À Sombra das Maiorias Silenciosas - Jean Baudrillard

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  • 8/3/2019 Sombra das Maiorias Silenciosas - Jean Baudrillard

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    JEAN BAUDRILLARD

    sombra das

    maioriassilenciosasO fim do social e o

    surgimento das massas

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    SOMBRA DAS MAIORIAS SILENCIOSAS

    Todo o confuso amontoado do social se move em torno desse referente

    esponjoso, dessa realidade ao mesmo tempo opaca e translcida, desse nada: as

    massas. Bola de cristal das estatsticas, elas so atravessadas por correntes e

    fluxos, semelhana da matria e dos elementos naturais. Pelo menos assim

    que elas nos so representadas. Elas podem ser magnetizadas, o social as

    rodeia como uma eletricidade esttica, mas a maior parte do tempo se comportam

    precisamente como massa, o que quer dizer que elas absorvem toda a

    eletricidade do social e do poltico e as neutralizam, sem retorno. No so boascondutoras do poltico, nem boas condutoras do social, nem boas condutoras do

    sentido em geral. Tudo as atravessa, tudo as magnetiza, mas nelas se dilui sem

    deixar traos. E na realidade o apelo s massas sempre ficou sem resposta. Elas

    no irradiam, ao contrrio, absorvem toda a irradiao das constelaes

    perifricas do Estado, da Histria, da Cultura, do Sentido. Elas so a inrcia, a

    fora da inrcia, a fora do neutro.

    nesse sentido que a massa caracterstica da nossa modernidade, na

    qualidade de fenmeno altamente implosivo, irredutvel a qualquer prtica e

    teoria tradicionais, talvez mesmo irredutvel a qualquer prtica e a qualquer

    teoria simplesmente.

    Na representao imaginria, as massas flutuam em algum ponto entre a

    passividade e a espontaneidade selvagem, mas sempre como uma energia

    potencial, como um estoque de social e de energia social, hoje referente mudo,

    amanh protagonista da histria, quando elas tomaro a palavra e deixaro de ser

    a maioria silenciosa - ora, justamente as massas no tm histria a escrever,

    nem passado, nem futuro, elas no tm energias virtuais para liberar, nem desejo

    a realizar: sua fora atual, toda ela est aqui, e a do seu silncio. Fora de

    absoro e de neutralizao, desde j superior a todas as que se exercem sobre

    elas. Fora de inrcia especifica, cuja eficcia diferente da de todos os

    esquemas de produo, de irradiao e de expanso sobre os quais funcionanosso imaginrio, incluindo a vontade de destru-los. Figura inaceitvel e

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    ininteligvel da imploso (trata-se ainda de um processo?), base de todos os

    nossos sistemas de significaes e contra a qual eles se armam com todas as suas

    resistncias, ocultando o desabamento central do sentido com uma

    recrudescncia de todas as significaes e com uma dissipao de todos os

    significantes:

    O vcuo social atravessado por objetos intersticiais e acumulaes

    cristalinas que rodopiam e se cruzam num claro-escuro cerebral. Tal a massa,

    um conjunto no vcuo de partculas individuais, de resduos do social e de

    impulsos indiretos: opaca nebulosa cuja densidade crescente absorve todas as

    energias e os feixes luminosos circundantes, para finalmente desabar sob seuprprio peso. Buraco negro em que o social se precipita.

    Exatamente o inverso, portanto, de uma acepo sociolgica. A

    sociologia s pode descrever a expanso do social e suas peripcias. Ela vive

    apenas da hiptese positiva e definitiva do social. A assimilao, a imploso do

    social lhe escapam. A hiptese da morte do social tambm a da sua prpria

    morte.

    O termo massa no um conceito. Leitmotiv da demagogia poltica,

    uma noo fluida, viscosa, lumpen-analtica. Uma boa sociologia procurar

    abarc-la em categorias mais finas: scio-profissionais, de classe, de status

    cultural, etc. Erro: vagando em torno dessas noes fluidas e acrticas (como

    outrora a de mana) que se pode ir alm da sociologia critica inteligente. Alm

    do que, retrospectivamente, se poder observar que os prprios conceitos de

    classe, de relao social, de poder, de status, todos .estes conceitos

    muito claros que fazem a glria das cincias legtimas, tambm nunca foram

    mais do que noes confusas, mas sobre as quais se conciliaram misteriosos

    objetivos, os de preservar um determinado cdigo de anlise.

    Querer especificar o termo massa justamente um contra-senso -

    procurar um sentido no que no o tem. Diz-se: a massa de trabalhadores. Mas a

    massa nunca a de trabalhadores, nem de qualquer outro sujeito ou objeto social.

    As massas camponesas de outrora no eram exatamente massas: s secomportam como massa aqueles que esto liberados de suas obrigaes

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    simblicas, anulados (presos nas infinitas redes) e destinados a serem apenas

    o inumervel terminal dos mesmos modelos, que no chegam a integr-los e que

    finalmente s os apresentam como resduos estatsticos. A massa sem atributo,

    sem predicado, sem qualidade, sem referncia. A est sua definio, ou sua

    indefinio radical. Ela no tem realidade sociolgica. Ela no tem nada a ver

    com alguma populao real, com algum corpo, com algum agregado social

    especfico. Qualquer tentativa de qualific-la somente um esforo para

    transferi-Ia para a sociologia e arranc-la dessa indistino que no sequer a da

    equivalncia (soma ilimitada de indivduos equivalentes: 1 + 1 + 1 + 1 - tal a

    definio sociolgica), mas a do neutro, isto , nem um nem outro (ne-uter).Na massa desaparece a polaridade do um e do outro. Essa a causa desse

    vcuo e da fora de desagregao que ela exerce sobre todos os sistemas, que

    vivem da disjuno e da distino dos plos (dois, ou mltiplos, nos sistemas

    mais complexos). o que nela produz a impossibilidade de circulao de

    sentido: na massa ele se dispersa instantaneamente, como os tomos no vcuo.

    tambm o que produz a impossibilidade, para a massa, de ser alienada, visto que

    nela nem um nem ooutro existem mais.

    Massa sem palavra que existe para todos os porta-vozes sem histria.

    Admirvel conjuno dos que nada tm a dizer e das massas que no falam. Nada

    que contm todos os discursos. Nada de histeria nem de fascismo potencial, mas

    simulao por precipitao de todos os referenciais perdidos. Caixa preta de

    todos os referenciais, de todos os sentidos que no admitiu, da histria

    impossvel, dos sistemas de representao inencontrveis, a massa o que resta

    quando se esqueceu tudo do social.

    Quanto impossibilidade de nela se fazer circular o sentido, o melhor

    exemplo o de Deus. As massas conservaram dele somente a imagem, nunca a

    Idia. Elas jamais foram atingidas pela Idia de Deus, que permaneceu um

    assunto de padres, nem pelas angstias do pecado e da salvao pessoal. O que

    elas conservaram foi o fascnio dos mrtires e dos santos, do juzo final, da dana

    dos mortos, foi o sortilgio, foi o espetculo e o cerimonial da Igreja, a imannciado ritual - contra a transcendncia da Idia. Foram pags e permaneceram pags

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    sua maneira, jamais freqentadas pela Instncia Suprema, mas vivendo das

    miudezas das imagens, da superstio e do diabo. Prticas degradadas em relao

    ao compromisso espiritual da f? Pode ser. Esta a sua maneira, atravs da

    banalidade dos rituais e dos simulacros profanos, de minar o imperativo

    categrico da moral e da f, o imperativo sublime do sentido, que elas repeliram.

    No porque no pudessem alcanar as luzes sublimes da religio: elas as

    ignoraram. No recusam morrer por uma f, por uma causa, por um dolo. O que

    elas recusam a transcendncia, a interdio, a diferena, a espera, a ascese,

    que produzem o sublime triunfo da religio. Para as massas, o Reino de Deus

    sempre esteve sobre a terra, na imanncia pag das imagens, no espetculo que aIgreja lhes oferecia. Desvio fantstico do princpio religioso. As massas

    absorveram a religio na prtica sortlega e espetacular que adotaram.

    Todos os grandes esquemas da razo sofreram o mesmo destino. Eles s

    descreveram sua trajetria, s seguiram o curso de sua histria no diminuto topo

    da camada social detentora do sentido (e em particular do sentido social), mas no

    essencial somente penetraram nas massas ao preo de um desvio, de uma

    distoro radical. Assim foi com a razo histrica, a razo poltica, a razo

    cultural e a razo revolucionria - assim foi com a prpria razo do social, a mais

    interessante pois a que parece inerente s massas, e por t-las produzido no

    curso de sua evoluo. As massas so o espelho do social? No, elas no

    refletem o social, nem se refletem no social - o espelho do social que nelas se

    despedaa.

    A imagem no exata, pois ainda evoca a idia de uma substncia plena,

    de uma resistncia opaca. Ora, as massas funcionam mais como um gigantesco

    buraco negro que inflete, submete e distorce inexoravelmente todas as energias e

    radiaes luminosas que se aproximam. Esfera implosiva, em que a curvatura dos

    espaos se acelera, em que todas as dimenses se encurvam sobre si mesmas e

    involuem at se anularem, deixando em seu lugar e espao somente uma esfera

    de absoro potencial.

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    O abismo do sentido

    O mesmo ocorre com a informao.

    Seja qual for seu contedo, poltico, pedaggico, cultural, seu propsitosempre filtrar um sentido, manter as massas sob o sentido. Imperativo de

    produo de sentido que se traduz pelo imperativo incessantemente renovado de

    moralizao da informao: melhor informar, melhor socializar, elevar o nvel

    cultural das massas, etc. Bobagens: as massas resistem escandalosamente a esse

    imperativo da comunicao racional. O que se lhes d sentido e elas querem

    espetculo. Nenhuma fora pde convert-las seriedade dos contedos, nem

    mesmo seriedade do cdigo. O que se lhes d so mensagens, elas querem

    apenas signos, elas idolatram o jogo de signos e de esteretipos, idolatram todos

    os contedos desde que eles se transformem numa seqncia espetacular. O que

    elas rejeitam a dialtica do sentido. E de nada adianta alegar que elas so

    mistificadas. Hiptese sempre hipcrita que permite salvaguardar o conforto

    intelectual dos produtores de sentido: as massas aspirariam espontaneamente s

    luzes naturais da razo. Isso para conjurar o inverso, ou seja, que em plenaliberdade que as massas opem ao ultimato do sentido a sua recusa e sua

    vontade de espetculo. Temem essa transparncia e essa vontade poltica como

    temem a morte. Elas farejam o terror simplificador que est atrs da hegemonia

    ideal do sentido e reagem sua maneira, reduzindo todos os discursos articulados

    a uma nica dimenso irracional e sem fundamento, onde os signos perdem seu

    sentido e se consomem na fascinao: o espetacular.

