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1 A TEOLOGIA DA UNIDADE Eclesialidade, eucaristia e ministérios em perspectiva ecumênica: Estudo a partir de “Unitatis redintegratio” Dr. Pe. Marcial Maçaneiro, SCJ. Introdução Nas últimas décadas muito se passou no campo do ecumenismo. Hoje vemos que o decreto Unitatis redintegratio foi pioneiro em muitas coisas; profético em algumas; surpreendido por outras. É pioneiro ao ensaiar uma eclesiologia de comunhão e introduzir oficialmente a Igreja Católica no diálogo ecumênico. Profético quando assume os esforços de diálogo já iniciados e qualifica as demais igrejas como comunhões batismais. Surpreendido pela autonomia de algumas esferas do diálogo, bastante livres em relação às instituições confessionais; pelos fatores não-teológicos que desafiam o caminho da unidade; e até pelo pentecostalismo moderno. Muito poderíamos dizer a respeito disto. Mais ainda se considerarmos o largo horizonte que o ecumenismo vislumbra atualmente, com seus sinais de tempestade ou bonança, de brisa ou ventania. Diante disto, fizemos uma escolha. Por método, sim. Mas também pelo cuidado. Este decreto conciliar é complexo. Diz mais do que parece dizer à primeira vista. Apesar do tempo transcorrido, ele é atual e toca a sensibilidade de muitas Confissões cristãs. Como lê-lo? E que passos nos fizeram chegar à presente contribuição? Primeiro passo: perceber, no largo horizonte ecumênico, algumas questões específicas e particularmente exigentes como a eclesiologia, os sacramentos e o reconhecimento dos ministérios. Segundo passo: tendo isto presente, ler o documento a partir de sua própria lógica, para colher o que ele diz e o que nos permite dizer. Terceiro passo: articular teologicamente os conteúdos colhidos, na perspectiva de esclarecer as questões visadas (eclesiologia, sacramentos, ministérios), para a edificação da Igreja Una. Na esperança de que esta contribuição sirva para o diálogo, sobretudo no campo da teologia, procuramos ser claros e didáticos: citamos as fontes, conectamos as afirmações mais significativas, mostramos os contrastes, indicamos as possibilidades de consenso, delineamos eventuais soluções. Os tópicos resultantes são sete: 1) a koinonia trinitária; 2) unidade na diversidade; 3) novas perspectivas; 4) a Igreja de Cristo, obra do Espírito Santo; 5) batismo e eucaristia; 6) Igrejas e Comunidades eclesiais; 7) a ministerialidade das igrejas.

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A TEOLOGIA DA UNIDADE

Eclesialidade, eucaristia e ministérios em perspectiva ecumênica: Estudo a partir de “Unitatis redintegratio”

Dr. Pe. Marcial Maçaneiro, SCJ.

Introdução

Nas últimas décadas muito se passou no campo do ecumenismo. Hoje vemos que o decreto Unitatis redintegratio foi pioneiro em muitas coisas; profético em algumas; surpreendido por outras. É pioneiro ao ensaiar uma eclesiologia de comunhão e introduzir oficialmente a Igreja Católica no diálogo ecumênico. Profético quando assume os esforços de diálogo já iniciados e qualifica as demais igrejas como comunhões batismais. Surpreendido pela autonomia de algumas esferas do diálogo, bastante livres em relação às instituições confessionais; pelos fatores não-teológicos que desafiam o caminho da unidade; e até pelo pentecostalismo moderno. Muito poderíamos dizer a respeito disto. Mais ainda se considerarmos o largo horizonte que o ecumenismo vislumbra atualmente, com seus sinais de tempestade ou bonança, de brisa ou ventania. Diante disto, fizemos uma escolha. Por método, sim. Mas também pelo cuidado. Este decreto conciliar é complexo. Diz mais do que parece dizer à primeira vista. Apesar do tempo transcorrido, ele é atual e toca a sensibilidade de muitas Confissões cristãs. Como lê-lo? E que passos nos fizeram chegar à presente contribuição? Primeiro passo: perceber, no largo horizonte ecumênico, algumas questões específicas e particularmente exigentes como a eclesiologia, os sacramentos e o reconhecimento dos ministérios. Segundo passo: tendo isto presente, ler o documento a partir de sua própria lógica, para colher o que ele diz e o que nos permite dizer. Terceiro passo: articular teologicamente os conteúdos colhidos, na perspectiva de esclarecer as questões visadas (eclesiologia, sacramentos, ministérios), para a edificação da Igreja Una. Na esperança de que esta contribuição sirva para o diálogo, sobretudo no campo da teologia, procuramos ser claros e didáticos: citamos as fontes, conectamos as afirmações mais significativas, mostramos os contrastes, indicamos as possibilidades de consenso, delineamos eventuais soluções. Os tópicos resultantes são sete: 1) a koinonia trinitária; 2) unidade na diversidade; 3) novas perspectivas; 4) a Igreja de Cristo, obra do Espírito Santo; 5) batismo e eucaristia; 6) Igrejas e Comunidades eclesiais; 7) a ministerialidade das igrejas.

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1. A KOINONIA TRINITÁRIA

Já nas primeiras linhas o Decreto Unitatis redintegratio define o ecumenismo como “movimento da unidade” e diz que “dele participam os que invocam o Deus Trino e confessam a Jesus como Senhor e Salvador”1. A “invocação” da Trindade, aqui citada, remonta ao “patrimônio comum” a todas as “comunhões” cristãs2. A fé trinitária é eminentemente bíblica, sugerida nas Escrituras Judaicas e explicitada pelos autores do Novo Testamento. As primeiras gerações cristãs acolheram a revelação de Deus Trino, aplicando-lhe o olhar da contemplação e a inteligência da fé. Exemplo disto são a teologia patrística e o magistério inicial da Igreja, que desenvolveram brilhantemente a doutrina de Deus Uno e Trino – Pai, Filho e Espírito – três hipóstases na koinonia de uma só divindade3. A exemplo da Igreja indivisa: Na consolidação da teologia trinitária concorreram especialmente os primeiros Concílios, no marco da Igreja indivisa4. A expressão Igreja indivisa engloba o primeiro milênio do cristianismo, antes do cisma entre Ocidente e Oriente, em 1054. Hoje, cheios de esperança, voltamos o olhar a este primeiro milênio cristão5. Ali todos nós – católicos, ortodoxos, reformados, anglicanos e evangélicos – nos situamos num terreno comum, que foi semeado pela tradição apostólica, fértil de intuições teológicas, florescente na liturgia e exemplar pela comunhão plural que tal época soube manter. Pois, nas Igrejas do primeiro milênio, ritos e disciplinas diferentes conviviam sem romper a unidade sacramental. Celebravam-se sínodos e os episkopoi exerciam fraterna colegialidade. As sedes episcopais de Jerusalém, Antioquia, Alexandria e Constantinopla se reconheciam mutuamente, ao lado de Roma, que as presidia na caridade6. Sabemos que acolher os valores do primeiro milênio cristão não significa transplantar, talvez anacronicamente, certos esquemas. Mas a communio ecclesiarum daqueles séculos – cultivada pela caridade, pelo martírio e pela co-participação nos sacramentos – é sempre um referencial positivo e inspirador para a comunhão atual das nossas Igrejas e Comunidades. A Trindade, “arché” da comunhão eclesial: Além da doutrina comum referente à Trindade contemplada e professada a partir das Escrituras, a fé no Deus Trino está na própria raiz da Igreja Una. Na

1 Decreto Unitatis redintegratio 1 (a seguir, indicada pela sigla UR). 2 UR 4 e 12, respectivamente. 3 Cf. UR 2, final do parágrafo. 4 Cf. UR 14. 5 Procedimento de João Paulo II na Encíclica Ut unum sint 54-55 (a seguir, indicada pela a sigla UUS). 6 Jerusalém, Antioquia, Alexandria, Roma e Constantinopla: patriarcados apostólicos da chamada “pentarquia”.

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comunhão do Pai, do Filho e do Espírito Santo, que juntos (co)operam para a salvação universal, se encontra a arché (princípio) donde se desenvolve e manifesta o mistério íntimo da Igreja: sua natureza, sacramentalidade, significado e realização se vinculam fontalmente à koinonia trinitária7. A Igreja é esboçada no desígnio salvífico do Pai, fundada no tempo pelo Messias Jesus e manifestada universalmente pelo Paráclito, em Pentecostes. “Desta maneira aparece a Igreja toda como o povo reunido na unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo”8. O ecumenismo, resposta à Trindade:

“Nisto se manifestou a caridade de Deus para conosco, a saber: que o Filho Unigênito de Deus foi enviado ao mundo pelo Pai, a fim de que – feito homem – remisse todo o gênero humano e assim o regenerasse e unificasse”9.

O ecumenismo é resposta dos cristãos e cristãs à Trindade. É questão de veracidade do cristianismo. Ou a fé cristã se realiza como proposta de comunhão entre os seres humanos e destes com Deus, ou deixa de ser autêntica. A própria Igreja se inclui nesta condição de autenticidade evangélica quando proclama a si mesma “sacramento de união”10. Deste modo, o amor comunional dos batizados já realiza entre eles a unidade (chamada a manifestar-se sempre mais plenamente) e brilha no mundo como sinal indicativo da comunhão de todos na una humanidade reconciliada. Por isso, o movimento ecumênico não se satisfaz com as experiências de unidade já conquistadas, mas se amplia evangelicamente a todas as Igrejas e, destas, à humanidade inteira. O ecumenismo tem alcance universal, não por estratégia ou vontade humana, mas porque o Evangelho de Jesus é uni-versal (= na direção do uno), bem como a comunidade messiânica que ele fundou (cf. Mt 28,19). A proposta de unidade é essencial à identidade cristã e constitui o horizonte trinitário modelar de cada Igreja e Comunidade concreta: “Que todos sejam um” (Jo 17,21). Para os gregos, ecumene designava a Terra habitada. Compreensão que o cristianismo herdou e reelaborou teologicamente. No âmbito da fé, o adjetivo ecumênico significa mais do que extensão geográfica. Significa co-participação salvífica. Unidade. Comunhão. Em uma palavra: koinonia11. Pois toda relação “ecumênica” vincula-se à koinonia trinitária de modo fontal: o ecumenismo se

7 Cf. especialmente na Constitutição Dogmática Lumen gentium 1-4 (a seguir, indicada pela sigla LG). 8 LG 4. 9 UR 2, remetendo a 1Jo 4,9; Col 1,18-20 e Jo 11,52. 10 Cf. LG 1 e 48, especialmente. 11 Koinonia é o termo grego correlato ao latim communio. Aproxima-se também da noção de sobornost da Igreja Ortodoxa Russa. A compreensão de koinonia engloba unidade, interação, convivialidade, participação e inclusão. Não significa singularismo, monismo ou uniformidade, mas sim a conciliação de diferenças numa comunhão duradoura e includente, plasmada pelo amor. Neste sentido o termo é abordado por João Paulo II: UUS 9 e 82-85.

