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A SIMBIOSE SOLO E ÁGUA Este final de século trouxe de volta a visão generalista - ou holística - sobretudo na gestão de recursos naturais. Quando um evento é destinado a chamar a atenção para um recurso específico, pode estar sendo passada - erroneamente - a idéia de que esse recurso pode ser administrado separadamente. E uma das mais maravilhosas parcerias da natureza é justamente a que existe entre a água e o solo - fundamental e irrevogável. Segundo o pesquisador da Universidade Federal de Viçosa (MG), professor Liovando Marciano da Costa, "o lugar da água é no solo". Essa afirmação pode surpreender ao leigo, acostumado a pensar que o lugar da água é nos rios, lagos e oceanos. Com alguma reflexão, porém, não será difícil acostumar-se à idéia. Como é possível achar água perfurando-se poços em quaisquer lugares ao longo de certas extensões enormes de terras, às vezes a pequenas profundidades? Como é possível que os rios mantenham suas vazões por dias e até semanas sem chuva? Como é possível a alguns vegetais (principalmente árvores) suportarem estiagens duríssimas, com longos períodos de ar seco? Se examinarmos mapas usando a devida escala, constataremos que a superfície ocupada por arroios e rios, ou eventualmente lagos, é irrisória em relação à superfície seca. Nesta é que cai a grande parte de todas as precipitações. Em solos naturais existem diversos mecanismos que propiciam a infiltração das águas de chuva e a consequente absorção, lenta e disseminada, de fantásticos volumes de água doce. Parte da água, é claro, escoa pela superfície, chegando rapidamente aos cursos dágua; mas é a porção que fica retida no solo que paulatinamente alimentará os rios. A mesma água garante a sobrevivência de muitas espécies vegetais de ciclo longo, cujas poderosas raízes perfuram o terreno por muitos metros, até encontrá-la. Morrendo a planta, decompondo-se as raízes, abrem-se caminhos privilegiados que favorecem a infiltração; de outra parte, as folhas largas das mesmas plantas, quando vivas, atenuam os impactos das gotas dágua nas precipitações mais enérgicas - o que demonstra o importantíssimo papel da vegetação na manutenção do equilíbrio água/solo. Quando alteramos os perfis de ocupação natural do solo, por exemplo, pelo desmatamento, substituindo florestas por lavouras de ciclo curto, alteramos drasticamente a resistência das camadas superiores de solo às chuvas mais intensas. Pode sobrevir forte erosão que, além de carrear grandes volumes de solo para os rios e lagos - diminuindo seu volume - expõe às intempéries camadas do subsolo desprotegidas muito menos capazes de garantir infiltração lenta e constante. Por outro lado, ao contrário do que se pensa, o uso do solo para a pecuária extensiva, ao invés da monocultura intensiva, não melhora a situação a longo prazo - a menos que se tomem medidas conservacionistas. Pesquisas em Minas Gerais revelam a perda de até 70% da capacidade de infiltração original em pastagens tradicionais. Fenômeno idêntico acontece nas áreas urbanas. O uso de superfícies impermeáveis (asfalto), a eliminação da vegetação e o emprego de sistemas de drenagem que não contemplam infiltração afastam as águas da chuva do solo, conduzindo-as, artificialmente, a velocidades e vazões incontroláveis, aos cursos dágua. Havendo entupimento e assoreamento - principalmente por deposição irregular de lixo e entulhos - das galerias de drenagem, as cidades, diante de chuvas intensas, acabam alagadas pela própria água da chuva e pelos rios, que recebem vazões maiores do que as naturalmente absorvíveis por suas calhas. Na verdade não são os rios que inundam os campos e as cidades após chuvas pesadas: os campos - compactados e desmatados, e as cidades impermeabilizadas é que inundam os rios, na medida em que as águas de chuva não são retidas e infiltradas nas vertentes das bacias e nem liberadas lentamente aos cursos dágua através do solo, como ocorre nos sistemas naturais íntegros. É por isto que as tentativas de minimizar enchentes e estiagens não podem se limitar a grandes obras sem prever programas de conservação do solo, drenagem por infiltração e outras medidas alternativas e preventivas. Só haverá uma solução definitiva aos danos "naturais" (só na aparência) provocados pelas águas se o planejamento do uso do solo e dos recursos hídricos for conduzido de forma integrada, holística, ao longo de toda a bacia. Os ciclos naturais são harmonicamente interligados; os solos e os ecossistemas que estes suportam dependem das águas, e os ecossistemas hídricos dependem dos solos. O planejamento urbano não considera o que ocorre nas áreas rurais, e vice-versa; o ciclo hidrológico raramente é considerado na sua totalidade; as grandes obras destinam-se na maioria das vezes a combater os efeitos, não as causas. O resultado disso é a ruptura do equilíbrio de ciclos naturais básicos, com trágicas consequências ambientais e sociais. Em suma, não há muito sentido em gerir as águas e a ocupação do solo urbano e rural separadamente. É preciso introduzir a idéia do planejamento integrado água/solo.