    Uma vez mais, no se trata de mistificao: trata-se de sua exigncia

    prpria, de uma contra-estratgia expressa e positiva - trabalho de absoro e de

    aniquilamento da cultura, do saber, do poder, do social. Trabalho imemorial, mas

    que hoje assume toda a sua envergadura. Um antagonismo profundo, que obriga

    a uma inverso de todos os cenrios aceitos: o sentido no seria mais a linha de

    fora ideal de nossas sociedades, sendo o que escapa apenas um resduo

    destinado a ser reabsorvido qualquer dia - ao contrrio, o sentido que somente

    um acidente ambguo e sem prolongamento, um efeito devido convergncia

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    ideal de um espao perspectivo num momento dado (a Histria, o Poder, etc),

    mas que na realidade nunca disse respeito seno a uma frao mnima e a uma

    camada superficial de nossas sociedades. E isso tambm verdadeiro para os

    indivduos: ns somos apenas episodicamente condutores de sentido, no

    essencial e em profundidade ns nos comportamos como massa, vivendo a maior

    parte do tempo num modo pnico ou aleatrio, aqum ou alm do sentido. Logo,

    tudo muda com essa hiptese inversa.

    Vejamos um exemplo entre mil desse menosprezo pelo sentido, folclore

    das passividades silenciosas. Na noite da extradio de Klaus Croissant, a

    televiso transmitia um jogo de futebol em que a Frana disputava suaclassificao para a Copa do Mundo. Algumas centenas de pessoas se

    manifestam diante da Sant, alguns advogados correm na noite, vinte milhes de

    pessoas passam sua noite diante da televiso. Quando a Frana ganhou, exploso

    de alegria popular. Horror e indignao dos espritos esclarecidos diante dessa

    escandalosa indiferena.Le Monde: 21 horas. Nesta hora o advogado alemo j

    foi retirado da priso da Sant. Daqui a pouco Rocheteau vai marcar o primeiro

    gol. Melodrama da indignao.1 Nenhuma nica interrogao sobre o mistrio

    dessa indiferena. Uma nica razo sempre invocada: a manipulao das massas

    pelo poder, sua mistificao pelo futebol. De qualquer maneira, essa indiferena

    no deveria existir, ela no tem nada a nos dizer. Em outros termos, a maioria

    silenciosa despossuda at de sua indiferena, ela no tem nem mesmo o

    direito de que esta lhe seja reconhecida e imputada, necessrio que tambm esta

    apatia lhe seja insuflada pelo poder.

    Que desprezo atrs dessa interpretao! Mistificadas, as massas no

    saberiam ter comportamento prprio. De tempos em tempos se lhes concede uma

    espontaneidade revolucionria atravs da qual elas vislumbram a racionalidade

    1 Que se assemelha amargura da extrema-esquerda, e a seu cinismo inteligenteem relao maioria silenciosa. Charlie-Hebdo, por exemplo: A maioria silenciosano liga para nada, desde que noite ronrone em suas pantufas... A maioria

    silenciosa, no se engane, se fecha sua boca porque ao final das contas ela faz alei. Ela vive bem, come bem, trabalha somente o necessrio. O que ela reivindicaaos seus patres ser paternalizada e tranqilizada no que preciso, alm da suapequena dose inofensiva de imaginria cotidiano.

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    do seu prprio desejo, isso sim, mas Deus nos proteja de seu silncio e de sua

    inrcia. Ora, exatamente essa indiferena que exigiria ser analisada na sua

    brutalidade positiva, em vez de ser creditada a uma magia branca, a uma

    alienao mgica que sempre desviaria as multides de sua vocao

    revolucionria.

    Mas, por outro lado, como que ela consegue desvi-las? Com relao a

    este fato estranho, pode-se perguntar: por que aps inmeras revolues e um

    sculo ou dois de aprendizagem poltica, apesar dos jornais, dos sindicatos, dos

    partidos, dos intelectuais e de todas as energias postas a educar e a mobilizar o

    povo, por que ainda se encontram (e se encontrar o mesmo em dez ou vinteanos) mil pessoas para se mobilizar e vinte milhes para ficar passivas? - e no

    somente passivas, mas por francamente preferirem, com toda boa f e satisfao,

    e sem mesmo se perguntar por que, um jogo de futebol a um drama poltico e

    humano? curioso que essa constatao jamais tenha subvertido a anlise,

    reforando-a, ao contrrio, em sua fantasia de um poder todo-poderoso na

    manipulao, e de uma massa prostrada num coma ininteligvel. Pois nada disso

    tudo verdadeiro, e os dois so um equvoco: o poder no manipula nada e as

    massas no so nem enganadas nem mistificadas. O poder est muito satisfeito

    por colocar sobre o futebol uma responsabilidade fcil, ou seja, a de assumir a

    responsabilidade diablica pelo embrutecimento das massas. Isso o conforta em

    sua iluso de ser o poder, e desvia do fato bem mais perigoso de que essa

    indiferena das massas sua verdadeira, sua nica prtica, porque no h outro

    ideal para inventar, no h nada a deplorar, mas tudo a analisar a respeito disso

    como fato bruto de distoro coletiva e de recusa de participar nos ideais todavia

    luminosos que lhes so propostos.

    O problema das massas no est nisso. Melhor constatar e reconhecer

    que toda esperana de revoluo, toda a esperana do social e da mudana social

    s pde funcionar at aqui graas a essa escamoteao, a essa contestao

    fantstica. Como Freud o fez na ordem psicolgica,2 melhor partir deste resto,

    2 A analogia com Freud cessa nesse ponto, porque seu ato radical resulta numahiptese, a da represso e do inconsciente, que ainda leva possibilidade, depois

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    deste sedimento cego, deste resduo de sentido, deste no-analisado e talvez no-

    analisvel (h uma boa razo para que essa revoluo copernicana jamais tenha

    sido tentada no universo poltico - toda a ordem poltica que se arriscaria a

    pagar as contas).

    Grandeza e decadncia do poltico

    O poltico e o social nos parecem inseparveis, constelaes gmeas sob

    o signo (determinante ou no) do econmico, pelo menos desde a Revoluo

    Francesa. Mas hoje, para ns, isso provavelmente s verdade para o seu

    declnio simultneo. Exemplificando com Maquiavel, quando o poltico surge da

    esfera religiosa e eclesial na poca da Renascena, ele antes de tudo apenas um

    puro jogo de signos, uma pura estratgia que no se preocupa com nenhuma

    verdade social ou histrica, mas, ao contrrio, joga com a ausncia de verdade

    (como, mais tarde, a estratgia mundana dos jesutas sobre a ausncia de Deus).

    O espao poltico inicialmente da mesma natureza do teatro de intriga daRenascena, ou do espao perspectivo da pintura, que so inventadas no mesmo

    momento. A forma a de um jogo, no de um sistema de representao -

    amplamente explorada, de produo de sentido, de uma reintegrao do desejo edo inconsciente na partitura do sentido. Sinfonia concertante, em que a irredutvelalterao do sentido entra no cenrio bem temperado do desejo, sombra de umarepresso que abre para a possibilidade inversa de liberao. De onde o fato de aliberao do desejo ter podido assumir to facilmente o lugar da revoluo poltica,

    acabando por esconder a incapacidade de sentido, ao invs de aprofund-la. Ora,no se trata de maneira alguma de encontrar uma nova interpretao das massasem termos da economia libidinal (remeter o conformismo ou o fascismo dasmassas a uma estrutura latente, a um obscuro desejo de poder e de represso queeventualmente se alimentaria de uma represso primria ou de uma pulso demorte). Esta hoje a nica alternativa para a declinante anlise marxista. Mas amesma, com uma deformao a mais. Outrora se atribula s massas um destinorevolucionrio contrariado pela servido sexual (Reich), hoje se lhes atribui umdesejo de alienao e servido, ou ainda uma espcie de microfascismo cotidianoto incompreensvel quanto sua virtual pulso de liberao. Ora, no h nem desejode fascismo e de poder nem desejo de revoluo. ltima esperana: que as massastenham um inconsciente ou um desejo, o que permitiria reinvesti-las como suporte

    ou suposto de sentido. 0 desejo, reinventado em toda parte, no seno oreferencial do desespero poltico. E a estratgia do desejo, aps ter sido envolvidano marketing empresarial, hoje se purificou na promoo revolucionria dasmassas.

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    semiurgia e estratgia, no ideologia -, e a sua utilizao depende de virtuosismo

    e no de verdade (como o jogo sutil e corolrio deste, de Balthazar Gracian em

    Homme de Cour). O cinismo e a imoralidade da poltica maquiaveliana esto

    nisso: no no uso sem escrpulos dos meios com que se o confundiu na

    concepo vulgar, mas na desenvoltura com relao aos fins. Pois, Nietzsche o

    viu bem, nesse menosprezo por uma verdade social, psicolgica, histrica,

    nesse exerccio dos simulacros enquanto tais, que se encontra o mximo de

    energia poltica, nesse momento em que o poltico um jogo e ainda no se deu

    uma razo.

    a partir do sculo XVIII, e particularmente depois da Revoluo, que opoltico se infletiu de uma maneira decisiva. Ele se encarrega de uma referncia

    social, o social se apodera dele. No mesmo momento comea a ser representao,

    seu jogo dominado pelos mecanismos representativos (o teatro segue um

    destino paralelo: torna-se um teatro representativo - o mesmo acontece com o

    espao perspectivo: de instrumental que era no incio, torna-se o lugar de

    inscrio de uma verdade do espao e da representao). A cena poltica se torna

    a cena da evocao de um significado fundamental: o povo, a vontade do povo,

    etc. Ela no trabalha mais s sobre signos, mas sobre sentidos, de repente eis que

    obrigada a significar o melhor possvel esse real que ela exprime, intimada a se

    tornar transparente, a se mobilizar e a responder ao ideal social de uma boa

    representao. Mas durante muito tempo ainda haver um equilbrio entre a

    esfera prpria do poltico e as foras que nele se refletem: o social, o histrico e o

    econmico. Este equilbrio sem dvida corresponde idade de ouro dos sistemas

    representativos burgueses (a constitucionalidade: a Inglaterra do sculo XVIII, os

    Estados Unidos da Amrica, a Frana das revolues burguesas, a Europa de

    1848).

    com o pensamento marxista em seus desenvolvimentos sucessivos que

    se inaugura o fim do poltico e de sua energia prpria. Nesse momento comea a

    hegemonia definitiva do social e do econmico, e a coao, para o poltico, de ser

    o espelho, legislativo, institucional, executivo, do social. A autonomia do poltico inversamente proporcional crescente hegemonia do social.