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compreende na ação regeneradora e unificante que a própria Trindade exerce no mundo (pela mediação da Igreja primeiramente, mas também além da Igreja). Na comunhão trinitária o ecumenismo tem sua raiz; na união dos cristãos tem sua realização:

“Lembrem-se todos os fiéis de Cristo que tanto melhor promovem e até exercem a união dos cristãos, quanto mais se esforçarem por levar uma vida mais pura conforme o Evangelho. Quanto mais unidos estiverem em comunhão estreita com o Pai, o Verbo e o Espírito, tanto mais íntima e facilmente conseguirão aumentar a mútua fraternidade”.12

Ecumenismo e Igreja: A vinculação do ecumenismo à Igreja o define, mas não o confina. A definição de diálogo ecumênico em sentido estrito (diálogo de batizados em vista da unidade da Igreja de Cristo) inclui na sua compreensão a humanidade inteira e una, na diversidade das línguas, culturas e nações, diante das quais a Igreja se apresenta como “sacramento ou sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano”13. Neste sentido, o ecumenismo promove a “plena catolicidade” da Igreja14, ao contemplar, desde a comunidade batismal, todas as comunidades humanas. Quanto mais for promovida e restaurada aquela unidade que Cristo confiou à sua ekklesía, mais plenamente a Igreja cumprirá sua missão de congregar num só Povo de Deus todos os remidos, “do justo Abel ao último dos eleitos”15. Igreja una e universal, porque destinada à una humanidade, como também una é a Trindade da qual provém16. Disto concluímos que a Igreja é chamada a ser ecumênica, tanto quanto o ecumenismo é chamado a ser eclesial, porque ambos se encontram no mysterium unitatis que o Pai decretou, o Filho inaugurou e o Espírito suscita continuamente, nos coraçãos e nas comunidades17. Caridade, eucaristia, unidade:

“E ele (Jesus), antes de se oferecer no altar da Cruz como hóstia imaculada, rogou ao Pai em favor dos que crêem, dizendo: ‘Para que todos sejam um, como tu, Pai, em mim e eu em ti; para que sejam um em nós, a fim de que o mundo creia que tu me enviaste’ (Jo 17,21)”18.

Aqui a unidade dos cristãos é elevada à categoria de mistério e vocação escatológica, como desenvolvimento pleno da vida batismal. Pois Jesus e o Pai

12 UR 7. 13 LG 1, também 48. 14 UR 4. 15 Pensamento de Agostinho, apud LG 3. Sobre o novo e universal Povo de Deus cf. LG 13. 16 Cf. LG 2-4. 17 Idem, ibidem. 18 UR 2.

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são “um” em virtude do Espírito Santo, que é vinculum caritatis por excelência19. Igualmente nós cristãos: já somos “um” pelo batismo que partilhamos, enquanto amadurece a plena unidade que nos permitirá ser “um” pela eucaristia que esperamos partilhar. Por isso, o mesmo parágrafo prossegue: “E na sua Igreja (Jesus) instituiu o admirável sacramento da Eucaristia, pelo qual a unidade da Igreja é significada e realizada”20. Desejosos de nos encontrar, um dia, ao redor da mesma Mesa, buscamos progredir na caridade fraterna, sob o sopro vivificante do Espírito Santo: “A seus discípulos deu o novo mandamento do mútuo amor e prometeu-lhes o Espírito Paráclito, que – Senhor e Fonte de Vida – permanecesse com eles para sempre”21. Deste modo, o Decreto Unitatis redintegratio nos mostra o nexo íntimo entre caridade-eucaristia-unidade. Nexo que possui um duplo vínculo: de um lado a caridade mesma, vínculo da perfeição (cf. Col 3,14); de outro o Paráclito, vínculo da caridade (cf. Rm 5,5; Ef 4,3). Partindo daí o documento vai à eucaristia, sacramento que realiza visivelmente a unidade, promovendo o aperfeiçoamento contínuo da caridade fraterna. A tríade caridade-eucaristia-unidade concorre para a edificação do Corpo de Cristo e indica, nas entrelinhas, o paradigma trinitário da comunhão: a caridade nos remete ao Pai, amor-fontal da vida intradivina e de todo desígnio salvífico22; a eucaristia é memorial de Cristo, por cuja comunhão formamos um só corpo (cf. 1Cor 10,16-10)23; a unidade se conecta ao Espírito Santo, sendo ele mesmo “princípio da unidade”24. Contudo, assim como as divinas Pessoas se relacionam entre si em perfeita comunhão (pericorese), igualmente a caridade, a eucaristia e a unidade se implicam reciprocamente. A reflexão teológica contemplará num só movimento comunional cada uma das Pessoas em cada termo da tríade, sem confundi-las nem dividi-las. Assim, a koinonia trinitária é claramente apresentada como “modelo supremo” (supremum exemplar) e “princípio” (principium) da unidade da Igreja25.

19 O Paráclito é “vínculo da caridade” na comunhão eclesial e também na comunhão trinitária. Nós somos “um” no Espírito Santo, como também o Pai e o Filho são “um” no Espírito Santo, que é todo Amor e Dom. Cf. UR 2 e também a Encíclica Dominum et Vivificantem 10 (a seguir, indicada pela sigla DV). 20 UR 2. 21 Idem, ibidem. 22 O Pai como fontale-amor (amor fontal) está no Decreto Ad gentes 2. 23 Cf. Encíclica Ecclesia de eucharistia, capítulos II e IV (a seguir, indicada pela sigla EE). 24 “O Espírito Santo que habita naqueles que crêem, que enche e governa toda a Igreja, é quem realiza aquela maravilhosa comunhão dos fiéis e une todos tão intimamente em Cristo, de modo a ser Ele o princípio da unidade da Igreja”(UR 2). 25 “O supremo modelo e o princípio deste mistério (de unidade da Igreja) é a unidade na trindade de pessoas de um só Deus Pai e Filho no Espírito Santo” (UR 2, final)

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2. UNIDADE NA DIVERSIDADE Contemplando a Trindade, que é Una na diversidade das três Pessoas, entendemos que a unidade não se faz pela uniformidade, mas pela comunhão. A tese da unidade na diversidade é coerente com a fé trinitária e dela se depreende. Por isto é postulada repetidamente nos documentos eclesiais e na reflexão teológica26. Igualmente no Decreto Unitatis redintegratio: a koinonia do Pai e do Filho e do Espírito Santo é designada “modelo supremo” da unidade da Igreja27. Depois acrescenta que a unidade da Igreja na variedade de ministérios é obra do Espírito Santo28. Enquanto muitos repetem que o Paráclito é princípio de unidade, o documento adverte que o mesmo Paráclito é também princípio da diversidade29. Afinal, unidade e diversidade se conjugam na mesma comunhão. Não é este o exemplo da pericorese trinitária? Similarmente, não é a variedade de membros que forma o corpo? E nem por isso a diversidade significa divisão, ou a variedade de membros impede o movimento conjunto e articulado de todo o corpo (cf. 1Cor 12,12-30). Apesar disso, não corremos o risco, ao interno da comunhão romana, de negligenciar a sadia pluralidade eclesial? De que modo Unitatis redintegratio valoriza a diversidade? Em que sentido o documento a propõe? É claro que o Decreto não contempla todas as expressões da pluralidade eclesial. Trata-se de um texto situado em sua época, com objeto e finalidade precisos. A sensibilidade quanto à inculturação, missiologia e diálogo inter-religioso é mais evidente em outros documentos conciliares30. Inclusive no que se refere ao diálogo ecumênico, o texto não abarca certos aspectos mais recentes da pluralidade eclesial, como: certas distinções entre o dogma e a linguagem que o exprime (caso da Igreja Sírio-Antioquena, cuja suspeita de monofisismo está superada); o exercício sinodal da episkopê praticado por algumas Igrejas da Reforma; a apreciação inusitada de antigos ritos orientais (como a anáfora eucarística de Addai e Mari, da Igreja Assíria do Oriente, cuja ortodoxia foi recentemente comprovada pela Santa Sé); a admissão de mulheres à Ordem; a consolidação de ministérios laicais na comunhão romana; a fundação de Conselhos Ecumênicos Nacionais; a comunhão plena entre algumas Confissões anglicanas, reformadas e vétero-católicas (full communion); a apreciação do ministério petrino à luz do ministério episcopal; os diferentes modelos de unidade 26 Cf. COMISIÓN TEOLÓGICA INTERNACIONAL. “La unidad de la fe y el pluralismo teológico”. In Documentos. Madrid: BAC, 1998, p. 41-57. 27 UR 2. 28 “É Ele (Espírito Santo) quem opera a distribuição das graças e dos ministérios, enriquecendo a Igreja de Jesus Cristo com diferentes dons ‘a fim de capacitarem os santos para a tarefa do ministério, na edificação do corpo de Cristo’(Ef 4,1)” (UR 2). 29 Como se conclui de UR 2, citado acima, em sintonia com LG 4. No Novo Testamento, são clássicos os textos paulinos, sobretudo Rm 12,3-8 e 1Cor 12,4-11. 30 Sobretudo Lumen gentium, Ad gentes, Nostra aetate e Gaudium et spes. Cf. VIER, Frederico (coord.). Compêndio do Vaticano II: constituições, decretos, declarações. 26 ed. Petrópolis: Vozes, 1997.

