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Suplemento Científico Outubro de 2004 14 A SUBJETIVAÇÃO SINTOMÁTICA DA MULHER SHEIVA C.N.ROCHA* A- Sobre a histeria Estou certa que nesse Congresso de Psicopatologia Fundamental será abordado por diversos autores, isso que se tornou uma observação usual para os profissionais da área, ou seja, a plasticidade dos sintomas e de seus significados. Mudam conforme mudam as épocas. Nem sempre se pensou assim. Vejamos o caso da histeria. A histeria desde os gregos é associada ás mulheres. Hipócrates, cuja concepção dominou toda a antiguidade até o inicio da idade moderna, considerava a histeria como uma doença de mulheres por ser o resultado do deslocamento do útero do seu lugar natural e sua inserção no sistema nervoso. Deslocamento produzido pelo desejo de ter um filho ou por anseios eróticos.Por isso mesmo nunca podia ser masculina.(5) Embora Freud não tenha sido o primeiro a observar que havia histeria masculina, nem por isso deixou de ser ridicularizado. Afinal o próprio nome histeria vem de útero em grego.(7) O que caracterizava essa concepção era a íntima conexão entre o desejo de gerar e a histeria.O que dava identidade á mulher era o ter filho.Ela existia para gerar. Essa concepção só começa a ruir no século XVII pelos novos estudos anatômicos sobre a diferença sexual, quando aos poucos os médicos começam a atribuir ao sistema nervoso e não mais ao útero a origem da histeria, que, entretanto continuava sendo uma doença feminina. Ou seja, levaram o útero de volta para seu lugar anatômico e o sistema nervoso passou a ser o responsável. A originalidade de Freud foi retirar a histeria do campo do sistema nervoso e lançá-la para o psiquismo, agora gerido pela sexualidade.Num tempo cuja norma era o silêncio Freud, criou um espaço e uma escuta para que a histérica pudesse falar seu sexo. Obviamente essas mudanças na ciência acompanharam as mudanças sociais. Uma revolução, a Revolução Francesa (1789), embora com resultados práticos de curta duração povoa a imaginação dos povos ainda hoje. O seu lema – Liberdade, Igualdade e Fraternidade-, continua a produzir seus efeitos. Efeitos de uma utopia sempre buscada. Ou seja, ao lado do avanço primeiro da anatomia e mais tarde da biologia, com os hormônios, os cromossomos, etc, ficou insofismável a existência de dois sexos-masculino e feminino. O que hoje é mais do que óbvio, nem sempre o foi. Desde a antiguidade até o final do século dezessete, se acreditava na existência de um só sexo. O masculino.(5) A diferença estava nos humores, quente nos homens e frio nas mulheres. A homologia dos genitais permitiria, dependendo dos humores, a uma mulher se transformar em um homem. Simplesmente o que era interno se tornava externo. Havia assim uma hierarquia. O masculino era o perfeito e o feminino imperfeito. Essa “diferença” de constituição biológica justificava a diferença social. Os homens superiores e as mulheres inferiores. -------------------------------------------- *Psicanalista. Presidente da Associação Psicanalítica do Estado do Rio de Janeiro - Rio 4

A Subjetivacao Sintomatica Da Mulher

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  • Suplemento Cientfico Outubro de 2004 14

    A SUBJETIVAO SINTOMTICA DA MULHER

    SHEIVA C.N.ROCHA*

    A- Sobre a histeria

    Estou certa que nesse Congresso de Psicopatologia Fundamental ser abordado por diversos autores, isso que se tornou uma observao usual para os profissionais da rea, ou seja, a plasticidade dos sintomas e de seus significados. Mudam conforme mudam as pocas.

    Nem sempre se pensou assim. Vejamos o caso da histeria. A histeria desde os gregos associada s mulheres. Hipcrates, cuja concepo dominou toda a antiguidade at o inicio da idade moderna, considerava a histeria como uma doena de mulheres por ser o resultado do deslocamento do tero do seu lugar natural e sua insero no sistema nervoso.

