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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS MESTRADO EM HISTÓRIA A TARDE E A CONSTRUÇÃO DOS SENTIDOS IDEOLOGIA E POLÍTICA (1928 – 1931) MARIA DO SOCORRO SOARES FERREIRA SALVADOR / BAHIA JUNHO / 2002

A Tarde e a Construção Dos Sentidos

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A Tarde e a Construção Dos Sentidos

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    MESTRADO EM HISTRIA

    A TARDE E A CONSTRUO DOS SENTIDOS IDEOLOGIA E POLTICA (1928 1931)

    MARIA DO SOCORRO SOARES FERREIRA

    SALVADOR / BAHIA

    JUNHO / 2002

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    MESTRADO EM HISTRIA

    A TARDE E A CONSTRUO DOS SENTIDOS IDEOLOGIA E POLTICA (1928 1931)

    Dissertao final de curso apresentada ao Mestrado

    em Histria da Universidade Federal da Bahia como

    requisito parcial obteno do grau de mestre em

    Histria

    MARIA DO SOCORRO SOARES FERREIRA

    ORIENTADOR: Prof. Dr. ANTNIO FERNANDO GUERREIRO

    SALVADOR BAHIA

    JUNHO / 2002

  • Para Joo e Rafael, luzes no meu caminho.

    Que eu, atravs do meu trabalho, possa

    tambm iluminar suas vidas.

  • AGRADECIMENTOS

    A Deus, a todos os santos e orixs, especialmente guerreira Ians. Muita gente sempre

    participa dos trabalhos que fazemos de muitas e variadas maneiras: conversando sobre o tema,

    ouvindo-nos conjeturar idias, dizendo que confiam no nosso trabalho, lendo e discutindo,

    corrigindo ou puxando-nos pelo brao quando antes de comear j achamos que est tudo

    perdido. A todos que fizeram isso comigo, tenho muito a agradecer. Algumas porm fizeram

    mais... Lucy e Adriana coletaram dados e transcreveram boa parte dos textos do jornal. O

    Colegiado do Mestrado em Histria, tolerante com o meu problema de sade, fez ressaltar a

    solidariedade de Maria Hilda. Ao Prof. Antnio F. Guerreiro, agradeo pela leitura atenta. Ao

    Departamento de Filosofia da UCSal e ao Colegiado de Histria do Departamento de

    Educao do Campus II da Uneb, pela liberao e apoio, particularmente, agradeo aos

    colegas Paulo Santos Silva, Marilcia Oliveira Santos, Ronalda Barreto que, em diferentes

    momentos, me instigaram a escrever; leram e discutiram a primeira verso deste trabalho.

    Luciano Magnavita ajudou-me a definir a estrutura do trabalho e, na fase final, foi uma

    presena marcante colaborando de muitos modos. Nazar, com sua incomum solidariedade,

    me ajudou a minimizar os efeitos corrosivos da descrena em que estava mergulhada, alm da

    intensa assistncia intelectual, suscitando questes que nortearam a fundamentao terico-

    metodolgica. A Plutarco, pelo seu trabalho na classificao de parte dos textos e pelas

    discusses inteligentes e animadoras que por vezes tivemos. Marina, sempre solcita e

    prestativa no atendimento da biblioteca. E, aqui, um agradecimento especial queles que por

    razes diversas participaram deste trabalho, especialmente aos que, entendendo as minhas

    limitaes por questes de sade, me animaram, me incentivaram e me compreenderam.

    Dentre estas pessoas destacam-se as amigas Maria Aparecida Sanches e Maria do Carmo.

    Estas amigas foram fundamentais para a realizao deste trabalho. Ao Dr. Jorge Andrade e

    Dra. Lensia, diretores do SMU, pela solicitude com que acompanharam o meu caso. Aos

    oftalmologistas, Aidil Brito, Dr. Augusto Velasco Cruz, Dr. Nelson Boeira que atravs da

    busca de respostas aos meus anseios de cura, em diferentes momentos, participaram deste

    trabalho. Por fim, agradeo a Maria Perptua por ter se dedicado delicada tarefa de cuidar

    dos meus filhos neste perodo de tantos distanciamentos.

  • Seja qual for o rtulo, porm a pretenso a

    mesma: entender o sentido da vida, no numa v

    tentativa de dar respostas ltimas aos grandes

    enigmas filosficos, mas oferecendo um acesso a

    respostas dadas por outros, tanto nas rotinas

    dirias de suas vidas quanto na organizao

    formal de suas idias, sculos atrs.

    Robert Darnton. O beijo de Lamourette

  • SUMRIO

    Pg.

    INTRODUO .................................................................................................................... 9

    Perodo ................................................................................................................................. 11

    Fonte .................................................................................................................................... 12

    Referncias de Anlise ......................................................................................................... 14

    CAPTULO I - A ATUAO DO JORNAL A TARDE NA POLTICA PARTIDRIA . 20

    I.1 O Fim da Primeira Repblica na Bahia .......................................................................... 22

    I.2 O Significado da Revoluo de 1930 .............................................................................. 37

    CAPTULO II OS MATIZES IDEOLGICOS DO DISCURSO DO A TARDE .......... 54

    II.1 Imprensa e Imaginrio Poltico ..................................................................................... 55

    II.2 A Reforma Moral da Repblica ..................................................................................... 68

    II.3 A Viso da Sociedade ..................................................................................................... 71

    II.3.1 O domnio das elites .................................................................................................... 74

    II.3.2 A participao da mulher na poltica: a questo do voto feminino ............................. 78

    II.3.3 Os limites racistas da cidadania ................................................................................... 83

    CAPTULO III - AS DIRETRIZES DA POLTICA ECONMICA ................................. 89

    III.1 O Futuro do Brasil ........................................................................................................ 90

    III.2 Os Pilares da Economia Baiana: A Agricultura e o Comrcio ..................................... 96

    III.3 A Diversificao da Produo como Condio para o Progresso ................................ 101

    III.4 A Poltica Financeira ................................................................................................... 106

    CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................. 116

    BIBLIOGRFICAS .............................................................................................................. 120

  • RESUMO

    Este trabalho buscou demonstrar que a ideologia liberal burguesa era, no perodo de transio

    da Primeira para a Segunda Repblica, o pressuposto bsico do pensamento poltico do jornal

    A Tarde. Atravs da noo de progresso, central no iderio burgus do jornal, justificava-se a

    defesa dos empreendimentos capitalistas, e de padres de civilidade que excluam os

    costumes e prticas populares. Desse modo, a atuao do jornal transcendia a poltica

    partidria e inscrevia-se no mbito das relaes midas do cotidiano atravs das

    representaes sociais, que reafirmavam determinados valores e crenas, tais como a

    hierarquizao das raas e a resistncia emancipao poltica da mulher. Alm disso,

    evidencia-se o uso da imprensa como instrumento de manipulao de interesses particulares,

    legitimando publicamente privilgios de determinados segmentos da elite baiana.

    Palavras-chave: ideologia; poltica; poltica-partidria; discurso; crenas; valores.

  • ABSTRACT

    This work tried to demonstrate that the liberal bourgeois ideology was, in the transition period

    of the Primeira Repblica for the Segunda Repblica, the basic presupposition of the political

    thought of the A Tarde newspaper. Through the notion of progress, central in the bourgeois

    set of ideas of the newspaper, was justified both the defense of capitalist enterprises, and of

    civility patterns that excluded the popular habits and practices. In this way, the performance

    of the newspaper surpassed the political supporting and was enrolled in the extent of the small

    daily relationships through the social representations, which reaffirmed certain values and

    faiths, such as the hierarchization of the races and the resistance to the woman's political

    emancipation. Besides, the use of the press is evidenced as instrument of manipulation of

    private interests, legitimating openly certain privileges of segments of the baiana elite.

    Key-words: ideology; politics; politics-supporting; speech; faiths; values.

  • 9

    INTRODUO

    A idia de fazer uma histria do jornal A Tarde surgiu a partir de

    discusses com colegas que, como eu, buscavam critrios que validassem a

    escolha de um tema de pesquisa histrica. A participao na seleo para o

    Mestrado motivava nossa discusso. Foi, assim, em especulaes de nefitos que

    defini o meu tema de pesquisa.

    Apesar de ser o jornal de maior circulao na Bahia e servir de fonte para

    muitos estudos, o jornal A Tarde no teve ainda sua histria pesquisada.

    Entretanto, no me interessei por escrever a histria da instituio. Preferi

    explorar o universo de idias que circularam por suas pginas no limiar da dcada

    de 30 do sculo XX, enfocando, sobretudo, os valores que se afirmavam e

    reafirmavam cotidianamente. Enfim, me interessei em analisar o jornal como

    agente social, no s enquanto divulgador de idias e valores, mas tambm como

    veculo de comunicao colaborador na construo de sentidos e,

    conseqentemente, de acontecimentos.

    Estes eram os primeiros esboos para construir um objeto de estudo, e

    sentia-me ainda confusa e insegura, sem saber como propriamente delimitar um

    objeto para uma pesquisa exeqvel. Foi um passo determinante aprender que a

    angstia no uma negao da possibilidade de criar, ao contrrio, ao se fazer

    presente, participa tambm do processo criativo. Pude entender, no somente no

    nvel intelectual, mas, sobretudo no prtico, que produzir conhecimento

    permitir-se ser parcial, abandonar qualquer pretenso neutralidade absoluta,

    deixar transparecer as escolhas subjetivas, um estilo prprio e, inevitavelmente,

    permitir-se exercitar a criatividade, recriar, enfim, apresentar-se como sujeito.

    Sem, contudo, abandonar o propsito de buscar a verdade dos fatos e de fazer

    descries mais neutras o quanto possvel for. Esse dilema persegue aqueles que

    se aventuram na atividade intelectual: o af de expor as prprias idias, est, a

    todo instante, em penosa luta contra a busca obsessiva de recursos para construir

    um conhecimento imparcial.

  • 10

    A primeira verso do meu projeto de pesquisa foi elaborada com o

    objetivo de identificar e retratar os posicionamentos de A Tarde ante os

    desdobramentos polticos do movimento revolucionrio de 1930, sob a

    liderana de Getlio Vargas, at o ano de 1945, com o fim do Estado Novo.1

    No Mestrado, reconheci a amplitude do tema e a heterogeneidade do

    perodo, constitudo por conjunturas diferentes, sendo mais sensato optar por

    apenas uma delas. Logo nos primeiros momentos, constatei que qualquer que

    fosse a conjuntura escolhida, seria fundamental investigar qual o significado da

    revoluo de 30, para o jornal. Da os marcos temporais desta pesquisa entre 1928

    e 1931. O significado da revoluo, construdo pelo jornal A Tarde, decorria dos

    acontecimentos polticos da Bahia pr-revolucionria. Particularmente da

    campanha eleitoral para o governo do Estado, em 1928. Alis, era durante as

    campanhas eleitorais, que havia efetiva movimentao poltico-partidria. Por

    outro lado, o ano de 1931 marca o incio da mobilizao contra a centralizao do

    poder pelo presidente Vargas. O objetivo deste trabalho consiste na anlise dos

    contedos poltico-ideolgicos do jornal A Tarde na transio da Primeira para a

    Segunda Repblica.