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cristã debatidos pelo Conselho Mundial de Igrejas; o resgate da dimensão colegial da Igreja; as declarações teológicas conjuntas entre católicos, evangélicos e ortodoxos; a multiplicidade de iniciativas ecumênicas no campo bíblico, espiritual e social – para citar apenas alguns exemplos31. Por outro lado, Unitatis redintegratio valoriza a unidade da fé na diversidade de expressões e acolhe aspectos significativos da pluralidade teológica e eclesial: Diversidade de meios salvíficos: Sempre no plural, a expressão “meios de salvação”32 corresponde ao que Pedro denomina “multiforme graça de Deus”(1Pd 4,10) e o magistério traduz como consilia salutis: as diversas disposições da Sabedoria divina em benefício da salvação humana33. No dizer de Jesus em Jo 14,2 o Pai tem “uma casa” (unidade da salvação) de “muitas moradas” (pluralidade de meios salvíficos)34. Há um só designium salutis que Deus cumpre na pluralidade de seus consilia salutis. Estas disposições ou instrumentos pluriformes da graça – presentes na Igreja Católica – atuam eficazmente nas outras denominações cristãs: “mesmo as Igrejas e Comunidades separadas, embora creiamos que tenham deficiências, de modo algum estão destituídas de significado e importância no mistério da salvação. O Espírito Santo não recusa empregá-las como meios de salvação, embora a virtude desses derive da mesma plenitude de graça e verdade que foi confiada à Igreja Católica”35. Um só batismo, em distintas Comunhões cristãs: A Igreja de Cristo – una, santa, universal e apostólica – subsiste na Igreja Católica com inteireza de meios salvíficos. Perdura também nas Igrejas Ortodoxas e Orientais, sem deixar de assegurar às demais Comunhões cristãs “elementos de verdade e santidade” e “autênticos valores eclesiais”36. Em parte alguma o documento confunde a Igreja una (resultado da comunhão) com uma Igreja (resultante da soma)37. O que há, são proporções diferentes de participação das Igrejas na única e una Igreja de Cristo. Enquanto o texto aponta à união de todos

31 Cf. Enchiridion Oecumenicum vols. 1-5. Bologna: EDB, 1995-2000. Também COMISSÃO MISTA IGREJA CATÓLICA ROMANA E CONSELHO METODISTA MUNDIAL. Dizer a verdade na caridade: a autoridade de ensinar entre católicos e metodistas. S. Paulo: Paulinas, 2002. 32 UR 3. 33 1Pd 4,10 e Ef 3,10 apontam para a multiforme ação salvífica de Deus. A expressão consilia salutis está na Declaração Nostra aetate 1. 34 Cf. HILLMANN, Eugene. As várias moradas: os católicos diante do pluralismo religioso. S. Paulo: Loyola, 1997. 35 UR 3, retomado pela Declaração Dominus Iesus 17 (a seguir, indicada com a sigla DI). 36 UUS 87, interpretando UR 8. 37 Postura corrente na UR, explicitada em DI 17.

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em Cristo, não deixa de reconhecer o valor salvífico das várias Comunhões cristãs38. Uma Igreja, muitos ministérios: Embora o documento não descreva os ministérios existentes nas Igrejas, diz claramente que a “unidade da Igreja” se realiza “na diversidade de ministérios”, por “obra do Espírito Santo”39. Uma só fé, diferentes expressões: “Há um só Senhor, uma só fé e um só batismo”(Ef 4,4-5) expressos segundo a graça plural do Espírito Santo40. A variedade de tematizações teológicas, liturgias e tradições espirituais realça ainda mais “as insondáveis riquezas de Cristo” (Ef 3,8)41 confiadas à Igreja: “Resguardando a unidade nas coisas necessárias, todos na Igreja, segundo o munus dado a cada um, conservem a devida liberdade, tanto nas várias formas de vida espiritual e de disciplina, quanto na diversidade de ritos litúrgicos, e até mesmo na elaboração teológica da verdade revelada. Mas em tudo cultivem a caridade. Agindo assim, manifestarão sempre mais plenamente a verdadeira universalidade e apostolicidade da Igreja”42. O conselho sobre a caridade em todas as coisas é de Agostinho. Séculos depois, John Wesley o retoma e transmite como regra-de-unidade para a movimento metodista: “No essencial, unidade. No secundário, liberdade. Em tudo, o amor”43. Unidade na doutrina, variedade na disciplina: O que se afirmou acima ganha nova cor quando o documento se volta às Igrejas Ortodoxas e Orientais: “Longe de obstruir a unidade da Igreja, certa diversidade de usos e costumes antes aumenta-lhe o brilho e contribui positivamente para que ela cumpra sua missão. Por isso, este sagrado sínodo, para tirar toda dúvida, declara que as Igrejas do Oriente, lembradas da necessária unidade de toda a Igreja, têm a faculdade de se governar segundo as disciplinas próprias, mais conformes à índole de seus fiéis e mais aptas para atender ao bem das almas. A observância deste tradicional princípio, nem sempre respeitado, é condição prévia indispensável para a restaraução da união”44.

38 Cf. UR 3. 39 UR 2. 40 A unidade da fé na pluralidade de expressões está em UR 2. 41 Citado veladamente em UR 4 e claramente em UR 11. 42 UR 4. 43 Apud COLÉGIO EPISCOPAL METODISTA. Carta pastoral sobre ecumenismo. 2 ed. S. Paulo: Cedro, 2001, p. 44. 44 UR 16.

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3. NOVAS PERSPECTIVAS? As afirmações anteriores valorizam a unidade da fé na pluralidade de expressões e admitem, inclusive, uma sadia diversidade na disciplina e governo da Igreja. Tudo isto pode favorecer a realização sacramental e missionária do Corpo de Cristo, como sugere Unitatis redintegratio 16. Sabemos muito bem que, não só no cenário das Igrejas em geral, mas ao interno da Igreja Católica de sede romana há um mosaico multicor de projetos pastorais, espiritualidades, comunidades leigas, institutos de vida consagrada, acentos teológicos e ritos litúrgicos. Como católicos, experimentamos esta variedade às vezes com tensões, mas sobretudo como riqueza carismática que dinamiza e dá respiro a todo o Corpo eclesial45. Daí a revalorização dos Sínodos internacionais e locais, a articulação orgânica das Pastorais, o projeto igrejas-irmãs, a cooperação missionária ad gentes, a atuação das Conferências Episcopais, a promoção ecumênica da Campanha da Fraternidade, a recepção de leigos e leigas em ministérios não-ordenados e nos conselhos pastorais. Sinto, porém, que nem sempre esta sadia diversidade incide sobre nossa reflexão e atuação ecumênica. Continuam entre nós pessoas que insistem em ler parcialmente os documentos da Igreja; que se fazem indiferentes a qualquer apelo ecumênico. Isto destoa com as realizações recentes de uma Igreja em “diálogo de salvação” com as demais Comunhões cristãs46. Uma Igreja que “exorta todos os fiéis a que, reconhecendo os sinais dos tempos, participem solicitamente da tarefa ecumênica”47. Pois a Igreja Católica “não é uma realidade voltada sobre si mesma, mas aberta permanentemente à dinâmica missionária e ecumênica”48. “O ecumenismo, movimento a favor da unidade dos cristãos, não é um tipo de apêndice que se junta à atividade tradicional da Igreja. Pelo contrário, pertence organicamente à sua vida e ação, devendo, por conseguinte, permeá-la no seu todo, à semelhança de uma árvore que cresce sadia e viçosa até alcançar seu pleno desenvolvimento”49. Diante desta exortação, desejo superar as críticas com o descortinar de perspectivas. Pois a catolicidade que a comunhão romana assimilou é algo ímpar. Inclusive as nossas estruturas de disciplina, controle e supervisão de Igreja são chamadas a ouvir com fidelidade as Escrituras e o magistério oficial, de modo a nunca confundirem unidade com uniformidade: somos, por desígnio de Deus, uma comunhão de muitos em Cristo, tão universal quanto una50. Partindo desta experiência e revisitando o texto de Unitatis redintegratio, vejo que a participação católica no ecumenismo tem um papel particular: de acordo com

45 Cf. LG 4: a diversidade de dons e ministérios é graça do Espírito Santo para a vida da Igreja. 46 UUS 35. 47 UUS 8, relançando o apelo de UR 4. 48 UUS 5. 49 UUS 20. 50 Cf. novamente UUS 5.

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seu compromisso, pode obstruir ou construir. O próprio romano pontífice, sem renunciar a seu legítimo episcopado na Sé de Pedro, admite com sabedoria tais possibilidades, quando convida os demais irmãos no Senhor a refletirem, com sincera caridade eclesial, sobre as formas do ministério de comunhão por ele exercido51. Igual advertência a história nos dá, ao ver o mesmo pontífice pedindo perdão, em nome seu e da Igreja, pelas faltas cometidas52. Nossa secular tradição de universalidade eclesial nos fornece uma reserva de possibilidades quanto à colegialidade episcopal, exercício do ministério petrino, eclesiologia de comunhão, inculturação da fé, variedade litúrgica, originalidade de experiências pastorais, emergência das chamadas “comunidades novas”, co-responsabilidade do laicato, pluralidade de carismas na evangelização, comunidades consagradas de vocação ecumênica e muito mais. Esta reserva de possibilidades promete perspectivas e soluções no campo ecumênico. Prova disso foram os recentes compromissos e declarações conjuntas entre católicos, evangélicos, anglicanos e algumas Igrejas do Oriente. Quem poderia conceber, há trinta anos atrás, um texto de convergência sobre batismo, eucaristia e ministério? Quem imaginaria ser possível, após séculos de dissenso, uma Declaração Católico-Luterana sobre a Justificação? Ou uma retomada da intrincada questão das ordenações anglicanas? Quem sonharia com o abraço do Bispo de Roma com os patriarcas Bartolomeu, Karekin, Shenuda, Paulos, Mar Dinkha, Mar Ignácios Zakka e outros? Quantos bispos e teológos não se alegrariam, hoje, ao ver a suspeita monofisita desfeita em relação às Igrejas Sírio-Antioquena e Assíria Oriental? Quem poderia prever o esclarecimento do polêmico Filioque no diálogo com os ortodoxos? Quem pensaria num projeto igrejas-irmãs que articulasse uma diocese católica e outra anglicana, como propõe a Igreja diocesana de Milão?53 Admito, sim, certa inércia na atual conjuntura ecumênica, sobretudo nos diálogos oficiais. Mas não me permito (nem me permita o divino Paráclito) perder as esperanças de avançar no caminho da unidade. Por isso atuo, por isso intercedo ao Senhor. A história nos tem ensinado e continuará a nos ensinar. Creio no Espírito Santo que nos conduz “na plena verdade” (Jo 16,13). Confio na 51 Na Encíclica Ut unum sint João Paulo II pede perdão pelos equívocos históricos e eventuais desacertos no exercício do Papado (n. 88). Discorre sobre o ministério petrino a partir do Evangelho e como serviço exercido desde dentro do Colégio Episcopal (n. 90-94). Enfim, convida os teólogos e responsáveis de outras Confissões a dialogarem, na busca de formas de realização do ministério de unidade do Bispo de Roma que possam ser reconhecidas por todos (n. 95-96). 52 Pede perdão em seu nome: UUS 88. Pede perdão em nome de toda a Igreja Católica, na celebração pública de 12 de março do ano 2000 na Basílica de São Pedro, Vaticano. Sobre isto, cf. o volume com as palavras do Papa e outros peritos: GIOVANNI PAOLO II; COMMISSIONE TEOLOGICA INTERNAZIONALE. Il Papa chiede perdono: purificare la memoria. Casale Monferrato: Piemme, 2000. 53 Cf. ampla documentação em: Enchiridion Oecumenicum vols. 1-5. Bologna: EDB, 1994-2001. CONSEIL PONTIFICE POUR L’UNITÉ DES CHRÉTIENS: “La procession du Saint-Esprit”. In Enchiridion Vaticanum vol. 14. Bologna: EDB, 1995, p. 1726-1747. COMISSÃO FÉ E CONSTITUIÇÃO: Batismo, eucaristia, ministério. Rio de Janeiro: CONIC; CEDI, 1984. WOLFF, Elias: Caminhos do ecumenismo no Brasil. S. Paulo: Paulus, 2002. Também UUS capítulo II.

