”. Por Isso, também, o sucesso (do ponto de vista da empresa) dos

métodos de motivação comportamental, tão adotados nas indústrias “modernas”, muitas

vezes com o uso de prêmios. Pois ser elogiado ou premiado pode significar, para o

operário, ser reconhecido, sinônimos de recuperação do afeto paterno e/ou materno tidos

como perdidos. Mas também o ódio e a revolta reprimidos contra um patriarca opressor

podem projetar-se, Intensamente, sobre a figura de um chefe imediato.

A mesma ambivalência é encontrada em relação à figura paterna surgiu tanto

em relação à chefia como à própria indústria. Às vezes, assiste-se a uma aparente resolução

da ambivalência, através de uma dupla projeção feita, simultaneamente, sobre a chefia e a

empresa.

Os sentimentos com relação à empresa surgem muitas vezes profundamente

contraditórios. Em momentos diferentes encontramos a queixa contra o esgotamento

determinado pelo trabalho exigido e, pouco depois, referências elogiosas à empresa “que é

uma verdadeira mãe pra gente”. A imagem da “empresa boa” mantém-se preservada,

idealizada, percebida como entidade provedora que atende a todas as necessidades - a

começar pela sobrevivência. É interessante notar que, nos casos em que os operários

haviam sofrido abandono parental muito precoce, a empresa surgiu de forma especial, com

uma imagem boa, carregada de generosidade.

Nas grandes organizações transnacionais, a figura do chefe perde sua

importância, deixa de representar o poder e a imagem paterna. O chefe passa a ser um dos

muitos agentes do sistema de poder da organização.

São as regras, as políticas, os dispositivos da organização e não mais as

decisões do chefe que governam a vida cotidiana. Os investimentos e os conflitos

inconscientes maiores não são mais vividos na relação com as chefias, mas com a

organização.

A psicanálise, enquanto ciência e prática da transferência interpessoal, perde

seu interesse para o estudo do poder e deve ser substituída pela análise das relações

inconscientes dos indivíduos com as instituições sociais.

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3.4.2. REFLEXOS DA SITUAÇÃO FAMILIAR ATUAL

Além da transposição para o trabalho de vivências profundas relacionadas às

primeiras experiências, na família de origem, também a situação familiar do presente pode

determinar reflexos para a vida laboral.

Já foi estudado como uma excessiva adesão ao trabalho pode significar uma

fuga ou compensação de uma vida familiar insatisfatória, especialmente se há uma relação

conjugal afetivamente esvaziada ou fortemente conflitiva. Nestes casos, um investimento

afetivo considerável pode se efetivar, compensatoriamente, no trabalho, ao mesmo tempo

em que a jornada é muitas vezes ampliada propositadamente pelo próprio assalariado.

Observações realizadas revelaram uma situação complexa, que passava mais

pela necessidade econômica do que por dificuldades afetivas. Simplesmente, havia a

necessidade de ganhar mais do que o salário estipulado, para atender as necessidades

básicas da família. Assim, os próprios operários faziam questão de trabalhar em horas-

extras ou conseguir atividades adicionais ao emprego, chegando ao ponto de, às vezes,

encarar desfavoravelmente ações sindicais voltadas para a supressão das horas

extraordinárias de trabalho.

A precariedade das condições gerais de vida, principalmente no que se refere à

moradia e à segurança, costuma levantar inquietações que podem ser perturbadoras da

concentração exigida em muitos desempenhos. Quando o trabalho é noturno, surge para

alguns a preocupação com a segurança da família, principalmente se ocorreu recentemente

assalto ou outra violência na vizinhança de casa. Outros, cujos locais de moradia estão

sujeitos a enchentes, revelaram ficar tomados de forte apreensão quando percebiam estar

havendo temporal durante o período em que estavam no trabalho.

3.5. REPERCUSSÕES DO TRABALHO SOBRE A VIDA FAMILIAR

No exame desta segunda via da interface família/trabalho cabe, de início, dizer

que a grande diversidade de aspectos obriga a tentativa de sintetizar, de forma algo

esquemática, algumas das determinações que dizem respeito às numerosas ressonâncias

que a vida laboral ocasiona para o relacionamento e o cotidiano da família. As imensas

variações do trabalho humano, por outro lado, fazem com que tenham que restringir a

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aspectos mais gerais, assinalando apenas algumas especificidades.

Deve-se começar pelas determinações concretas que derivam da estrutura

temporal do trabalho. Evidentemente, quanto maior a jornada, menor será o tempo possível

para o convívio familiar e quanto maior o cansaço, mais será afetada a qualidade do

relacionamento do trabalhador com seus familiares. A irritabilidade e o desânimo

prejudicam os contatos interpessoais. Quando o trabalho é noturno, a necessidade do

trabalhador dormir durante o dia e o fato de estar ausente de casa durante a noite

perturbam, obviamente, o convívio. As repercussões do trabalho em turnos alternados

sobre a vida familiar têm merecido grande atenção e estudos especiais.

Algumas entrevistas realizadas em estudos de casos - especialmente quando as

esposas relataram suas experiências - mostraram claramente as alterações do cotidiano

doméstico e o aumento de tensões familiares conectados ao regime de turnos alternados.

Na maior parte dos casos de trabalho em turnos, é estabelecida uma correlação

entre os transtornos acarretados à vida doméstica pelo horário e certos desentendimentos.

Mas em alguns casos a intensidade do conflito pode chegar ao ponto de confundir a

interpretação dos fatos, conduzindo a acusações recíprocas e a uma interpretação na qual o

desentendimento aparecia como explicado exclusivamente por problemas do âmbito

familiar - atual ou do passado.