    Deslocamento produzido pelo desejo de ter um filho ou por anseios erticos.Por isso mesmo nunca podia ser masculina.(5) Embora Freud no tenha sido o primeiro a observar que havia histeria masculina, nem por isso deixou de ser ridicularizado. Afinal o prprio nome histeria vem de tero em grego.(7)

    O que caracterizava essa concepo era a ntima conexo entre o desejo de gerar e a histeria.O que dava identidade mulher era o ter filho.Ela existia para gerar. Essa concepo s comea a ruir no sculo XVII pelos novos estudos anatmicos sobre a diferena sexual, quando aos poucos os mdicos comeam a atribuir ao sistema nervoso e no mais ao tero a origem da histeria, que, entretanto continuava sendo uma doena feminina.

    Ou seja, levaram o tero de volta para seu lugar anatmico e o sistema nervoso passou a ser o responsvel. A originalidade de Freud foi retirar a histeria do campo do sistema nervoso e lan-la para o psiquismo, agora gerido pela sexualidade.Num tempo cuja norma era o silncio Freud, criou um espao e uma escuta para que a histrica pudesse falar seu sexo.

    Obviamente essas mudanas na cincia acompanharam as mudanas sociais. Uma revoluo, a Revoluo Francesa (1789), embora com resultados prticos de curta durao povoa a imaginao dos povos ainda hoje. O seu lema Liberdade, Igualdade e Fraternidade-, continua a produzir seus efeitos. Efeitos de uma utopia sempre buscada.

    Ou seja, ao lado do avano primeiro da anatomia e mais tarde da biologia, com os hormnios, os cromossomos, etc, ficou insofismvel a existncia de dois sexos-masculino e feminino.

    O que hoje mais do que bvio, nem sempre o foi. Desde a antiguidade at o final do sculo dezessete, se acreditava na existncia de um s sexo. O masculino.(5) A diferena estava nos humores, quente nos homens e frio nas mulheres. A homologia dos genitais permitiria, dependendo dos humores, a uma mulher se transformar em um homem. Simplesmente o que era interno se tornava externo.

    Havia assim uma hierarquia. O masculino era o perfeito e o feminino imperfeito. Essa diferena de constituio biolgica justificava a diferena social. Os homens superiores e as mulheres inferiores.

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    *Psicanalista. Presidente da Associao Psicanaltica do Estado do Rio de Janeiro - Rio 4

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    A partir da Revoluo Francesa e sua reivindicao da igualdade de todos perante a lei, como manter a hierarquia? Como j dissemos foi uma Utopia que continuamos lutando para alcanar. Uma outra revoluo social, certamente a mais importante do sculo XX, veio chacoalhar ainda mais postulados to antigos.

    Foi a revoluo Feminina em pleno andamento, que tambm recebeu uma ajuda decisiva da cincia. A inveno da plula anticoncepcional libertou a mulher do que seria seu destino nico. A maternidade. A mulher agora pode ter vida sexual com prazer, sem o fantasma de uma gravidez indesejada.

    Ultimamente a Cincia veio em socorro tambm do sexo masculino com a inveno da plula da ereo. Libertou o homem do fantasma da impotncia sexual. Uma revoluo talvez no to grandiosa como a feminina. Todos essa transformaes nos jogaram no mundo ps-moderno.

    B- Ps-Modernidade

    Vivemos uma poca que muitos chamam de ps-modernidade, que tem caractersticas diversas da Viena do fim do sculo XIX. Uma poca de transformaes aceleradas, distante do psiquismo humano que lento na elaborao das suas questes, dos seus conflitos.

    As prticas sexuais cada vez mais precoces exigem dos adolescentes atitudes para as quais no esto ainda preparados. Essa pr-maturao entra em conflito com o lugar dado ao amor e a sexualidade genital levando-os a uma banalizao e conseqente decepo com as prticas sexuais. Tudo descartvel.