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    O pensamento liberal sempre viveu de uma espcie de dialtica

    nostlgica entre os dois, mas o pensamento socialista, o pensamento

    revolucionrio postula abertamente uma dissoluo do poltico no fim da histria,

    na transparncia definitiva do social.

    O social triunfou. Mas a esse nvel de generalizao, de saturao, em

    que s h o grau zero do poltico, a esse nvel de referncia absoluta, de

    onipresena e de difrao em todos os interstcios do espao fsico e mental, o

    que se torna o prprio social? o sinal de seu fim: a energia do social se inverte,

    sua especificidade se perde, sua qualidade histrica e sua idealidade desaparecem

    em benefcio de uma configurao em que no s o poltico se volatilizou, masem que o prprio social no tem mais nome. Annimo. A MASSA. AS

    MASSAS.

    A maioria silenciosa

    Enfraquecimento do poltico de uma pura ordenao estratgica a umsistema de representao, depois ao cenrio atual de neofigurao, isto , em que

    o sistema se perpetua sob os mesmos signos multiplicados mas que no

    representam mais nada e no tm seu equivalente numa realidade ou numa

    substncia social real: no h mais investidura poltica porque tambm no h

    mais referente social de definio clssica (um povo, uma classe, um

    proletariado, condies objetivas) para atribuir uma fora a signos polticos

    eficazes. Simplesmente no h significado social para dar fora a um significantepoltico.

    O nico referente que ainda funciona o da maioria silenciosa. Todos

    os sistemas atuais funcionam sobre essa entidade nebulosa, sobre essa substncia

    flutuante cuja existncia no mais social mas estatstica, e cujo nico modo de

    apario o da sondagem. Simulao no horizonte do social, ou melhor, no

    horizonte em que o social j desapareceu.

    O fato de a maioria silenciosa (ou as massas) ser um referente imaginrio

    no quer dizer que ela no existe. Isso quer dizer que no h mais representao

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    possvel. As massas no so mais um referente porque no tm mais natureza

    representativa. Elas no se expressam, so sondadas. Elas no se refletem, so

    testadas. O referendo (e as mdias so um referendo perptuo de

    perguntas/respostas dirigidas) substituiu o referente poltico. Ora, sondagens,

    testes, mdias so dispositivos que no dependem mais de uma dimenso

    representativa mas simulativa. Eles no visam mais um referente, mas um

    modelo. A revoluo aqui total contra os dispositivos da socialidade clssica

    (de que ainda fazem parte as eleies, as instituies, as instncias de

    representao, e mesmo a represso): em tudo isso, o sentido social ainda passa

    de um plo ao outro, numa estrutura dialtica que d lugar a um jogo poltico e scontradies.

    Tudo muda com o dispositivo de simulao. Na dupla sondagem/maioria

    silenciosa, por exemplo, no h mais plos nem termos diferenciais, portanto, j

    no h eletricidade do social: ela curto-circuitada pela confuso dos plos,

    numa circularidade especifica total (exatamente como acontece com o comando

    molecular e a substncia que ele informa no ADN e no cdigo gentico). Esta a

    forma ideal da simulao: aniquilao dos plos, circulao orbital de modelos (o

    que tambm a matriz de qualquer processo implosivo).

    Bombardeadas de estmulos, de mensagens e de testes, as massas no so

    mais do que um jazigo opaco, cego, como os amontoados de gases estelares que

    s so conhecidos atravs da anlise do seu espectro luminoso - espectro de

    radiaes equivalente s estatsticas e s sondagens. Mais exatamente: no mais

    possvel se tratar de expresso ou de representao, mas somente de simulao de

    um social para sempre inexprimvel e inexprimido. Esse o sentido do seu

    silncio. Mas esse silncio paradoxal - no um silncio que fala, um silncio

    queprobe que se fale em seu nome. E, nesse sentido, longe de ser uma forma de

    alienao, uma arma absoluta.

    Ningum pode dizer que representa a maioria silenciosa, e esta sua

    vingana. As massas no so mais uma instncia qual se possa referir como

    outrora se referia classe ou ao povo. Isoladas em seu silncio, no so maissujeito (sobretudo,no da histria), elas no podem, portanto, ser faladas,

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    articuladas, representadas, nem passar pelo estgio do espelho poltico e pelo

    ciclo das identificaes imaginrias. Percebe-se que poder resulta disso: no

    sendo sujeito , elas no podem ser alienadas - nem em sua prpria linguagem

    (elas no tm uma), nem em alguma outra que pretendesse falar por elas. Fim das

    esperanas revolucionrias. Porque estas sempre especularam sobre a

    possibilidade de as massas, como da classe proletria, se negarem enquanto tais.

    Mas a massa no um lugar de negatividade nem de exploso, um lugar de

    absoro e de imploso.

    Inacessvel aos esquemas de libertao, de revoluo e de historicidade,

    mas seu modo de defesa, seu modo de restrio. Modelo de simulao ereferente imaginrio para uma classe poltica fantasma que desde j no sabe que

    espcie de poder exerce sobre ela, a massa ao mesmo tempo a morte, o fim

    desse processo poltico que supostamente a governa. Na massa o poltico se

    deteriora como vontade e representao.

    Durante muito tempo a estratgia do poder pde parecer se basear na

    apatia das massas. Quanto mais elas eram passivas, mais ele estava seguro. Mas

    essa lgica s caracterstica da fase burocrtica e centralista do poder. E ela

    que hoje se volta contra ele: a inrcia que fomentou se tornou o signo de sua

    prpria morte. por isso que o poder procura inverter as estratgias: da

    passividade participao, do silncio palavra. Mas muito tarde. O limite da

    massa crtica, o da involuo do social por inrcia, foi transposto.3

    Em toda parte se procura fazer as massas falarem, se as pressiona a

    existir de forma social eleitoralmente, sindicalmente, sexualmente, na

    participao, nas festas, na livre expresso, etc. preciso conjurar o espectro,

    preciso que ele diga seu nome. Nada demonstra com mais clareza que hoje o

    nico problema verdadeiro o silncio da massa, o silncio da maioria

    silenciosa.

    3 A noo de massa crtica, habitualmente relativa ao processo de exploso

    nuclear, aqui retomada no sentido de imploso nuclear. Isso a que assistimos nodomnio do social e do poltico, com o fenmeno involucionrio das massas e dasmaiorias silenciosas, uma espcie de exploso inversa da fora de inrcia - estatambm conhece seu ponto de no-retorno.

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    Todas as energias so consumidas para manter essa massa em emulso

    dirigida e para impedi-Ia de cair em sua inrcia pnica e em seu silncio. Como

    no mais do reino da vontade nem do da representao, ela cai sob o golpe do

    diagnstico, da adivinhao pura e simples - de onde o reino universal da

    informao e da estatstica: preciso auscult-la, senti-Ia, retirar-lhe algum

    orculo. Da o furor de seduo, de solicitude e de solicitao em torno dela. Da

    a predio por ressonncia, os efeitos de antecipao e de futuro da multido em

    miragens como: O povo francs pensa... A maioria dos alemes reprova... Toda

    a Inglaterra vibra com o nascimento do Prncipe..., etc. - espelho que tende a um

    reconhecimento sempre cego, sempre ausente.Da esse bombardeio de signos, que a massa supostamente repercute. Ela

    interrogada por ondas convergentes, por estmulos luminosos ou lingsticos,

    exatamente como as estrelas distantes ou os ncleos que so bombardeados com

    partculas num ciclotron. Isso a informao. No um modo de comunicao

    nem de sentido, mas um modo de emulso incessante, de input-output e de

    reaes em cadeia dirigidas, exatamente como nas cmaras de simulao

    atmicas. preciso liberar a energia da massa para dela se fazer o social.

    Mas este um processo contraditrio, porque a informao e a

    segurana, sob todas as suas formas, em vez de intensificar ou de criar a relao

    social, so ao contrrio processos entrpicos, de modalidades do fim do social.

    Acredita-se que se estruturam as massas injetando-lhes informao,

    acredita-se que se libera sua energia social cativa fora de informao e de

    mensagens (a tal ponto que no mais o enquadramento institucional, mas a

    quantidade de informao e a taxa de exposio aos meios de comunicao que

    hoje medem a socializao). Mas exatamente o contrrio. Em vez de

    transformar a massa em energia, a informao sempre produz mais massa. Em

    vez de informar como ela pretende, isto , dar forma e estrutura, neutraliza

    sempre mais o campo social, cria cada vez mais massa inerte impermevel s

    instituies clssicas do social, e aos prprios contedos da informao. fisso

    das estruturas simblicas pelo social e sua violncia racional sucede hoje a fissodo prprio social pela violncia irracional dos meios de comunicao e de

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    informao - o resultado final sendo exatamente a massa atomizada,

    nuclearizada, molecularizada -, resultado de dois sculos de socializao

    acelerada e que a chega inapelavelmente ao fim.

    A massa s massa porque sua energia social j se esfriou. um estoque

    frio, capaz de absorver e de neutralizar todas as energias quentes. Ela se

    assemelha a esses sistemas semimortos em que se injeta mais energia do que se

    retira, a essas minas esgotadas que se mantm em estado de explorao artificial

    a preo de ouro.

    A energia que se dispende para atenuar a baixa tendencial da taxa de

    investimento poltico e a fragilidade absoluta do princpio social de realidade,para manter essa situao do social e impedi-lo de implodir totalmente, essa

    energia imensa, e o sistema se precipita a.

    Na realidade, o mesmo sentido da mercadoria. Antigamente bastava ao

    capital produzir mercadorias, o consumo sendo mera conseqncia. Hoje

    preciso produzir os consumidores, preciso produzir a prpria demanda e essa

    produo infinitamente mais custosa do que a das mercadorias (o social nasceu

    em grande parte, sobretudo a partir de 1929, desta crise da demanda: a produo

    da demanda ultrapassa amplamente a produo do prprio social).4 Assim,

    durante muito tempo bastou que o poder produzisse sentido (poltico, ideolgico,

    cultural, sexual), e a demanda acompanhava, absorvia a oferta e ainda a excedia.