Normalmente o trabalhador ressente-se intensamente pelo fato de que a esposa

não demonstra reconhecer seus esforços ao sacrificar-se pela família num trabalho penoso,

extremamente cansativo, no qual as jornadas noturnas eram especialmente sofridas. Espera

que a companheira entendesse o mau humor e o cansaço. As indagações, em que ela

manifesta estranheza pela “cara fechada”, soam, para a susceptibilidade do trabalhador e

para seu anseio de reconhecimento, como ofensivas. Ele se sente, portanto, desconsiderado

e injustiçado.

As modificações, imprimidas às rotinas e ao convívio doméstico pelos horários

de quem trabalha nestes turnos de revezamento, são profundamente sentidas tanto pelo

trabalhador como por seus familiares. Amplia-se a extensão das responsabilidades que têm

que ser assumidas pela esposa e o relacionamento do casal costuma ser alterado, inclusive

no que se refere à vida sexual. Ao mesmo tempo, a falta de convívio entre pai e filho,

empobrece consideravelmente o relacionamento. Gradualmente, o cansaço e a falta de

participação na vida familiar conduzem a um isolamento maior do trabalhador em relação

ao restante da família.

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Ainda, no que se refere à estrutura temporal do trabalho, é necessário

considerar as vicissitudes do convívio familiar no caso de trabalhadores que atuam na área

de transportes de longas distâncias - marítimos, rodoviários, ferroviários e aéreos. E,

também, em outras situações especiais que levam a prolongados afastamentos do lar, como

as atividades nas plataformas marítimas de petróleo. No caso dos transportes aéreos, vale

lembrar que aeronautas do sexo feminino passam a ter, especialmente quando trabalham

em vôos internacionais, um contato intermitente com filhos por vezes ainda pequenos. Isto

acarreta importantes privações de contato afetivo, penosas tanto para a mãe como para as

crianças, e cria responsabilidades especiais para o pai ou o membro da família que tome

para si os cuidados habitualmente assumidos pela mãe.

Existem, ainda, atividades nas quais o convívio familiar está sujeito a

interrupções inesperadas por chamados para atendimento de emergências, para substituição

de plantões em serviços essenciais e por outras circunstâncias. A tensão de ter que estar em

estado de prontidão permanente prejudica, consideravelmente, a qualidade de convívio.

Muitas vezes, o cotidiano doméstico é como que contaminado por certas regras

e estereótipos da situação de trabalho, quer nas rotinas, quer na própria linguagem com que

o trabalhador passa a se comunicar. Verificamos, no estudo realizado sobre o trabalho dos

operadores de trem metroviário, que aspectos da “subcultura ocupacional” - como certos

princípios de organização rígida e detalhada - eram transferidos para a vida doméstica,

gerando muitas vezes mal-estar aos familiares.

À medida que o desgaste mental se instala, modificações de conduta, como o

isolamento ou demonstrações de mau-humor, podem ser interpretadas como desinteresse e

desamor pela família.

O desconhecimento, por parte dos familiares, da relação entre tais mudanças e

a situação laboral provoca, deste modo, equívocos e, não raro, conflitos.

3.5.1. REPERCUSSÃO FAMILIAR DA EXPOSIÇÃO A NEUROTÓXICOS.

É ilustrativo o que acontece quando se manifestam alterações mentais

provocadas por exposição a produtos neurotóxicos, tais como solventes e metais pesados.

Sem critérios para reconhecer os agravos mentais por intoxicação mercurial,

ficava assim prejudicado o processo necessário para reconhecer o nexo causal e os direitos

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a benefícios por seqüelas psicopatológícas próprias da intoxicação por esse metal. Nestas

circunstâncias, todos os trabalhadores viviam a ameaça de serem forçados a retomar o

trabalho, mesmo não existindo condições mentais para isso. A alternativa pressentida pelos

operários era a do desemprego. Essa situação agravava a ansiedade, a irritabilidade

explosiva e o desânimo que fazem parte da sintomatologia psíquica da intoxicação

mercurial. A labilidade do humor, a dificuldade de conter Impulsos de violência e os

prejuízos intensos da memória perturbavam o relacionamento do trabalhador com seus

familiares, conduzindo em alguns casos a conflitos intensos. As famílias não haviam

recebido informações sobre a forma pela qual a sintomatologia estava vinculada aos efeitos

do mercúrio no sistema nervoso. Assim, desenvolvia-se conflitos familiares que agravavam

ainda mais a ansiedade e a confusão dos intoxicados. Simultaneamente, a ausência de

suportes institucionais de uma adequada rede de apoio, juntamente com a falta de previsões

quanto ao futuro, exacerbavam também a inquietação dos familiares.

A intensa irritabilidade prejudicava o relacionamento dos trabalhadores

intoxicados com os filhos. Em diversos casos, esses homens se sentiam profundamente

culpados por haverem perdido o controle e espancado filhos pequenos. Vários referiram

que nunca, antes da intoxicação, haviam batido nas crianças. Considerando-se já

desvalorizados quanto a suas capacidades profissionais, mentais e sexuais, sentindo o

organismo “estragado” pelos efeitos do mercúrio, o fato de terem atuado de modo violento

com as crianças ainda deteriorava mais suas auto-imagens: sentiam-se agora “estragados”

física, mental e moralmente, isto é, “maus” em todos os aspectos. O constrangimento,

nessa situação, levou várias vezes ao isolamento e a uma evitação de contatos sociais em

que se tomavam mais raros os momentos de convívio e interação entre o trabalhador e sua

família. Esse constrangimento, misto de vergonha e remorso, era geralmente acompanhado

do receio de novos momentos de descontrole em que a violência pudesse outra vez ser

desencadeada.

3.5.2. A COMPLEXIDADE DOS PROCESSOS ENVOLVIDOS

Embora, para fins expositivos, se tome útil examinar cada uma das direções

assumidas nesta via de mão dupla que se estabelece na interface família-trabalho, não se

pretende traçar, a partir daí, quaisquer padrões. Deve ser lembrado, em primeiro lugar, que

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a individualidade do trabalhador, assim como as características pessoais dos familiares e o

tipo de relacionamento familiar previamente existente, definirão aspectos singulares do

processo e, em segundo lugar, que as interações se desenvolvem de modo permanente nas

duas direções.