    A era do consumo capitalista leva a um esquecimento da dor, da falta e do sofrimento.Uma recusa da subjetividade atravs da cincia e da tecnologia. a cultura do espetculo, da exaltao do hedonismo, do status, do narcisismo. poca da fora da imagem. O fast-food cultural no qual vivemos, com as informaes nos alcanando instantaneamente, no nos d possibilidade de assimilao.

    Capacidade de pensar. Pensar inclusive nas foras invisveis e coercitivas por trs da produo do imaginrio. (Bourdieu, 1997)(4). No havendo elaborao psquica, o sintoma se manifesta no corpo e no nas vias da imaginao. As pessoas no tem tempo para imaginar, devanear, fantasiar. Talvez a nossa cultura atual, nem busque mais esse tipo de atividade. Espera-se um agir. A medicao entra como uma resposta rpida e direta, produzindo um alvio imediato. No importa se desaparece a singularidade. Busca-se o novo pelo novo, como se o novo fosse sempre melhor. H uma dificuldade de se estabelecer vnculos afetivos e de se construir historia numa sociedade que exalta a fluidez e a substituio das relaes. H um declnio da figura paterna, da lei.

    Atualmente, h uma tendncia ao sobre investimento narcsico das crianas pelos pais, um enfraquecimento das proibies e das diferenas entre os sexos e as geraes, que tem por efeito tornar os limites mais fluidos e aumentar as relaes de similaridade e os efeitos de espelho. (Jeammet,)(11). Na ps-modernidade o relaxamento na represso imposta pelos costumes leva a um apagamento das diferenas entre homem e mulher. O desconforto provm da constatao de que a aproximao entre estes campos produz mais intolerncia do que dilogo. Muito mais rivalidade do que desejo. O narcisismo tolera mal a convivncia com o diferente. (M.R. Kehl)(10) Essas mudanas culturais deslocaram o eixo da ordem repressiva do tempo de Freud para a do consumo da transgresso dos nossos dias. O sintoma relativo a sua poca. A Histeria fruto da represso sexual. A anorexia fala do gozo do consumo.

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    Na contemporaneidade, essas manifestaes psicopatolgicas aparecem associadas ao ideal e ao corpo perfeitos, sem falhas, que as modelos procuram mostrar.Nos dias atuais a anorexia e a bulimia so sintomas culturalmente sintnicos. Adaptado ao ideal esttico. So questes que ultrapassam a singularidade, j que um sintoma disseminado do gozo. Dessa forma, nas ltimas dcadas a clinica psicanaltica tem se estendido a tipos de sofrimento diferentes aos da clinica clssica.

    Na cultura ps-moderna, em que os valores de profundidade e interioridade vem perdendo espao, tendendo a ser substitudos por valores referidos a superfcie e exterioridade. O consumo exacerbado que no respeita limites, nem direitos e nem regulamentao, levam os sujeitos a uma retrao narcsica secundaria. A presso cultural para emagrecer, a preocupao excessiva com o corpo atraente compromete a percepo da auto imagem, estando sempre aqum do modelo. Vivendo entre o real e o ficcional. O corpo magro virou smbolo de poder e autocontrole.( Fucks )(8)

    C- Bulimia

    Entende-se por Bulimia a ingesto alimentar desenfreada, sem limite, paroxstica e desordenada. O movimento tpico o chamado ataque geladeira, em que o consumo de alimentos indiscriminado. No importa se um alimento que se come quente ou frio. No importa se doce ou salgado. um movimento compulsivo e selvagem, ou seja, no segue as normas da civilizao. um consumo mais prximo da Natureza. No importa se cru ou cozido. Um verdadeiro festim manaco.

    No s esse o aspecto instintivo, ou melhor, dizendo pulsional. No se procura o prazer, a satisfao do apetite, mas sim, o preenchimento de um vazio. Por isso a necessidade de enormes quantidades.O alimento no a apazigua. Busca-se um gozo pleno, total. A Bulimia a passagem ao ato em que no final ao invs do prazer sobrevm a vergonha. Por um mecanismo de clivagem e dissociao ele procura observar a si mesmo embora com um sentimento de estranhamento. Essa passagem ao ato se constitui em recurso quase exclusivo para resoluo de conflitos intrapsquicos. Esse comportamento procura substituir a elaborao psquica, no alcanada.