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capacidade teológica e pastoral de nossa Igreja e gostaria de ver mais irmãos e irmãs católicos comprometidos com a causa da unidade. Espero que, diante da reserva de possibilidades que a Providência nos abre, façamos como disse Jesus ao falar da pessoa versada nas coisas do Reino: saibamos retirar do nosso tesouro coisas novas e antigas, dispondo do depósito da fé com caridade e inteligência (cf. Mt 13,52).

4. A IGREJA DE CRISTO, OBRA DO ESPÍRITO SANTO Desde 1948, quando surgia o Conselho Mundial de Igrejas, a Santa Sé observava a evolução dos fatos, entre reservas e esperanças. Diante deste quadro histórico, o Concílio dá um passo significativo ao reconhecer o diálogo ecumênico como evento pneumático. Na iniciativa conjunta das confissões cristãs o texto de Unitatis redintegratio discerne a ação do Espírito Santo. Primeiramente de forma implícita, ao dizer que o ecumenismo provém da “compunção de coração” e do sincero “desejo de união”54 – graças “derramadas” por Deus sobre os cristãos e cristãs. O verbo “derramar” acena à ação do Paráclito, conforme linguagem bíblica (cf. Rm 5,5) e seu uso pneumatológico em Unitatis redintegratio 2. Assim como em Pentecostes, “muitas pessoas, por toda a parte, sentiram o impulso desta graça”55. Em seguida, diz explicitamente: “E também, por obra do Espírito Santo, surgiu, entre nossos irmãos separados, um movimento sempre mais amplo para restaurar a unidade de todos os cristãos. Este movimento de unidade é chamado movimento ecumênico”56. Ao dizer isto, o Concílio introduz a Igreja Católica oficialmente neste movimento, encontrando-se com os “irmãos separados” no mesmo “desejo de restaurar a unidade entre todos os discípulos de Cristo”57. O Conselho Mundial de Igrejas: Assim se desfazem cerca de vinte anos de expectativa (e, por vezes, de suspeita) quanto aos contatos ecumênicos iniciados pelas Igrejas da Reforma, aos quais aderiram também algumas Igrejas Ortodoxas e Orientais, congregadas em 1948 no Conselho Mundial de Igrejas (CMI). Entre as suspeitas, o receio de que o Conselho se pretendesse ou se tornasse uma super-igreja, reivindicando para si aquela universalidade própria da una et sancta ecclesia Christi proclamada no credo apostólico. Contudo, os tempos mostraram a índole do próprio CMI: este conselho ecumênico se define como um espaço eclesial, mas nunca reivindicou estatuto eclesiológico em senso estrito. Não se trata de um modo de a Igreja ser (modus essendi), mas sim de um espaço para a Igreja ser (locus essendi). O CMI “é uma fraternidade de Igrejas que confessam o Senhor Jesus Cristo como Deus e Salvador segundo as Escrituras, e se esforçam a fim de responder em conjunto à

54 UR 1. 55 Idem, ibidem. 56 Idem, ibidem. 57 No mesmo UR 1.

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sua vocação comum para a glória do único Deus, Pai e Filho e Espírito Santo”58. Congrega diferentes Confissões que são acolhidas como “igrejas” por todas as demais igrejas-membro; mas não constitui uma Igreja mundial, algum tipo de communio canônica, nem uma confederação eucarística de Igrejas. O CMI mira promover a reconciliação e unidade das Igrejas. O sacramento vinculante é o Batismo, por todos reconhecido quando ministrado em águas e no nome de Deus Trino, pelo qual se confessa a Jesus como salvador e redentor e se ingressa numa comunidade eclesial específica. Também não há um vínculo eucarístico comum: apesar de alguns debates nesse sentido, o CMI não ministra sacramentos em nome próprio. Até o momento, vigora a identidade de seu título: Consilium – traduzido por Conselho, Consejo, Conseil, Rat; e não Concilium – que se traduziria por Concílio, Concilio, Concile e Konzil 59. Resolvido isto, o Decreto reconhece o ecumenismo como “movimento de unidade” suscitado por “graça do Espírito Santo”60. A economia do Espírito: Nos parágrafos seguintes, o texto descreve o protagonismo do Espírito Santo em três esferas: na obra messiânica de Jesus, na sua Igreja e nas Comunidades e Igrejas que estão fora da comunhão romana. O Paráclito é dom pascal que o Crucificado-Ressuscitado nos envia da parte do Pai. Foi prometido por Jesus e derramado na sua glorificação messiânica. Por este mesmo Espírito, Jesus chamou e congregou na unidade da fé, da esperança e da caridade, o Povo da nova aliança, que é sua Qahal (Igreja)61. O batismo é o sacramento desta unidade:

“Com efeito, ‘todos quantos fostes batizados em Cristo, vos revestistes de Cristo (...). Pois todos vós sois um em Cristo Jesus’(Gl 3,27-28)”62.

Sacramento cuja eficácia é garantida na e pela economia do Pneuma, sendo este o princípio da unidade:

“O Espírito Santo, que habita nos crentes, que enche e governa toda a Igreja, é quem realiza aquela admirável comunhão dos fiéis e une todos tão intimamente em Cristo, de modo a ser o princípio da unidade da Igreja”63.

58 “Constituição” apud FÉ E CONSTITUIÇÃO; CONSELHO MUNDIAL DE IGREJAS. Batismo, eucaristia, ministério. Rio de Janeiro: CONIC; CEDI, 1984, p. 5. 59 Respectivamente em português, espanhol, francês e alemão, línguas que distinguem “conselho” e “concílio”. O inglês é exceção ao usar o termo Council, que significa também “concílio”. 60 UR 1 e 4, respectivamente. 61 Afirmações de UR 2. 62 Idem, ibidem. 63 Idem, ibidem.

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Sob sua ação o povo de Deus cresce no amor e consolida a “comunhão na unidade: na profissão de uma única fé, na comum celebração do culto divino e na fraterna concórdia da família de Deus”64. Portanto, a vocação e a realização da Igreja de Cristo na unidade acontece na e pela economia do Espírito Santo, isto é, mediante sua atuação salvífica (vivificadora e santificadora). Mediação salvífica das Confissões evangélicas: Nesta economia do Pneuma o documento inclui, com destaque, os ministérios:

“É ele (o Paráclito) quem opera a distribuição das graças e dos ministérios, enriquecendo a Igreja de Jesus Cristo com diferentes dons ‘a fim de capacitar os santos para a obra do ministério na edificação do corpo de Cristo’(Ef 4,12)”65.

Tendo afirmado que “a variedade de ministérios é obra do Espírito Santo”66, o parágrafo seguinte elenca “vários e valiosos elementos ou bens” presentes nas Comunhões evangélicas, pelos quais “a Igreja é edificada e vivificada”67. O que esta afirmação significa? Significa que nestes elementos de edificação e vivificação (entre os quais as virtudes teologais e os carismas interiores) atua o mesmo Espírito que opera na comunidade católica:

“Portanto, mesmo as Igrejas e comunidades separadas, embora creiamos que tenham deficiências, de forma alguma estão destituídas de significado e importância no mistério da salvação. O Espírito Santo não recusa empregá-las como meios de salvação, embora a virtude desses derive da mesma plenitude de graça e verdade confiada à Igreja católica”68.

Leia-se bem: as demais Confissões cristãs (não só ortodoxas e orientais, mas também reformadas e evangélicas) são constituídas “meios de salvação” pelo Espírito Santo que nelas age. Deste modo, participam (em graus diversos, mas efetivamente) daquela “plenitude de graça e verdade” que a Igreja Católica salvaguarda. Esta participação na graça e na verdade entre os demais cristãos é alimentada na sua fé em Jesus Cristo pela escuta da Palavra de Deus, e floresce nas virtudes teologais. Tudo isto importa ecumenicamente e é dito no texto69. A raíz, porém, desta participação na graça e na verdade é a permanência dos demais cristãos em Cristo, pelo Espírito Santo – efeito sacramental do batismo:

64 Novamente UR 2. 65 Idem, ibidem. 66 Idem, no final do parágrafo. 67 UR 3. 68 Idem, ibidem. 69 Cf. UR 3.

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“Justificados pela fé no batismo, eles são incorporados a Cristo e, por isso, com razão, honrados com o nome de cristãos e merecidamente reconhecidos pelos filhos da Igreja católica como irmãos no Senhor”70.