Em terceiro lugar, ainda, deve ser assinalado que, ao longo do tempo,

consideráveis transformações criam, por assim dizer, novos elementos psicológicos e

culturais que passam a assumir papel importante no processo. Deve-se lembrar que se trata

de um processo no qual, simultânea e associadamente, se produzem: a) alterações na

dinâmica intrafamiliar; b) alterações na identidade e, portanto, também na estabilidade da

economia psicossomática individual do trabalhador e talvez - faltam ainda maiores estudos

a respeito - também de integrantes da família; c) reflexos nas relações intersubjetivas

através das quais o trabalhador participa de um sistema coletivo em seu local de trabalho.

Na conclusão deste tópico devem ser enfatizadas as implicações do assunto

para as políticas, planos e práticas que se referem à Saúde Mental do Trabalho. Vale

ressaltar a experiência positiva dos serviços de orientação familiar especificamente

organizados para oferecer informação e apoio às famílias de trabalhadores vitimados por

intoxicação industrial, em países escandinavos. No estágio atual da organização dos

serviços de Saúde no Brasil, ainda predomina a verticalidade que separa os setores de

Atenção à Saúde Mental dos de Saúde do Trabalhador, assim como a que separa os que

realizam atenção à saúde infantil e os que atendem ao pai ou à mãe trabalhadora. Dentro

desta estrutura, urge que se criem formas de integrar as ações preventivas que englobem as

questões do local de trabalho, as do trabalhador e as da saúde psicossocial da família.

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4. TRABALHO E SAÚDE

No discurso sanitarista tradicional, os problemas de saúde são da população,

agrupada por idade, sexo e zona geográfica, e não dos trabalhadores; são problemas do

consumo e das condutas, e não do trabalho. A realidade cotidiana do trabalho tem sido o

ponto cego não somente do olhar sanitarista, como também da maioria dos observadores e

analistas da sociedade. Assim, é importante e urgente penetrar os muros dos centros de

trabalho e mostrar o que ali acontece para que deixem de ser âmbitos de experiência

individual e se tornem áreas socializadas e legítimas de ação e de transformação. A

investigação que mostra e documenta a existência de determinada problemática é

necessária para potencializar a luta operária pela saúde e pela vida.

A saúde dos trabalhadores, de qualquer forma, é uma área prioritária de

investigação, pois se mostra como um tema privilegiado para a construção de um novo

modo de entender e analisar a saúde-doença coletiva enquanto processo social. É

significativo que aqueles que pretendem estudar a produção social do processo saúde-

doença tendam a convergir para o tema, ainda que seus pontos de partida e trajetos sejam

diferentes. A forma de teorização e o modo concreto de abordar a investigação, certamente,

têm sido diferentes, mas permanece o fato de que todos os caminhos levam à exigência de

penetrar e explorar a relação trabalho-saúde, para poder compreender como se articula e

expressa a saúde-doença enquanto um processo social. O estudo do processo de trabalho e

saúde do operário não é, a rigor, uma preocupação recente.

A situação tão séria que colocava em perigo a reprodução da força de trabalho,

as taxas de mortalidade superando as de natalidade. Isto é, a reprodução da força de

trabalho só teria solução se existisse a possibilidade de transferir a população das zonas

rurais para as urbanas.

Surgiram medidas hegemônicas, na burguesia, pela necessidade compartilhada

entre capital e trabalho de modificar as condições criadas pela industrialização. Desta

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maneira, a tendência foi de parcializar a problemática da saúde do operário, limitando-a a

duas vertentes: a da atenção médica e dos “riscos de trabalho”.

Esta parcialização encontra seu sustentáculo científico naquilo que hoje se

conhece como o Modelo Médico, que coloca a doença como o resultado da ação de agentes

específicos - os riscos - e sua solução. na ação curativa. O resultado desta visão é, pois, o

de obscurecer o complexo entendimento da relação entre processo de trabalho e saúde,

uma arte importante dela é colocada fora do trabalho como urna “doença geral ou natural”.

A outra parte, reconhecida como do trabalho, se restringe aos riscos físicos, químicos,

biológicos e mecânicos, às vezes abordados com a prevenção e, se não, indenizados de

alguma forma.

O novo auge da posição que relaciona o processo de trabalho com a saúde

apresenta-se, significativamente, junto com um questionamento global da organização

capitalista do trabalho, no final da década de 60 e início dos 70. Quer dizer, ocorre

justamente quando renasce contra a parcialização da problemática do mundo do trabalho

imposta pela lógica da negociação problema a problema.

Simultaneamente se apresentaram também elementos, dentro do próprio campo

médico. Durante aqueles anos, não só ocorria a desmistificação da inevitabilidade de uma

determinada maneira de organizar a produção social, mas também uma reflexão crítica

sobre as práticas sociais dominantes, como a médica. Apesar do crescimento dos serviços

de saúde, eles não pareciam resolver os problemas relevantes de saúde da população.

A exploração da relação trabalho-saúde, compreendendo o caráter social do

processo de saúde-doença, e sustentando uma nova prática social com relação à saúde do

operário, era exigida pelos movimentos sociais.

Investigação realizada sobre o processo de trabalho e saúde, revela suas origens

ligadas a diferentes disciplinas, pois que provém tanto do campo das ciências da saúde

como das ciências sociais.

Para a revisão deste campo de investigação deve-se seguir três eixos analíticos,

a saber, as abordagens teórico-metodológicas empregadas, o tema tratado e as suas

implicações numa ação transformadora.

