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85 Educação, Batatais, v. 5, n. 3, p. 85-98, 2015 Estátuas silenciosas – a memória e o patrimônio cultural que os estudantes soteropolitanos desconhecem Juliano Leví Santos MESSIAS 1 Luís Geraldo da SILVA 2 Resumo: Este artigo busca debater os aspectos fundamentais da desvalorização e desconhecimento do patrimônio histórico de Salvador. O foco de análise são as estátuas e monumentos do centro da cidade, por onde passam milhares de estudantes diariamente. Este relato de experiência agrega informações do cotidiano de sala de aula, entrevistas com estudantes e aulas de campo. Os estudantes do ensino médio dos colégios da rede pública estadual, especificamente os da região central do município, foram o público-alvo analisado no processo. Os princípios de valorização e aprendizado a partir do patrimônio histórico e artístico são os elementos-chave deste trabalho. Palavras-chave: Arte-educação. Educação Patrimonial. História de Salvador. Memória. 1 Juliano Leví Santos Messias. Especialista em História da Arte pelo Claretiano – Centro Universitário. Graduado em História pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: <juliano_levi@hotmail. com>. 2 Luís Geraldo da Silva. Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCAMP). Graduado em Matemática pela mesma instituição. Docente do Claretiano – Centro Universitário. E-mail: <[email protected]>.

Estátuas silenciosas – a memória e o patrimônio cultural que os … 85 Educao atatais v. 5 n. 3 p. 85-98 2015 Estátuas silenciosas – a memória e o patrimônio cultural que

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Estátuas silenciosas – a memória e o patrimônio cultural que os estudantes soteropolitanos desconhecem

Juliano Leví Santos MESSIAS1

Luís Geraldo da SILVA2

Resumo: Este artigo busca debater os aspectos fundamentais da desvalorização e desconhecimento do patrimônio histórico de Salvador. O foco de análise são as estátuas e monumentos do centro da cidade, por onde passam milhares de estudantes diariamente. Este relato de experiência agrega informações do cotidiano de sala de aula, entrevistas com estudantes e aulas de campo. Os estudantes do ensino médio dos colégios da rede pública estadual, especificamente os da região central do município, foram o público-alvo analisado no processo. Os princípios de valorização e aprendizado a partir do patrimônio histórico e artístico são os elementos-chave deste trabalho.

Palavras-chave: Arte-educação. Educação Patrimonial. História de Salvador. Memória.

1 Juliano Leví Santos Messias. Especialista em História da Arte pelo Claretiano – Centro Universitário. Graduado em História pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: <[email protected]>.2 Luís Geraldo da Silva. Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCAMP). Graduado em Matemática pela mesma instituição. Docente do Claretiano – Centro Universitário. E-mail: <[email protected]>.

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Silent statues - the memory and cultural patrimony which are unknown by students from Salvador

Juliano Leví Santos MESSIASLuís Geraldo da SILVA

Abstract: This article attempts to discuss the fundamental aspects about devaluation and unknown Salvador’s historical patrimony. The analysis focus are on the statues and monuments of downtown where thousands of students come and go daily. This experience report brings information about the classroom routine, interviews with students and field explanations. The target of this research was students from Public High Schools, mainly from the downtown. The appreciation ideas and learning from historic patrimony are the key elements presenting in the article.

Keywords: Art-education. Education Patrimonial. History of Salvador. Memory.

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1. INTRODUÇÃO

A cidade de Salvador, primeira capital do Brasil, é detentora de um patrimônio histórico de valor inestimável. Entendamos, destarte, como patrimônio, as “[...] maneiras de o ser humano existir, pensar e se expressar, bem como as manifestações simbólicas dos seus saberes, práticas artísticas e cerimoniais, sistema de valores e tradição” (PELEGRINI, 2006, p. 118). Desde suas primeiras construções, no início do período colonial, até as grandes edificações do período imperial, a cidade baiana expõe sua história e sua memória em cada esquina do seu centro histórico e por todo o território do município.

O Pelourinho, tombado como patrimônio cultural mundial pela UNESCO em 1985, os fortes e as inúmeras igrejas soteropolitanas atraem turistas de mais diversas regiões do planeta anualmente. De fato, é indiscutível o valor que esse patrimônio representa não só para a Bahia como para o país. Contudo, trabalhando com a educação pública, é possível perceber que os estudantes não estão familiarizados com essa memória farta e em profusão que a capital baiana disponibiliza ao olhar. Mais do que isso, além da falta de conhecimento sobre a história que esse patrimônio conta, parece haver um descaso e até negação da importância de se preservar elementos tão característicos da cultura local e nacional.