    A relao das fantasias com os sintomas no simples, mas mltipla e complexa, dizia Freud (1908)(7). A relao das fantasias com o ato, mais complexas ainda. Assim, difcil atribuir unicamente ao contedo significativo a passagem de um trabalho de deslocamento de representaes a uma conduta de ao.

    No Projeto (1895)(7), Freud diz que na neurose de angustia h uma ausncia ou insuficincia de descarga da tenso, enquanto na neurastenia a descarga inadequada. A descarga inadequada empobrece a atividade psquica, privando-a da energia de origem somtica que no est ligada as representaes.Prevalece a quantidade sobre a qualidade em virtude de esta estar impedida pelas defesas. No h recalque, mas recusa, como nas perverses.

    Freud escreve pouco sobre a bulimia. Seguindo as idias propostas no Projeto de 1895, haveria um quantum de angustia livremente flutuante que estaria sempre pronto a se ligar a qualquer contedo representativo adequado. Um acesso de angustia rudimentar. Isso representaria a bulimia.

    Freud como bom evolucionista sugere que haveria um momento primeiro em que a organizao oral engloba tanto a ingesto de alimentos como uma atividade sexual. Entretanto cedo o desejo se separa da necessidade. O objetivo sexual a reside na incorporao do objeto, prottipo do que acontecer mais tarde como identificao. O bulmico ao comer desbragadamente, busca esse estgio inicial da fuso do alimento com a satisfao sexual. Algo j perdido, mas que na sua nsia de encontrar esse objeto, mesmo assim,

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    come como um animal. Por no elaborar a perda do objeto, no simboliza, no pensa. Da a expresso comer como um animal.

    Diferentemente dos psicopatas que tambm tm na atuao o seu modo principal de lidar com os conflitos intrapsquicos, o bulimico no ataca o social, mas sim o prprio corpo. Na verdade, como diz Winnicott, um retraimento anti-social que busca refazer um ambiente emocional primrio e j perdido. Como na anorexia, temos a questo da perda de objeto com a tentativa de recuperao e de triunfo sobre ele, que representaria a recusa onipotente da dependncia e da depresso.

    O sono e o vmito alm das significaes psicolgicas, evitam a obesidade e dispensa o aparelho digestivo do seu trabalho. Recriam, entretanto a necessidade e o retorno ao ato de se alimentar. Essa periodicidade, essa compulso a repetio produz o sentimento de estar entregue a foras superiores, que o subjuga, mas que tendem a livr-lo de si mesmo. Muitas vezes a bulimia acompanhada ou seguida de toxicomanias medicamentosas, alcoolismo e prticas delinqentes. Nem todas as bulimias esto associadas a vmitos.Quando ele est presente o prognstico pior.

    O aumento da freqncia dos casos de bulimia e a sua predominncia nas mulheres jovens, no fim da adolescncia que pertencem extratos sociais mais elevados leva a se pensar em aspectos sociais que sero abordados mais tarde. Tende-se a valorizar, cada vez mais os vnculos familiares. Em geral so famlias com confuso de limites geracionais e entre seus membros. Mes que no puderam assegurar a modulao da iluso primitiva, ansiosas demais ou ausentes.

    A dificuldade de se constituir um ideal de eu e um projeto identificatrio ligado a realidade, favorece a persistncia de formaes super egoicas mais restritivas frente as quais a crise bulmica uma escapatria. A adio bulmica leva abolio transitria do tempo como lugar do imaginrio e do desejo e conseqentemente das contradies, das proibies. O sentimento de liberdade seguido pelo de sujeio, de escravido. A repetio das crises empobrece a vida de relao, a vida afetiva e imaginria.