    Se faltasse sentido, todos os revolucionrios se ofereciam para produzi-lo mais

    ainda. Hoje tudo mudou: o sentido no falta, ele produzido em toda parte, e

    sempre mais - a demanda que est declinante. E a produo dessa demanda

    de sentido que se tornou crucial para o sistema. Sem essa demanda, sem essa

    receptividade, sem essa participao mnima no sentido, o poder s o simulacro

    4 No se trata tambm de produo do social, porque seno o socialismo bastaria,at mesmo o prprio capitalismo. De fato, tudo muda com a precedncia daproduo da demanda sobre a das mercadorias. A relao lgica Ida produo aoconsumo) se desfaz, e estamos numa ordem inteiramente diferente, que no mais nem de produo nem de consumo, mas de simulao de ambas graas

    inverso do processo. De repente, no se trata mais de uma crise real do capital,como o supe Attali, crise que depende de um pouco mais de social e desocialismo, mas de um dispositivo absolutamente diferente, hiper-real, que no temmais nada a ver nem com o capital nem com o social.

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    vazio e o efeito solitrio de perspectiva. Ora, ai tambm a produo da demanda

    infinitamente mais custosa que a produo do prprio sentido. No limite ela

    impossvel, todas s energias reunidas do sistema no sero suficientes. A

    demanda de objetos e de servios sempre pode ser produzida artificialmente, a

    um preo elevado mas acessvel, o sistema j o demonstrou. O desejo de sentido,

    quando falta, o desejo de realidade, quando se faz ausente em todas as partes, no

    podem ser plenamente satisfeitos e so um abismo definitivo.

    A massa absorve toda a energia social, mas no a refrata mais. Absorve

    todos os signos e todos os sentidos, mas no os repercute. Absorve todas as

    mensagens e as digere.5

    Ela d a todas as questes que lhe so postas umaresposta tautolgica e circular. Nunca participa. Perpassada pelos fluxos e pelos

    testes, ela se comporta como massa, se limita a ser boa condutora dos fluxos, mas

    de todos os fluxos, boa condutora da informao, mas de qualquer informao,

    boa condutora de normas, mas de todas as normas; com isso, se limita a remeter

    o social sua transparncia absoluta, a s dar lugar aos efeitos do social e do

    poder, constelaes flutuantes em torno desse ncleo imperceptvel.

    A massa se cala como os animais e seu silncio comparvel ao silncio

    dos animais. Embora examinada at a morte (e a solicitao incessante a que

    submetida, a informao, equivale ao suplcio experimental dos animais nos

    laboratrios), ela no diz nem onde est a verdade: direita, esquerda? Nem o

    que prefere: a revoluo, a represso? Ela no tem verdade nem razo. Embora

    lhe emprestem todas as palavras artificiais. Ela no tem conscincia nem

    inconsciente.

    Esse silncio insuportvel. Ela a incgnita da equao poltica, a

    incgnita que anula todas as equaes polticas. Todo o mundo a interroga, mas

    5 A configurao idntica dos buracos negros. Verdadeiros sepulcros estelares,seu campo de gravidade to monstruoso que a prpria luz agarrada,satelitizada e depois absorvida. So, portanto, regies do espao das quais nopode chegar nenhuma informao. Sua descoberta e exame implicam, ento, umaespcie de revoluo de toda a cincia ou do processo de conhecimento tradicional.Este sempre se fundamenta na informao, na mensagem, no sinal positivo Ido

    sentido) veiculado por um meio (ondas ou luz), aqui aparece outra coisa, cujosentido ou mistrio gira em torno de ausncia de informao. Esta coisa no emite,

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    nunca enquanto silncio, sempre para faz-la falar. Ora, a fora de inrcia das

    massas insondvel: literalmente nenhuma sondagem a far aparecer, pois elas

    existem para eclips-la. Silncio que balana o poltico e o social na hiper-

    realidade que conhecemos. Porque se o poltico procura captar as massas numa

    cmara de eco e de simulao social (os meios de comunicao, a informao),

    em compensao so as massas que se tornam a cmara de eco e de simulao

    gigantesca do social. Nunca houve manipulao. A partida foi jogada pelos dois,

    com as mesmas armas, e ningum hoje poderia dizer quem a venceu: a simulao

    exercida pelo poder sobre as massas ou a simulao inversa, dirigida pelas

    massas ao poder que nelas se afunda.

    Nem sujeito nem objeto

    A massa realiza esse paradoxo de ser ao mesmo tempo um objeto de

    simulao (ela s existe no ponto de convergncia de todas as ondas mdias que

    a descrevem) e um sujeito de simulao, capaz de refratar todos os modelos e derevert-los por hiper-simulao (seu hiperconformismo, forma imanente de

    humor).

    A massa realiza esse paradoxo de no ser um sujeito, um grupo-sujeito,

    mas de tambm no ser um objeto. Todas as tentativas para fazer dela um sujeito

    (real ou mtico) deparam com uma espantosa impossibilidade de tomada de

    conscincia autnoma. Todas as tentativas para fazer dela um objeto deparam

    com a evidncia inversa da impossibilidade de uma manipulao determinadadas massas ou de uma apreenso em termos de elementos, de relaes, de

    estruturas e de conjuntos. Qualquer manipulao imerge, volteia na massa,

    absorvida, revirada, revertida. Impossvel saber onde ela leva, o mais verossmil

    que ela se consome num ciclo sem fim, frustrando todas as intenes dos

    manipuladores. Nenhuma anlise saberia abarcar essa realidade difusa,

    descentrada, brouniana, molecular: a noo de objeto a se perde, como o campo

    no responde. Ao se considerar as massas, entra em jogo uma revoluo da

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    da microfsica se perde na anlise ltima da matria - impossvel capt-la como

    objeto neste limite infinitesimal em que o prprio sujeito da observao se acha

    subitamente anulado. Nem objeto de saber, nem sujeito de saber.

    A massa atualiza a mesma situao limite e insolvel no campo do

    social. Ela no objetivvel (em termos polticos: ela no representvel) e

    anula todos os sujeitos que pretenderiam capt-la (em termos polticos: anula

    todos aqueles que pretenderiam represent-la). S as sondagens e as estatsticas

    podem dar conta dela (como na fsica matemtica a lei dos grandes nmeros e o

    clculo de probabilidades), mas sabe-se que esse encantamento, que esse ritual

    meterico das estatsticas e das sondagens no tm objeto real, sobretudo no nasmassas que elas supostamente exprimem. Ele simplesmente simula um objeto

    que escapa, mas cuja ausncia intolervel. Ele o produz sob forma de

    respostas antecipadas, de assinalamentos circulares que parecem circunscrever

    sua existncia e testemunhar sua vontade. Signos flutuantes - assim so as

    sondagens -, signos instantneos, destinados manipulao, e cujas concluses

    podem ser trocadas. Todo o mundo conhece a profunda indeterminao que reina

    sobre as estatsticas (o clculo de probabilidades ou os grandes nmeros tambm

    correspondem a uma indeterminao, a uma flutuao do conceito de matria,

    a que pouco corresponde uma insignificante noo de lei objetiva).

    Alis, no seguro que os procedimentos de experimentao cientfica

    nas cincias ditas exatas tenham muito mais verdade que as sondagens e as

    estatsticas. A forma de interrogao codificada, dirigida, objetiva, em

    qualquer disciplina que seja, s d lugar a esse tipo circular de verdade, de onde

    o prprio objeto que ela visa excludo. Em todo caso, possvel pensar que a

    incerteza deste projeto de determinao objetiva do mundo continua total e que

    mesmo a matria e o inanimado, intimados a responder (nos mesmos termos e

    segundo os mesmos procedimentos que as massas e o ser social nas estatsticas

    e nas sondagens), tambm s do os mesmos sinais adequados, as mesmas

    respostas codificadas, com o mesmo conformismo exasperante, incessante, para

    em ltima instncia, exatamente como as massas, escapar a qualquer definio

    mesma natureza.

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    enquanto objeto.

    Haveria uma ironia fantstica da matria e de qualquer objeto de

    cincia, como h uma ironia fantstica das massas em seu mutismo, ou em seu

    discurso estatstico to adequado s questes que lhes so postas, parecendo a

    eterna ironia da feminilidade de que fala Hegel - a ironia de uma falsa fidelidade,

    de um excesso de fidelidade lei, simulao de passividade e de obedincia

    definitivamente impenetrveis, mas que ao contrrio anula a lei que os governa,

    segundo o imortal exemplo do soldado Schweik.

    Da partiria, no sentido literal, uma patafsica ou a cincia das solues

    imaginrias, cincia da simulao e da hiper-simulao de um mundo exato,verdadeiro, objetivo, com suas leis universais, incluindo o delrio daqueles que o

    interpretam segundo estas leis. As massas e seu humor involuntrio nos

    introduziriam a uma patafsica do social que finalmente nos desembaraaria de

    toda esta metafsica do social que nos atravanca.

    Isso contradiz toda a concepo aceita do processo de verdade, mas esta

    talvez no seja mais do que uma iluso dos sentidos. O cientista no pode acredi

    tar que a matria ou o ser no respondem objetivamente s questes que ele

    lhes formula, ou que respondem muito objetivamente para que suas questes

    sejam as boas. S esta hiptese lhe parece absurda e imprensvel. Nunca a far.

    Ele jamais sair do crculo encantado e simulado de sua interrogao.

    A mesma hiptese vale para todas as coisas, o mesmo axioma de

    credibilidade. O publicitrio no pode deixar de crer que as pessoas acreditam -

    por pouco que seja, isso quer dizer que existe uma probabilidade mnima de que

    a mensagem alcance seu objetivo e seja decodificada segundo seu sentido.

    Qualquer princpio de incerteza est excludo do assunto. Se ele verificasse que o

    ndice de refrao da mensagem sobre o destinatrio nulo, a publicidade

    desapareceria num instante. Ela s vive deste crdito que postula para si mesma

    ( a mesma aposta que a cincia faz acerca da objetividade do mundo) e que no

    procura verificar a fundo, no terror de que a hiptese inversa tambm seja

    verdadeira, a saber, que a imensa maioria das mensagens publicitrias nuncachega ao seu destino, que os leitores no vem mais a diferena entre os

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    contedos que se refratam no vcuo - s o meio funcionando como efeito

    ambiente e se apresentando como espetculo e fascinao. O MEIO A

    MENSAGEM, profetizava Mac Luhan: frmula caracterstica da fase atual, a

    fase cool de qualquer cultura mass-media, de um resfriamento, de uma

    neutralizao de todas as mensagens num ter vazio. Fase de uma glaciao do

    sentido. O pensamento critico julga e escolhe, produz diferenas, e pela seleo

    que ele vigia o sentido. As massas, elas no escolhem, no produzem diferenas,

    mas indiferenciao - elas mantm a fascinao do meio, que preferem

    exigncia crtica da mensagem. Pois a fascinao no depende do sentido, ela

    proporcional insatisfao com o sentido. Obtm-se a fascinao ao neutralizar amensagem em benefcio do meio, ao neutralizar a idia em proveito do dolo, ao

    neutralizar a verdade em benefcio do simulacro. Pois neste nvel que os meios

    de comunicao funcionam. A fascinao sua lei, e sua violncia especfica,

    violncia massiva sobre o sentido, violncia negadora da comunicao pelo

    sentido em benefcio de um outro modo de comunicao. Qual?