Diariamente, estudantes de colégios estaduais circulam pelas ruas do centro de Salvador e passam por locais de destaque patrimonial, como a Praça do Campo Grande, Praça da Piedade e Campo da Pólvora. Esses espaços públicos, muito além de locais de socialização, são pontos turísticos e possuem monumentos de grande conteúdo histórico e cultural, infelizmente ignorados pelos educandos que por ali circulam. Mesmo nas instituições particulares do bairro e entornos, apesar da existência de programas pedagógicos voltados para o tema, alguns estudantes também evidenciam essa situação. Não há questionamento do significado, surgimento do interesse genuíno de conhecer ou o simples ato de contemplação das belezas esculturais, urbanísticas e arquitetônicas ali presentes.

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O ponto mais notável é o fato de que este relato está sendo realizado sobre estudantes. Não se trata de pessoas, com uma rotina atribulada, estressante e sem disponibilidade de tempo para reflexão de temas tão enriquecedores. O MEC, no seu caderno 3 do Programa Nacional de Fortalecimento dos Conselhos Escolares (2004), afirma que o estudante é um indivíduo em formação, que frequenta a escola para construir sua identidade cultural e conhecer a memória do seu povo. De acordo com Le Goff (2003, p. 467), a memória é um elemento essencial daquilo que se costuma chamar identidade individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia. Dessa forma, a título de exemplo, a história viva presente no Monumento aos Heróis da Independência, localizada na Praça do Campo Grande, é silenciada pelo desinteresse e falta de informação dos alunos que passam, indo ou voltando de suas atividades escolares diárias.

De forma a discutir a questão de maneira aprofundada, é necessário considerar uma série de agentes determinantes. O currículo deveria ser construído de modo a contemplar esses aspectos. As aulas de campo, que levam os estudantes para diversas partes da cidade, precisam ser compreendidas como muito mais do que a possibilidade de respirar ares diferentes daqueles da escola. O papel dos professores deveria ser o de incentivador da produção de conhecimento crítico, significativo e contextualizado. Pais e familiares perpetuam o círculo vicioso, em grande parte por que lhes foram negados um ensino com essa dimensão, ou por refletirem uma rotina de atividades que não prioriza a cultura. E as políticas públicas de incentivo à cultura não abrangem o espaço urbano como válido nos projetos.

O distanciamento dos estudantes do histórico de lutas e conquistas que estão expressos nas estátuas e monumentos históricos é um sintoma de um conjunto de problemáticas que incluem a sociedade civil como um todo no tocante à situação atual do ensino público. Dessa maneira, fica evidente que o aluno desconhece o simbolismo do Caboclo e da Cabocla nos festejos de 2 de julho por acaso, ou por falta de iniciativa individual. Há, em suma, a reprodução no meio estudantil de uma disposição macro

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que a sociedade baiana revela para com o seu patrimônio material e imaterial. Salta aos olhos o fato de que a cidade de Salvador tem um potencial turístico não aproveitado também pelo tratamento dado a seu conjunto de atrações históricas, manifestações artísticas e culturais que são tão singulares. Assim, de acordo com Dowbor (2007, p. 76):

A ideia de educação para o desenvolvimento local está diretamente vinculada a essa compreensão e à necessidade de se formarem pessoas que amanhã possam participar de forma ativa das iniciativas capazes de transformar o seu entorno, de gerar dinâmicas construtivas.

2. DESENVOLVIMENTO

A partir do objetivo de gerar um debate acerca da problemática apresentada, com suas diversas causas, implicações e complexidades, a ideia de se trabalhar a memória e a história baseando-se no patrimônio material é o ponto essencial deste artigo. Trata-se de um relato de experiência que busca compreender a situação levando em conta a perspectiva de professores, estudantes, coordenadores pedagógicos, comunidade escolar e membros dos órgãos diretivos da educação.

A afirmação, a preservação e o resgate da memória de um povo são direitos fundamentais. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948, n.p.) afirma que “[...] toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do processo científico e de seus benefícios”. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (1998) demonstram os objetivos principais das relações de ensino-aprendizagem, que levem em conta a realidade socioeconômica dos estudantes, acompanhados de suas conexões com o espaço urbano e as mais variadas linguagens e símbolos que existem nas estátuas, praças, edifícios históricos e monumentos:

[...] conhecer características fundamentais do Brasil nas dimensões sociais, materiais e culturais como meio para construir progressivamente a noção de identidade nacional e pessoal e o sentimento de pertinência ao

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País; conhecer e valorizar a pluralidade do patrimônio sociocultural brasileiro, bem como aspectos socioculturais de outros povos e nações, posicionando-se contra qualquer discriminação baseada em diferenças culturais, de classe social, de crenças, de sexo, de etnia ou outras características individuais e sociais (BRASIL, 1998, p. 3).