Donde a unidade e igualdade essencial, no plano salvífico-trinitário, entre nós católicos e estes batizados:

“O batismo, pois, constitui o vínculo sacramental da unidade que liga todos os que foram regenerados por ele”71.

Por isso todos nós, batizados, vivemos numa “real comunhão, embora imperfeita”72. Falta a comunhão dogmático-eclesial, que nos permitiria comungar juntos a Ceia do Senhor. Vigora, contudo, a comunhão no Espírito Santo, garantida sacramentalmente pelo batismo73. Deste modo, o Concílio “faz valer a teologia da comunhão pelo e no Espírito, profundamente enraizada na tradição das Igrejas do Oriente, sem descuidar uma exigência reclamada pelo Protestantismo – clássico ou moderno – de que a realidade total da Igreja só se evidencia com clareza à luz do Espírito Santo. Além disso, se supera um certo cristomonismo, típico do acento sócio-jurídico e funcionalista da eclesiologia das controvérsias, estruturada apologeticamente”, para concluir “que a edificação do Corpo de Cristo não se reduz a um processo sócio-jurídico, mas se sustenta na dinamicidade comunional operada pelo Paráclito”74. Este acento carismático-batismal (consonante com a eclesiologia da Lumen gentium) é uma afirmação da pneumatologia: articula-se com a cristologia paulina e possibilita uma reflexão mais ampla sobre a ministerialidade das Comunidades evangélicas e reformadas, como veremos.

5. BATISMO E EUCARISTIA Já de início, o Decreto Unitatis redintegratio qualifica as Igrejas e demais Comunidades cristãs, indistintamente, como “comunhões”75. Antes de explicitar os alcances teológicos deste qualificativo, o texto nos faz perceber, deste modo, sua alta apreciação do batismo, que marcará a postura geral do documento. De fato, o batismo é sacramento de unidade, pelo qual cada fiel é misteriosamente acolhido na vida trinitária e inserido no único Corpo de Cristo. O termo usado (communiones) valoriza teologicamente o batismo e associa cada Igreja e Comunidade cristã ao mistério da inefável e una Trindade, arché da Igreja Una.

70 Idem, ibidem. 71 UR 22. 72 UUS 96. 73 Uma das bases do movimento ecumênico: o ecumenismo assume a unidade batismal que nos congrega no Corpo de Cristo e procura alcançar-lhe plena visibilidade eucarística. 74 PATTARO, Germano. Corso di teologia dell’ecumenismo. Brescia: Queriniana, 1992, p.153-154. 75 UR 1, 4, 13.

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Mediante o batismo, os fiéis são congregados no único Povo de Deus e – não obstante as múltiplas denominações cristãs – todos se conectam entre si numa real e misteriosa communio in Trinitate: “O batismo constitui o vínculo sacramental da unidade, que liga todos os que foram regenerados por ele”76. Do batismo à eucaristia: A realidade da Igreja enquanto communio in Trinitate se traduz sacramentalmente de dois modos: primeiramente como ecclesia de baptismo; depois, como ecclesia de eucharistia. Estritamente falando, somente a ekklesía configurada como comunidade batismal se orienta, por conseguinte, à Mesa eucarística. O batismo, embora suficiente para a salvação, solicita o compartilhar do Pão e do Vinho em comunidade, expressão excelente da vida eclesial: “Por si mesmo, o batismo é o início e o exórdio que tende à realização da plenitude em Cristo. Por isso o batismo se ordena à completa profissão de fé, à íntegra incorporação no instituto da salvação tal como Cristo quis e à total inserção na comunidade eucarística”77. A Ceia do Senhor e a unidade: A partir do que foi dito acima, compreende-se melhor a insistência do magistério recente em não considerar a eucaristia como ponto-de-partida da comunhão eclesial, mas sim como “escola de comunhão” que solicita a reconciliação dos batizados78. Há um vivo debate a respeito desta postura oficial católica. Pois alguns antepõem a eucaristia à plena unidade, crendo que a celebração em comum – com participação na mesma Mesa de denominações ainda divididas – poderia conduzir à futura união. Trata-se, aqui, de uma eventual concelebração da eucaristia por parte de Igrejas distintas, algo bem diverso da hospitalidade eucarística admitida pela Igreja Católica em certos casos, quando um fiel evangélico se aproxima individual e responsavelmente do Altar católico, discernindo ali o Corpo e Sangue do Senhor em benefício de sua salvação79. Concordata de Leuenberg e Igrejas-unidas: Algumas Confissões cristãs admitem a concelebração eucarística efetuada por ministros de suas respectivas comunidades. É o caso das Igrejas Luteranas, Reformadas e Unidas da Europa, que assinaram a Concordata de Leuenberg em 1973, na Suíça80. Esta Concordata regulamenta a celebração conjunta da Ceia do

76 UR 22. 77 Idem, ibidem. 78 Cf. EE 35-40 , na linha de UR 4. 79 Cf. UR 8 e UUS 46. Leia as orientações específicas sobre a hospitalidade eucarística de um batizado não-católico na Ceia celebrada pela Igreja Católica: CONSELHO PONTIFÍCIO PARA A PROMOÇÃO DA UNIDADE DOS CRISTÃOS. Diretório para aplicação dos princípios e normas sobre o ecumenismo n. 122-136, S. Paulo: Paulinas, p. 108-114. 80 Cf. BOSCH NAVARRO, Juan. “Leuenberg”. In Dicionário de Ecumenismo. Aparecida: Santuário, 2002, p. 205-206.

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Senhor, em base a um consenso suficiente em questões eclesiológicas, ministeriais e sacramentais. Tais Igrejas se reconhecem como expressões reformadas da mesma Igreja Cristã e admitem reciprocamente a validade de seus ministérios. Ao comerem e beberem juntas a Ceia do Senhor, desejam expressar sua fraternidade batismal e abrir-se à graça de uma possível união orgânica. Além do preceito “fazei-o em memória de mim”(Lc 22,19) esta prática se apóia na promessa de Jesus: “onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, ali estou eu, no meio deles”(Mt 18,20). Práticas similares acontecem no contexto das Igrejas-unidas em full-communion, fruto de um longo processo de avaliação doutrinal e consenso essencial em questões eclesiológicas e sacramentais. Só que neste caso, há geralmente uma plataforma comum mais extensa, como a antigüidade das Igrejas, origem histórica próxima, parentesco de tradições litúrgicas, co-responsabilidade missionária ou ao menos circunscrição geográfica favorável. Ainda assim, a concelebração eucarística se dá no momento julgado oportuno, após ter-se firmado – ou ao menos garantido – o consenso essencial em questões de fé, sacramentos e ministérios. Dois exemplos: a plena comunhão celebrada entre a Igreja Episcopal dos Estados Unidos e a Igreja Luterana na América, no ano 2000, e a união da Igreja Luterana do Reino da Holanda, a Igreja Reformada da Holanda e as Igrejas Reformadas na Holanda, em 2004. A prévia reconciliação: Do outro lado, o magistério católico considera a Ceia eucarística a escola e o ponto-de-chegada da comunhão eclesial. Participam do Pão e do Cálice comuns os que vivem congregados pelo batismo na visibilidade da mesma Igreja. “Não é lícito considerar a intercomunhão (communicatio in sacris) como um meio a ser aplicado indiscriminadamente na restauração da unidade dos cristãos”81. A concelebração eucarística com outras denominações cristãs fica reservada para o contexto vindouro de Igrejas reconciliadas, que se reencontrem na una et sancta Christi ecclesia. No procedimento católico vigora a recomendação de Jesus: “deixa a tua oferenda diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com teu irmão”(Mt 5,24). O mesmo vale em relação às Igrejas Ortodoxas e Orientais: a disciplina atual permite a hospitalidade eucarística e inclusive o intercâmbio de sacramentos (ambos de responsabilidade individual e/ou nos casos pastoralmente previstos), mas não se consagram Pão e Vinho num rito eucarístico co-participado por um presbítero latino e um ortodoxo ou oriental desvinculado canonicamente da Sede romana. A postura vigente, na Unitatis redintegratio e nas declarações magisteriais mais recentes, é a de reconstruir a “perfeita comunhão eclesiástica (...) na confissão de uma única fé, na comum celebração do culto divino e na fraterna concórdia da família de Deus” para, então, consagrar e comungar juntos do mesmo Pão e do mesmo Cálice 82. 81 UR 8. 82 UR 2; também UUS 58 e 97.

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De esperança em esperança: Visando este consenso de fé, sacramentos e ministérios, se insiste no vínculo eclesial como condição pré-eucarística e se apela à conversão e à oração perseverante pela unidade83. A comunidade católica se condói em face dos demais cristãos pela impossibilidade de partilhar do mesmo Pão e do mesmo Cálice, e responde a esta situação – não se resignando ou se esquivando do diálogo – mas comprometendo-se e intercedendo com maior zelo em prol da unidade84. Nenhuma pessoa batizada pode, em consciência, participar da Ceia eucarística sem pesar o fato de comungar num contexto de comunhão imperfeita e até divisão, em que verdadeiros “irmãos no Senhor”85 celebram em Mesas separadas, “como se o próprio Cristo estivesse dividido”86. Este fato constitui uma ferida no Corpo de Cristo, uma tristeza para nós e um escândalo para o mundo. Por isto a Igreja latina, antes de comungar, apresenta a Jesus esta prece: “Senhor Jesus Cristo, dissestes aos vossos apóstolos: Eu vos deixo a paz, eu vos dou a minha paz. Não olheis os nossos pecados, mas a fé que anima a vossa Igreja; dai-lhe, segundo o vosso desejo, a paz e a unidade. Vós que sois Deus, com o Pai e o Espírito Santo”87. Cada eucaristia celebrada é uma provocação insistente do Senhor para que a unidade dos cristãos, tão esperada, se realize. O “critério eucarístico” e as Igrejas do Oriente: Na teologia católica o vínculo entre eucharistía e ekklesía é, além de estreito, essencial. A eucaristia, mais do que uma ação litúrgica que a Igreja realiza, é o sacramento que realiza a Igreja na comunhão e na unidade88. Toda comunidade batismal que celebra a Ceia do Senhor validamente (preservando a sucessão apostólica e professando o caráter memorial-sacrificial da oblação eucarística) é uma realização particular e verdadeira da una, santa, católica e apostólica Igreja de Cristo, ainda que não esteja totalmente ligada à Sé de Pedro89. Falta o vínculo canônico, mas permanece o vínculo sacramental. É o que verificamos em relação aos ortodoxos e orientais. Nestes casos, permite-se a hospitalidade eucarística, bem como o intercâmbio nos sacramentos do batismo, reconciliação e unção dos enfermos. Práticas devidamente previstas e reguladas pelos bispos das Igrejas em questão90. O que permite tal aproximação? A resposta já foi delineada: as Igrejas Ortodoxas e demais Igrejas Orientais mantiveram ininterrupta a transmissão da Ordem episcopal, em consonância com a Tradição vigente na Igreja Indivisa e, portanto, a eucaristia que celebram as constitui ekklesíai particulares, em

83 Cf. UR 4, 7, 8. 84 Cf UUS 26, 45, 77, 78. 85 UR 3. 86 UR 1. 87 PAULO VI. “Rito da Comunhão”. In Missal Romano. Petrópolis: Vozes; S. Paulo: Paulinas, 1992, p. 501. 88 Cf. UR 2; também UUS 97 e EE 23 e 26, entre outros. 89 Cf. DI 17. 90 Cf. UR 8; também UUS 46.