    Trata-se de um estudo inserido no campo da histria das idias polticas,

    pela perspectiva da histria poltica renovada, a qual compreende que a origem, a

    formao e a difuso das idias polticas se fazem atravs das diversas instncias

    sociais. As idias, desse modo, deixam de ser produto da elaborao individual

    dos grandes pensadores para serem criao coletiva dos diferentes sujeitos sociais,

    caracterizando seus interesses polticos e matizes ideolgicos.2

    1 A histria poltica brasileira foi marcada a partir de 1930 por uma ruptura institucional, consagrada como Revoluo de 30. Todavia, esta designao no consensual e este acontecimento histrico tem numerosos significados, construdos a partir da perspectiva dos diferentes atores sociais que o debatem. Ver BORGES, Vavy Pacheco. Anos trinta e poltica: histria e historiografia. In FREITAS, Marcos Cezar (org.). Historiografia brasileira em perspectiva. So Paulo: Contexto, 1998. 2 FALCON, Francisco. Histria das idias. In CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo. Domnios da Histria : ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 91-125. O autor expe a trajetria da histria da idias, discutindo a variao do conceito de idia no mbito da historiografia, bem como a multiplicidade de disciplinas histricas que se ocupam das idias, mesmo que estas no sejam, em alguns casos, objeto exclusivo. Ver tambm do mesmo autor, na obra citada, cap. 3, p. 61-89. Trata da evoluo da histria poltica, a qual passou, nos ltimos tempos, por uma renovao, ampliando o campo de investigao.

  • 11

    Perodo

    A anlise dos discursos e declaraes divulgados diariamente pelo jornal A

    Tarde, nos anos de 1928 a 1931, permite reconstituir o iderio poltico que

    norteou sua atuao no momento da transio da Primeira para a Segunda

    Repblica. O ano de 1928 marcaria a consolidao do poder de um novo padro

    de oligarquia na Bahia: a oligarquia colegiada, no fosse a abrupta suspenso

    provocada pelo movimento revolucionrio de 1930. A eleio para o governo

    do estado naquele ano consolidaria a aliana feita em 1924 entre Ges Calmon,

    lanado pelo governador J. J. Seabra, e os membros da Concentrao Republicana

    da Bahia (CRB), que faziam oposio ao governador. Para consubstanciar esta

    aliana foi fundado, em 1927, o segundo Partido Republicano da Bahia (PRB),

    que assumia a liderana poltica da Bahia com a vitria de Vital Soares em 1928

    para o governo do estado.

    O movimento revolucionrio de 1930 desarticulou as alianas das elites

    regionais deslocando-as do poder. Os membros do PRB, partido que havia

    conquistado o poder na ltima eleio para governador, assistiram impotentes ao

    desbaratamento do seu projeto de dominao poltica. O mal estar causado por

    esta circunstncia comeou a ser combatido no ano de 1931. A partir deste ano, o

    grupo que fora destitudo do poder passou a manifestar abertamente protestos ao

    Governo Provisrio, reivindicando uma nova Constituio para o pas. O jornal A

    Tarde foi, nesta conjuntura poltica, um canal de expresso das insatisfaes deste

    segmento das elites locais.

    Para a reconstituio do quadro poltico-administrativo da Bahia na

    Primeira Repblica e nos primeiros anos da dcada de 1930, foram fundamentais

    os estudos de Consuelo Novais Sampaio, a qual oferece uma amostra da dinmica

    da atividade poltico-partidria na Primeira Repblica e demonstra que esta

    atividade se orientava mais pela disputa de poderes pessoais do que por um

    projeto poltico para a coletividade.3 A organizao da atividade poltico-

    3 SAMPAIO, Consuelo Novais. Os partidos polticos da Bahia na Primeira Repblica. Uma poltica de acomodao. Salvador : Centro Editorial e Didtico da UFBA, 1975.

  • 12

    partidria na Primeira Repblica foi tambm estudada por Eul-Soo Pang. O autor

    no se interessa propriamente pela constituio dos partidos, mas em classificar os

    grupos polticos de acordo com a estrutura scio-econmica de sua origem,

    criando categorias explicativas inspiradas pelos estudos antropolgicos.4 Paulo

    Santos Silva, atravs da anlise da produo historiogrfica dos anos de 1930,

    estudou a articulao entre militncia poltica e o exerccio da intelectualidade. O

    autor enfatiza a importncia da imprensa na formao e atuao dos intelectuais-

    polticos baianos.5

    Os momentos de ruptura de uma determinada ordem so propcios ao

    estudo das estruturas sociais, polticas e/ou ideolgicas, dado que estes momentos

    de transio so marcados pela coexistncia da ordem tradicional e da nova

    ordem; aquela se manifestando atravs desta, como se estivesse a nos dizer que os

    seres humanos no escapam da sua histria passada, ainda que possam, apesar

    disso, reinvent-la incessantemente.

    Fonte

    Este trabalho tem como fonte nica o jornal A Tarde. A pesquisa

    privilegiou a seleo dos editoriais que, na poca em estudo, apareciam sob o

    ttulo Tpicos, apresentando a opinio do jornal sobre diversa gama de assuntos e

    acontecimentos. Mas a parcialidade dos discursos jornalsticos se evidencia nas

    matrias noticiosas, vez que a notcia no o que aconteceu no passado, mas o

    relato dos sujeitos sociais sobre o que aconteceu.6 Portanto, as notcias foram

    tomadas tambm como expresso da opinio do grupo poltico representado no

    4 PANG, Eul-Soo. Coronelismo e oligarquias (1889 1930). Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1979. 5 SILVA, Paulo Santos. ncoras de tradio. Luta poltica, intelectuais e construo do discurso histrico na Bahia (1930 1949). Salvador: EDUFBA, 2000. 6 DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette. Mdia, cultura e revoluo. So Paulo: Companhia das Letras, 1990. O autor discute, atravs de uma coletnea de artigos escritos em diferentes momentos, questes tericas e metodolgicas sobre a histria das idias, acentuando que o papel da histria consiste em descobrir a condio humana tal como foi vivida pelos nossos antepassados. Analisa o funcionamento dos meios de comunicao, ressaltando que o significado das idias que divulgam derivado das representaes que os sujeitos sociais envolvidos na produo dos contedos discursivos fazem de si mesmos e do seu papel na sociedade. Ver particularmente o captulo 5.

  • 13

    discurso do jornal A Tarde, assim como os artigos assinados, em geral por

    intelectuais que tinham afinidades polticas com Ernesto Simes Filho, seu

    proprietrio.7

    Por ser importante fonte de expresso das elites, a imprensa uma das

    instncias sociais que mais colaboram na execuo dos seus projetos polticos.

    Esse papel ganha forma com a divulgao de idias e valores, que em geral criam

    condies favorveis aceitao do domnio das elites. A escolha do jornal A

    Tarde como fonte nica segue a iniciativa de outros estudos. Em relao ligao

    entre jornalismo e poltica, Lia de Souza Oliveira relata como a imprensa mato-

    grossense criou mecanismos para difundir a postura do regime varguista, suas

    idias polticas, seus objetivos e perspectivas.8

    O jornal A Tarde, longe de ser um veculo imparcial, comprometido

    apenas com a pura informao, como propagava, desempenhou desde sua

    fundao em 1912 o papel de porta-voz de um grupo poltico e deu sustentao

    ideolgica aos interesses polticos e econmicos imediatos desse grupo. Essa,

    alis, era a contrapartida de Simes Filho nas alianas e acordos polticos.9 A

    abordagem dos jornais como agentes sociais que atuam no processo poltico, feita

    por Maria Helena Capelato e Maria Lgia Prado, foi de grande importncia para a

    estruturao desta pesquisa. As autoras elegeram o jornal O Estado de So Paulo

    como fonte nica de investigao e anlise e enfatizaram o papel da imprensa

    como instrumento de interveno na vida poltica que, manipulando interesses

    especficos, atua na modelagem da conscincia social de significativos segmentos

    sociais.10 Nesta mesma perspectiva, mas ampliando o universo da pesquisa,

    7 Ernesto Simes Filho se inseriu na poltica baiana atravs da militncia na Gazeta do Povo a favor do seabrismo. Em 1913, um ano aps a fundao do seu prprio jornal, desvinculou-se do segmento seabrista passando a exercer grande influncia na formao poltica e intelectual de uma parcela significativa da elite baiana. Sobre este ltimo aspecto ver SILVA, Paulo Santos. ncoras de tradio, p. 84. 8OLIVEIRA, Lia de Souza. Tempo de esperana. A imagem do Estado Novo na imprensa mato-grossense. Dissertao ( Mestrado em Histria) Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, So Paulo, 1995, (mimeo). A autora analisa os editoriais, assinalando que reproduziam os discursos oficiais, atravs da difuso de notcias que enaltecendo o governo e exaltando seus feitos transformavam o lder poltico em mito. 9 SANTOS, Mrio Augusto da Silva. Associao Comercial da Bahia na Primeira Repblica: Um grupo de Presso. Salvador: Secretaria da Indstria, Comrcio e Turismo, 1985, p.p. 142-3 10CAPELATO, Maria Helena; PRADO, Maria Lgia. O Bravo Matutino.. Imprensa e ideologia: o jornal O Estado de So Paulo. So Paulo: Alfa-Omega, 1980. As autoras analisaram os editoriais do jornal O Estado de So Paulo destacando a ao poltica deste peridico entre os anos de 1927 e 1937. Este estudo demonstra a maleabilidade do jornal em conciliar os posicionamentos polticos com as exigncias do liberalismo: O ESP

  • 14

    destaca-se tambm o estudo que Maria Helena Capelato desenvolveu sobre a

    imprensa paulista nos anos de 1920 a 1945. A autora usa os jornais como fonte

    nica de pesquisa, porm analisa diferentes peridicos para desvendar os

    fundamentos da ideologia liberal burguesa nos posicionamentos da imprensa

    paulista.11

    Referncias de Anlise

    Este estudo busca analisar como o principal jornal de Salvador interagiu na

    sociedade baiana no perodo de transio da Primeira para a Segunda Repblica.12

    Neste sentido, tento mostrar que o trajeto do discurso do jornal revela o ponto de

    vista de um influente segmento social - formado por juristas, literatos, polticos,

    jornalistas -, que enaltecia o desenvolvimento econmico, tecnolgico, intelectual,

    enfim cultural dos pases europeus e norte-americanos, tomados como exemplos a

    copiar. Procuro evidenciar que o projeto poltico para a Bahia, insinuado atravs

    das reiteradas exortaes ao progresso e desenvolvimento do estado, era, fundado

    nos interesses especficos deste grupo social e tinha como objetivo principal

    preservar os seus privilgios.