    O ato bulmico, ato de descarga resulta da falta de elaborao psquica, de simbolizao. Revela por sua repetio um tipo de recusa de alcanar o sentido, sendo resultado de uma operao defensiva que localiza e condensa os conflitos intrapsquicos e os dirige para a descarga.

    O fracasso na elaborao de sintomas por simbolizao ou pela formao de compromisso, revela a fragilidade dos contra investimentos e do recalcamento secundrio. O afeto predomina sobre as representaes levando-as ao desaparecimento. Ou seja, predomina o calor sobre a luz. Desaparecem em graus diversos as imagens tanto positivas quanto negativas que so as produtoras do apetite e da averso.

    A instalao de crises bulmicas na puberdade atualizam o complexo de dipo e as fixaes pr-genitais impondo novos arranjos pulsionais defensivos. Ora, isso coloca em questo novamente os resultados da relao de apoio tambm chamada relao anacltica e o recalcamento que asseguram a autonomia relativa do ato da alimentao em relao a sexualidade.

    Em termos de desenvolvimento libidinal a emergncia de um registro sexual arcaico mostra a regresso e a fixao pulsional no nvel pr genital da neurose, tendo como conseqncia as diversas dimenses da oralidade atiadas, por exemplo, a avidez, a impacincia, a urgncia de satisfao, a perda da diferenciao na fuso com o objeto e sua destruio atravs da apropriao.

    A analidade se manifesta atravs da fecalizao dos alimentos e at do prprio corpo visto como lixeira. A falta de higiene o fascnio pela sujeira, a averso e a vergonha assim como vmitos. Na adolescncia as contradies entre os conflitos arcaicos e a sexualidade genital, que se torna possvel, comprometem a integrao psquica.

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    A adio bulmica encobre a problemtica feminina do dipo, assim como da castrao, da inveja, das fantasias de penetrao, da passividade e da receptividade. Para alguns autores, Bergeret(11), por exemplo, no existe uma estrutura especfica para o comportamento de adio.A adio seria uma tentativa de defesa contra as deficincias ou falhas de estruturas psquicas profundas. H uma alternncia entre avidez e repulsa pelos alimentos, uma oscilao entre tudo ou nada. Como h uma fragmentao dos limites do self torna-se difcil gerir as distancias relacionais.

    Diferentemente das outras adies, h uma grande produo de fantasias.Existe, portanto a capacidade de representao.Apresenta, porm caractersticas particulares. Alm de sua crueza, apresenta uma significao muito clara com os contedos latentes e manifestos se tornado um s. As fantasias vm em borbotes, no derivadas de uma livre associao, mas como uma compulso representativa que funciona como defesa ao perigo.

    H uma apetncia objetal. Assim o investimento macio. Por isso mesmo intenso e frgil. a eterna busca de um objeto a ser consumido ou sobre o qual se apoiar (anacliticamente ). No havendo elaborao, a menor rejeio ou mesmo a percepo de uma possvel rejeio leva a uma fuga, a um retraimento artstico ou mesmo indiferena.

    A fragilidade narcsica da bulmicas encontra-se tanto nas caractersticas de sua forma de se relacionar quanto no olhar que lanam sobre si mesma e em suas relaes com sua prpria imagem.Essa intensidade de investimento no se deve somente aos parmetros pulsionais e libidinais, resultado tambm das internalizaes insuficientes e da fragilidade dos processos de diferenciao, permanncia da bissexualidade, m diferenciao do super ego e do ideal do eu que continuam impregnados de elementos arcaicos.

    A autoestima est grandemente apoiada em objetos externos, resultando em um ataque ao seu interior, gerando uma sensao de vazio, de insignificncia. Tudo isso reflete as dificuldades de suas relaes parentais. A aparente proximidade com o pai no mais que um afastamento da me. No uma relao autnoma, diferenciada com o pai, como terceiro estruturante.

    Essa negao do pai, leva a uma relao sedutora com outros membros masculinos da famlia. A relao com a me marcada por decepes precoces que por sua intensidade, fogem a elaborao tornando-se traumticas e levando a procurar objetos externos de investimento.