    Para ns uma hiptese insustentvel: que seja possvel comunicar fora

    do meio do sentido, que a prpria intensidade da comunicao seja proporcional

    supresso do sentido e sua runa. Porque no o sentido nem o excesso de

    sentido que so violentamente agradveis, sua neutralizao que fascina (cf. le

    Witz, a operao da palavra espirituosa, inLEchange Symbolique et ta Mort). E

    no por alguma pulso de morte, o que subentenderia que a vida ainda est perto

    do sentido, mas simplesmente por provocao, por alergia referncia,

    mensagem, ao cdigo e a todas as categorias da operao lingstica, por recusa

    de tudo isso unicamente em benefcio da imploso do signo na fascinao (nem

    significante, nem significado: supresso dos plos da significao). Nenhum dos

    guardies do sentido pode entender isso: toda a moral do sentido se levanta

    contra a fascinao.

    Tambm a esfera poltica s vive de uma hiptese de credibilidade, a

    saber, que as massas so permeveis ao e ao discurso, que elas tm uma

    opinio, que elas esto presentes atrs das sondagens e das estatsticas. somente a este preo que a classe poltica ainda pode acreditar que fala e

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    ouvida politicamente. Enquanto o poltico h muito tempo considerado s

    como espetculo no interior da vida privada, digerido como divertimento semi-

    esportivo, semildico (veja-se o voto vencedor das eleies americanas, ou as

    tardes de eleies no rdio ou na tev), e na forma ao mesmo tempo fascinada e

    maliciosa das velhas comdias de costumes. O jogo eleitoral se identifica h

    muito tempo aos jogos televisados na conscincia do povo. Este, que sempre

    serviu de libi e de figurante para a representao poltica, se vinga entregando-

    se representao teatral da cena poltica e de seus atores. O povo tornou-se

    pblico. o jogo, o filme ou os desenhos animados que servem de modelos de

    percepo da esfera poltica. O povo tambm aprecia dia-a-dia, como numcinema a domiclio, as flutuaes de sua prpria opinio na leitura cotidiana das

    sondagens. Nada disso tudo incita a uma responsabilidade qualquer. Em

    momento algum as massas so engajadas de modo consciente poltica ou

    historicamente. Elas nunca o foram, s para se matar, com total

    irresponsabilidade. E isso no uma fuga diante do poltico, mas o efeito de uma

    antagonismo inexpivel entre a classe (casta?) portadora do social, do poltico, da

    cultura, senhora do tempo e da histria, e a massa informe, residual, despojada de

    sentido. A primeira sempre procura aperfeioar o reino do sentido, investir,

    saturar o campo do social, a segunda sempre desvia todos os efeitos do sentido,

    neutraliza-os e os rebate. Nesse enfrentamento, aquela que o venceu no

    absolutamente a que se pensa.

    Isso pode ser visualizado na inverso de valor entre histria e

    cotidianidade, entre esfera pblica e esfera privada. At os anos 60, a histria se

    impe como tempo forte: o privado e o cotidiano no so mais do que o avesso

    obscuro da esfera poltica. No melhor dos casos, intervm uma dialtica entre os

    dois e pode-se pensar que um dia o cotidiano, como o individual, resplandecer

    alm da histria, no universal. Mas at l s se pode deplorar o recuo das massas

    a sua esfera domstica, sua recusa da histria, da poltica e do universal, e sua

    absoro na cotidianidade embrutecida do consumo (felizmente elas trabalham, o

    que lhes garante um estatuto histrico objetivo at o momento da tomada deconscincia). Hoje, inverso do tempo fraco e do tempo forte: comea-se a

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    vislumbrar que o cotidiano, que os homens em sua banalidade at que poderiam

    no ser o reverso insignificante da histria - melhor: que o recuo para o privado

    at poderia ser um desafio direto ao poltico, uma forma de resistncia ativa

    manipulao poltica. Os papis se invertem: a banalidade da vida, a vida

    corrente, tudo o que se estigmatizara como pequeno-burgus, abjeto e apoltico

    (inclusive o sexo) .que se torna o tempo forte; e a histria e o poltico que

    desenvolvem sua acontecimentalidade abstrata algures.

    Hiptese vertiginosa. As massas despolitizadas no estariam aqum mas

    alm da poltica. O privado, o inominvel, o cotidiano, o insignificante, os

    pequenos ardis, as pequenas perverses, etc., no estariam aqum mas alm darepresentao. As massas executariam em sua prtica ingnua (e sem ter

    esperado as anlises sobre o fim do poltico) a sentena da anulao do

    poltico, seriam espontaneamente transpolticas, como so translingsticas em

    sua linguagem.

    Mas, ateno! Esse universo privado e a-social, que no entra numa

    dialtica de representao e de ultrapassamento para o universal, dessa esfera

    involutiva que se ope a toda revoluo pelo alto e se recusa a jogar o jogo,

    alguns desejariam que se tratasse (em particular em sua verso sexual e de

    desejo) de uma nova fonte de energia revolucionria, desejariam lhe dar um

    sentido e o reconstituir como negatividade histrica em sua prpria banalidade.

    Exaltao de microdesejos, de pequenas diferenas, de prticas cegas, de

    marginalidades annimas. ltimo sobressalto dos intelectuais para exaltar a

    insignificncia, para promover o no-sentido na ordem do sentido. E revert-lo

    razo poltica. A banalidade, a inrcia, o apoliticismo eram fascistas, agora se

    tornam revolucionrios - sem mudar de sentido, isto , sem deixar de ter sentido.

    Micro-revoluo da banalidade, transpoltica do desejo - mais um truque dos

    libertadores. A negao do sentido no tem sentido.

    Da resistncia ao hiperconformismoA emergncia das maiorias silenciosas se integra no ciclo completo da

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    resistncia histrica ao social. Resistncia ao trabalho, evidentemente, mas

    tambm resistncia medicina, resistncia escola, resistncia segurana,

    resistncia informao. A histria oficial s registra o progresso ininterrupto do

    social, relegando s trevas, como culturas passadas, como vestgios brbaros,

    tudo que no concorreria para esse glorioso acontecimento. Ora, contrariamente

    ao que se poderia pensar (que o social definitivamente ganhou, que o movimento

    irreversvel, que o consenso sobre o social total), a resistncia ao social sob

    todas as suas formas progrediu mais rapidamente ainda do que o social. Ela

    simplesmente tomou outras formas que no as primitivas e violentas, que foram

    reabsorvidas pela seguinte (o social vai bem, obrigado, s restam uns loucos paraescapar ao registro, vacinao e s vantagens da segurana). Essas resistncias

    frontais ainda corresponderiam a uma fase tambm frontal e violenta da

    socializao, e viriam mais de grupos tradicionais, procurando preservar sua

    cultura prpria, suas estruturas originais. No era a massa que resistia neles, mas

    sim as estruturas diferenciadas, contra o modelo homogneo e abstrato do social.

    tambm esse tipo de resistncia que se encontra nos two steps flow of

    communication (duplo fluxo de comunicao) que a sociologia americana

    analisou: a massa absolutamente constitui uma estrutura passiva de recepo das

    mensagens dos meios de comunicao, sejam elas polticas, culturais ou

    publicitrias. Os microgrupos e os indivduos, longe de se alinharem em uma

    decodificao uniforme e imposta, decodificam as mensagens sua maneira, as

    interceptam (atravs de lderes) e as transpem (segundo nvel), opondo ao

    cdigo dominante seus sub-cdigos particulares, e terminam por reciclar tudo o

    que os atinge em seus prprio ciclo, exatamente como os primitivos reciclavam a

    moeda ocidental em sua circulao simblica (os Sians da Nova Guin) ou como

    os corsos reciclam o sufrgio universal e as eleies em sua estratgia de

    rivalidades entre cls. Esta maneira de desvio, de absoro, de recuperao

    vitoriosa pelos subgrupos do material difundido pela cultura dominante, este

    ardil universal. tambm ele que conduz ao uso mgico do mdico e da

    medicina nas massas subdesenvolvidas. Creditado normalmente a umamentalidade arcaica e irracional, preciso ler ai, ao contrrio, uma prtica

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    ofensiva, um desvio por excesso, uma recusa no-analisada, mas sem o saber

    profundamente consciente das devastaes da medicina racional.

    Mas esta ainda a ao de grupos estruturados, pertencentes e de origem

    tradicionais. Outra coisa o fracasso da socializao impostopela massa, isto ,

    por um grupo inumervel, inominvel e annimo, e cuja fora reside na sua

    prpria desestruturao e inrcia. Assim, no caso dos meios de comunicao, a

    resistncia tradicional consiste em reintegrar as mensagens segundo o cdigo

    prprio ao grupo e em torno de seus prprios objetivos. As massas, estas aceitam

    tudo e desviam tudo em bloco no espetacular, sem exigncia de um outro cdigo,

    sem exigncia de sentido, na realidade sem resistncia, mas fazendo com quetudo passe para uma esfera indeterminada que no nem mesmo a do no-

    sentido, mas a da fascinao/manipulao de todos os azimutes.

    Sempre se acreditou que so os meios de comunicao que enredam as

    massas - o que a prpria ideologia dos mass media. Procurou-se o segredo da

    manipulao numa semiologia que combate os mass media. Mas se esqueceu,

    nessa lgica ingnua da comunicao, que as massas so um meio muito mais

    forte que todos os meios de comunicao, que so elas que os enredam e os

    absorvem - ou que pelo menos no h nenhuma prioridade de um sobre o outro.

    O processo da massa e o dos meios de comunicao so um processo nico.

    Mass(age) mensagem.

    O mesmo aconteceu com o cinema, cujos inventores no incio

    imaginaram como um meio racional, documental, informativo, social, e que caiu

    muito rpido e definitivamente no imaginrio.

    O mesmo aconteceu com a tcnica, com a cincia e com o saber.