    O intento de desenvolver um estudo de histria poltica da Bahia que

    tivesse por finalidade compreender as representaes emanadas do jornal A Tarde

    me imps tomar decises relativas ao referendo das minhas anlises, a partir de

    autores/as que, de algum modo, travam discusses acerca do fenmeno poltico e,

    ajustava suas opinies com os interesses dos cafeicultores paulistas defendo a hegemonia poltica e econmica do Estado de So Paulo em relao s outras unidades da Federao. 11 CAPELATO, Maria Helena. Os arautos do liberalismo. Imprensa paulista (1920 1945). So Paulo: Brasiliense, 1989. 12 O jornal A Tarde, fundado em 1912, ocupa desde ento um papel central na histria da Bahia. Pode-se verificar sua importncia sob vrios aspectos, primeiro por introduzir inovaes tecnolgicas na imprensa baiana que at sua fundao tinha feies artesanais. Para Consuelo Novais, no livro Partidos Polticos da Bahia na Primeira Repblica, o A Tarde remodelou a forma de diagramar os jornais, incorporando uma titulao destacada, abundante noticirio ilustrado e a prtica freqente de entrevistas com a despersonalizao do jornalista em proveito do jornal, atraindo um pblico leitor mais amplo. Alm disso, segundo Paulo Santos Silva, A Tarde exerceu grande influncia na formao intelectual e poltica de setores da elite baiana.

  • 15

    tambm, da ideologia, da cultura poltica e do discurso, pois impossvel para a

    histria poltica renovada isolar-se de outras cincias sociais e outras disciplinas.13

    A primeira pista a seguir era levar em considerao um conceito de

    poltica como atividade ou prxis humana estreitamente ligada ao poder,

    entendido como fenmeno social. A especificidade do poder poltico exercer-se

    concomitantemente ao poder econmico e ideolgico. Portanto, pertinente

    valorizar a dinamicidade com que se constitui o todo social, ou seja, o

    entrecruzamento dos diversos poderes formando redes complexas, e no

    instncias estanques, com funcionamento prprio e isolado.14

    Neste sentido, a noo de poder, desenvolvida e utilizada por Michel

    Foucault, que entende o poltico como o elemento que tece as mais diversas

    relaes sociais em todos os nveis, se mostra bastante adequada. O seu mrito

    est em romper com a perspectiva universal que elabora uma teoria geral.

    Distanciando-se da busca das caractersticas gerais do poder, depara-se com suas

    formas dspares, heterogneas, em constante transformao. O poder entendido

    como uma prtica social constituda historicamente.15

    Estas anlises deslocaram a investigao sobre o poder da esfera do Estado

    e identificaram o prprio saber como uma forma de poder. Alm disso,

    eliminaram a distino entre cincia e ideologia, pois saber e poder se implicam

    mutuamente. Portanto, o conceito foucaultiano de poder um importante

    instrumento de anlise, porque parece superar uma viso maniquesta das relaes

    sociais, onde o poder aparece ou como providncia de todas as faltas ou como

    mero mecanismo de dominao. Foucault enfatiza o aspecto positivo do poder,

    quando constata que atravs desta positividade que se ordena, se operacionaliza

    e se produz a vida em sociedade. Entretanto, no deixa de assinalar o lado

    negativo de dominao, implcita na noo de poder, pois nas diferentes prticas

    13RMOND, Ren. Uma histria presente. In RMOND Ren ( org. ). Por uma histria poltica. Rio de Janeiro : UFRJ, 1996, p. 29. Segundo o autor a renovao da histria poltica foi estimulada pelo contato com outras cincias sociais e pelas trocas com outras disciplinas, sendo esta abertura s contribuies externas uma necessidade imperativa para a histria poltica, que dada a natureza interdisciplinar do seu objeto, chamada de cincia-encruzilhada. 14 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G. Dicionrio de poltica. Braslia : Universidade de Braslia, 1986. 15 FOUCAULT, Michel. Miicrofsica do poder. 13 ed., Rio de Janeiro : Graal, 1998.

  • 16

    sociais o poder se exerce atravs de procedimentos de excluso: as interdies,

    separaes e os sistemas de verdade.16

    Esta concepo de poltica na medida em que permite entender o poltico

    no apenas restrito s relaes burocrticas e institucionais, mas tecendo as

    relaes cotidianas e os discursos que relatam os diversos acontecimentos,

    mostrou-se til desde o incio da pesquisa, inclusive na orientao da coleta dos

    dados. Para caracterizar o pensamento poltico expresso cotidianamente pelo

    jornal e identificar seus posicionamentos ideolgicos, a definio de poltica foi

    fundamental. Partindo de uma oposio de classes dominantes e dominadas,

    entendendo a poltica apenas como um jogo de relaes simtricas de dominao,

    perderia a oportunidade de acompanhar os caminhos sinuosos das relaes de

    dominao revelados pelas contradies dos discursos, ou ainda deixaria de

    desvendar como estas relaes se constituem, se exercitam, se reafirmam no

    cotidiano atravs das repeties dos discursos e dos seus contedos ideolgicos.

    O conceito de ideologia utilizado segue a formulao de Karl Mannheim,

    que prope uma ampliao do conceito marxista. Este no perde sua validade,

    mas sua limitao evidenciada na medida em que o seu uso impe uma oposio

    entre uma realidade real e outra falseada. Mesmo admitindo que a vida em

    sociedade propicia a existncia de grupos antagnicos e que a imposio de uns

    sobre os outros permite, em certos nveis, a inverso de valores, no mais

    possvel pretender-se falar de uma perspectiva de neutralidade, da qual se

    distingue verdade e mentira. Esta perspectiva est implcita na definio de

    ideologia como inverso da realidade, constituindo-se as anlises que dela se

    utilizam como denncias dos choques de interesses particulares. Importa que

    sejam feitas, diga-se, desde que no se perca a perspectiva de analisar como se

    constituem os efeitos de verdade no interior dos discursos produzidos

    socialmente. Da a opo por um conceito de ideologia como estrutura conceitual

    dos modos de pensar, definidos conforme as diferentes situaes de vida dos

    sujeitos sociais implicados na sua viso de mundo.17

    16 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. So Paulo : Loyola, 1999. 17 MANNHEIM, Karl. Ideologia e Utopia. 4 ed., Rio de Janeiro : Zahar, 1982.

  • 17

    Atravs deste conceito o significado das idias, das crenas, dos valores

    que esto presentes no discurso jornalstico de A Tarde tornou-se mais abrangente

    indicando, alm dos interesses imediatos do grupo poltico ligado ao Partido

    Republicano da Bahia (PRB), o modo de pensar prprio da elite poltica e letrada

    da poca. Ao resvalar, pelo seu discurso, uma concepo do ndio como selvagem,

    por exemplo, o jornal se insere no campo da cultura poltica no s porque

    difunde idias preconceituosas sobre a convivncia com a diversidade social, e,

    portanto, constri e refora os procedimentos de excluso atravs da

    significao dos sujeitos sociais, como o faz advogando para si o papel de educar

    a populao. Ressalte-se, porm, mais uma vez, que este conceito no invalida o

    conceito marxista, antes o inclui. As anlises dos contedos ideolgicos do

    discurso jornalstico apoiaram-se tambm na anlise do discurso proposta por

    Mikhail Bakhtin. Segundo este autor, o fenmeno da ideologia deve explicar-se

    com base numa filosofia da linguagem. A ideologia um reflexo das estruturas

    sociais, um fragmento da realidade, sendo a palavra o fenmeno ideolgico por

    excelncia, cujos significados desvelam as prticas sociais, remetendo a algo

    situado fora de si mesmo.18

    Assim, implcito no discurso do jornal encontra-se a construo de sua

    identidade, a qual revela um projeto pedaggico que evidentemente tem uma

    funo poltica: quer ensinar os baianos a exercerem sua cidadania, para isso

    sugere comportamentos; quer ensin-los a abandonar o atraso scio-econmico

    e cultural, para isso sugere medidas; quer ensinar os baianos a passear pela

    modernidade e pelo progresso, e ento oferece modelos. A leitura do jornal

    estava carregada de sentidos, mas o seu discurso revestia-se de uma autoridade,

    em saberes considerados legtimos. Diante disso que se fez necessrio optar por

    uma abordagem que caracterizasse o discurso como uma forma de poder. Esta

    abordagem, discursiva, tem sua origem, dentre outros, nas prprias reflexes de

    Foucault, sobretudo conforme caracterizado em Arqueologia do Saber, e constitui

    como til instrumento de anlise, negando o texto em si enquanto fonte exclusiva

    dos sentidos, e remetendo para aspectos extra-lingusticos que determinam o dizer

    - as condies de produo do texto as relaes de poder, o jogo entre o

    18 BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 6 ed., So Paulo: Hucitec, 1992.

  • 18

    institudo e o instituinte, os outros discursos, a interdiscursividade, a situao

    discursiva, etc.19

    Portanto, compreendendo a linguagem como espao de tenses, conflitos,

    jogo, busquei na anlise do discurso a possibilidade de apreender a contradio

    expressa nas entrelinhas do dizer e que tivesse uma abrangncia tal que pudesse

    abarcar toda a polissemia caracterstica de conceitos amplos como poltica,

    ideologia, cultura, de modo a no fechar, mas abrir teias de significao,

    aproximando e afastando consideraes aparentemente inconciliveis e que

    guardam similitudes possveis, sem desconsiderar suas contradies intrnsecas. A

    anlise de discurso tem como objeto o texto e alm da polissemia da linguagem

    leva em conta a intertextualidade, isto , a relao de um texto com outros

    existentes, possveis e imaginrios.20 Nesse movimento, as interpretaes

    passaram a fluir, mesmo que muitas das vezes atravessando obstrues que o

    objeto escolhido traz em seu interior e que lhe so constitutivos.

    O presente trabalho foi dividido em trs captulos. No primeiro fiz uma

    reconstituio do quadro poltico-administrativo da Bahia no final da Primeira

    Repblica, buscando caracterizar as foras que dirigiam o estado baiano bem

    como o processo poltico-partidrio a que estavam afeitas, para evidenciar que o

    jornal A Tarde participou neste processo refletindo os interesses imediatos e

    conjunturais de Simes Filho e do seu grupo de poltico. Isto atravs da defesa de

    valores que engrandeciam seus aliados, sempre buscando legitimidade numa razo

    intrnseca aos fatos e numa suposta tica isenta de partidarismos, argumentao

    que se prestava tambm justificao das ofensas e depreciaes que fazia dos

    adversrios polticos. Alm disso, busquei acompanhar a significao que o

    peridico fez do movimento revolucionrio de 1930.