A Lei de Diretrizes e Bases da educação nacional (Lei nº 9.394/1996) também dispõe sobre o tema, definindo que:

[...] a educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais [...], [referindo-se ademais à] [...] liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber (BRASIL, 1996, p. 1).

A apreensão e divulgação do conjunto de saberes coletivos regionais e nacionais são prioridade na formação dos estudantes em todos os níveis da educação. Ora, é visível que a postura teórica para a configuração de um ensino adequado nesse campo existe, a partir da análise da regulamentação educacional em todas as esferas.

A experiência prática é divergente da teoria. O calendário escolar é marcado pelo destaque e comemoração das datas culturais de maneira isolada. Dia do Índio, Dia da Consciência Negra e as datas cívicas servem para fantasiar as crianças e fazer cartazes com os adolescentes. Há um esvaziamento do significado mais profundo dos eventos. Mesmo as escolas que trabalham com projetos trimestrais pecam na realização de culminâncias e apresentações que são superficiais e pouco acrescentam no crescimento intelectual e cultural dos estudantes, finalizadas com dramatizações e espetáculos coreográficos que são logo esquecidos.

Como se trata de um relato de experiência, é possível estabelecer parâmetros anteriores de observação. De forma a tornar a análise mais precisa, o dia a dia dos estudantes de quatro colégios de grande porte no centro da cidade foram analisados ao longo de cinco anos letivos, que incluíram experiências de estágio e regência de sala como funcionário público concursado e visitas mais recentes.

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Entre os anos de 2008 e 2012, foi possível acompanhar o planejamento e a mobilização dos alunos das instituições supracitadas de forma a reconhecer os principais sintomas da problemática aqui discutida e a análise de modo a diagnosticar as suas respectivas causas e consequências.

Este relato de experiência está baseado em vivências que ocorreram entre os anos de 2008 e 2012, na cidade de Salvador, prioritariamente na região central do município, que possui grande quantidade de estátuas, praças e monumentos históricos de alto significado. O que despertou o questionamento que resultou neste relato foi a observação dos alunos de ensino fundamental e médio da rede pública na capital baiana.

A observação foi realizada por meio da vivência cotidiana das salas de aula, testes de sondagem, pesquisas e entrevistas. Nomeadamente, alunos de quatro colégios estaduais de grande porte localizados no centro da cidade, próximos a locais como a Praça do Campo Grande e Praça da Piedade.

A rotina de ensino de História nos colégios possibilitou diálogos iluminadores sobre o conhecimento que os alunos detinham sobre o patrimônio histórico soteropolitano. Havia relativa consciência dos nomes e até algumas datas que cercavam as principais esculturas daquela região da cidade; contudo, era o máximo que podia ser verificado. Os estudantes ouvidos não tinham o interesse desperto sobre essa questão. Ao longo dos anos letivos, ocorreram algumas excursões e passeios dirigidos pelas localidades que cercavam a escola, mas eram extremamente raros, não contavam com grande quantidade de alunos e eram pouco proveitosos no sentido de adquirir e dar significado aqueles novos conhecimentos.

Outro fator sintomático foi a maneira como o calendário cívico e cultural era materializado em ações, eventos e projetos dentro da escola. Datas como o 2 de julho, que marca a Independência da Bahia e o Dia da Consciência Negra, recebiam destaque e o colégio se mobilizava para decoração e concepção de atividades ligadas ao tema. Porém, tanto ao longo do processo de preparação quanto na culminância, era visível o esvaziamento de significado e do simbolismo dos acontecimentos, que eram frequentemente

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explicitados por somente apresentações de dança, dramatizações mecânicas e caracterizações dos estudantes de acordo com a respectiva data comemorativa. Ou seja, não fica evidente a construção de um conhecimento e de uma relação significativa entre os estudantes e as datas em questão. Eles não apreendem, não ressignificam e não é perceptível o estabelecimento de conexões com a realidade socioeconômica dos alunos, partindo das intervenções pedagógicas propostas.