    Destinados a uma prtica mgica e a um consumo espetacular. Aconteceu o

    mesmo com o prprio consumo. Levando em conta a seriedade de sua teoria das

    necessidades e o consenso geral sobre o discurso da utilidade, para seu prprio

    estupor os economistas nunca conseguiram racionalizar o consumo. Mas isso

    porque a prtica das massas nunca teve imediatamente nenhuma relao (talvez

    nunca tenha) com as necessidades. Elas fizeram do consumo uma dimenso destatus e de prestgio, de promessa intil ou de simulao, de potlatch que de

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    qualquer maneira excederia o valor de uso. Na verdade, trata-se de lhes inculcar

    de todos os lados (propaganda oficial, associao de consumidores, eclogos,

    socilogos) a boa prtica e o clculo funcional em matria de consumo, mas sem

    esperana. Porque pelo valor/signo e pelo jogo desenfreado do valor/signo

    (onde os economistas, mesmo quando tentaram integr-lo como varivel, no

    deixaram de ver uma inclinao da razo econmica), por isso que as massas

    pem prova a economia, resistem ao imperativo objetivo das necessidades e

    ponderao racional dos comportamentos e dos fins. Valor/signo em vez de

    valor de uso j um desvio da economia poltica. E que no se diga que tudo isso

    afinal serve ao valor de troca, isto , ao sistema. Porque se o sistema se sai muitobem com esse jogo e at mesmo o favorece (as massas alienadas nos gadgets,

    etc.) isso no o essencial e o que esse deslize, essa derrapagem inaugura a

    longo prazo - inaugura desde agora - o fim do econmico, isolado de todas as

    suas definies racionais pelo uso excessivo, mgico, espetacular, indireto e

    quase pardico que as massas fazem dele. Uso a-social, resistente a todas as

    pedagogias socialistas - uso aberrante atravs do qual as massas (ns, vocs, todo

    o mundo) inverteram a economia poltica desde agora. No esperaram as

    revolues futuras nem as teorias que pretendem libert-las de um movimento

    dialtico. Elas sabem que no se liberta de nada e que s se abole um sistema

    obrigando-o ao hiperlgico, impelindo-o a um uso excessivo que equivale a um

    amortecimento brutal. Vocs querem que se consuma - pois bem, consumamos

    sempre mais, e no importa o qu; para todos os fins inteis e absurdos.

    O mesmo aconteceu com a medicina: resistncia frontal (que alis no

    desapareceu) se substituiu uma forma mais sutil de subverso, um consumo

    excessivo, irrefrevel, da medicina, um conformismo pnico s injunes da

    sade. Escalada fantstica do consumo mdico que desvia completamente os

    objetivos e as finalidades sociais da medicina. Que melhor meio de aboli-Ia?

    Desde ento os mdicos no sabem mais o que fazem, o que so, muito mais

    manipulados do que manipuladores. Queremos mais cuidados, mais mdicos,

    mais medicamentos, mais segurana, mais sade, sempre mais, sem limites! Asmassas so alienadas na medicina? De modo algum: ao exigirem sempre mais,

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    como mercadoria, esto prestes a arruinar sua instituio, a explodir a segurana

    social, a colocar o prprio social em perigo. Que maior ironia pode haver do que

    nesta exigncia do social como bem de consumo individual, submetido ao

    excesso da oferta e da procura? Pardia e paradoxo: por sua inrcia nos

    caminhos do social que lhes foram traados que as massas lhes ultrapassam a

    lgica e os limites, e destroem todo o edifcio. Hipersimulao destrutiva,

    hiperconformismo destruidor (como no caso de Beaubourg, analisado em outra

    perspectiva)6 que tem todas as aparncias de um desafio vitorioso - ningum

    avaliar a fora desse desafio, da reverso que ele exerce sobre todo o sistema.

    a que est o verdadeiro problema hoje, nesse afrontamento surdo e inelutvel dasmaiorias silenciosas contra o social que lhes imposto, nessa hiper-simulao

    que redobra a simulao e que a extermina a partir de sua prpria lgica - no em

    alguma luta de classe nem no caos molecular das minorias em ruptura de desejo.

    Massa e terrorismo

    Estamos portanto no ponto paradoxal em que as massas se recusam ao

    batismo do social, que ao mesmo tempo o do sentido e da liberdade. No faze

    mos delas uma nova e gloriosa referncia. Porque elas no existem. Mas

    constatamos que todos os poderes acabam por se arruinar silenciosamente nessa

    maioria silenciosa, que no nem uma entidade nem uma realidade sociolgica,

    mas a sombra projetada pelo poder, seu abismo no vcuo, sua forma de absoro.

    Nebulosa fluida, movente, conforme, excessivamente, conforme a todas assolicitaes e de um conformismo hiper-real que a forma extrema da no-

    participao: tal o desastre atual do poder. Tal tambm o desastre da

    revoluo. Porque essa massa implosiva jamais explodir por definio, e

    qualquer palavra revolucionria tambm implodir a. Em conseqncia, o que

    fazer com essas massas? Elas so o leitmotiv de todos os discursos. So a

    obsesso de todo projeto social, mas todos malogram nelas, porque todos

    6L'Effet et Beaubourg. Paris, Ed. Galile, 1977.

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    permanecem enraizados na definio clssica de massas, a de uma esperana

    escatolgica do social e de sua realizao. Ora, as massas no so o social, so a

    reverso de todo social e de todo socialismo. Muitos tericos, entretanto,

    condenaram o sentido, denunciaram as armadilhas da liberdade e as mistificaes

    do poltico, criticaram radicalmente a racionalidade de qualquer forma de

    representao - quando as massas atravessavam o sentido, o poltico, a

    representao, a histria, a ideologia, com uma forma sonamblica de negao,

    quando realizam aqui e agora tudo o que a critica mais radical pde vislumbrar,

    nesse momento esta no sabe o que fazer disso e se obstina em sonhar com uma

    revoluo futura - revoluo crtica, revoluo de prestgio, a do social, a dodesejo. Esta revoluo por involuo no a sua: no explosiva-crtica,

    implosiva e cega. Procede por inrcia e no por uma negatividade franca e jovial.

    Ela silenciosa e involutiva - exatamente o inverso de todas as tomadas de

    palavra e tomadas de conscincia. No tem sentido. No tem nada a nos dizer.

    Alis o nico fenmeno que est em relao de afinidade com elas, com

    as massas, exatamente como se a se desenrolasse a ltima peripcia do social, e

    de sua morte, o terrorismo. Nada mais afastado das massas do que o

    terrorismo, e o poder tem tentado levantar um contra o outro. Mas nada mais

    estranho, nada mais familiar tambm, do que sua convergncia na negao do

    social e na recusa do sentido. Porque o terrorismo na verdade pretende visar o

    capital (o imperialismo mundial, etc.) mas se engana de inimigo, e ao fazer isso

    visa seu verdadeiro inimigo, que o social. O terrorismo atual visa o social em

    resposta ao terrorismo do social. Ele visa o social tal como produzido hoje -

    rede orbital, intersticial, nuclear, textural, de controle e de segurana, que nos

    investe de todas as partes e nos produz, a ns todos, como maioria silenciosa.

    Socialidade hiper-real, imperceptvel, que no opera mais pela lei e pela

    represso, mas pela infiltrao de modelos, no pela violncia, mas pela

    persuaso/dissuao. A isso o terrorismo responde com um ato ele mesmo hiper-

    real, imediatamente destinado s ondas concntricas dos meios de comunicao e

    da fascinao, imediatamente destinado no a alguma representao nemconscincia, mas desacelerao mental por contingidade, fascinao e pnico,

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    no reflexo nem lgica das causas e dos efeitos, mas reao em cadeia por

    contgio. Desprovido de sentido, portanto, e indeterminado como o sistema que

    ele combate, em que ele se insere mais como um ponto de imploso mxima e

    infinitesimal - terrorismo no-explosivo, no-histrico, no-poltico; implosivo,

    cristalizante, siderante - e por isso profundamente homlogo ao silncio e

    inrcia das massas.

    O terrorismo no visa fazer falar, ressuscitar ou mobilizar quem quer que

    seja; no tem prolongamento revolucionrio (a esse respeito, seria mais uma

    contra-performance total, o que se lhe censura violentamente, mas seu problema

    no est nisso), visa as massas em seu silncio, silncio magnetizado pelainformao; ele visa, para precipitar sua morte ao acentu-la, esta magia branca

    do social que nos envolve, a da informao, da simulao, da dissuaso, do

    controle annimo e aleatrio, essa magia branca da abstrao social pela magia

    negra de uma abstrao maior ainda, mais annima, mais arbitrria e mais

    aleatria ainda: a do ato terrorista.

    Ele o nico ato no-representativo. nisso que ele tem afinidade com

    as massas, que so a nica realidade no-representvel. Sobretudo isso no quer

    dizer que novamente o terrorismo representaria o silncio e o no-dito das

    massas, que exprimiria violentamente sua resistncia passiva. Isso quer dizer

    simplesmente: no h equivalente ao carter cego, no-representativo,

    desprovido de sentido, do ato terrorista, seno o comportamento cego,

    desprovido de sentido e alm da representao que o das massas. Eles tm isso

    de comum porque so a forma atual mais radical, mais exacerbada, de negao

    de qualquer sistema representativo. tudo. Ningum sabe na realidade que

    relao pode se estabelecer entre dois elementos que esto alm da representao,

    um problema que nossa epistemologia do conhecimento no permite resolver

    pois ela postula sempre a mediao de um sujeito e de uma linguagem, a

    mediao de uma representao. S conhecemos bem os encadeamentos

    representativos, no sabemos grande coisa dos encadeamentos analgicos,

    afinitrios, imediatizados, irreferenciais e outros sistemas. Sem dvida, algumacoisa de muito forte passa entre eles (massas e terrorismo) que procuraramos em

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    vo nos precedentes histricos dos sistemas representativos (povo/assemblia,

    proletariado/partido, marginais-minorias/grupelhos, etc.). E assim como uma

    energia social passa entre dois plos de um sistema representativo qualquer,

    energia positiva, assim se poderia dizer que entre as massas e o terrorismo, entre

    esses dois no-plos de um sistema no-representativo, tambm passa uma

    energia, mas uma energia inversa, energia no de acumulao social e de

    transformao, mas de disperso do social, de absoro e anulao do poltico.

    No se pode dizer que a era das maiorias silenciosas que produz o

    terrorismo. a simultaneidade dos dois que assombrosa e causa estranheza.

    nico acontecimento, aceite-se ou no sua brutalidade, que verdadeiramentemarca o fim do poltico e do social. O nico que traduz essa realidade de uma

    imploso violenta de todos os nossos sistemas de representao.