    No segundo captulo a anlise recai sobre os sentidos que a prtica

    discursiva do jornal imprime s prticas e relaes sociais mais amplas na Bahia

    19 FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Campinas-SP: Papirus, 1990. 20 ORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso e leitura. 3 ed., So Paulo: Cortez; Campinas, SP : Editora da Unicamp, 1996, p. 11.

  • 19

    no final da dcada de 1920. Embora seja feita a partir de um pequeno fragmento

    da histria poltica do pas, da Bahia e do peridico, ela torna-se intensa porque se

    orienta pela perspectiva de que as identidades e representaes que os sujeitos

    sociais fazem de si mesmos, dos outros, de sua poca e de tudo que os rodeia se

    constituem e se reafirmam no cotidiano. Ento, ao se acompanhar as prticas

    discursivas cotidianas torna-se possvel captar, atravs das repeties,

    contradies, oposies, os sentidos que permanecem e se solidificam por longa

    durao. Assim, com base nas repeties e contradies do discurso, busquei

    identificar os valores e idias que predominaram na constituio do pensamento

    de A Tarde no perodo em estudo e na representao de alguns sujeitos sociais

    como os ndios, os negros, as mulheres e as elites.

    No terceiro captulo busquei retratar os projetos econmicos que o

    segmento poltico-social representado no discurso do jornal A Tarde julgava

    necessrios e de possvel viabilidade para superar o que reconhecia como um

    estado de atraso do Brasil e da Bahia, em particular. As propostas e solues

    que o peridico apresentava, mais uma vez, decorriam dos interesses econmicos

    de um grupo restrito que, orientado pelas experincias dos pases capitalistas,

    estabelecia parmetros para o desenvolvimento econmico, cujos limites, porm,

    eram das suas prprias experincias.

    Espero, por fim, que o resultado deste trabalho possa contribuir para

    renovar o interesse pelo estudo do fenmeno da ideologia to intrincado e

    intrinsecamente ligado aos dizeres e saberes professados cotidianamente pelos

    diferentes atores sociais, os quais ao adquirirem legitimidade, investem-se de uma

    autoridade perversa servindo-se como fundamento aos projetos de dominao de

    uns grupos sociais sobre os outros.

  • 20

    CAPTULO I

    A ATUAO DO JORNAL A TARDE NA POLTICA PARTIDRIA

    O material que foi estudado acerca da atuao de A Tarde indica que,

    desde sua fundao, em 1912, o jornal teve grande influncia na vida poltica da

    Bahia, destacando-se por acolher intelectuais e polticos como colaboradores, os

    quais participaram ativamente de debates polticos em diferentes conjunturas da

    histria do pas e do estado, exercendo sistemtica e abertamente a militncia

    partidria. No final da Primeira Repblica, o domnio poltico do Partido

    Republicano Democrata (PRD), liderado por J. J. Seabra, declinara e consolidava-

    se o poder das faces que lhe fizeram oposio. Eram duas as principais faces:

    uma liderada pelos Calmon e a outra pelos Mangabeira. Embora no fossem

    inteiramente coesas, aliaram-se e, num negociado equilbrio, assumiram a direo

    da poltica do estado em 1924. Em 1927, reafirmaram a aliana fundando o

    Partido Republicano da Bahia (PRB), que viria a atender s necessidades

    eleitorais de ento. Nesta poca, era em defesa dos interesses polticos e

    econmicos dos membros do PRB que se exercia a militncia poltica de A Tarde.

    Os partidos polticos da Primeira Repblica se configuravam como

    agrupamentos em torno de determinadas personalidades; estas, definiam melhor

    suas diretrizes do que os inconsistentes programas, que nem sempre existiam. Em

    geral, eram organizados s vsperas das eleies, traduzindo as alianas polticas

    motivadas pela disputa do poder. Com a dissoluo do Partido Republicano

    Democrata (PRD), em 1924, eclipsava-se a liderana de J. J. Seabra, frente da

    poltica baiana desde 1912. Sua influncia se fizera notar desde os primeiros anos

    do sculo XX, perodo em que arregimentava, sob seu carisma, muitos dos

    aspirantes ao exerccio da poltica partidria, a exemplo de Otvio Mangabeira e

    Ernesto Simes Filho, que iniciaram suas carreiras polticas militando em favor

    daquele oligarca, identificados pela origem burguesa e urbana.

  • 21

    Mas as circunstncias mudaram e, de correligionrios, passaram a

    adversrios polticos. Simes Filho desligou-se de Seabra em 1913, quando este

    expulsou o ex-governador Lus Vianna do Partido Republicano Conservador

    (PRC); Otvio Mangabeira se desligaria do velho oligarca em 1919, aliando-se

    aos oposicionistas.

    O declnio da liderana de J. J. Seabra ocorreu simultaneamente ascenso

    de uma nova liderana que reunia as mais destacadas faces polticas de ento: a

    calmonista, ligada aos Calmon; a mangabeirista, ligada aos Mangabeira e alguns

    remanescentes do falido Partido Republicano Democrata (PRD), os chamados ex-

    seabristas. A aceitao e incluso destes ltimos no novo Partido Republicano da

    Bahia (PRB) seria motivo de discrdia entre calmonistas e mangabeiristas,

    faces que de fato detiveram o poder do estado, a partir de 1924.

    Esta nova coalizo, que inclua os Calmon e os Mangabeira, alm dos

    deserdados do Partido Republicano Democrata (PRD), constituiria um precrio

    equilbrio de poder, que supunha repetidas negociaes, tal como aconteceu com a

    definio do candidato que substituiria Vital Soares no governo do estado em

    1930.

    Ento, se tornou evidente um choque de interesses particulares, em que os

    membros da faco dominante divergiam aspirando ao mesmo cargo. Assim,

    pretendiam ser os escolhidos para representar a chapa do Partido Republicano da

    Bahia (PRB): Otvio Mangabeira, Simes Filho, Miguel Calmon, Pedro Lago.

    Todos desejavam a experincia de liderar a poltica do estado, desejo de poder

    que, disputado entre iguais, conduziu negociao de interesses, cujo resultado

    consistiu na indicao da candidatura nica de Pedro Lago, representando um

    acordo de interesses dos dirigentes polticos da Bahia, evitando-se uma fissura

    maior no interior do partido.

    Objetivando a manuteno do domnio desta coligao, os lderes do

    partido retrocederam em suas aspiraes, superando, momentaneamente, o

    conflito de interesses individuais em favor de um equilbrio de foras no interior

    do partido. Desse modo, esta oligarquia colegiada criava condies para

    manter-se no poder, o qual todavia, no lhe pertenceria por muito tempo, pois a

  • 22

    chamada Revoluo de 1930, num golpe violento, substituiu os polticos locais

    por interventores diretamente nomeados pelo executivo federal. Colocando-se em

    defesa dos interesses imediatos do grupo poltico que representava, diretamente

    afetado pelo movimento revolucionrio de 1930, A Tarde atuou no sentido de

    construir uma representao negativa deste acontecimento.

    I.1 O Fim da Primeira Repblica na Bahia

    Nos seis ltimos anos da Primeira Repblica, o poder poltico na Bahia era

    liderado por um grupo que, se no era perfeitamente homogneo pela diversidade

    da origem scio-econmica dos seus membros, se unificava atravs de uma

    relao de troca e de tolerncia para com os interesses econmicos distintos, mas

    complementares, dos seus representantes. A ascenso de Francisco Marques de

    Ges Calmon ao governo do estado, em 1924, deu incio a uma nova forma de

    organizao partidria, a qual passou a contar com a liderana de duas faces

    igualmente fortes, divergentes em alguns aspectos, mas aliadas na direo da

    poltica baiana, que a partir deste mandato ficou dividida entre os Calmon e os

    Mangabeira, constituindo-se uma liderana que Eul-Sool Pang chama de

    oligarquia colegiada.1

    Ges Calmon, no tinha experincia poltica direta; era, entretanto,

    membro de uma famlia tradicional, cuja influncia poltica remontava ao perodo

    monrquico. No era, portanto, totalmente indiferente poltica; tinha, ao

    contrrio, grande proximidade com ela, atravs da convivncia com os irmos

    polticos Miguel Calmon du Pin e Almeida e Antnio Calmon que atuaram no

    decorrer da Repblica Velha. Os Calmon eram descendentes de senhores-de-

    engenho de Santo Amaro e So Francisco do Conde, e o governo de Ges

    Calmon, banqueiro e homem de negcios, representava um largo espectro de

    1 PANG, Eul-Soo. Op. cit. p. 37 45. O autor faz uma categorizao das oligarquias que se constituram atravs da histria poltica do Brasil, distinguindo 4 tipos: familiocrtica, tribal, colegiada e personalista. Segundo ele, a oligarquia colegiada foi estruturada pelo cl agrrio dos Calmon e pela famlia burguesa de polticos, os Mangabeira.

  • 23

    interesses econmicos que iam do acar aos bancos.2 Foi lanado na poltica pelo

    governador Jos Joaquim Seabra, que exerceu uma expressiva liderana na Bahia

    durante a Repblica Velha, mas ao findar o segundo mandato como governador

    do estado (1920-1924), buscava estratgias que permitissem a renovao do seu

    poder, ameaado pela crescente fora da oposio ao seu domnio poltico.3

    Ao indicar Ges Calmon para suced-lo no governo da Bahia, Seabra

    esperava reverter a oposio em apoio, pois aglutinaria em torno de si as faces

    locais e poderia engendrar uma grande aliana, garantindo sua permanncia na

    poltica. Alm de neutralizar a oposio local, Seabra esperava atrair a simpatia e

    apoio do presidente da Repblica, que mobilizaria foras em defesa do irmo do

    seu Ministro da Agricultura, o baiano Miguel Calmon. Este, por sua vez, apesar de

    ter assumido a liderana da oposio a Seabra, com a morte de Rui Barbosa, em

    maro de 1923, no negaria apoio candidatura do prprio irmo. Assim,

    indiretamente, Seabra poderia restabelecer sua liderana poltica, fortemente

    abalada pelas bem sucedidas articulaes da oposio.