A importância da abordagem teórico-metodológica reside no fato de que nos

encontramos diante de um problema, de tal forma colocado, que requer uma reformulação

teórica com relação à maneira dominante de conceituá-lo. Isto implica, por sua vez, um

desafio metodológico, especialmente porque existe uma série de técnicas a utilizar, que

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pertencem aos diferentes campos disciplinares envolvidos e que, no entanto, têm que ser

rearticuladas numa nova perspectiva. Além disso, neste contexto, emerge como problema

central, e pelo próprio caráter da problemática, o papel dos trabalhadores no processo de

produção de conhecimento.

Ainda que se dê uma ênfase especial aos estudos realizados estarão incluídos

nesta análise trabalhos que compartilham do desenvolvimento de uma série de elementos

similares e se referem a um contexto econômico, político e social semelhante.

Também cabe assinalar que foram realizadas uma série de estudos dentro de

um programa para indústrias de alto risco que, entretanto, não foram expostos ao

conhecimento do público e nem dos trabalhadores envolvidos.

Este procedimento contempla o risco de alguma omissão importante que, no

caso de se apresentar, só deve chamar a atenção para a urgente necessidade de se

estabelecer mecanismos mais eficientes de comunicação e de difusão.

4.1. O LEVANTAMENTO DOS RISCOS E SUA EXPLICAÇÃO SÓCIO-

POLÍTICA

Ao se colocar o estudo do impacto do trabalho na saúde, salta aos olhos o

profundo desconhecimento relativo aos chamados riscos ocupacionais, presentes nos

centros de trabalho, sejam estes do setor primário, secundário ou terciário. Então,

manifesta-se uma falta de atualização do conhecimento mais elementar de higiene e

segurança do trabalho.

Desta forma, os únicos dados relativamente confiáveis que se conhecem são os

de acidentes de trabalho, registrados pelos institutos de segurança social Todavia, estes

dados excluem, por um lado, os dos trabalhadores não assegurados e, por outro lado, são

de difícil interpretação, pois nem sempre é possível estabelecer com precisão qual é o

denominador real (população de risco e/ou horas trabalhadas).

No caso dos referidos dados, sobre doenças profissionais, ressalta o evidente

sub-registro, dado que seu número é muito baixo e mostram uma estrutura por causa muito

confiável. Além disso, soma-se a estas deficiências de ordem descritiva a escassa

socialização do conhecimento médico com relação a esta problemática, tanto entre os

profissionais como entre os trabalhadores. A longa lista de riscos físico-químico-biológicos

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reconhecidos não apresenta qualquer realidade prática, com exceção das enfermidades

profissionais tão legendárias como a silicose. Assim, não serve como referência para a

compreensão dos danos para a saúde e para a ação sanitária nem dos médicos nem dos

trabalhadores.

Preencher estes espaços vazios de informação, evidentemente, é uma tarefa

urgente e uma necessidade, para que se possa ter uma representação concreta de quais são

e como se distribuem os riscos ocupacionais. Todavia, isto se torna mais importante se

levarmos em conta a política de “exportação de riscos”, que forma parte da nova divisão

internacional do trabalho. Isto significa que muitos países sofrem e sofrerão cada dia mais,

não somente por insalubridade no trabalho “normal”, mas também por estarem

concentrando, seletivamente, a produção industrial e agrícola mais danosa.

Durante os últimos anos, uma série de estudos têm sido realizados e

encaminhados para produzir um conhecimento concreto, com relação a estes riscos

ocupacionais específicos dos diferentes centros de trabalho e, em alguns casos, extensivos

ao território que os circunda. Em termos teórico-metodológicos, estes estudos, geralmente,

não problematizam a análise do processo de produção e saúde, pois que se fundamentam

na concepção dominante da medicina do trabalho, empregando técnicas toxicológicas e/ou

epidemiológicas. Entretanto, as vezes, incorporam o materialismo histórico, para explorar

o contexto no qual surge esta insalubridade.

Estes estudos não só verificam a importância destes problemas relacionados à

saúde dos trabalhadores e dos habitantes das zonas industriais, como também mostram que

tendem a ser de uma extrema gravidade. Ou seja, não encontram uma freqüência

“esperada” de vítimas dos riscos de trabalho, mas, sim, situações que chegam ao extremo,

por exemplo, de intoxicações de grupos humanos inteiros.

Generalizando, pode-se dizer que esta análise mostra que as condições

insalubres e de segurança precária derivam de formas de maximizar o lucro, baseadas,

entre outras coisas, em minimizar a inversão de capital em medidas de higiene e de

segurança, e escamotear aos trabalhadores os seus direitos neste setor.

Olhando os estudos sob um ângulo teórico-metodológico, destaca-se que

a análise social, por assim dizer, é externa à questão da saúde propriamente dita.

Isto é, não há interrogações nem propostas teóricas relativas ao processo saúde-

doença como tal - a enfermidade e sua causalidade estão dadas - mesmo que

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centralmente se denuncie o ocultamento de um conhecimento existente e, logo, sua

manipulação, com fins de lucro.

Outra ilustração da exterioridade do social, neste tipo de enfoque, é que

mesmo quando não se opõe a reconhecer a historicidade da doença, ele a explicaria

como o resultado de constelações diferentes de “fatores de risco” mais do que como

formas históricas específicas de existência psicobiológica humana irredutível à

simples existência de riscos. Esta maneira de traçar a problemática revela uma

concepção instrumentalista do conhecimento médico. Ou seja, para ela a questão

importante não é o conteúdo teórico e conceitual deste saber, mas, sim, para que

fins se utiliza dele e quem o controla. Tal como está, é uma desmistificação da

neutralidade dos cientistas, mas que continua preservando a idéia da neutralidade da

ciência, quanto à direcionalidade de seu processo.