    D- Escola Inglesa e Escola Francesa

    Podemos examinar os distrbios alimentares a partir de Freud fazendo um corte epistemolgico entre, dois paradigmas diferentes, um o parmetro evolutivo onde encontramos os seguidores da Escola Inglesa e Winnicott com as relaes objetais e o outro, o parmetro estruturalista, da Escola Francesa com a dialtica do narcisismo, onde a falta do simblico mediada pelo corpo.

    Dependendo dos autores, os conflitos referentes a anorexia e bulimia detm-se na teoria das pulses, nas relaes objetais ou na formao da identidade sexual e do processo de simbolizao. Enfatizando na sua psicodinmica, os conflitos pulsionais ou as deficincias egoicas.

    Em Freud h uma nfase na regresso oralidade, como sede do conflito entre a pulso nutritiva e a pulso sexual a simbolizada. A falta de integrao das pulses sexuais em uma genitalidade. Para o estabelecimento da prova de realidade, necessrio que o objeto perdido tenha antes trazido uma satisfao real. Isso o que permite a atividade de pensar. Por no ter podido simbolizar de uma maneira suficiente essa perda, os bulimicos parecem tomar o caminho da satisfao alucinatria, continuando regido pelo princpio do prazer-desprazer. Ainda nos modelos de articulao mentecorpo da histeria, temos Lasgue (1893) que considera a anorexia, no grupo das histerias pela contradio entre a perda de peso e o bem estar; orgulho relatado.

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    Alguns autores falam da interdio da fantasia incestuosa com o pai e o deslocamento do desejo sexual para a boca, atravs de uma regresso defensiva.H na anorexia e na bulimia, uma fixao no substituvel do objeto primrio- a me. A partir da fuso primria, o objeto interno que no foi bem instalado torna-se persecutrio. O objeto possudo, confundido consigo na fuso primria, mas simultaneamente destrudo pela incorporao canibalesca, secundariamente fecalizado e violentamente expulso pelo vmito.

    Na incorporao canibalesca, o corpo da menina vivido como mau e a inanio seria uma tentativa de matar esse objeto intrusivo (Silvini Palazzoli-1978)(11), ou como um inimigo pela identificao com o objeto primrio(Boris-1984)(11). Vomita-se para que o objeto no faa mau ao corpo, ao vomitar mata-se os objetos persecutrios ou os coloca para fora. Comer, pode significar a separao da me que alimenta, quebrando a fantasia de completa unio com a me. A inveja primria de um objeto bom fora da menina, determinaria essa relao objetal (Moll-1998)(11).

    Para Marlilyn Lawrence,(11) a inveja alimenta o desejo de fuso e a resistncia a receber, enquanto a agresso contra a imagem do corpo da me exteriorizada por meio da inanio auto-infligida. H uma concretude, a comida no representa a me ela a prpria me. No espao que intermdia a relao com a me, no h smbolos nem palavras. Logo no tem o terceiro que demoliria a fantasia de fuso. Esses pacientes teriam sofrido intruso fsica, psquica, ou ambas.

    A invaso psquica quando a me usa a criana como receptculo de projees. A autora faz um correlato entre a feminilidade e a angustia de intruso. H um terror de solido e aniquilamento psquico. Existe uma multiplicao de operaes defensivas que procuram evitar o conflito intrapsquico pela expulso dos contedos mentais, da os mecanismos, freqentemente lbeis de identificao projetiva. A menina se mantm na posio esquizo-paranoide, com defesa manaca contra a dor depressiva da situao edpica.

    Numa tentativa de controle dos objetos internalizados principalmente o par sexual representado pelas imagos parentais, atravs do controle dos alimentos. Para M.Lawrence(11) as pacientes bulimicas mantm um intenso interesse sobre os objetos, mesmo tentando nega-los; tem conscincia de sua necessidade, logo, h um movimento em direo vida, enquanto a anoretica tem em direo morte. A anoretica tenta matar uma parte vivida de si mesmo, representada pelo par sexual, eliminando em si toda a necessidade. Instala internamente uma situao difusa, sem sentido de unidade com um objeto sem trao caracterstico, uma paisagem estril.