    A oposio ao seabrismo vinha se desenvolvendo desde o primeiro

    mandato de Seabra, mas se tornara mais intensa a partir dos anos de 1920.4 Uma

    nova gerao de polticos, doutores e bacharis, alguns dos quais haviam se

    iniciado na vida pblica atravs da filiao a Seabra, se uniu em torno de Rui

    Barbosa, formando uma agremiao oposicionista, a Concentrao Republicana

    da Bahia - CRB - em 1923, para compor os quadros no Legislativo Estadual,

    2 PANG, Eul-Soo. Op. cit. p. 178 3 J. J. Seabra foi uma das principais figuras polticas da Bahia na Primeira Repblica. Advogado diplomado pela Faculdade de Direito de Recife, depois de formado reingressaria nela na qualidade de professor. Foi deputado constituinte em 1891; deputado federal no governo de Prudente de Morais (1894 1897); Ministro da Justia no governo de Rodrigues Alves, (1902 1906); Ministro da Viao e Obras Pblicas no governo de Hermes da Fonseca (1910 1914), interrompeu este mandato para assumir em 1912, o governo da Bahia; de 1916 a 1920, exerceu o mandato de senador federal; de 1920 a 1924, foi novamente governador da Bahia; em 1934, foi eleito deputado para a Cmara Federal. Ver SILVA, Paulo Santos. ncoras de tradio, p. 25-26. 4 A poltica baiana no decorrer da Primeira Repblica se caracterizava por um acentuado personalismo, a formao dos partidos polticos decorria de agrupamentos em torno de personagens de prestgio social, cuja referncia via de regra, substitua a sigla do partido que representava. Da que a identidade partidria era dada pela referncia ao lder do partido ou da faco dentro do partido, podendo-se portanto, falar de seabrismo ou seabristas para designar, respectivamente, a liderana e os seguidores do PRD, chefiado por J. J. Seabra; calmonismo ou calmonista para designar a liderana e seguidores dos Calmon e mangabeirismo e magabeiristas para designar a liderana e seguidores dos Mangabeira, faces que compunham o PRB, etc.. Sobre o assunto ver PINHEIRO, Israel de Oliveira. A poltica na Bahia : atraso e personalismos. In Ideao. Revista do Ncleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Universidade Estadual de Feira de Santana, v. 1, n. 4, Feira de Santana : UEFS, NEF, 1997-V, p. 49 75.

  • 24

    sendo o reconhecimento da Cmara oposicionista o primeiro passo na conquista

    do poder pela oposio.

    Ressalte-se, porm, que oposio, no contexto da Primeira Repblica, no

    implicava divergncias ideolgicas significativas, antes se reduzia a disputas

    circunstanciais pelo poder que, em geral, extrapolavam qualquer princpio de

    coerncia. Segundo Consuelo N. Sampaio, a poltica de acomodao fez do

    contraditrio uma constante em todo o processo poltico-partidrio da Bahia. Em

    defesa de interesses individuais, os mais inesperados e incoerentes arranjos

    polticos eram feitos, revelando que a tica poltica tem os seus prprios padres

    de mensurao.5

    Nestes termos, entenda-se oposio como atitude circunstancial, sujeita a

    reverso conforme as convenincias do momento, como ocorreu no contexto

    histrico do ps-1930, quando as elites locais se rearticularam organizando o

    autonomismo baiano para fazer frente ao centralismo federal. A reivindicao do

    retorno da Bahia posse de si mesma, reuniu, numa mesma coligao, J. J.

    Seabra e as faces do Partido Republicano da Bahia (PRB), que eram antigos

    adversrios.6

    A oposio, portanto, era constituda pelos polticos que no estavam no

    poder, na situao, e batalhavam por estar, sendo uma usual estratgia de

    confronto entre adversrios polticos o debate de idias e opinies atravs da

    imprensa. O jornal A Tarde, a partir de 1913, poca em que seu proprietrio

    Ernesto Simes Filho se desligou do Partido Republicano Conservador (PRC),

    liderado por J. J. Seabra, do qual era 1o. Secretrio da Comisso Executiva, passou

    a veicular sistematicamente crticas severas ao velho oligarca baiano.7

    5 SAMPAIO, Consuelo N. Op. cit. p. 77 6 Sobre a organizao do movimento autonomista baiano, sua composio e atuao no processo de redemocratizao do pas em 1945, ver SILVA, Paulo Santos. ncoras de tradio, especialmente captulos II e III. Ver tambm do mesmo autor, A volta do jogo democrtico. Bahia, 1945. Salvador : Assemblia Legislativa, 1992, p. 86 92. 7O Partido Republicano Conservador (PRC) foi fundado sob a chefia de Pinheiro Machado, que com um partido pretensamente nacional esperava ter o controle das polticas estaduais. O partido reunia os chefes polticos estaduais que apoiaram a campanha presidencial de Hermes da Fonseca (1910 1914), sua instalao na Bahia, sobreps-se ao Partido Democrata (PD), fundado por J. J. Seabra em maro de 1910.: a Comisso Executiva do PRC na Bahia era a mesma do PD. Simes Filho, membro do Conselho Geral do PD, se incompatibilizou com a

  • 25

    Ernesto Simes Filho no tinha vnculos tradicionais com a poltica

    baiana, mas a prosperidade econmica do pai garantiu sua formao intelectual e

    importante legado econmico, que multiplicaria, constituindo slida fortuna. Seu

    pai, Ernesto Simes da Silva Freitas, descendente de portugueses radicados no

    serto, emigrou para o Recncavo aos quatorze anos, fixando-se na ento prspera

    Vila de Nossa Senhora do Rosrio do Porto da Cachoeira, sob proteo de um tio

    comerciante com quem veio trabalhar. Especializou-se no ofcio do tio e tornou-se

    prspero comerciante, condio que lhe conferiu prestgio e projeo social;

    ingressou na Guarda Nacional, com patente de Coronel, atuou no Partido Liberal e

    fundou a primeira Loja Manica no interior da Provncia. J bem estruturado

    comerciante em Cachoeira, foi convidado por um parente de sua esposa a

    gerenciar em Salvador a Drogaria e Farmcia Galdino.Transferiu-se ento com a

    famlia para a capital baiana para atender a este promissor convite, o que lhe

    valeria a herana de boa parte do patrimnio do tio-protetor da esposa,

    proprietrio da farmcia que, ao morrer sem herdeiros diretos, legaria grande parte

    de sua fortuna famlia de Ernesto Simes da Silva Freitas. Este patrimnio

    familiar teria constitudo o capital inicial do bem sucedido empreendimento

    econmico de Ernesto Simes Filho: o jornal A Tarde.8

    Ernesto Simes Filho tinha apenas 26 anos, quando fundou o A Tarde. Aos

    22 j era diplomado em Direito, pela faculdade de Direito da Bahia. Ainda no

    curso de sua formao acadmica, se vinculou a J. J. Seabra, ingressando

    juntamente com Otvio Mangabeira na redao do Gazeta do Povo, em que

    atuaria como defensor e adepto do seabrismo. Nesta poca, o ingresso no

    jornalismo consistia em estratgia para se adquirir projeo social, iniciar-se na

    carreira poltica e ter acesso a empregos pblicos.9 Simes Filho gozaria de todas

    estas prerrogativas advindas da militncia no jornalismo poltico, alm de ter

    assentado alicerces mais firmes sua ambio juvenil de ter seu prprio jornal.

    atitude de Seabra de excluir Luiz Vianna do partido e se desligou do grupo seabrista, assumindo paulatinamente a postura de oposio. Ver SAMPAIO, Consuelo N. Op. cit. p. 78 - 82. 8 Ver MORAES, Walfrido. Simes Filho. O jornalista de combate e o tribuno das multides. Salvador : W. Moraes, 1997. Este trabalho biogrfico tem um estilo apologtico e aborda por uma perspectiva romntica o empreendimento jornalstico de Simes Filho, que a despeito de poder ser fruto de uma paixo sem dvida, um empreendimento ambicioso poltica e economicamente. 9 SILVA, Paulo Santos. ncoras de tradio, p. 83 86.

  • 26

    Ainda no Ginsio da Bahia, onde fez o curso de Humanidades, Simes

    Filho ensaiou os primeiros passos em direo ao jornalismo, lanando, em 1900,

    O Carrasco, um pequeno jornal estudantil, que no passaria da 2 edio. A

    segunda experincia, mais ousada, mas tambm efmera, foi em 1904, com a

    edio da revista O Papo, de sua propriedade tendo como modelo O Malho,

    revista satrica carioca que circulava poca, cujo programa era fazer rir.

    Porm, no levaria avante este projeto e a partir da 7 edio a revista j no lhe

    pertencia. Experincia mais consistente e fecunda teria mesmo no jornalismo

    poltico, atravs da militncia a favor de J.J. Seabra no jornal Gazeta do Povo, do

    qual chegou a ser diretor e proprietrio.10

    Entretanto, os vnculos de Simes Filho com o seabrismo no se limitaram

    ao exerccio do jornalismo, pois alm de militar no Gazeta do Povo ele exerceu

    cargos pblicos e projetou-se como poltico de prestgio sob os auspcios de J.J.

    Seabra. Na campanha presidencial de 1909, Seabra organizou a Junta Baiana Pr-

    Hermes-Wenceslau, centro poltico que marcaria sua incompatibilidade com as

    demais faces do primeiro Partido Republicano da Bahia (PRB), do qual fazia

    parte at ento. Com esta iniciativa lanava as bases para a fundao de um novo

    partido, o seu Partido Democrata (PD), fundado em 15 de maro de 1910.11

    Simes Filho participou desta campanha presidencial integrando a referida Junta

    sendo posteriormente, membro do Conselho Geral do Partido Democrata (PD),

    juntamente com Otvio Mangabeira e Antnio Moniz.

    10Esta experincia de militncia no seabrismo lhe valeria a insero na poltica e os primeiros cargos pblicos: em 1908, foi eleito deputado estadual; foi proprietrio e diretor do Gazeta do Povo e, em 1911, foi nomeado por Seabra, ento Ministro da Viao, administrador dos Correios da Bahia, cargo que exerceu at 1915, perodo em que j era hostil e censor do seabrismo. Ver MORAES, Walfrido. Op. cit. Ver tambm CALMON, Pedro. A vida de Simes Filho. Salvador: Empresa Grfica da Bahia, 1986. 11 J. J. Seabra pertenceu ao primeiro Partido Republicano da Bahia (PRB), fundado em 1901 por Severino Vieira. Foi a primeira agremiao poltica da Bahia a ter relativa coeso. Porm, a partir de 1907, comearia sua progressiva desagregao devido ciso entre os dois principais chefes, Severino Vieira e Jos Marcelino, ento governador do estado. Na campanha para a sucesso estadual, sua influncia seria suplantada pelo partido seabrista. Seabra, ao incompatibilizar-se com estes dois chefes do PRB, lanava o germe da sua autonomia poltica, organizando a Junta Baiana Pr-Hermes-Wenceslau, independentemente do PRB. Da, se originaria o Partido Democrata (PD), fundado em maro de 1910, sob a chefia de Seabra com os mesmos integrantes da Junta entre os quais Otvio Mangabeira, Antnio Moniz, Simes Filho e Luiz Vianna, nico poltico da velha gerao a compor com Seabra. O Partido Democrata (PD) se fundiu com o Partido Republicano Conservador (PRC), partido nacional, chefiado por Pinheiro Machado, do qual Seabra terminou sendo expulso, em 1913, quando rebatizou seu segmento poltico de Partido Republicano Democrata (PRD).