Diante desse quadro, a análise dos currículos e dos planejamentos das disciplinas de História, Artes e Geografia foram uma necessidade natural do processo investigativo. E, de maneira não surpreendente, ficou notável que havia uma discrepância entre aquilo que era trabalhado nas salas de aula e a realidade que os alunos encontravam todos os dias nos seus bairros, pelas janelas dos ônibus e nos passeios públicos. Não só havia uma descontextualização dos conteúdos, como também não era observável a inserção de temas e conhecimentos aprofundados sobre o patrimônio local nas atividades de sala.

Em recente visita aos colégios em questão, foi possível verificar a situação atual do ensino nesse campo. A análise teve como principais instrumentos o Projeto Político-pedagógico das instituições (quando disponíveis para leitura, o que não se aplicou a um dos colégios, que alegou estar revisando o documento com a comunidade escolar), os planejamentos anuais e mensais dos professores de Artes e História e o calendário de eventos escolares disponibilizado pelas coordenações.

Nos dois primeiros colégios visitados, um no Corredor da Vitória, outro na Avenida Joana Angélica, este em fase de reformas estruturais, não ficou evidente nenhuma ação de valorização dos monumentos e patrimônio histórico municipal. No calendário, novamente, ações isoladas. A título de exemplo, a programação para o dia do Folclore no colégio do Corredor da Vitória incluía somente a presença de uma baiana do acarajé no pátio e alguns cartazes que estavam sendo confeccionados nas aulas de artes. No que se localiza na Avenida Joana Angélica, a professora de Artes estava

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de licença médica e o colégio estava aguardando um estagiário da Secretaria de Educação para a devida substituição.

No colégio que fica na região do Canela, é digno de destaque o fato de que a preocupação com o patrimônio histórico e cultural de Salvador estava presente nos planos dos professores e coordenação. Contudo, a iniciativa somente resultou num passeio com um ônibus de turismo pelo Centro Histórico da cidade, com a posterior aplicação de uma atividade, um roteiro dirigido, como método de avaliação. Já no colégio que fica na Mouraria, havia um projeto de valorização do espaço e do patrimônio histórico da escola. Por se tratar de um edifício antigo e com longa trajetória, estudantes universitários da Universidade Federal da Bahia, bolsistas de iniciação à docência, desenvolveram um plano de intervenção para que os alunos conhecessem e valorizassem mais os espaços físicos da instituição e sua importância histórica. Trata-se de uma iniciativa valiosa, entretanto sem contar com a ambição da direção pedagógica em expandir o projeto para incluir as áreas vizinhas ao colégio.

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) desenvolve projetos e estudos por meio do conceito de Educação Patrimonial, que, para o instituto, se resume em:

[...] todos os processos educativos que primem pela construção coletiva do conhecimento, pela dialogicidade entre os agentes sociais e pela participação efetiva das comunidades detentoras das referências culturais onde convivem noções de patrimônio cultural diversas (BRASIL, s.d., n.p.).

Neles, o problema aqui discutido é um dos pontos centrais de debates e produção acadêmica. Diante da dimensão e da importância dos atores envolvidos nesse processo de edificação dessa abordagem de ensino, é possível conceber que a situação de Salvador não é um exemplo ímpar no cenário nacional. Cidades de diversas partes do país ressentem-dr de terem suas estátuas silenciadas pelo descaso e desvalorização do patrimônio histórico-cultural.

Este artigo se justifica por uma série de razões que residem tanto no campo teórico quanto prático. Numa análise mais

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aprofundada, é possível notar que, no que se refere ao problema do desconhecimento dos estudantes da rede pública regular sobre o patrimônio histórico de Salvador, a teoria está muito distante e desconexa da realidade. Aquilo que é produzido, por exemplo no IPHAN, inserido na temática da educação patrimonial, não tem sido aproveitado de forma evidente fora dos círculos acadêmicos, com a perspectiva de transformar o conhecimento em ação educacional interventiva.

Uma breve análise da bibliografia existente sobre a educação patrimonial no Brasil possibilita a percepção de que existe riqueza de material nesse campo. Grandes universidades do país incluem linhas de pesquisa, pós-graduação e mestrado desse tema nos seus programas. Ou seja, há um consenso no meio acadêmico sobre o grau de importância de se trabalhar a riqueza cultural do nosso país e o legado que ele deve constituir para a nação e, por consequência, para Salvador. Não se trata, de forma alguma, de um caminho inexplorado, mas, sim, de uma situação que, notável também em outros campos do conhecimento, evidencia o distanciamento existente entre a universidade e a realidade cotidiana.