    Para Birksted Breen,(11) a menina mantm a iluso de constituir um casal com a me, logo o pai vivido como um intruso. H um desejo e um temor por tal fuso. A falha na simbolizao devido a impossibilidade de configurao de um espao interno triangular. Para Glen Gabbard,(11) haveria uma tentativa da menina em ser nica e especial, ser tudo ou ser nada. Atacando ao self, tenta se adaptar aos desejos dos pais e com isso, nunca ser abandonada. Esse papel provoca muito ressentimento, sendo a anorexia uma forma de revolta, buscando no nascimento de seu self, uma defesa contra a voracidade e desejo e um ataque a introjeo materna hostil, vista como equivalente do corpo.

    A escola francesa, baseado na dialtica do narcisismo, atravs da lgica repressiva, tentam uma vinculao entre o narcisismo e as sndromes dos transtornos alimentares. As patologias narcsicas so patologias que se fundam na falta ou no excesso (invaso) da contribuio do inconsciente materno A anoretica sofre no desamparo que ela se esfora em negar. Tenta negar sob o modo auto-ertico a dependncia e o apego ao objeto primrio e deles se apropriar, pois essa perda inaceitvel, e seu luto, impossvel, em razo da falha da organizao narcsica (Catherine Couvreur)(11). H uma falta de constituio do objeto interno e uma indistino de zonas ergenas. A problemtica do vazio corporal que o preenchimento frentico procura ocultar, utilizando-se de modalidades arcaicas do gozo. Nessas pacientes a recusa e a clivagem esto freqentemente em ao, recusa a realidade da perda da me pr-edipica, clivagem perversa no nvel do corpo, com o investimento da coisa alimentar. No h uma negao da angstia de castrao e sim a recusa, formando o fetiche. O outro reduzido ao

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    fetiche, a presena de um objeto externo que assegura a do objeto interno mesmo como substituto.

    Para Bernard Brusset(6), na bulimia se estabelece num processo defensivo, pelo qual o desejo, descrevendo um trajeto inverso ao do apoio, faz passar pela necessidade. Logo se tem maior urgncia da necessidade de descarga efetiva; da a necessidade de se libertar dela na busca do controle, da onipotncia, da auto suficincia, resultando na busca do self objeto ideal. Essa passagem ao ato ,traz um empobrecimento mental e uma falncia narcsica, com compulso repetio ,ao modo de uma toxicomania sem droga.

    O auto-erotismo em sua meta de libertao em relao ao objeto fracassa e ,nessa mesma lgica da auto-suficincia e do desejo de no desejo, o investimento da no satisfao, como se esta acontecesse, virtualiza o gozo e assegura a permanncia de sua possibilidade de renncia sua atuao na realidade externa. Esse dispositivo fortemente reforado pelo investimento narcsico e pela busca de potncia da renuncia e da recusa.(Bernard Brusset)(6)

    Segundo P.Fedida, A compulso bulmica se entende segundo essa bipolaridade de uma falta interior que deve ser preenchida e de uma representao de desejo que deve ser anuladaLacan no seminrio IV fala que a possibilidade do sujeito de elaborar a sua subjetividade tem haver com as experincias fundamentais de ruptura e de falta, tais como a separao do nascimento ,o desmame ,o afastamento da me e a castrao.