  • 27

    Mas, as relaes dessa poltica de acomodao que caracterizava este

    perodo no eram perenes, ao contrrio, vrios conchavos eram feitos e desfeitos

    em virtude da ausncia de homogeneidade de interesses os grupos ou

    indivduos faziam e desfaziam alianas conforme suas convenincias. Como um

    sujeito histrico dessa conjuntura poltica, Simes Filho ao desligar-se de J.J.

    Seabra passaria a usar seu jornal para dirigir toda a sorte de crticas ao seu antigo

    mentor poltico. Criticava-se desde a tica, em geral caracterizada como

    politicagem vergonhosa, ao desempenho administrativo, considerado

    desastroso.12

    Ainda se podia ouvir ecos desta crtica em 1928, atravs de uma avaliao

    dos contrastes entre o governo de Ges Calmon e o perodo de governo

    seabrista, que A Tarde avaliava negativamente, considerando que este ltimo teria

    tornado a Bahia um estado sem crdito, pois

    quatrinios sucessivos de administraes desastradas

    haviam lhe granjeado o justo renome de devedora

    impenitente, afeita a pedinchar todos os dias a capitalistas

    e agiotas e se recusar ao pagamento das obrigaes

    vencidas. (...) Era o diabo aquela poca. Houve gente que morreu de fome. Pura verdade! Mestres escolas e

    magistrados encanecidos na profisso andavam

    excogitando meios e modos para sustentar a famlia.13

    A oposio a Seabra, tendo Simes Filho como um dos seus protagonistas,

    desde 1913, se fortaleceu, na campanha para a sucesso estadual em 1923,

    chegando a ensejar a organizao de uma agremiao a Concentrao

    Republicana da Bahia (CRB), fundada em 10 de janeiro de 1923, sob a

    presidncia de Pedro Lago, no salo nobre do jornal A Tarde.14

    12 Sobre o rompimento de Simes Filho com J. J. Seabra e sua aproximao de Rui Barbosa, ver CALMON, Pedro. Op. cit. p. 73-77 13 A Tarde, 28 jan. 1928, p. 1. 14 Pedro Francisco do Lago, poltico ligado a Severino Vieira, teve atuao constante em todo o desenrolar da Primeira Repblica. Foi deputado federal, senador federal e chegou a ser eleito e reconhecido governador, em 1930 mas no exerceria o mandato. Outros polticos de destaque, alm dos j citados, Simes Filho e Pedro Lago, que compunham esta agremiao, eram os irmos Otvio e Joo Mangabeira, Miguel Calmon, Aurelino Leal e Rui Barbosa, mentor da oposio. Simes Filho sempre teve presena atuante; no s participou da organizao deste partido, como estava frente na constituio da Junta Apuradora, que deu a primeira vitria oposio, elegendo 42 deputados e 7 senadores para a legislatura estadual de 1923 que, pelos vnculos com o

  • 28

    Este vespertino, no perodo em estudo, quase diariamente fazia referncia

    a Seabra como um antigo poltico que no se conformava com o fato de ter

    perdido o poder. Os laos de solidariedade que uniram seu proprietrio ao velho

    oligarca se desfizeram j h algum tempo e resgatar a memria desse vnculo

    poderia diminuir-lhe o prestgio. Assim, caberia nessa circunstncia enfatizar o

    isolamento em que se encontrava Seabra caracterizando-o como fruto da ao

    cvica dos adversrios, dentre os quais, vale lembrar, inclua-se Simes Filho.

    Dizia-se de forma indireta que Seabra j no tinha um canal expresso que

    desse guarita a suas idias e propsitos - o que indicava sua falta de prestgio

    poltico -, por isso apegava-se a qualquer oportunidade de se fazer ouvir e quando

    encontrava um jornal que lhe demonstrava complacncia, soltava o verbo

    contra os adversrios culpados do negro crime de o terem apeado, para todo o

    sempre, das posies oficiais no estado. Segundo A Tarde, Seabra, usualmente,

    dizia inverdades sem proveito algum:

    dessa vez ainda, o tema foi injrias, injrias aos quatro

    ventos. Quando no, ataques diretos verdade dos fatos e

    frases de armar efeito. Espremendo-se todo o palavrrio,

    nada h que se aproveite.15

    Alis, para A Tarde, esta prtica de usar artifcios de retrica para enganar

    o povo no era uma distino particular de Seabra. Seus seguidores tambm, ao

    falarem imprensa sobre os acontecimentos polticos, o que expunham ao

    pblico era sua coragem de pregar histrias da carochinha, como classificou

    uma entrevista dada imprensa carioca, pelo fiel seguidor de Seabra, Antnio

    Moniz Sodr. Este, mesmo sendo incontestavelmente uma inteligncia

    slida, saa a escrever pilhrias para satisfazer a amigos extremados e

    sonhadores, agindo assim como se o povo desta terra no tivesse memria e

    no soubesse apreciar os fatos da maneira por que realmente acontecem.16

    Portanto, a manifestao pblica dos seabristas no passava de tentativa

    para embaar a opinio pblica dos baianos, sendo as crticas de Moniz Sodr presidente da Repblica, tiveram seus mandatos reconhecidos. Ver SAMPAIO, Consuelo N. Op. cit. p.128 135. 15 A Tarde, 04 jun. 1929, Tpicos, p. 2.

  • 29

    poltica que deps Seabra do poder avaliadas como expresso de despeito,

    lamrias, por no estar entre os eleitos para a Assemblia Legislativa por dois

    perodos consecutivos.17

    A vitria nas eleies do Legislativo estadual, era, sem dvida, fator

    decisivo na correlao das foras polticas em disputa. As vantagens da

    Concentrao Republicana da Bahia (CRB), nas negociaes para a sucesso

    estadual de 1924, foram possveis graas composio do Legislativo estadual

    por uma bancada de deputados oposicionistas reconhecidos pela interveno do

    executivo federal.18 Moniz Sodr, na citada entrevista, relembrava esta

    circunstncia histrica declarando que Artur Bernardes (1922 1926) reconhecia,

    ento, que o maior erro de sua administrao havia sido a interveno na Bahia. A

    Tarde ironizava as declaraes de Moniz Sodr, adversrio poltico do grupo que

    representava, dizendo serem elas fruto de auras estranhas, que lhe permitiam

    uma sobrenatual e aguda viso, levando-o a profetizar e a revelar coisas no

    menos estranhas que ningum previa, nem sabia. Lanava ao descrdito a

    oratria do adversrio e retrucava com a seguinte exclamao provocativa:

    o sr. Artur Bernardes considerando deslise palmar de seu

    patritico governo o ter mantido no estado a forma

    republicana federativa, perturbada pela ao criminosa do

    sr. J. J. Seabra e da meia dzia que a este quis

    acompanhar na traio a compromissos de honra,

    assumidos de pblico e raso!

    Com este recurso de linguagem, indiretamente, A Tarde sugeria que

    Moniz Sodr delirava e mentia, tratava-se, declarava agora, expressamente, de

    manifestaes psicticas, que deveriam ser curadas por mdicos, antes que se

    tornassem fenmenos de curiosidade geral.19 As ironias, os comentrios ardilosos

    davam a tnica das polmicas travadas pela imprensa da poca.

    Atravs dos jornais os diferentes grupos das elites dirigentes se

    16 A Tarde, 21 fev. 1929, Tpicos, p. 2. 17 A Tarde, 22 fev. 1929, Tpicos, p. 2. 18 Sobre as relaes entre a oposio baiana a Seabra e o presidente Artur Bernardes, ver SAMPAIO, Consuelo N. Op. cit. p. 130 135. 19 A Tarde, 22. fev. 1929, Tpicos, p. 2.

  • 30

    digladiavam, trocando insultos e ofensas mtuas. A tica poltica, pelo que se

    pode depreender da prtica discursiva, era delimitada por valores patrimonialistas

    e pelo personalismo, as prticas polticas se definiam pela conduta pessoal do

    dirigente poltico e pelo seu carter e moralidade, que eram expostos segundo a

    concepo de adversrios.20

    Admitia-se a publicidade de apreciaes grosseiras e de ofensivas

    abertamente dirigidas s pessoas dos adversrios polticos que, em geral, eram

    submetidos a julgamentos morais mais do que cobrados por critrios de atuao e

    de gesto dos bens pblicos e coletivos ou, dito de outro modo, o indivduo se

    sobrepunha ao poltico, plasmando, neste, a sua marca. Neste sentido, fazer

    oposio era achincalhar publicamente o adversrio poltico, em certos casos, de

    modo to contundente e sistemtico, que causa certo espanto o fato de poderem,

    depois do entrechoque, se suportarem e at se aliarem num mesmo grupo, o que

    acontecia com frequncia no contexto da Primeira Repblica. O jornal A Tarde,

    em linguagem desabrida, no poupava Seabra e os seabristas, chamados de

    mentirosos, interesseiros, incompetentes, ladres, etc.

    O reconhecimento do Legislativo oposicionista, em 1923, marcaria o

    incio do fim da bem sucedida dominao poltica de Seabra. Diante desta

    circunstncia, sua continuidade no jogo poltico dependeria de uma hbil

    ofensiva. Seabra encontrou a melhor soluo propondo o nome de Ges Calmon

    como candidato sucesso; assim, colocara seus adversrios frente a um

    impasse: repelir o nome de Ges Calmon seria, tanto por parte do Presidente,

    como dos concentristas, seno uma afronta, pelo menos uma desconsiderao a

    Miguel Calmon (ento Ministro da Agricultura); aceit-lo seria reanimar o

    seabrismo que queriam destrudo.21 Embora este plano fosse bem arquitetado,

    no logrou o resultado esperado. De fato, Artur Bernardes deu pronto apoio a

    Ges Calmon, e, ainda que tardiamente, a oposio aderiu sua candidatura. Mas

    Seabra no contornou o isolamento a que vinha sendo submetido e declinou seu

    20 Pela perspectiva da anlise do discurso, a fala est indissociavelmente ligada s condies de comunicao, que por sua vez, esto sempre ligadas s estruturas sociais. Ver BAKHTIN, Mikhail. Op. cit. p. 14. Portanto, as prticas discursivas devem ser desvendadas para se chegar s prticas sociais. Ver tambm COSTA, Eleonora Z. Sobre o acontecimento discursivo. In SWAIN, Tnia Navarro (org.). Histria no plural. Braslia: Universidade de Braslia, 1994, p. 189 207. 21 SAMPAIO, Consuelo N. Op. cit. p. 134.

  • 31

    apoio a Ges Calmon apresentando, s vsperas das eleies, novo candidato ao

    governo do estado.22 Esta tentativa desesperada surtiu efeito contrrio: as

    deseres do PRD, partido que comandava ento, se multiplicaram e deste

    embate a oposio saiu ainda mais fortalecida.