Além disso, este grupo de estudos está caracterizado pela ausência de uma

problemática com relação ao “trabalho”. Desta forma, aí não se acha presente a noção de

trabalho como a atividade humana básica e que assume formas específicas como expressão

das relações sociais, sob as quais realiza. Também não está presente como processo de

produção, mas só como ambiente de trabalho onde os homens entram em contato com

determinados riscos. Esta questão explica, por sua vez, porque aparecem unicamente como

importantes os riscos físico-químico-biológicos e mecânicos. Consequentemente, não há

qualquer preocupação em construir um processo de investigação a que permita dar conta

da articulação complexa do processo de produção na sua relação com a saúde.

4.2. A SAÚDE RELACIONADA COM A CONDIÇÃO OPERÁRIA

Outro grupo de investigações, que produziu informação sobre a saúde das

coletividades operárias, é aquele integrado cientistas sociais dedicados ao estudo da

“condição operária“. Torna-se significativo que, ao explorar este tema, se chegue, quase

sem ilusão, à saúde como uma questão central, pois ela surge como uma expressão

concreta do conjunto das relações e contradições que vive a classe operária. Assim, estas

investigações oferecem uma entrada diferente ao estudo do trabalho e da saúde. Alguns

destes trabalhos atualizam de modo claro alguns problemas-chave da investigação social

sobre a problemática, esclarecendo assim algumas questões, porque não apresentam um

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preconceito médico. Entretanto, seu próprio curso disciplinar obscurece outras. Isto

significa, por exemplo, que a proposta do caráter social da saúde dos trabalhadores não se

converte em tema de polêmica, mas que as complicações surgem, de fato, ao se tentar

precisar a especificidade do objeto de estudo - “processo saúde-doença”.

Um dos estudos é o realizado com relação à indústria Moageira. O tema é, sem

dúvida, de grande importância, pois e o protótipo de indústria, dentro do esquema de

conversão da economia mexicana, em “plataforma de exportação”. O enfoque central do

autor é constituir a “indústria moageira” numa categoria analítica, a partir de sua particular

constituição econômica, legal, política, e pelas características de seu processo de trabalho.

Daí, procura analisar nela os riscos do trabalho. Ainda que os elementos sociais

(monotonia, altos ritmos, supervisão estrita) estejam recolhidos na pesquisa, separados dos

riscos derivados dos instrumentos de trabalho e os tóxicos, assinalam-se como “doença

geral”, patologias como a hipertensão arterial alergias e disfunção renal, apesar de que

estas possam estar relacionadas diretamente com o trabalho. As observações mais

importantes do estudo são que, por um lado, a pesquisa mostra uma alta freqüência de

sinais e sintomas inespecíficos. como expressão de dano no trabalho; que, todavia, não

chegam a formar um quadro reconhecidamente médico como “enfermidade”. De outro

lado, ela confirma que os riscos de trabalho se comportam diferentemente na indústria

moageira e no resto da industria, ainda que dentro de um mesmo ramo.

Cabe ainda mencionar o trabalho de Mertens sobre a Terceira Revolução

Tecnológica pois tem o mérito de sistematizar suas possíveis implicações na saúde do

operário. Centraliza sua análise na microeletrônica, apontando as duas vertentes que

contempla, a saber: sua introdução numa enorme gama de processos de trabalho e o

surgimento da indústria geradora desta nova tecnologia. A partir da análise das mudanças

nos processos de trabalho, coloca uma série de hipóteses relativas a seus impactos na saúde

do operário. Desta forma, assinala o quanto a robotização tende a ser um processo desigual

dentro de um determinado centro de trabalho, ou seja, apresenta-se mais como uma

defasagem tecnológica, gera uma nova constelação de elementos daninhos, em vez de

eliminar os riscos tradicionais, como exposição a ruído, calor, tóxico, alho pesado etc.

Mesmo assim, tende a aprofundar a tensão nervosa, pois aumenta o trabalho por turno, a

monotonia, os altos ritmos, o isolamento e a falta de controle. Com relação à indústria

microeletrônica, como tal, enfatiza especialmente o uso abundante de produtos químicos e

seus efeitos na saúde: as intoxicações agudas e crônicas, a irritação das vias respiratórias e

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o câncer. Esta reflexão permite, pois, localizar uma serie de temas que se necessita

explorar em estudos concretos, e que se aprofundem tanto na colocação dos processos de

trabalho concreto como na expressão que têm para a saúde, problematizando-a para além

do puramente médico.

4.3. A PROBLEMATIZAÇÃO DA RELAÇÃO TRABALHO/SAÚDE

Um outro grupo de estudos sobre trabalho/saúde pesquisa dentro da chamada

corrente de medicina social ou saúde coletiva. Aborda-se a problemática de saúde coletiva

com um processo social e político, o que significa converter as ciências sociais em

elemento explicativo central do campo sanitário.

A sua origem marca o modo como analisa a saúde dos trabalhadores, que se

distingue tanto da medicina ocupacional como da aproximação do campo das ciências

sociais. Assim, as investigações são relacionadas à determinação e ao caráter do processo

saúde-doença coletiva, que levam ao estudo da relação trabalho/saúde e não são um objeto

científico pre-estabelecido, como no caso da medicina ocupacional.

É a reflexão teórica com relação ao caráter histórico e social do processo

saúde-doença que o leva a colocar, como centro, a relação trabalho/saúde. Isto é, um de

seus elementos teóricos centrais é a problematização da “questão saúde”, constituindo-a

como um novo objeto de conhecimento, que se distinga claramente do pensamento médico

dominante.

Cada estudo pretende focalizar aspectos específicos da organização e divisão

de trabalho, a base técnica e os objetivos de trabalho na sua relação com o desgaste.

Há um estudo que faz revisão do conhecimento existente de várias disciplinas

com importância para o conceito de desgaste.

Um outro estudo propõe que em países de desenvolvimento capitalista tardio,

coo o Brasil, o critério principal para distinguir padrões diferentes de morbidade-

mortalidade seria a inserção ou não nas formas capitalistas de produção.