    A castrao envolve ambas as figuras parentais, existe uma anterioridade,que seria a castrao materna, com o desmame primitivo, quando a criana se liberta da forte interao com a onipotncia materna e a castrao paterna, em que o pai real assume o papel de pai castrador, como elemento mediador essencial ao mundo simblico e sua estruturao. Quando o pai deficiente de seu lugar, trazendo sinais de ausncia de desejo isso dificulta o processo de identificao da menina e separao da me. Frente ao aprisionamento fusional a sada ela devorar. A anoretica fica sem sada ,pois ao atingir o corpo ideal corresponderia a um padro, que ao mesmo tempo dominada pelo componente narcisico, ao mesmo identifica e a faz perder sua identidade subjetiva. A anortica no alcana o corpo de prazer. O prazer fracassa em cumprir sua funo de limite do gozo. (Daisy Justus)(9). O que faz barreira ao gozo o desejo. Sem a barreira,ele no cessa de se inscrever, no produz nada a no ser a destruio.

    E- Concluso

    Revimos as vrias interpretaes psicanalticas sobre esses sintomas, que seguindo os ditames do nosso tempo se do no real do corpo provocando ou orgulho ou vergonha. As interpretaes so originarias de dois parmetros principais no campo psicanalitico. A viso estruturalista francesa e a viso gentica/evolucionista da escola inglesa. Ambas as vises oriundas da leitura do texto freudiano tendo em comum a falha de uma elaborao psquica no alcanada , de um curto-circuito no simblico favorecendo a via da descarga e da ao.

    Esse um texto em que vemos como o sintoma da bulimia e da anorexia tem vrias interpretaes expressando tambm o que poderamos chamar de bulimia terica.O poder e o autocontrole sobre o corpo podem ser interpretados como um ideal da cultura, desejo de autonomia e auto suficincia que to caro cultura americana e por conseqncia nossa. H um deslocamento do registro psquico para o registro corporal. A anorexia faz um barramento ao outro ao mesmo tempo que submetida a cultura esttica.Existe um enorme preconceito com o gordo e um valor dado ao magro, valorizando o auto-controle sobre o corpo. um valor engendrado pelo individualismo.

    Nesse trabalho a pretenso foi rastrear os aspectos culturais que fazem parte da construo dos sintomas (series complementares do Freud), enfatizando a grande mudana da modernidade para a atualidade.

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    Focalizamos os efeitos psquicos do regime capitalista contemporneo,onde se exacerba o gozo do consumo, a supremacia do sempre novo e tambm do mais novo sobre o j conhecido.O novo traria o preenchimento total do vazio. A expectativa de um alvio imediato do mal estar e da dor psquica e a dificuldade de lidar com qualquer espera adiciona um regime de exterioridade. o Imprio da imagem e a ascendncia do Ter sobre o Ser.

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    Bibliografia

    1-BARROS, Romildo do Rego Compulses, desejo e gozo 2-BAUMAN, Zygmunt O Mal Estar da Ps-modernidade . ed.Jorge Zahar 3-BORGES A, Maria Beatriz F., JORGEB, Miguel R. Evoluo histricxa do conceito de compulso alimentar 4-Bourdieu,P.Sobre a televiso.ed Zahar- 5-BIRMAM, Joel Gramticas do Erotismo. Ed Civilizao Brasileira. 6-BUSSET, B., CONVEUR, c. FINE, a A Bulimia 7-FREUD, Sigmund. Edio Standard Brasileira das Obras Psicolgicas Completas de Sigmund Freud.Editora Imago.

    - Extratos de Documentos Dirigidos a Fliess - Trs Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade - Totem e Tabu - Sobre o narcisismo: uma introduo - Luto e Melancolia - Mais Alm do Principio do Prazer - Psicologia de grupo e analise do ego - O ego e o Id - Neurose e Psicose - Algumas consideraes sobre a distino anatmica entre os sexos - A Sexualidade Feminina - Novas Conferencias Introdutrias Sobre Psicanlise

    - Esboo de Psicanlise 8-FULKS, Mario Pablo Consideraes tericas sobre a Psicopatologia Contempornea 9-JUSTUS, Daisy Anorexia, uma cega tenacidade. mimeografado 10-KEHL, Maria Rita A Mnima Diferena ed imago. 11-NINA, Milton Della Anorexia Nervosa e a Psicanlise: tendncias de uma leitura . Rev.bras.de psicanlise vol.37-2003. 1997.