    A oposio terminou por conduzir a campanha pela candidatura Ges

    Calmon, e mesmo no sendo ligado Concentrao Republicano da Bahia (CRB),

    pela militncia poltica, seu nome era plenamente aceitvel, pois alm de

    banqueiro e advogado, pertencia a uma famlia tradicional baiana, portanto,

    representava bem os interesses da elite econmico-financeira do estado. Ao findar

    a gesto Ges Calmon, esta elite que o apoiara encontrava-se contemplada, o que

    transparece pela avaliao positiva que, reiteradas vezes, A Tarde fez do seu

    governo, considerado de restaurao da Bahia, de soerguimento econmico e

    moral da decadncia a que fora submetida pelos governos anteriores,

    particularmente os sempre enfatizados doze anos precedentes do domnio

    seabrista.23

    Segundo A Tarde, ao assumir o governo em 1924, Ges Calmon se

    deparara com uma Bahia humilhada, decadente, afeita a processo polticos

    desgraados, condio a que havia sido arrastada pelos doze anos de um regime

    de politicagem vergonhosa. Diante desse quadro desolador de decadncia e

    misrias, a tarefa administrativa do seu mandato seria pesadssima, fazendo-se

    necessrio um pulso seguro, capaz de a desempenhar sem receios, nem

    transigncias, evitando-se uma recada nos mesmos erros, nas mesmas praxes

    condenveis que tanto nos tinham aviltado. Na viso do jornal, ao findar o

    quatrinio de trabalho consagrado com entusiasmo ao ressurgimento da Bahia,

    a tarefa administrativa fora encarada de frente, levando a cabo um programa de

    reabilitao moral, econmica e financeira do estado:

    quatro anos de labor ininterruptos bastaram a que

    enveredssemos firmes por melhores caminhos e logo

    22 O candidato apresentado pelo PRD foi o deputado federal Arlindo Leoni, em 29 de dezembro de1923. 23 O primeiro governo de Seabra, 1912 - 1916; o governo de Antnio Moniz, 1916 1920; quem governou de

    fato foi Seabra; e o segundo governo de direito e terceiro de fato de Seabra, 1920 1924.

  • 32

    colhssemos frutos magnficos. Relegados ao

    esquecimento os hbitos malsos que ainda provocam

    saudades em certa gente despeitada, porque se viu

    tolhida de continuar a meter nas algibeiras grossas

    maquias das rendas do Tesouro.24

    O governo de Ges Calmon havia feito, entretanto, mais uma vez, evidente

    que o jogo do poder entre as elites regulado por uma sinuosa administrao de

    interesses particulares que supe sempre a existncia de conflitos. Aps a vitria,

    na composio dos quadros administrativos do governo, a faco oposicionista

    que deu sustentao campanha se subdividiu em duas, uma ligada aos Calmon, a

    faco calmonista e outra ligada a Otvio Mangabeira, a faco mangabeirista. A

    distribuio de cargos feita por Ges Calmon contemplava os ex-seabristas que o

    ajudaram a eleger-se. Esta medida aliada desconfiana de que os Calmon

    deteriam a hegemonia na liderana poltica desencadeou o conflito no interior da

    oposio. Este conflito chegou ao extremo na negociao para a sucesso estadual

    de 1930.

    Vital Soares, que substitura Ges Calmon, interrompera seu mandato com

    apenas dois anos de administrao, abrindo um espao de disputa do cargo para o

    qual fora eleito. Deixava o governo do estado, sob o comando do senador

    Frederico Costa, presidente do Senado estadual, para candidatar-se vice-

    presidncia da Repblica. Apesar de ter iniciado sua vida pblica como fervoroso

    rusta, em 1908, quando foi eleito Conselheiro Municipal, s ganhou projeo

    poltica aps a ascenso de Ges Calmon ao governo do Estado, em 1924. O

    jornal A Tarde, pela referncia altamente elogiosa com que freqentemente o

    apresentava ao pblico, desempenhou um papel ativo nesta projeo,

    impulsionada pela campanha para a sucesso estadual de 1928.

    Para A Tarde, Ges Calmon, ao indic-lo como sucessor do seu governo,

    fizera a escolha certa, no pela amizade que os unia desde a juventude ou por

    negociatas onerosas, mas sim para dar Bahia a continuidade da obra de

    regenerao moral e material do Estado. Representava o governo de Ges

    Calmon como progressista, e, a constante indicao de que aps seu mandato a

    24 A Tarde, 28 mar. 1928, p.2

  • 33

    Bahia passou a marchar nos trilhos ou marchar no eixos, evocava a idia de

    uma ordem plenamente justa derivada do uso da razo. Alis, esta idia deu

    sustentao a outros argumentos, como ser abordado no prximo captulo.

    Esta representao evocava tambm a imagem da grande locomotiva que

    seguiria veloz a rota do progresso, a preciso da tcnica, originada de um saber de

    cunho mecnico, noes que norteavam o iderio liberal da imprensa da poca.25

    Vital Soares encontraria, assim, o terreno desbravado, pois iria pisar em trilho

    de cho resistente, de modo que sua administrao seria de grandes surtos

    materiais quando a continuidade de critrios reabilitadores e progressistas

    haveria de manter-se ntegra.26

    Depois de constitudo o seu governo, A Tarde assegurava que Vital Soares

    no se desviou da boa rota. Segue-a firme, alargando-a indiferente atoarda do

    despeito e apontava que seu objetivo era resolver os grandes problemas ligados

    ao progresso desta terra.27 Explicava que a sua profcua administrao devia-

    se s suas reconhecidas qualidades, ressaltando com freqncia o esprito

    liberal, a honestidade, a inteligncia, a cultura, a serenidade, o trabalho

    metdico. Graas a estas qualidades, havia construdo um ambiente honesto e

    laborioso na Bahia, oferecendo a prova de sua capacidade como homem de

    estado.28 Acentuava que, de todas as qualidades, esta ltima era a mais

    importante, e justificava:

    no s talento e a cultura possui o sr. Vital Soares. O

    talento no basta para fazer o poltico. necessrio que

    haja um homem por trs do Estado. (...) E ele o . A sua

    honestidade posta a prova em vinte e tantos anos de vida

    pblica, a sua independncia de opinies o seu carter

    sem jaa, a sua tolerncia extrema, tudo o que se deve

    exigir de um homem que pretende ser o meneur de um

    povo, se encontra no sr. Vital Soares.29

    25 CAPELATO, Maria Helena. Os arautos do liberalismo, p. 140. 26 GALLO, Wenceslau, O contraste confortador. A Tarde, 28 jan. 1928, p.1. 27 A Tarde, 28 mar. 1929, p. 1 28 A Tarde, 03 dez. 1928, Tpicos, p. 2. 29 CARDOSO, Benedicto. O homem. A Tarde, 03 fev. 1928, p. 2.

  • 34

    Alm da sistemtica exaltao que A Tarde fazia deste governo, a atuao

    de Simes Filho foi decisiva na negociao, junto ao presidente da Repblica, do

    nome de Vital Soares como vice da chapa Jlio Prestes. O sucesso desta

    negociao foi uma garantia de estreitamento dos laos de reciprocidade entre o

    deputado e o governador, que procuraria dar suporte candidatura de Simes

    Filho, ento lder da bancada federal do Partido Republicano da Bahia (PRB), na

    eleio do seu sucessor.

    A diviso interna do partido, contudo, gerou um delicado embarao para

    Vital Soares: teria que optar entre Simes Filho, cujo nome havia indicado como

    seu substituto, mas que fora rejeitado pelos calmonistas, e Miguel Calmon,

    lanado candidato pelos calmonistas, intimamente ligado a Ges Calmon, a quem

    devia lealdade. Embora coubesse a Vital Soares a incumbncia de escolher o

    candidato oficial do partido, estava comprometido por laos de reciprocidade com

    ambas as faces, preferindo deixar que, por si, elas contornassem o impasse. A

    soluo que encontraram foi a renncia de Simes Filho e Miguel Calmon, que

    pretendiam apresentar-se como candidatos ao governo do estado, e a apresentao

    da candidatura de Pedro Lago.30

    Como se pode notar a partir do exemplo acima, esta disposio ao acordo

    ou acomodao no era sinnimo de convergncia absoluta de interesses entre

    as faces polticas dirigentes; antes indicava que as elites polticas e econmicas

    sempre colocaram, acima das divergncias internas, que poderiam solapar seu

    domnio, o compromisso de manter entre si o poder poltico do estado. Sabiam

    que a depender das circunstncias, o acirramento destas divergncias poderia

    enfraquec-las, ameaando o poder j conquistado, por isso a todo tempo se

    impunham a necessidade de negociar interesses e estabelecer acordos.

    Esta frmula garantia a perpetuao do poder das oligarquias, afastando

    da ao poltica a participao popular e a excluso da pauta dessas negociaes

    de interesses das camadas menos favorecidas, mas no eliminava o conflito de

    interesses imediatos e circunstanciais no interior dos diferentes grupos

    30Ver SAMPAIO, Consuelo Novais. Op. cit.

  • 35

    dirigentes.31 Assim, Sem adversrio, Pedro Lago foi eleito governador da Bahia,

    em 7 de setembro de 1930. Enquanto aguardava o reconhecimento da

    Assemblia Legislativa, o movimento revolucionrio se expandia e ele jamais

    chegou a tomar posse do governo do estado.

    A proximidade das eleies seja para cargos estaduais ou federais, era o

    que ensejava a movimentao poltico-partidria na Bahia e no Brasil durante a

    Repblica Velha. Sobretudo visando ao sucesso na disputa dos cargos eletivos e

    administrativos, os polticos se articulavam em torno de nomes e se faziam

    vinculados a partidos criados nestas ocasies. A campanha para a sucesso

    presidencial de 1929 foi particularmente interessante para a Bahia, pois a chapa

    oficial contava com o baiano Vital Soares, que concorreria ao cargo de vice-

    presidente da Repblica.

    A poltica dos governadores, posta em prtica a partir do governo de

    Campos Sales (1898 1902), regulava as relaes entre os estados e a Unio,

    garantindo a autonomia dos estados em troca do seu apoio ao presidente da

    Repblica, que dependia desta sustentao para manter-se no poder. Embora este

    princpio valesse para todas as unidades da federao, o processo poltico nacional

    encontrava-se sob a hegemonia dos estados mais fortes: So Paulo e Minas

    Gerais.32 Portanto, a oportunidade favorecia a Bahia que, se no podia oferecer

    presidentes ao Brasil, gozava o prestgio nada desprezvel de oferecer-lhe um

    vice-presidente.