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comunhão de fé e sacramentos com a Igreja Católica de sede romana. Este é o raciocínio do magistério católico91. Em relação às Igrejas do Ocidente: Contudo, tal afirmação deve ser interpretada à luz do conjunto de declarações conciliares e das demais afirmações do magistério, sobretudo no que se refere às Igrejas oriundas da Reforma e, dentre estas, a Comunhão Anglicana. Seria erro usar o “critério eucarístico” como desculpa que dispensasse alguém do compromisso ecumênico, ou, pior ainda, como pretensa amostra de que o diálogo pela unidade faliu. Ao contrário: o vínculo batismal que partilhamos, a reconciliação suscitada pelo Espírito Santo, a escuta comum da Palavra de Deus e o testemunho unânime das bem-aventuranças solicita de todos nós a dedicação perseverante na busca da unidade, em vista da participação de todos os batizados na mesma Ceia do Senhor. Nem o magistério católico92, nem o Conselho Mundial de Igrejas (CMI), abrem mão desta meta. A Comissão Fé e Constituição, organismo teológico do CMI, declara em seu objetivo:

“Proclamar a unidade da Igreja de Jesus Cristo e exortar as Igrejas a tornarem visível esta unidade numa só fé e numa só comunidade eucarística, com expressão no culto e na vida comum em Cristo, a fim de que o mundo creia”93.

O ecumenismo não se reduz à convivência paralela nem a um acordo administrativo, mas objetiva a experiência da plenitude do Reino de Deus inaugurada por Cristo, proclamada no Evangelho, testemunhada na caridade e realizada na comunhão com o Corpo e o Sangue do Senhor. Justamente por isso, a Igreja Católica reafirma sua “fraterna reverência e amor” pelos irmãos batizados em Comunhões reformadas94. Com alegria, reconhece e estima “os bens verdadeiramente cristãos” que se encontram entre eles. Além disso, louva as “riquezas de Cristo” e as “obras de virtude” que eles testemunham, com a consciência humilde de “que tudo o que a graça do Espírito Santo realiza nos irmãos separados pode contribuir também para a nossa edificação”95. Pelo batismo, pela Palavra e pela caridade que Espírito de Cristo derrama nos corações, há entre nós católicos e estes irmãos “uma comunhão real, embora imperfeita”96.

91 Bem expresso em UR 14-18, UUS 50-58 e DI 17. Cf. o oportuno comentário de WOLFF, Elias. Caminhos do ecumenismo no Brasil. S. Paulo: Paulus, 2002, capítulo IV. 92 Cf. UR 4 e 22, também UUS 77. 93 Apud Batismo, eucaristia, ministério (BEM), op. cit., p. 5. 94 UR 3. 95 Expressões na voz de UR 4. 96 UUS 84 e 96. Além disso, no mesmo parágrafo 84, João Paulo II declara que já é “perfeita” a comunhão no martírio, pela qual católicos, evangélicos e ortodoxos se unem em Cristo.

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Intercomunhão já? Contudo, convém mencionar que alguns cristãos promovem experiências eucarísticas de intercomunhão, à revelia da orientação oficial da hierarquia. Isto, por considerarem que a comunhão batismal e o consenso essencial no credo apostólico já permitem a co-participação no Pão e no Vinho. Além disso, diversas experiências ecumênicas se desenvolveram no âmbito da solidariedade e do testemunho, muitas vezes em situações exigentes de profetismo evangélico, resultando num intenso encontro pessoal entre batizados de Confissões distintas. A vivência comunional resultante destas experiências é vista, por certos grupos, como critério decisivo e condição suficiente para celebrarem juntos a eucaristia. Neste caso, acreditam que a partilha da Ceia reforce os laços batismais e fraternos já existentes, apressando possíveis soluções para as controvérsias doutrinais ainda em voga. Aliás, alguns cristãos pensam, inclusive, que a unidade no Espírito Santo e na eucaristia seria suficiente, devido à urgência de testemunho diante do mundo, dilacerado por contínuas discórdias. É isto que muitas vezes distingue o chamado “ecumenismo popular” (marcado pela solidariedade e pela ousadia) do chamado “ecumenismo eclesiástico” (marcado pela doutrina e pela prudência)97. É difícil avaliar tal situação. As experiências são diversas e, em parte, têm motivações sinceras e legítimas. O risco é distanciar as duas esferas do ecumenismo, num tipo de exclusão mútua em que o “ecumênico” parece descuidar o “eclesial”, ou o “eclesial” parece pouco convicto e pouco empenhado no “ecumênico”. Se os fatos são mesmo assim, todos devemos nos comprometer co-responsavelmente perante o Evangelho, em vista de um ecumenismo sempre mais eclesial e de uma Igreja sempre mais ecumênica. Cuidar da unidade é cuidar da Igreja. Do mesmo modo, cuidar da Igreja é cuidar da unidade.

6. IGREJAS & COMUNIDADES ECLESIAIS Como mencionei acima, o discurso oficial católico reserva o título de Igreja às comunidades batismais que preservaram íntegra a substância eucarística, em virtude do sacramento da Ordem conferido em linha de sucessão apostólica98. Sem dúvida, esta afirmação polemiza com outras noções de igreja, diversas da 97 “Este processo (de diálogo ecumênico), que se há de efetuar com prudência e em atitude de fé, terá a assistência do Espírito Santo. Para que tenha êxito favorável, é necessário que seus resultados sejam oportunamente divulgados por pessoas competentes. Para semelhante objetivo, é de grande importância a contribuição que teólogos e Faculdades de Teologia são chamados a oferecer, no cumprimento do seu carisma na Igreja. Está claro que as Comissões Ecumênicas têm, a esse respeito, responsabilidades e funções totalmente singulares. Todo o processo é seguido e ajudado pelos Bispos e pela Santa Sé. A autoridade docente tem a responsabilidade de exprimir o juízo definitivo. Em tudo isto, será de grande ajuda ater-se metodologicamente à distinção entre o depósito da fé e a formulação em que ele é expresso, como recomendava o papa João XXIII no discurso de abertura do Concílio Vaticano II” (UUS 81). 98 Cf. UR 15-16; DI 17.

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perspectiva católica99. Deixando o devido espaço para que o diálogo prossiga, gostaria de esboçar aqui o que considero uma adequada interpretação da afirmação católica, que manifeste nosso apreço pelos demais “irmãos no Senhor”, a quem a Igreja Católica “abraça com fraterna reverência e amor”100. A “Igreja de Cristo”: O título de “Igreja” se refere, antes de tudo, à “Igreja de Cristo” (ekklesía tou Christou) que comporta – além de sua conseqüente manifestação histórica – os elementos mistérico-sacramentais que o próprio Senhor concedeu ao seu Corpo Místico. Esta sim é Igreja em sentido definitivo, com a “plenitude dos meios salvíficos” que Jesus mesmo instituiu e confiou-lhe101. Entendido isto, vem a pergunda: Onde estaria, hoje, esta Igreja de Cristo? Onde continuaria a Igreja una, santa, universal e apostólica que Jesus iniciou com os Doze, sob a Unção do Paráclito? A resposta do Concílio não se baseia na simples identificação – dizendo que a Igreja de Cristo “é” a Igreja Católica (est) – mas esclarece que a Igreja de Cristo “subsiste na” Igreja Católica (subsistit in)102. Ainda que o termo evoque o conceito filosófico de subsistentia (usado na teologia trinitária para falar das Pessoas divinas), a intenção do Concílio é simples e pontual: quer afirmar que a Igreja de Cristo – una, santa, universal e apostólica, instituída por Jesus na sua Páscoa e manifestada pelo Espírito Santo em Pentecostes – continua, perdura, está e/ou prossegue historicamente na Igreja Católica, presidida pela Sé episcopal petrina103.

Contudo, é importante recordar que isto não anula o significado eclesial das demais comunidades batismais; não cancela a “comunhão real, embora imperfeita” que une a todos os fiéis batizados104; nem quer dizer que fora da visibilidade católico-romana haja um tipo de “vácuo eclesial”105. Ao contrário: a Igreja Católica reconhece “autênticos valores eclesiais presentes nas outras Igrejas e comunidades cristãs”106 e insiste na comunhão que já vincula católicos, evangélicos e ortodoxos, em função do sacramento do batismo e do imperativo da caridade107. Portanto, o magistério católico admite elementos eclesiais presentes 99 Cf. a reflexão de Elias WOLFF, Caminhos do ecumenismo no Brasil, op. cit., capítulo IV. 100 Expressões de UR 3. 101 Cf. idem, ibidem. 102 LG 8 e UR 4. 103 Cf. SULLIVAN, Francis A. “El significado y la importancia del Vaticano II de decir, a propósito de la Iglesia de Cristo, no que ella es, sino que ella subsiste en la Iglesia católica romana”. In LATOURELLE, René (ed.). Vaticano II: balance y perspectivas. Salamanca: Sígueme, 1990, p. 608-616. 104 UUS 96. 105 “Para além dos limites da comunidade católica não existe o vazio eclesial. Muitos elementos, de grande valor (eximia), que estão integrados na Igreja Católica na plenitude de meios salvíficos e dons de graça que a edificam, encontram-se também nas outras Comunidades cristãs” (UUS 13). 106 COMISIÓN TEOLÓGICA INTERNACIONAL. “Temas selectos de eclesiología”. In Documentos. Madrid: BAC, 1998, p. 368 – alusão a UR 3 e UUS 13. 107 Cf. UR 3, 22 e 23.