Partindo deste princípio, sua abordagem é que os padrões de saúde-doença da

parte da população que serve como força de trabalho ao capital estão determinados pelo

desgaste sofrido no processo de trabalho.

Finalizando sobre o trabalho e a saúde pode-se dizer que tem havido um

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avanço importante durante os últimos anos.

Está se abrindo a perspectiva de explorar a saúde do operário com estudos que

não só atualizam a medicina ocupacional, mas, também, que têm a potencialidade de gerar

um conhecimento novo sobre a relação trabalho/saúde, que não se reduz a um

levantamento dos tradicionais riscos profissionais.

Assim, a contribuição dos estudos sobe os riscos específicos consiste

justamente em começar a preencher aqueles vazios sociais de conhecimento, que têm

permitido a exposição maciça dos operários e da população das zonas industriais aos riscos

físicos e químicos.

Finalmente deve-se destacar que estes estudos têm colocado, com maior

insistência e clareza, a questão do trabalho alienado, apontando-o como uma das chaves

para melhor compreensão da saúde mental do operário.

Apear de a saúde do operário ser uma das vertentes exploradas, aparece,

contudo, como um indicador simples, que em si mesmo não tem sido objeto de uma

reflexão crítica. Prossegue sendo pensada, como a doença e o acidente, tal como a

medicina dominante os define. Desta forma, há um vazio teórico que, necessariamente,

tolera um outro vazio metodológico, em relação a como abordar o estudo do processo de

trabalho, na sua relação com a saúde.

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CONCLUSÃO

Da abordagem histórica, conclui-se que: a organização do trabalho exerce,

sobre o homem, uma ação especifica, cujo impacto é o aparelho psíquico. Em certas

condições, emerge um sofrimento que pode ser atribuído ao choque entre uma história

individual, portadora de projetos, de esperanças e de desejos, e uma organização do

trabalho que os ignora. Esse sofrimento, de natureza mental, começa quando o homem, no

trabalho, já não pode fazer nenhuma modificação na sua tarefa no sentido de torná-la mais

conforme ás suas necessidades fisiológicas e a seus desejos psicológicos - isso é, quando a

relação homem-trabalho é bloqueada.

A forma de que se reveste o sofrimento varia com o tipo de organização do

trabalho, O trabalho repetitivo cria a insatisfação, cujas conseqüências não se limitam a um

desgosto particular. Ela é de certa forma uma porta de entrada para a doença, e uma

encruzilhada que se abre para as descompensações mentais ou doenças somáticas, em

virtude de regras que foram, em grande parte, elucidadas. As tarefas perigosas, executadas

na maioria das vezes em grupo, dão origem a um medo específico. Contra a angústia do

trabalho, assim como contra a insatisfação, os operários elaboram estratégias defensivas,

de maneira que o sofrimento não é imediatamente identificável. Assim disfarçado ou

mascarado, o sofrimento só pode ser revelado através de uma capa própria a cada

profissão, que constitui de certa forma sua sintomatologia.

O sofrimento do trabalhador dá lugar a uma semiologia que é chamada de

“ideologia defensiva de profissão”, na construção civil ou nas indústrias químicas, de

“síndrome subjetiva da fadiga nervosa” ou de “síndrome de contaminação pelos

comportamentos condicionados”, nas tarefas taylorizadas.

Se a violência da organização do trabalho pode, mesmo na ausência de

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nocividade dos ambientes de trabalho4 (por exemplo, nos empregos de escritório), criar

doenças somáticas e não apenas psíquicas, é porque o aparelho mental não é um

“compartimento” do organismo, simplesmente justaposto à musculatura, aos órgãos

sensoriais e às vísceras. A vida psíquica é, também, um patamar de integração do

funcionamento dos diferentes órgãos. Sua desestruturação repercute sobre a saúde física e

sobre a saúde mental.

O ponto de vista da economia psicossomática aparece, desse modo, como

instrumento crucial da investigação em psicopatologia do trabalho.

Sofrimento e doença? Mas a relação entre organização do trabalho e aparelho

mental não é tão unívoca, e há casos em que o trabalho é, ao contrário, favorável ao

equilíbrio mental e à saúde do corpo. Pode até acontecer que ele confira ao organismo uma

resistência maior contra a fadiga e a doença, contra os tóxicos industriais, os vírus e as

condições climáticas. Uma boa adequação entre a organização do trabalho e a estrutura

mental do operário é possível; isso impõe, em cada caso, uni ponto de vista detalhado,

apoiado por uma análise precisa da psicodinâmica da relação homem! trabalho. Nesse

sentido, a noção de carga psíquica de trabalho é, talvez, uma hipótese utilizável. Quando a

relação com a organização do trabalho é favorável, ao invés de ser conflituosa, é porque

pelo menos uma das duas condições seguintes é realizada:

- As exigências intelectuais, motoras ou psicossensoriais da tarefa estão,

especificamente, de acordo com as necessidades do trabalhador considerado, de tal

maneira que o simples exercício da tarefa está na origem de uma descarga e de um “prazer

de funcionar”.

- O conteúdo do trabalho é fonte de uma satisfação sublimatória: situação que,

a bem dizer, é rara em comparação com a maioria das tarefas, encontrada em

circunstâncias privilegiadas, onde a concepção do conteúdo, do ritmo de trabalho e do

modo operatório é, em parte, deixada ao trabalhador. Este pode, então, modificar a

organização de seu trabalho conforme seu desejo ou suas necessidades; no melhor dos

casos, ele pode até fazê-la variar, espontaneamente, com seus próprios ritmos biológicos,

endócrinos e psicoafetivos, seguindo para isso sua vivência subjetiva que, podemos

mostrar, é freqüentemente um excelente guia na proteção da homeostasia. Tais condições

só se encontram nas profissões de artesão, nas profissões liberais e entre os responsáveis de

4 Isto é, condições físicas, químicas e biológicas de trabalho.

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alto nível: trabalho livremente organizado ou deliberadamente escolhido e conquistado.