    O terrorismo no visa de modo algum desmascarar o carter repressivo

    do Estado (essa a negatividade provocadora dos grupelhos, que a encontram

    uma ltima oportunidade de serem representativos aos olhos das massas). Ele

    propaga, por sua prpria no-representatividade e por reao em cadeia (no por

    demonstrao e tomada de conscincia), a evidncia da no-representatividade de

    todos os poderes. A est sua subverso: ele precipita a no-representatividade

    injetando-a em doses infinitesimais mas bastante concentradas.

    Sua violncia fundamental de negao de todas as instituies de

    representao (sindicatos, movimentos organizados, luta poltica consciente,

    etc.). Inclusive daqueles que professam solidariedade a ele, porque a

    solidariedade ainda a maneira de constitu-lo como modelo, como emblema, e,

    portanto, de lhe atribuir representao (Eles esto mortos para ns, sua ao no

    foi intil...). Todos os meios so bons para violentar o sentido, para desconhecer

    quanto o terrorismo sem legitimidade social, sem prolongamento poltico, sem

    continuidade em histria alguma. Seu nico reflexo no exatamente um

    prolongamento histrico: sua narrao, sua onda de choque nos meios de

    comunicao. Ora, essa narrao no de natureza objetiva e informativa, tanto

    como o terrorismo no de natureza poltica. Todos os dois esto em outro lugar,numa ordem que no nem de sentido nem de representao - talvez mtica, sem

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    dvida simulacro.

    O outro aspecto da violncia terrorista a negao de toda determinao

    e de toda qualidade. Nesse sentido, preciso distinguir o terrorismo do

    banditismo e da ao de comando. Esta um ato de guerra que visa um

    inimigo determinado (explodir um trem, ataque a bomba sede do partido

    adversrio, etc.). O outro depende da violncia criminal tradicional (hold-up num

    banco, seqestro em troca de resgaste, etc.). Todas essas aes tm um

    objetivo econmico ou militar. O terrorismo atual, inaugurado com a tomada

    de refns e o jogo adiado da morte, no tem objetivo (se ele pretende t-los, so

    irrisrios ou inacessveis, e, de qualquer maneira, exatamente o mtodo maisineficaz de atingi-los) nem inimigo determinado. Os palestinos visam Israel por

    intermdio dos refns? No, atravs da intermediao de Israel que eles visam

    um inimigo mtico, mesmo no-mtico, annimo, indiferenciado, uma espcie de

    ordem social mundial presente em toda parte, no importa quando, no importa

    quem, at o ltimo dos inocentes. Assim o terrorismo, original e insolvel

    somente porque ataca no importa onde, quando e quem, seno seria somente ato

    de resgate ou de comando militar. Sua cegueira a rplica exata da

    indiferenciao absoluta do sistema, que h muito tempo no distingue os fins

    dos meios, os carrascos das vitimas. Seu ato visa, na indistino assassina da

    tomada de refns, exatamente o produto mais caracterstico de todo o sistema: o

    indivduo annimo e perfeitamente indiferenciado, o termo substituvel por

    qualquer outro. preciso dizer paradoxalmente; os inocentes pagam o crime de

    no serem nada, de serem sem destino, de terem sido despossudos de seu nome

    por um sistema tambm annimo, de que eles se tornaram, ento, a mais pura

    encarnao. So os produtos acabados do social, de uma sociabilidade abstrata

    doravante mundializada. nesse sentido, exatamente no sentido em que eles so

    qualquer pessoa, que so as vtimas predestinadas pelo terrorismo.

    nesse sentido, ou melhor, nesse desafio ao sentido, que o ato terrorista

    se assemelha catstrofe natural. No h diferena alguma entre um terremoto na

    Guatemala e a queda de um Boeing da Lufthansa com trezentos passageiros abordo, entre a interveno natural e a interveno humana terrorista. A

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    natureza terrorista, como o a interrupo abrupta de todo o sistema

    tecnolgico: os grandes black-outs de Nova Iorque (1965 e 1977) criam situaes

    terroristas melhores que as verdadeiras, situaes sonhadas. Melhor: esses

    grandes acidentes tecnolgicos, como os grandes acidentes naturais,

    exemplificam a possibilidade de uma subverso radical sem sujeito. A pane de

    1977 em Nova Iorque poderia ser fomentada por um grupo terrorista muito

    organizado e isso no mudaria nada no resultado objetivo. Teriam sucedido os

    mesmos atos de violncia, de pilhagem, de levante, a mesma suspenso da ordem

    social. Isso significa que o terrorismo no est na deciso de violncia, mas em

    toda parte na normalidade do social, de modo que ela pode de um momento parao outro se transfigurar numa realidade inversa, absurda, incontrolvel. A

    catstrofe natural funciona dessa maneira e assim que, paradoxalmente, ela se

    torna a expresso mtica da catstrofe do social. Ou melhor, sendo a catstrofe

    natural por excelncia um incidente desprovido de sentido, no-representativo

    (seno de Deus, eis por que o responsvel pela Continental Edison pde falar de

    Deus e de sua interveno no episdio do ltimo black-out de Nova Iorque),

    torna-se uma espcie de sintoma ou de encarnao violenta do estado do social, a

    saber, de sua catstrofe e da runa de todas as representaes que o sustentavam.

    Sistemas implosivos, sistemas explosivos

    Massas, meios de comunicao e terrorismo, em sua afinidade,

    triangular, descrevem o processo de imploso hoje dominante. Todo o processo afetado por uma violncia que somente comea, violncia orbital e nuclear, de

    aspirao e fascinao, violncia do vazio (a fascinao a intensidade extrema

    do neutro). A imploso, para ns e hoje, s pode ser violenta e catastrfica,

    porque ela resulta do fracasso do sistema de exploso e de expanso dirigida que

    foi o nosso no Ocidente h alguns sculos.

    Ora, a imploso no necessariamente um processo catastrfico. Ela foi,

    sob uma forma controlada e dirigida, o segredo dominante das sociedades

    primitivas e tradicionais. Configuraes no-expansivas, no-centrifugas:

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    centrpetas - pluralidades singulares que nunca visam o universal, centradas num

    processo cclico, o ritual, e que tendem a involuir nesse processo no-

    representativo, sem instncia superior, sem polaridade, disjuntiva, sem entretanto

    se arruinar a si mesmas (salvo, sem dvida, determinados processos implosivos

    inexplicveis para ns, como o colapso das culturas tolteca, olmeca, maia, que de

    que no se soube nada, cujos imprios piramidais desapareceram sem deixar

    traos, sem catstrofe visvel, como se desinvestidos brutalmente, sem causa

    aparente, sem violncia externa). As sociedades primitivas viveram portanto de

    uma imploso dirigida - morreram quando deixaram de controlar esse processo,

    e oscilaram ento para o da exploso (demogrfica, ou excedentes de produoirredutveis, processo de expanso incontrolvel, ou simplesmente quando a

    colonizao as iniciou violentamente na norma expansiva e centrfuga dos

    sistemas ocidentais).

    Inversamente, nossas civilizaes modernas viveram sobre uma base

    de expanso e de exploso em todos os nveis, sob o signo da universalizao do

    mercado, dos valores econmicos e filosficos, sob o signo da universalidade da

    lei e das conquistas. Sem dvida mesmo elas souberam viver, pelo menos num

    momento, de uma exploso dirigida, de uma liberao de energia controlada e

    progressiva, e foi a idade de ouro de sua cultura. Mas, conforme um processo de

    arroubamento e de acelerao, esse processo explosivo se tornou incontrolvel,

    atingiu uma rapidez ou uma amplitude mortal, ou melhor, atingiu os limites do

    universal, saturou o campo de expanso possvel e, assim como as sociedades

    primitivas foram devastadas pela exploso por no terem sabido controlar

    durante mais tempo o processo implosivo, assim nossas culturas comeam a ser

    devastadas pela imploso por no terem sabido controlar e equilibrar o processo

    explosivo.

    A imploso inelutvel, e todos os esforos para salvar os princpios de

    realidade, de acumulao, de universalidade, os princpios de evoluo que

    dependem dos sistemas em expanso so arcaicos, regressivos, nostlgicos.

    Inclusive todos aqueles que querem liberar as energias libidinais, as energiasplurais, as intensidades fragmentrias, etc. A revoluo molecular s traduz a

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    ltima fase de liberao de energias (ou de proliferao de segmentos, etc.) at

    os limites infinitesimais do campo de expanso que foi o de nossa cultura.

    Tentativa infinitesimal do desejo que sucede do infinito do capital. Soluo

    molecular que sucede ao ataque molar dos espaos e do social. ltimos clares

    do sistema explosivo, ltima tentativa de ainda controlar uma energia dos

    confins, ou de ampliar os confins da energia (nosso leitmotiv fundamental) para

    salvar o principio de expanso e de liberao.

    Mas nada travar o processo implosivo, e a nica alternativa que resta a

    de uma imploso violenta e catastrfica, ou de uma imploso lenta e progressiva.

    H traos disso, de diversas tentativas de controlar os novos impulsos anti-universais, anti-representativos, tribais, centrpetos, etc.: as comunidades, a

    ecologia, o crescimento zero, as drogas - tudo isso sem dvida dessa natureza.

    Mas preciso no se iludir sobre a imploso lenta. Ela est destinada

    efemeridade e ao fracasso. No houve transio equilibrada de sistemas

    implosivos aos sistemas explosivos: isso sempre aconteceu violentamente, e h

    toda a possibilidade de que nossa passagem para a imploso tambm seja

    violenta e catastrfica.

    ... Ou o fim do social

    O social no um processo claro e unvoco. As sociedades modernas

    correspondem a um processo de socializao ou de dessocializao progressiva?Tudo depende da acepo do termo, ora, nenhuma segura e todas so

    reversveis. O mesmo ocorre com as instituies que marcaram os progressos do

    social (urbanizao, concentrao, produo, trabalho, medicina, escolarizao,

    segurana social, seguros, etc), inclusive o capital, que sem dvida foi o meio de

    socializao mais eficaz de todos, pode-se dizer que elas produzem e destroem o

    social no mesmo movimento.

    Se o social feito de instncias abstratas que, umas aps as outras, se

    edificam sobre as runas do edifcio simblico e ritual das sociedades anteriores,

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    ento essas instituies o produzem cada vez mais. Mas, ao mesmo tempo, elas

    sancionam essa abstrao devorante, talvez devoradora exatamente do mago

    substantivo do social. A partir desse ponto de vista, pode-se dizer que o social

    regride na prpria medida d desenvolvimento das instituies.