De forma a ilustrar quantitativamente a justificativa anterior, entre 2005 e 2014, o IPHAN, oficialmente, publicou mais de 14 livros sobre o tema Educação Patrimonial. Dentre eles, estão guias pedagógicos, como o volume “Educação Patrimonial: orientações ao professor” e o livro “Patrimônio cultural: diálogos entre a arte e a educação”. Estes e tantos outros estão disponíveis integralmente no site da instituição para download. Neste contexto, nem foram levadas em consideração as incontáveis publicações em parceria ou frutos de convênios entre o IPHAN e as universidades públicas do país, o que faria os números crescerem exponencialmente.

A disponibilidade fácil e significativa de material que lança luz sobre o problema expõe outra face da questão: as escolas e os professores desconhecem, ignoram ou desvalorizam um conteúdo tão rico a ponto de não serem lidos e utilizados como apoio pedagógico no dia a dia dos colégios. Trabalhar a história da arte numa cidade como Salvador sem levar em conta o grandioso patrimônio histórico que a cidade apresenta é uma temeridade.

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Ou seja, parte da responsabilidade no distanciamento entre o conhecimento acadêmico e a realidade cotidiana que está nas mãos daqueles que dirigem a educação pública soteropolitana. Nesse quesito, professores, coordenadores, diretores e membros dos órgãos públicos diretivos configuram uma teia de relações cuja resultante é um ensino público de pouca qualidade e que desconsidera a realidade dos estudantes na condução do currículo e das relações de ensino-aprendizagem.

É possível observar, também, que não existem grandes projetos de políticas públicas voltados para o tema. A despeito da gratuidade e meias-entradas existentes para estudantes em eventos culturais, museus, cinemas e casas de show, muito pouco tem sido feito nesse aspecto.

Os fatores já apresentados, numa perspectiva mais ampla, logicamente influenciam questões mais específicas. Existem trabalhos científicos sobre a educação patrimonial, mas não são aproveitados no dia a dia das escolas. Dessa forma, verifica-se o aspecto mais sintomático do problema: os estudantes da rede pública de ensino de Salvador conhecem pouco ou desconhecem totalmente as histórias por trás do patrimônio histórico da sua cidade, principalmente o patrimônio material. Estátuas e monumentos públicos extremamente significativos são sumariamente ignorados pelos alunos, que têm oportunidade de vê-los quase que diariamente.

3. CONCLUSÃO

O pleno conhecimento dos símbolos da capital baiana é de responsabilidade de seu povo, e seu legado cultural deve ser transmitido à juventude, que, assim, vai perpetuá-lo. Um povo que não se apropria de sua história permite que outros a reescrevam de acordo com os mais diversos interesses. Iniciativas simples, como a inclusão no currículo de estudos sobre a realidade local, a realização de projetos de valorização do patrimônio com durações maiores que somente um trimestre e a ampliação do número de aulas de campo no espaço urbano municipal, já despertariam interesse maior dos estudantes.

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Em suma, este relato de experiência serve para expor, por meio de entrevistas com estudantes de ensino fundamental e médio da rede pública de ensino, análises de currículo dos colégios da região analisada, caracterização qualitativa da bibliografia existente sobre o tema e as próprias vivências, que as estátuas de Salvador, tão ricas em significado e possuidoras de trajetórias históricas impressionantes, estão sendo sumariamente silenciadas. Essas histórias não são ouvidas, não conhecidas, não são admiradas pela juventude estudantil que as vê todos os dias.

Dessa forma, é possível sintetizar as justificativas deste artigo numa lista, que parte das situações mais amplas para as mais específicas: existe rica produção teórica e oficial do IPHAN e outras instituições reconhecidas sobre o tema educação patrimonial; esta não encontra conexões com o cotidiano das escolas, nos currículos e políticas públicas de incentivo à cultura; a cidade é histórica e bastante rica nas suas manifestações culturais e, infelizmente, os alunos da rede pública de ensino não têm sido incentivados ou valorizados de forma a realizar uma leitura simbólica das estátuas e monumentos que são vistos com bastante frequência.

Em última instância, a análise da bibliografia sobre o tema, principalmente naquela produzida pelo IPHAN, demonstrou que há uma disparidade gritante entre estas duas esferas: a prática e a teórica. O material lido possui bastante qualidade pedagógica, é completo e contextualizado, mas carece de políticas públicas de distribuição, aproximação das escolas e formação continuada de professores.

REFERÊNCIAS

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