Essa última fórmula é, na realidade, equivalente (por exemplo, entre os pilotos de caça) e

pode oferecer uma ocasião única de sublimação. Não há nada de espantoso, nesse quadro,

que grandes dificuldades concretas do trabalho sejam facilmente aceitas. Exigências

materiais assim como salariais, em relação ás quais a resistência cresce. São testemunhas

disso os artistas e os pesquisadores, por exemplo, pois seria falso imaginar que, para a

maioria dessas categorias, os sacrifícios materiais sejam fáceis. Eles os fazem sofrer, como

a todo o mundo, mas o prazer do trabalho lhes permite uma melhor defesa.

A priori, toda tarefa é suscetível de servir, para alguns, de suporte num

processo de sublimação. Mas é preciso reconhecer que a tendência geral à divisão

crescente do trabalho — da qual o sistema Taylor é a caricatura — compromete as

possibilidades ao mesmo tempo em que diminui a escolha e a margem deixada ao livre

arranjo da tarefa.

Aliás, essa evolução é sensível, mesmo em profissões até agora poupadas.

Basta pensarmos no trabalho dos enfermeiros nos hospitais, por exemplo, ou nas condições

espantosas do trabalho de criação na televisão, onde as decisões administrativas impõem a

escolha dos atores e do argumento, determinam os horários de trabalho, censuram a

montagem do filme, ditam as seqüências a serem suprimidas e a refazer etc., a ponto de o

diretor não ser mais do que um executante, como os outros, sobre o qual se exerce a

chantagem do afastamento e da substituição pelas centenas de colegas sem trabalho, que

esperam na porta.

Parece que o sofrimento mental que tentamos mostrar não poder ser

considerado apenas como uma conseqüência deplorável ou um epifenômeno lamentável.

Em certos casos, ele se revela propício à produtividade. Não tanto o sofrimento em si, mas

os mecanismos de defesa empregados contra ele. Vimos na construção civil, por exemplo,

como as defesas coletivas da profissão, por um efeito paradoxal, servem para a

manutenção da produtividade, ou, no caso das telefonistas, como a ansiedade, por

intermédio de um sistema sutil, contribui para a aceleração das cadências. De maneira que

o sofrimento pode, em certas condições, tornar-se um instrumento de exploração e de

rendimento, e este é, certamente, um dos aspectos mais insólitos da pesquisa em

psicopatologia do trabalho.

Na maioria das tarefas, mesmo as mais desqualificadas, a exploração passa

também pela profundeza do aparelho mental. Essa observação tem, provavelmente, uma

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grande importância, pois ela é de natureza a fazer reconsiderar as teorias econômicas da

força de trabalho.

Com efeito, parece que a exploração do corpo passa sempre e necessariamente

por uma neutralização prévia da vida mental, através da organização do trabalho. A

submissão dos corpos só seria possível por meio de uma ação especifica sobre os processos

psíquicos, etapa fundamental, cujas peças podem ser desmontadas. Tornar dócil um corpo

não é coisa simples, pois ele, normalmente, está submetido a seu chefe natural, chamado

“personalidade”. A desapropriação do corpo só é possível graças a uma operação

específica sobre a estrutura da personalidade, cujos efeitos, duráveis ou reversíveis

segundo o caso, fazem parte integrante da carga de trabalho. Assim, a “carga psíquica” de

trabalho não seria apenas um efeito acessório do trabalho, mas resultaria, exatamente, de

uma etapa primordial, da qual dependeria a submissão do corpo, etapa cujo sucesso seria

assegurado pela própria organização do trabalho.

Contra o sofrimento, a ansiedade e a insatisfação, dissemos, se constróem

sistemas defensivos. Se não fosse sua especificidade, que permite adivinhar que as defesas

escondem alguma coisa, elas seriam totalmente opacas. A ponto de o sofrimento, na maior

parte dos casos, esquivar-se à verdade (invisibilidade cheia de conseqüências, pois, desse

modo, a dor permanece desconhecida não apenas dos observadores, mas também dos

próprios trabalhadores). Apesar de vivenciado, o sofrimento não é reconhecido. Forma

caricatural do saber-vivência, que se opõe ao saber-poder, descrito por Foucault. Se a

função primeira dos sintomas de defesa é aliviar o sofrimento, seu poder de ocultação

volta-se contra seus criadores. Pois sem conhecer a forma e o conteúdo desse sofrimento, é

difícil lutar eficazmente contra ele. No fim, as estratégias defensivas, em razão da sua

própria eficácia em relação ao equilíbrio mental, opõem-se a uma evolução que poderia

levar a uma estabilidade, num nível menos medíocre.

A investigação que propomos, em psicopatologia do trabalho, traz de volta a

questão, tão controvertida, da alienação. Alienação no sentido em que Marx a

compreendia nos manuscritos de 1844, isto é, a tolerância graduada segundo os

trabalhadores de uma organização do trabalho, que vai contra seus desejos, suas

necessidades e sua saúde. Alienação no sentido psiquiátrico também, de substituição da

vontade própria do Sujeito pela do Objeto. Nesse caso, trata-se de uma alienação, que

passa pelas ideologias defensivas, de modo que o trabalhador acaba por confundir com

seus desejos próprios a injunção organizacional que substituiu seu livre arbítrio. Vencido

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pela vontade contida na organização do trabalho, ele acaba por usar todos os seus esforços

para tolerar esse enxerto contra sua natureza, ao invés de fazer triunfar sua própria vontade.

Instalado o circuito, é a fadiga que assegura sua perenidade, espécie de chave, necessária

para fechar o cadeado do círculo vicioso.