    O processo acelera e atinge sua extenso mxima com os meios de

    comunicao de massa e com a informao. Os mdia, todos os mdia, e a

    informao, qualquer informao, funcionam nos dois sentidos: aparentemente

    produzem mais social e neutralizam profundamente as relaes sociais e o

    prprio social.

    Mas, ento, se o social ao mesmo tempo destrudo por aquele que oproduz (os mdia, a informao) e reabsorvido pelo que produz (as massas),

    segue-se que a definio nula, e que esse termo que serve de libi universal

    para todos os discursos no analisa nada, no designa nada. Ele no somente

    suprfluo e intil - em toda a parte em que aparece esconde outra coisa: desafio,

    morte, seduo, ritual, repetio -, esconde que abstrao e resduo, ou mesmo

    simplesmente efeito de social, simulao e miragem.

    O prprio termo contato social enigmtico. O que um contato

    social, uma relao social, o que a produo de contatos sociais? Aqui

    tudo falsa evidncia. O social imediatamente, e como por definio, um

    contato ou uma relao? - o que j supe uma sria abstrao e uma lgebra

    racional do social -, ou na verdade outra coisa que o termo contato

    racionaliza demais? Talvez o contato social exista para outra coisa, por

    exemplo, para que o destri? Talvez ele confirme, talvez inaugure o fim do

    social?

    As cincias sociais vieram consagrar essa evidncia e essa eternidade

    do social. Mas preciso desencantar. Houve sociedades sem social, assim como

    houve sociedades sem histria. As redes de obrigaes simblicas no eram

    exatamente nem contato nem social. No outro extremo, nossa sociedade

    talvez esteja prestes a pr fim ao social, a enterrar o social sob a simulao do

    social. Para este h diversas maneiras de morrer - assim como definies. Osocial talvez s ter tido uma existncia efmera, numa estreita bifurcao entre

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    as formaes simblicas e a nossa sociedade, onde morre. Antes, no existe

    ainda. Aps, no existe mais. S a sociologia pode parecer testemunhar sua

    eternidade, e a soberana algaravia das cincias sociais ainda o divulgar muito

    tempo aps ele ter desaparecido.

    A energia ininterrupta do social surgiu h dois sculos com a

    desterritorializao e a concentrao sob instncias cada vez mais unificadas.

    Espao perspectivo centralizado que d um sentido a tudo o que nele se insere

    por simples convergncia numa linha de fuga ao infinito (como o espao e o

    tempo, o social efetivamente abre uma perspectiva ao infinito). No h definio

    do social seno nessa perspectiva pantica.Mas no esqueamos que este espao perspectivo (em pintura e em

    arquitetura, assim como em poltica ou em economia) s um modelo de

    simulao entre outros, e que s tem por caracterstica o fato de que permite

    efeitos de verdade, de objetividade, inauditos e desconhecidos aos outros

    modelos. Ele no talvez um equvoco? Em qualquer caso, tudo o que se tramou

    e se colocou nessa cena italiana do social jamais teve importncia profunda.

    As coisas, profundamente, jamais funcionaram de modo social, mas sim

    simbolicamente, magicamente, irracionalmente, etc. O que subentende a frmula:

    o capital um desafio sociedade. O que quer dizer que essa mquina

    perspectiva, pantica, que esta mquina de verdade, de nacionalidade, de

    produtividade que o capital, no tem finalidade objetiva, no tem razo: ela

    antes de mais nada uma violncia, e esta violncia se exerce pelo social sobre o

    social, mas na realidade ela no uma mquina social, ela despreza o capital e o

    social em sua definio ao mesmo tempo solidria e antagnica. Isso quer dizer

    ainda que no h contrato, que jamais houve contrato passado entre as distintas

    instncias segundo a lei - tudo isso vento -, s h questes, desafios, isto , algo

    que no passa por uma relao social.

    O desafio no uma dialtica, nem uma oposio respectiva de um plo

    ao outro, de um termo ao outro, numa estrutura plena. Ele um processo de

    exterminao da posio estrutural de cada termo, da posio de sujeito de cadaum dos antagonistas e em particular daquele que lana o desafio: por isso mesmo

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    ele abandona qualquer posio contratual que possa dar lugar a uma ligao. A

    lgica no mais a da troca de valor. a do abandono de posies de valor e de

    sentido. O protagonista do desafio sempre est em posio suicida, mas um

    suicdio triunfal: pela destruio do valor, pela destruio do sentido (a sua, o

    seu) que ele fora o outro a uma resposta nunca equivalente, sempre superada. O

    desafio sempre do que no tem sentido, no tem nome, no tem identidade,

    para o que se prevalece de um sentido, de um nome, de uma identidade - o

    desafio ao sentido, ao poder, verdade, de existirem enquanto tais, de

    pretenderem existir como tais. S esta reverso pode dar fim ao poder, ao

    sentido, ao valor, e nunca alguma relao de foras, por mais favorvel que seja,pois esta se reproduz numa relao polar, binria, estrutural, que recria por

    definio um novo espao de sentido e de poder.7

    Aqui so possveis vrias hipteses:

    1. Na realidade o social nunca existiu. Nunca houve ligao social.

    Nunca nada funcionou socialmente. Nessa base inelutvel de desafio, de seduo

    e de morte, sempre houve somente simulao do social e de ligao social. De

    nada adianta, nesse caso, sonhar com uma sociedade real, com uma socialidade

    escondida, com uma socialidade ideal. Seria hipostasiar o simulacro. Se o social

    uma simulao, o nico incidente provvel o de uma dessimulao brutal - o

    prprio social deixando de se afirmar como espao de referncia e de jogar o

    jogo, pondo imediatamente fim ao poder, ao efeito de poder e ao espelho do

    social que o eterniza. Dessimulao que assume ela mesma o comportamento de

    um desafio (desafio inverso ao do capital ao social e sociedade): desafio ao

    capital e ao poder de existirem segundo sua lgica prpria - eles no a tm, eles

    se desvanecem como ordenao desde que a simulao do espao social se

    7 A mesma coisa vale para a seduo. Se o sexo e a sexualidade, dado que arevoluo sexual os muda em si mesmos, so verdadeiramente um modo de trocae de produo de relaes sexuais, j a seduo o inverso da troca, e prxima ao

    desafio. A sexualidade realmente s se tornou relao sexual, s pde ser faladanesses termos j racionalizados de valor e de troca, ao se esquecer qualquer formade seduo - assim como o social s se torna relao social quando perdeu toda adimenso simblica.

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    super-social, e simultaneamente do resduo indegradvel, indestrutvel, que se

    expande na prpria medida da extenso do social.

    Desperdcio e reciclagem: tal seria o social imagem de uma produo

    cujo ciclo escapou h muito tempo s finalidades sociais para tornar-se uma

    nebulosa espiral completamente ex-inscrita, girando sobre si mesma e se

    alargando cada revoluo que descreve. V-se assim o social crescer no

    decorrer da histria como gesto racional dos resduos, e dentro em pouco

    produo racional de resduos.

    Em 1544 abriu-se o primeiro grande estabelecimento de pobres em Paris:

    vagabundos, dementes, doentes, todos aqueles que o grupo no integrou e deixoucomo sobras sero adotados sob o signo nascente do social. Este se expandir s

    dimenses da assistncia pblica no sculo 19, depois Segurana Social no

    sculo 20. medida que se refora a razo social, a coletividade toda que logo

    se torna residual e, portanto, com uma espiral mais, o social que se alarga.

    Quando a sobra atinge as dimenses da sociedade toda, tem-se uma socializao

    perfeita.10 Todo o mundo est perfeitamente excludo e adotado, perfeitamente

    desintegrado e socializado.

    A integrao simblica substituda pela integrao funcional,

    instituies funcionais se ocupam dos resduos da desintegrao simblica - uma

    instncia social aparece onde no existia e no havia nem mesmo nome para

    diz-la. Os contatos sociais se multiplicam, proliferam, se enriquecem

    proporcionalmente a esta desintegrao. E as cincias sociais vm coroar o

    conjunto. De onde o sabor de uma expresso como: a responsabilidade da

    sociedade em relao a seus membros deserdados, quando se sabe que o

    social, exatamente, s a instncia que resulta deste desamparo.

    De onde o interesse da rubrica Sociedade do Monte, em que

    lingstica. preciso portanto acrescentar a a residualidade do social na ordem...social.10 Vejam-se os Guaiaqui ou os Tupi-Guarani: quando um tal resduo aparece,

    drenado pelos lderes messinicos para o Atlntico, sob a forma de movimentosescatolgicos que purgam o grupo dos resduos sociais. No s o poder poltico(Clastres) mas o prprio,social conjurado como instnciadesintegrada/desintegrante.

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    paradoxalmente s aparecem os emigrados, os delinqentes, as mulheres, etc.:

    exatamente tudo o que no foi socializado, o caso social anlogo ao caso

    patolgico. Bolses para serem incorporados, segmentos que o social isola pouco

    a pouco em sua extenso. Designados como residuais no campo do social, por

    isso mesmo eles entram em sua jurisdio e so destinados a encontrar seu lugar

    numa socialidade ampliada. sobre essa sobra que a mquina social se lana e

    encontra apoio para uma nova ampliao. Mas o que acontece quando tudo est

    socializado? Ento a mquina pra, a dinmica se inverte, e o sistema social

    todo que se torna resduo. medida que o social em sua progresso elimina

    todos os resduos, ele prprio se torna residual. Ao colocar sob a rubricaSociedade as categorias residuais, o prprio social se designa como resto.

    Ora, o que se torna a racionalidade do social, do contrato e da ligao

    social, se esta, em vez de aparecer como estrutura original, aparece como resduo

    e gesto de resduos? Se o social s resto, no mais o lugar de um processo ou

    de uma histria positiva, s o lugar da acumulao e da gesto usurria da

    morte. No tem mais sentido, pois existe para outra coisa, e em desespero de

    outra coisa: excremencial. Sem perspectiva ideal. Porque o resto o nada

    ultrapassado, o que irreconcilivel na morte, e sobre ele s se pode fundar uma

    poltica da morte. Recluso ou excluso. O social inicialmente foi, sob o signo da

    razo positiva, o espao da grande Recluso tornou-se, sob o signo da

    simulao e da dissuaso, o espao da grande Excluso. Mas talvez j no seja

    mais um espao social.

    nessa perspectiva de gesto de resduos que o social pode aparecer hoje

    pelo que : um direito, uma necessidade, um servio, um puro e simples valor de

    uso. Nem mesmo mais uma estrutura conflitiva e poltica: uma estrutura de

    acolhimento. O limite do valor economista do social como valor de uso na

    verdade o valor ecologista do social como a