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nas comunidades batismais não-católicas, embora distinga as proporções desta presença ao considerar as diferentes famílias confessionais (ortodoxa, oriental, anglicana, reformada, evangélica). A presença destes elementos nas múltiplas Confissões cristãs, de um lado, e a situação de divisão ainda vigente, de outro, aponta para uma exigência evangélica grave e comum: “todos (católicos e não-católicos) examinam sua fidelidade à vontade de Cristo acerca da Igreja e, como se deve, empreendem com ânimo decidido a tarefa de renovação e de reforma”108. Além do diálogo e da mútua estima, a união dos cristãos brota da fidelidade interna de cada Confissão ao evangelho, de maneira que, na convergência das Igrejas em Cristo, se cumpra a tão esperada unidade. Esta se edifica na medida em que nós e nossas denominações tendemos a Cristo “como fonte e centro da comunhão eclesiástica”109. Muitas Igrejas, uma só salvação: É oportuno esclarecer a afirmação tão citada pela eclesiologia católica: que a “plenitude de meios salvíficos” que Cristo instituiu perdura na comunhão romana110. Entenda-se bem: os documentos falam de plenitude de “meios salvíficos”. Isto não significa a exclusividade salvífica da Igreja Católica, já que “fora da sua estrutura visível se encontram vários elementos de santificação e verdade”111. A Unitatis redintegratio esclarece que – enquanto a Igreja Católica conserva íntegros os instrumentos de salvação recebidos de Cristo – “muitos e valiosos elementos ou bens com os quais, em conjunto, a própria Igreja é edificada e vivificada, podem existir fora do âmbito da Igreja católica”112, isto é, nas demais Igrejas e Comunidades batismais113. E chega mesmo a elencar os principais destes elementos salvíficos:

- a Palavra de Deus - a vida da graça, - as virtudes teologais da fé, esperança e caridade - os dons interiores do Espírito Santo114

Cita também o “martírio” e várias “ações sacras da religião cristã”115. Dentre estas “ações sacras” estão: o batismo, a escuta e meditação da Palavra, a oração particular, o culto comunitário de louvor a Deus e, em destaque, a “Santa Ceia, na qual fazem memória da morte e ressurreição do Senhor, confessam ser

108 UR 4, aplicando o princípio da Ecclesia semper reformanda. 109 UR 20. 110 Cf. UR 3 e DI 16-22. 111 LG 8 e UUS 10: “fora da sua comunidade visível (= fora da Igreja Católica) se encontram muitos elementos de santificação e de verdade”. 112 UR 3. 113 Como explicita UUS 14. 114 UR 3; a Palavra de Deus é destacada também no n. 21. 115 UR 4 e 3, respectivamente.

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significada a vida na comunhão de Cristo e esperam seu glorioso advento”116. Depois acrescenta: a vida familiar cristã, o senso da justiça e a caridade para com o próximo117. Donde a conclusão: em seu conjunto, estes elementos “produzem realmente a vida da graça” e dão acesso à “comunhão salvífica” com Deus Uno e Trino118. Portanto, a doutrina católica afirma as duas coisas, igualmente: 1. que todos os instrumentos salvíficos que Jesus instituiu e confiou à sua ekklesía perduram integralmente na Igreja Católica (plenitude de meios); 2. que a graça oferece plena salvação fora e além da estrutura visível da Igreja Católica (plenitude de salvação). Afirmar a plenitude dos meios não significa negar a plenitude de salvação que Deus Pai comunica continuamente à humanidade e ao cosmos, sob a graça redentora de seu Filho, mediante o sopro universal do Pneuma. Esta é uma convicção fundamental da soteriologia católica, admitida nas Escrituras119, tematizada pela teologia patrística120 e definida pelo magistério121. Valor eclesial das Comunhões cristãs: Voltando à questão das outras Igrejas e Comunidades, constatamos que o magistério católico reconhece “autênticos valores de Igreja”122 presentes nas comunidades batismais não-católicas, não só ortodoxas, mas também anglicanas, reformadas e evangélicas. Pois ao expor os elementos mencionados acima, a Unitatis redintegratio acrescenta: “elementos com os quais, em seu conjunto, a própria Igreja é edificada e vivificada”123. Neste sentido, parece-me profética a expressão usada na abertura do Decreto: antes de distinguir entre Igrejas e Comunidades eclesiais, o Concílio as qualifica como “Comunhões” (Communiones)124. Título de forte teor trinitário-batismal, com evidentes implicações eclesiológicas: as demais confissões cristãs formam verdadeiras

116 UR 24. 117 Elencados em UR 23. 118 Idem, ibidem. 119 Devemos evitar qualquer abordagem fundamentalista dos textos revelados, pois isto trai o espírito das Escrituras. Contudo, por uma questão didática, propomos as seguintes citações: Jo 1,9; Jo 3,8; Mt 25,34-40; Mc 14,24 (Jesus diz “por muitos”); At 10,34-35; At 17,27-28; Ef 1,9-10; 1Tm 2,4. 120 Como a teologia das “sementes do Verbo” (semina Verbi) e da “preparação ao evangelho” (praeparatio evangelica) desenvolvida por Justino, Irineu de Lião, Eusébio de Cesaréia e Clemente de Alexandria (cf. AG 3). 121 Além de AG e NA, leia especialmente: PONTIFÍCIO CONSELHO PARA O DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO; CONGREGAÇÃO PARA A EVANGELIZAÇÃO DOS POVOS. Diálogo e anúncio. S. Paulo: Paulinas, 1996. Se interessar, meu estudo sistemático Salvação e religiões não-cristãs, no qual examino as declarações do magistério católico sobre o valor salvífico das religiões não-cristãs (disponível em disquete). 122 COMISIÓN TEOLÓGICA INTERNACIONAL. “Temas selectos de eclesiología”. In Documentos. Madrid: BAC, 1998, p. 368. Referência a UR 3. 123 UR 3. 124 UR 1, 4, 13.

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“comunhões” de vínculo batismal, agápico e martirial. Elas constituem comunidades batismais e abrigam, cada qual em sua proporção, elementos de natureza eclesial. Afinal, o batismo as incorpora a Cristo, associando-as àquela mesma plenitude que a Igreja Católica afirma possuir125. Daí que – embora se distingam na doutrina – cultivam a vida da graça, fazem memória do Senhor no rito da Santa Ceia e possuem valores de Igreja, fato pelo que são chamadas Comunidades eclesiais (evangélicas e reformadas), ou mesmo Igrejas particulares (ortodoxas e orientais)126. Sobretudo a partir do Concílio Vaticano II, o magistério solicita dos fiéis católicos o compromisso “com uma visão eclesiológica clara e aberta a todos os valores eclesiais presentes nos outros cristãos”127. Compromisso que toca especialmente os teólogos e os Bispos, agentes singulares do diálogo ecumênico128.

7. MINISTERIALIDADE DAS IGREJAS Vale observar que, segundo Unitatis redintegratio, não haveria uma ecclesia de eucharistia se não houvesse antes uma ecclesia de baptismo, constituída pela comunhão dos fiéis na unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo:

“Justificados pela fé no batismo, eles (fiéis não-católicos) são incorporados a Cristo e, por isso, com razão honrados pelo nome de cristãos e merecidamente reconhecidos pelos filhos da Igreja católica como irmãos no Senhor”.

Além disso: “Pelo sacramento do batismo – sempre que for retamente conferido segundo o Senhor instituiu e recebido com a devida disposição de ânimo, a pessoa é verdadeiramente incorporada a Cristo crucificado e glorificado, e regenerada para participação na vida divina, conforme diz o apóstolo: ‘Com ele fostes sepultados no batismo e nele fostes co-ressuscitados pela fé no poder de Deus, que o ressuscitou dos mortos’(Col 2,12). O batismo, pois, constitui o vínculo sacramental da unidade que liga todos os que por ele foram regenerados”129.

Com tais afirmações, este documento mostra seu forte teor eclesiológico e estimula reflexões posteriores. Permita o leitor e a leitora que eu ensaie aqui algumas considerações sobre a ministerialidade das ordenações reformadas e

125 UR 3 e 24. 126 Cf. DI 16-17. 127 Apreciação positiva das Confissões cristãs, reforçada por UUS 10. 128 Orientação clara de UUS 81. 129 UR 3 e 22, respectivamente.

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evangélicas, a partir da efetiva incorporação eclesial e cristológica que o batismo realiza. Dons do Espírito para o Corpo de Cristo: Pelo batismo, os cristãos todos (na comunhão romana e fora dela) participam daquela plenitude salvífica que Cristo concedeu à sua Igreja. Pois este é o sacramento de incorporação a Cristo Redentor, que dá acesso “à comunhão salvadora”130. O Concílio diz que a Igreja Católica salvaguarda, sem perdas, os elementos salvíficos que Jesus lhe confiou, desde a comunidade apostólica. Depois, reconhece bens e elementos salvíficos presentes nas demais Confissões cristãs. Como vimos antes, o Decreto os enumera com precisão:

- o batismo (novamente, em primeiro lugar) - a Palavra de Deus - a vida da graça - as virtudes teologais - os carismas espirituais - o rito memorial da Ceia do Senhor - a contemplação do mistério de Cristo pela meditação bíblica - a oração - o culto congregacional de louvor e adoração a Deus - o sentido da justiça - a fé operante, testemunhada pela caridade131.