A fadiga, o esgotamento do corpo (mesmo sem considerar as fortes exigências

físicas provenientes das regras da economia psicossomática) são uma peça necessária,

embora insuficiente, da alienação pela organização do trabalho. Assim, a alienação é mais

fácil de ser obtida com os operários cansados, mais fácil no fim do ano do que após as

férias, e mais durante a semana do que perto do fim de semana.

A alienação seria, talvez; a etapa necessária e primeira, da qual falamos, a

propósito da sujeição do corpo. A organização do trabalho aí aparece como veículo da

vontade de um outro, a tal ponto poderosa que, no fim, o trabalhador se sente habitado pelo

estranho.

Se o conceito de alienação não for pertinente a nível da análise econômica, isso

não quer dizer que ele não seja válido no nível subjetivo e vivido. A alienação é uma

verdade clínica que, no caso do trabalho, toma a forma de um conflito onde o desejo do

trabalhador capitulou frente à injunção patronal. Se deve haver uma luta por novas relações

sociais, ela deveria passar por um processo de desalienação. Por não ter sido objeto de um

trabalho especifico, a alienação corre o risco - a experiência histórica o mostra - de ser

transposta tal e qual. Podemos nos perguntar em que medida a prevalência concedida à

mudança das relações de produção arrisca passar por cima da alienação, sem transtorná-la.

Podemos também nos perguntar se o desmantelamento dos mecanismos da alienação não é

uma condição necessária, embora insuficiente, para um projeto de transformação social.

Qual projeto não deixaria um lugar conseqüente para essa discussão? Que felicidade seria

essa, louvada por uma sociedade que não teria por fundamento (fundamento, não objetivo)

a libertação da vida mental? E, antes de mais nada, libertação de seu exercício no trabalho

e na atividade produtiva?

Questões que talvez tenham sido negligenciadas por razões históricas. O

projeto revolucionário nasceu numa época em que a relação saúde mental-trabalho era

invisível, em comparação a prioridade que era preciso dar a análise da exploração do corpo

físico. Deve-se, talvez, à positividade da História a revelação, mesmo na ausência de

mudança social, de questões novas e fecundas, em relação a um projeto que não pode

permanecer sem evoluir.

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De outra ordem é a tradicional desconfiança para com as questões da vida

psíquica. O terreno da psiquê sempre foi ocupado por especialistas denunciados por uma

posição ambígua na evolução social. E verdade que desde o movimento dos alienistas, no

século XIX, seguido pela psiquiatria contemporânea, a psicanálise e a psicossociologia

anglo-saxônia, os partidários da Organização do Trabalho atual tiveram um certo avanço.

Mas as interrogações sobre esse tema são redibitoriamente suspeitas?

A exemplo de André Theret, admitir que a análise da exploração não exclui a

da vivência operária, leva a considerar esta última como lugar privilegiado do drama onde

se atualiza o conflito entre o Trabalhador e o Poder. Nós ressaltamos várias vezes a função

mascaradora dos sistemas defensivos contra o sofrimento, e a modalidade particular de

existência do saber, em estado de segredo selado na vivência. Segredo que tem a

particularidade de só existir na vivência coletiva do trabalho e de dissolver-se assim que há

interesse pela vivência individual. Segredo que, como para toda vivência, requer, para ser

abordado, o recurso a palavra ou, como se diz hoje em dia, o discurso operário. E na

palavra, e através dos sistemas defensivos, que é preciso ler o sofrimento operário.

Isso quer dizer necessidade de uma interpretação. Coloca-se aqui a questão do

esquema interpretativo. Tratando-se de uma vivência coletiva, a psicanálise não poderia ser

de nenhuma valia. Nós usamos um esquema de interpretação que é a própria organização

do trabalho, a ser decodificada, por meio dos avatares que ela sofre na sua interiorização

coletiva.

De resto, a passagem de um conteúdo manifesto a um conteúdo latente,

deformada pelas estratégias defensivas específicas, é um método que não pertence

propriamente à psicopatologia do trabalho. A interpretação limitada ao conteúdo e não a

uma transferência coloca a psicopatologia do trabalho nos antípodas da psicossociologia, a

qual se opõe ponto por ponto.

Qualquer que seja o regime político considerado, na medida em que ele

pretende superar os obstáculos socioeconômicos a “felicidade”, deverá ser julgado por sua

capacidade de levar em conta a relação conflituosa entre a organização do trabalho e o

aparelho mental. Não apenas de levá-la em conta, mas pelos meios que ele usa para fazê-la

evoluir em direção a um estado de menor tensão. Assim, estamos talvez em condições de

examinar o que é obstáculo não à felicidade coletiva — noção suspeita — mas de examinar

o que constitui um obstáculo coletivamente experimentado por cada grupo de traba-

lhadores, no acesso a um trabalho mais satisfatório. Em outras palavras, é preciso

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compreender que as resistências individuais ao prazer acompanham resistências coletivas,

no centro das quais se encontram, precisamente, as ideologias coletivas de profissão.

E de um duplo movimento, de transformação da organização do trabalho e de

dissolução dos sistemas defensivos, que pode nascer uma evolução da relação saúde

mental-trabalho.

“A liberdade não se dá” dizem “ela se conquista”. O mesmo acontece com

relação a organização do trabalho. E provável que não exista solução ideal e que, aqui

como em tudo mais, seja sobretudo a evolução a portadora de esperança. Considerando o

lugar dedicado ao trabalho na existência, a questão é saber que tipo de homens a sociedade

fabrica através da organização do trabalho. Entretanto, o problema não é, absolutamente,

criar novos homens, mas encontrar soluções que permitiriam pôr fim a desestruturação de

um certo número deles pelo trabalho.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Cortez, 1988.

SILVA, Edith Seligmann. Desgaste Mental no Trabalho Dominado. São Paulo: Cortez,

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Paulo: Hicitec, 1989.

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A N E X O S

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