    A reciprocidade nesse jogo de interesses trazia uma regra bsica: se o

    governo federal dependia do apoio dos estados para dar sustentao ao seu

    mandato, a interferncia federal era garantia de vitria nas disputas locais. Neste

    sentido, o governo de Artur Bernardes (1922 1926) fora um fator determinante

    para frear o domnio seabrista na Bahia. Em 1923, o presidente garantiu o

    funcionamento do Legislativo oposicionista baiano, atravs de advertncia do

    Ministro da Justia ao governador J. J. Seabra, para que no impedisse o ingresso

    31A reconstruo das relaes e conflitos entre as elites fundamental para a elucidao da histria poltica do Brasil. Ver GOMES, Angela de Castro (org). Regionalismo e centralizao poltica.. Partidos e Constituinte nos anos 30. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. 32 SOUZA, Maria do Carmo Campello de. O processo poltico-partidrio na Primeira Repblica. In MOTA, Carlos Guilherme. Brasil em perspectiva, 16 ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1987, p. 185-189.

  • 36

    dos deputados oposicionistas no prdio da Cmara, coagindo o governador a

    aceitar como legtima a oposio ao seu governo. Alm disso, neste mesmo ano,

    reconheceu Pedro Lago senador, contrariando mais uma vez os interesses de

    Seabra; e, por fim, selando o colapso da liderana seabrista, garantiu a posse de

    Ges Calmon como governador em 1924. Desse modo, a candidatura de Vital

    Soares para a vice-presidncia abria perspectivas promissoras para os segmentos

    da elite baiana que o apoiavam, os quais, diante do apoio declarado do presidente

    Washington Luiz, tinham, antecipadamente, certeza da vitria.33

    Ao fim da Primeira Repblica na Bahia, consubstanciava-se o predomnio

    do Partido Republicano da Bahia (PRB), fundado em janeiro de 1927, que

    congregava as trs faces polticas mais importantes da poca: calmonistas,

    mangabiristas e ex-seabristas34. A vitria deste partido nas eleies estaduais e

    federais, tendo frente polticos como Otvio Mangabeira, Miguel Calmon,

    Simes Filho, Pedro Lago, Vital Soares, significava o expurgo, na poltica local,

    da influncia de J.J. Seabra, que havia estabelecido, na Bahia, um domnio

    oligrquico como at ento (1912) ela no conhecera.35

    Mas o movimento revolucionrio de 1930 barraria esta ascenso,

    deslocando o Partido Republicano da Bahia (PRB) do poder. Devido a este

    movimento, seus principais lderes seriam exilados. O sentido que se daria

    chamada Revoluo de 1930 decorria das experincias vividas pelos diferentes

    segmentos. A Tarde, que nesta circunstncia era porta-voz dos que foram

    destitudos do poder, buscou mostrar como a nova organizao poltica era

    ilegtima e abusiva.

    33 SAMPAIO, Consuelo N. Op. cit. p.130 141.

    34 A direo do partido cabia sua Comisso Executiva, composta pelos senadores Miguel Calmon du Pin e

    Almeida e Pedro Francisco Rodrigues do Lago; pelo Ministro das Relaes Exteriores, Otvio Mangabeira;

    pelos deputados federais Antnio Pereira da Silva Moacir, Ernesto Simes Filho e Francisco Rocha; pelo

    presidente do Senado Estadual, coronel Frederico Augusto Rodrigues da Costa; pelo presidente da Cmara

    Estadual e, por fim, pelo governador do estado, Vital Soares.

    35 Ver SAMPAIO, Consuelo N. Op. cit. p. 76.

  • 37

    I.2 O Significado da Revoluo de 1930

    O movimento revolucionrio de 1930 uniu, sob a bandeira da Aliana

    Liberal, foras polticas distintas: o tenentismo, as oligarquias agrrias no

    cafeeiras, setores urbanos e classes mdias. Contudo, tomado o poder e instalado o

    Governo Provisrio, esta composio de foras comeou a diluir-se, dando lugar a

    um processo de disputa pela direo poltica do pas, quer em nvel federal, quer

    em nvel estadual.36

    O perodo ps-revolucionrio, pois, caracteriza-se pelo confronto poltico

    no campo das elites. Enquanto os tenentes cumprem um importante papel na

    realizao do projeto de centralizao poltica, os setores oligrquicos defendem o

    federalismo. Assim, se, por um lado, o tenentismo realiza uma verdadeira ofensiva

    poltica, por outro, as oligarquias, afastadas do poder, reagem e se rearticulam,

    preparando o terreno para a organizao do movimento constitucionalista que

    culmina com a revolta paulista de 32.

    O confronto entre as elites tornou-se mais agudo evidenciando a

    instabilidade poltica que caracteriza os primeiros anos da dcada de 30 que, no

    dizer de Capelato, so marcados pelas indefinies polticas e ideolgicas.37 A

    grande instabilidade poltica deste perodo abre espao para a explicitao das

    divergncias de opinies e escolhas polticas de indivduos ou de grupos,

    registradas em variadas fontes, sendo particularmente freqente sua veiculao

    pela imprensa.

    A pluralidade de propostas explicitadas neste momento indica diversas

    possibilidades de reorientao poltica para o Brasil e, ainda que, na maioria das

    vezes, estas propostas no integrem projetos articulados, elas expressam a

    dinmica de um contexto onde diferentes segmentos das elites no s disputam a

    conduo do poder poltico, como pensam uma nova representao do poder e

    36 Ver GOMES, Angela de Castro (org.). Regionalismo e Centralizao Poltica,. p. 23 a 39. 37CAPELATO, Maria Helena. Estado Novo: novas histrias. In FREITAS, Marcos Cezar de (org.). Historiografia brasileira em perspectiva. So Paulo: Contexto, 1998, p. 188.

  • 38

    propem, segundo interesses especficos, a melhor soluo poltico-

    administrativa para o pas.

    Este debate, que envolve posicionamentos polticos distintos, se estrutura,

    como observa Vavy Pacheco Borges, em torno de alguns conceitos, tais como

    oligarquia, burguesia, Primeira Repblica, Segunda Repblica, Movimento de

    Outubro, Revoluo de Outubro, Revoluo de 30, Revoluo Constitucionalista,

    Contra-Revoluo, sendo especialmente relevante em todas discusses o conceito

    de revoluo.

    Segundo esta autora, em todas as falas, seja no debate mais amplo que

    agitava o meio poltico nacional, seja nas disputas polticas menores do dia-a-dia,

    o conceito de revoluo colocava-se claramente como central para todas as

    vozes envolvidas; isso se percebe nos variados registros (na imprensa, em anais,

    como em ensaios, memrias e at na literatura).38 Sendo elemento central nas

    discusses polticas dos anos 30, o conceito de revoluo no designa, porm,

    um acontecimento definido consensualmente. Ao contrrio, o seu significado

    variou de acordo com os interesses polticos dos interlocutores, revelando o

    conflito entre as elites bem como suas estratgias de articulao num contexto de

    ruptura poltico-institucional.

    Ainda segundo Vavy Pacheco, pode-se depreender dois contedos bsicos

    do termo nestas interpretaes. Por um lado, definia-se a revoluo como um

    movimento eminentemente poltico, apesar de ter precisado da atuao militar

    para estabelecer-se. Este movimento terminou ou deveria terminar com a

    substituio dos homens no poder. A revoluo deveria restabelecer a ordem no

    pas, pela imediata reconstitucionalizao.

    No contexto baiano, o jornal A Tarde refletia, atravs de sua opinio sobre

    a revoluo, esta interpretao. Na avaliao de seus articulistas, como ilustra um

    artigo de Wenceslau Gallo, publicado em janeiro de 31, a revoluo prometera

    com muita eloqncia salvar o pas, mas limitara-se a substituir por aparelhos

    novos as peas da mquina federativa, favorecendo com sinecuras seus

    38BORGES, Vavy P. Anos trinta e poltica: histria e historiografia. In FREITAS, Marcos Cezar de ( org.). Op. cit. p. 161.

  • 39

    correligionrios. feito o concerto, reclamava o autor, logo volte o regime legal,

    que a todos garante, a todos premiando e punindo.39

    Por outro lado, a revoluo era compreendida como um movimento mais

    amplo de transformaes sociais, que se propunha a modificar a estrutura poltico-

    social do pas e, como tal, era um processo que deveria continuar alm de outubro,

    para consolidar-se. Neste sentido, a revoluo propiciaria uma mudana da

    mentalidade poltica do pas, e a convocao imediata de uma Constituinte

    poderia desvirtuar este propsito. Defendiam esta concepo os tenentes e

    adesistas revolucionrios para os quais fazia-se necessria a vigncia temporria

    do regime de exceo.40

    Tambm no mbito da historiografia, as interpretaes sobre o perodo que

    se inicia com a Revoluo de 30 so muito divergentes. Pode-se destacar pelo

    menos quatro tendncias explicativas das mudanas de natureza poltico-

    econmico-social ocorridas ao longo do governo Vargas.41

    A primeira tendncia decorre da interpretao feita por Francisco Weffort

    e Boris Fausto, que explicam a Revoluo de 30 como um movimento que

    resultou da unio de diferentes grupos sociais, dos quais nenhum pde oferecer

    ao estado as bases de sua legitimidade. Da instalar-se nos anos posteriores a

    1930 o estado de compromisso, representando o acordo entre as vrias fraes

    da burguesia, do qual as classes mdias so favorecidas, mas se mantm em

    posio subordinada, enquanto as classes operrias ficam margem.

    Segundo Boris Fausto, o estado de compromisso, expresso do reajuste

    nas relaes internas das classes dominantes corresponde, por outro lado, a uma

    nova forma de Estado, que se caracteriza pela maior centralizao, o

    intervencionismo ampliado e no restrito apenas rea do caf, o estabelecimento

    de uma certa racionalizao no uso de algumas fontes fundamentais de riqueza

    39 A Tarde, 09 jan. 31, p. 3 40 BORGES, Vavy P. Op. cit. p. 161. 41 MARTINS, Silvia Zanirato. Os artfices do cio. Mendigos e vadios em So Paulo ( 1933 - 1942 ). Londrina: UEL, 1997.

  • 40

    pelo capitalismo internacional.42 Afirma ainda o autor que as conexes entre a

    Revoluo de 30 e os processos de industrializao se estabelecem ao longo do

    perodo ps-revolucionrio, sendo a forma que o Estado assume condio bsica

    para a expanso da indstria nacional.43

    Uma segunda tendncia interpretativa representada pelos trabalhos de

    Edgar de Decca e Carlos Vesentini, que fazem uma avaliao da historiografia

    sobre a revoluo de 30, produzida at a dcada de 70, caracterizando-a como

    uma construo ideolgica que suprimiu da histria deste acontecimento a luta de

    classes e a atuao da classe operria. Edgar de Decca, em seu livro 1930 - O

    silncio dos vencidos, submete a uma desmontagem esta construo

    ideolgica, buscando evidenciar que a luta de classes a dinmica prpria pela

    qual se podem explicar os acontecimentos histricos.

    O autor aponta o movimento operrio do final dos anos 20 como o

    verdadeiro marco das transformaes que se convencionou