A Simbiose Solo e Água

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Descrição das interações entre solo e água

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Page 1: A Simbiose Solo e Água

A SIMBIOSE SOLO E ÁGUA Este final de século trouxe de volta a visão generalista - ou holística - sobretudo na gestão de recursos naturais. Quando um evento é destinado a chamar a atenção para um recurso específico, pode estar sendo passada - erroneamente - a idéia de que esse recurso pode ser administrado separadamente. E uma das mais maravilhosas parcerias da natureza é justamente a que existe entre a água e o solo - fundamental e irrevogável. Segundo o pesquisador da Universidade Federal de Viçosa (MG), professor Liovando Marciano da Costa, "o lugar da água é no solo". Essa afirmação pode surpreender ao leigo, acostumado a pensar que o lugar da água é nos rios, lagos e oceanos. Com alguma reflexão, porém, não será difícil acostumar-se à idéia. Como é possível achar água perfurando-se poços em quaisquer lugares ao longo de certas extensões enormes de terras, às vezes a pequenas profundidades? Como é possível que os rios mantenham suas vazões por dias e até semanas sem chuva? Como é possível a alguns vegetais (principalmente árvores) suportarem estiagens duríssimas, com longos períodos de ar seco? Se examinarmos mapas usando a devida escala, constataremos que a superfície ocupada por arroios e rios, ou eventualmente lagos, é irrisória em relação à superfície seca. Nesta é que cai a grande parte de todas as precipitações. Em solos naturais existem diversos mecanismos que propiciam a infiltração das águas de chuva e a consequente absorção, lenta e disseminada, de fantásticos volumes de água doce. Parte da água, é claro, escoa pela superfície, chegando rapidamente aos cursos d’água; mas é a porção que fica retida no solo que paulatinamente alimentará os rios. A mesma água garante a sobrevivência de muitas espécies vegetais de ciclo longo, cujas poderosas raízes perfuram o terreno por muitos metros, até encontrá-la. Morrendo a planta, decompondo-se as raízes, abrem-se caminhos privilegiados que favorecem a infiltração; de outra parte, as folhas largas das mesmas plantas, quando vivas, atenuam os impactos das gotas d’água nas precipitações mais enérgicas - o que demonstra o importantíssimo papel da vegetação na manutenção do equilíbrio água/solo. Quando alteramos os perfis de ocupação natural do solo, por exemplo, pelo desmatamento, substituindo florestas por lavouras de ciclo curto, alteramos drasticamente a resistência das camadas superiores de solo às chuvas mais intensas. Pode sobrevir forte erosão que, além de carrear grandes volumes de solo para os rios e lagos - diminuindo seu volume - expõe às intempéries camadas do subsolo desprotegidas muito menos capazes de garantir infiltração lenta e constante. Por outro lado, ao contrário do que se pensa, o uso do solo para a pecuária extensiva, ao invés da monocultura intensiva, não melhora a situação a longo prazo - a menos que se tomem medidas conservacionistas. Pesquisas em Minas Gerais revelam a perda de até 70% da capacidade de infiltração original em pastagens tradicionais. Fenômeno idêntico acontece nas áreas urbanas. O uso de superfícies impermeáveis (asfalto), a eliminação da vegetação e o emprego de sistemas de drenagem que não contemplam infiltração afastam as águas da chuva do solo, conduzindo-as, artificialmente, a velocidades e vazões incontroláveis, aos cursos d’água. Havendo entupimento e assoreamento - principalmente por deposição irregular de lixo e entulhos - das galerias de drenagem, as cidades, diante de chuvas intensas, acabam alagadas pela própria água da chuva e pelos rios, que recebem vazões maiores do que as naturalmente absorvíveis por suas calhas. Na verdade não são os rios que inundam os campos e as cidades após chuvas pesadas: os campos - compactados e desmatados, e as cidades impermeabilizadas é que inundam os rios, na medida em que as águas de chuva não são retidas e infiltradas nas vertentes das bacias e nem liberadas lentamente aos cursos d’água através do solo, como ocorre nos sistemas naturais íntegros. É por isto que as tentativas de minimizar enchentes e estiagens não podem se limitar a grandes obras sem prever programas de conservação do solo, drenagem por infiltração e outras medidas alternativas e preventivas. Só haverá uma solução definitiva aos danos "naturais" (só na aparência) provocados pelas águas se o planejamento do uso do solo e dos recursos hídricos for conduzido de forma integrada, holística, ao longo de toda a bacia. Os ciclos naturais são harmonicamente interligados; os solos e os ecossistemas que estes suportam dependem das águas, e os ecossistemas hídricos dependem dos solos. O planejamento urbano não considera o que ocorre nas áreas rurais, e vice-versa; o ciclo hidrológico raramente é considerado na sua totalidade; as grandes obras destinam-se na maioria das vezes a combater os efeitos, não as causas. O resultado disso é a ruptura do equilíbrio de ciclos naturais básicos, com trágicas consequências ambientais e sociais. Em suma, não há muito sentido em gerir as águas e a ocupação do solo urbano e rural separadamente. É preciso introduzir a idéia do planejamento integrado água/solo.