Assim, “a vida cristã destes irmãos é alimentada pela fé em Cristo, e fortalecida pela graça batismal e pela escuta da Palavra de Deus”132. Todos estes elementos são dons do Senhor Jesus para a edificação do seu Corpo, no Espírito Santo. Por eles a Igreja de Cristo mantém uma “presença operante” nas demais Igrejas e Comunidades, além da comunidade católica133. Sucessão na fé, esperança e caridade apostólicas: A meu ver, tais “elementos de santidade e verdade” são dons do Pneuma, garantidos sacramentalmente pelo batismo e desenvolvidos com os demais instrumentos da vida da graça. O martírio coroa este processo, como “ápice da vida da graça”134. Mais: se algumas Igrejas possuem efetiva sucessão apostólica na episkopê, com uma garantia invisível (Pneuma) e uma visível, que é o sacramento da Ordem; poderíamos falar numa análoga sucessão apostólica na fé, esperança e caridade, com idêntica garantia invisível (o mesmo Pneuma), mas assegurada por outro sacramento, neste caso o batismo. De fato, o batismo inicia

130 UR 3, logo após afirmar a eficácia sacramental do batismo nas demais Comunhões. 131 Elementos listados em UR 1, 3, 21, 22 e 23. 132 UR 23. 133 Como afirma UUS 11. 134 UUS 84, relendo UR 4.

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os cristãos na fé, esperança e caridade dos Apóstolos (os quais têm autoridade de revelação e valor eclesiológico somente porque referidos a Cristo, que os escolheu, constituiu e enviou: Mt 18,18 e 28,20). Deste modo, podemos dizer que, pelo batismo, todos sucedemos os Apóstolos na fé, esperança e caridade evangélicas. Nossa fé é apostólica. Igualmente nossa esperança e caridade não são outras, mas as mesmas professadas pelos Apóstolos (cf. At 2,42). Assim como alguns sucedem os apóstolos na episkopê (sucessão ministerial pela Ordem), os fiéis batizados constituem as comunidades que hoje sucedem a Igreja apostólica (sucessão na fé, esperança e caridade, pelo Batismo). Comunhão batismal com Cristo sacerdote, profeta e pastor: Focando o ministério das Confissões evangélicas do ponto de vista católico, creio que o batismo – embora não supra a carência de ordenação – garante verdadeira ministerialidade ao pastorado destas Igrejas e Comunidades. Isto, pelo fato de o batismo nos incorporar a Jesus Pastor, Sacerdote e Profeta. Pois é a partir deste sacramento que o Espírito de Cristo atua eficazmente na comunidade dos fiéis, fazendo deles uma “Comunhão”135. Retomando Unitatis redintegratio 2, 3 e 22 podemos dizer que: a) O Espírito Santo une os fiéis no Corpo de Cristo e os torna participantes da vida da Trindade: “Suportai-vos uns aos outros no amor, solícitos em guardar a unidade do Espírito, pelo o vínculo da paz. Há um só corpo e um só Espírito, como também é uma só a esperança à qual fostes chamados. Há um só Senhor, uma só fé, um só batismo, um só Deus e Pai de todos, acima de todos, no meio de todos e em todos”(Ef 4,2-6). b) Distribui graças, carismas e serviços “a fim de capacitar os santos para a obra do ministério, na edificação do Corpo de Cristo”(Ef 4,12). c) Manifesta a universalidade da Igreja e nos associa ao serviço da reconciliação consumada por Jesus: “Ora, tudo vem de Deus que, por Cristo, nos reconciliou consigo e nos confiou o ministério da reconciliação”(2Cor 5,18). Por esta ação do Paráclito, o batismo se torna efetivamente a fonte de todas as vocações. Considerado isto, penso que o diálogo ecumênico e a reflexão teológica poderiam investigar os nexos e alcançes do batismo em relação à sucessão apostólica, já que ele nos constitui “ministros da reconciliação” na comunhão de “um só Deus e Pai de todos, acima de todos, no meio de todos e em todos” (como afirma Paulo). Mais: esta comunhão batismal e trinitária não qualifica o pastorado evangélico como efetivo serviço eclesial? O ministério de reconciliação que nos faz todos “embaixadores de Cristo”(2Cor 5,20) não se traduz também nas funções de presidência, proclamação do perdão e anúncio da Palavra numa comunidade 135 UR 1, 4, 13.

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visível? Além disso, a sacramentalidade geral da Igreja não poderia suprir, de algum modo, as deficiências de Ordem das comunidades evangélicas, na linha de aplicação do princípio Ecclesia suplet? Quais elementos da consagração ministerial evangélica manifestam proximidade teológica com a ordenação realizada nas Igrejas católica, ortodoxa ou oriental? A incorporação a Cristo e a comunicação de seu Espírito pelo batismo, em face da intenção sincera de ordenar para o serviço e a comunhão, não seriam decisivos ou ao menos esclarecedores para a valoração dos ministérios, como no caso anglicano? Há um longo caminho a trilhar136. Discernir as qualidades espirituais e eclesiais das Ordenações evangélicas: Neste sentido, comungo do discernimento da Comissão Teológica Internacional, quando reconhece as qualidades eclesiais e espirituais dos ministérios das Comunidades advindas da Reforma, em função do batismo que receberam e dos instrumentos da graça aos quais buscam corresponder com zelo pastoral137. Afinal, o batismo associa o fiel a Cristo Sacerdote, Profeta e Pastor; agrega-o a seu Corpo e comunica-lhe o Espírito Santo que – por sua vez – suscita dons, carismas e serviços: “Há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo. Há diversidade de ministérios, mas o Senhor é o mesmo. Há diferentes atividades, mas é o mesmo Deus que realiza tudo em todos”(1Cor 12,4-6). Diante desta palavra, não se pode negar a ministerialidade das Confissões evangélicas como evento pneumatológico: mantendo-se na linha do pensamento paulino, Unitatis redintegratio nos lembra que a variedade de ministérios é obra do Espírito Santo138. Na apreciação feita sobre os ministérios ordenados das Confissões evangélicas, a Comissão Teológica Internacional se depara com sérias questões a resolver, do ponto de vista católico. “Sendo o sacramento da Ordem a expressão sacramental indispensável da comunhão na Tradição, a proclamação do princípio sola Scriptura obscureceu a antiga noção de Igreja e do seu sacerdócio”. Além disso, “através dos séculos a prática da ordenação nestas Confissões renunciou, não poucas vezes, à imposição das mãos, feita por homens já ordenados ou por outros. E mesmo onde foi realizada, não teve a mesma significação de antes, quando toda a Igreja se encontrava na Tradição. Esta divergência sobre o modo de introduzir uma pessoa no ministério e de interpretá-lo é o sintoma mais relevante da diferente compreensão das noções de Igreja e de Tradição. Recentemente, numerosas e promissoras aproximações começaram a restabelecer contatos com esta Tradição, embora a ruptura não tenha sido ainda totalmente superada”139.

136 Cf. Batismo, eucaristia, ministério (BEM), op. cit. p. 47-54. 137 Cf. COMISIÓN TEOLÓGICA INTERNACIONAL. “La apostolicidad de la Iglesia y la sucesión apostólica”. In Documentos, op. cit., p. 74-76. O “zelo” ou “cuidado” pastoral implica retidão nas intenções e boa-fé nas ações: critério de valoração para certas expressões comeciais da fé. 138 Cf. UR 2, na linha de LG 4. 139 COMISIÓN TEOLÓGICA INTERNACIONAL, op. cit., p. 75.

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Por outro lado, a Igreja Católica reconhece o valor apostólico das ordenações reformadas e evangélicas: “O que comprovamos antes, não significa de modo algum que as qualidades eclesiais e espirituais dos ministérios das comunidades protestantes sejam, por isso, depreciáveis. Pois os ministros destas comunidades as têm edificado e nutrido. Pelo batismo, pelo conhecimento e pregação da Palavra de Deus, pela oração comum e a celebração da Ceia, pelo seu zelo, tais ministros conduzem muitas pessoas ao Senhor e lhes têm ajudado, deste modo, a encontrar o caminho da salvação. Nestas comunidades há, portanto, elementos que pertencem de fato à apostolicidade da única Igreja de Cristo”140. Valor salvífico e apostólico: A variedade de ministérios é obra do Espírito Santo, que concede as virtudes teologais e outros dons interiores à comunidade batismal. Assim declaram Unitatis redintegratio 2-3 e Lumen gentium 4. A leitura destas linhas do Vaticano II à luz da doutrina paulina do Corpo de Cristo nos leva a compreender as “qualidades espirituais” dos ministérios evangélicos, não como características etéreas ou desvinculadas de suas Comunhões concretas, mas como “qualidades pneumáticas” derivadas do batismo e da ação própria do Pneuma, de modo que estes ministérios tenham valor salvífico na comunidade de fé onde são exercidos. O pastorado, organizado em graus diversos pelas Igrejas e Comunidades da Reforma, executa o anúncio da Palavra, confere o batismo, preside o louvor e a intercessão e oficia a Ceia memorial de Jesus141. Por tais ações muitas pessoas se aproximam do Redentor e perseveram no seu evangelho. Nisto está o valor apostólico das ordenações evangélicas, citado pela Comissão Teológica Internacional no texto por nós reportado: nas Confissões evangélicas perduram elementos que pertencem à apostolicidade da única Igreja de Cristo. Portanto: sucessão apostólica, não; valor apostólico, sim.

Conclusão a) O Espírito, princípio da unidade na diversidade: O ecumenismo é uma afirmação da pneumatologia. Seja teologicamente (a unidade como dom do Espírito aos que foram regenerados em Cristo), seja historicamente (a conseqüente vivência da fraternidade batismal). Não se pode avançar no diálogo ecumênico sem uma afirmação convicta e tematizada do protagonismo do Espírito. Protagonismo revelado nas Escrituras e acolhido pela fé da Igreja como dinâmico, inovador, criativo, santificante, vivificante, iluminador e comunional. Ele é princípio da unidade na diversidade. 140 Idem, ibidem. 141 Cf. Batismo, eucaristia, ministério (BEM), op. cit., p. 42-47.

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b) A sacramentalidade geral da Igreja e do batismo, em particular: A graça do Pneuma evidencia com clareza a sacramentalidade da Igreja, ao mesmo tempo Corpo de Cristo e Templo do Espírito. É oportuno aprofundar o sentido e o alcance da sacramentalidade geral da Igreja e do batismo, em particular. Isto pode lançar nova luz sobre a questão eucarística e ministerial. c) O consenso da fé: O caminho da unidade se abre à medida que cresce entre as diversas Comunhões o consenso da fé: aquela unidade nos elementos essenciais do Credo apostólico, geralmente solicitado como condição para a comum eucaristia. Para tal consenso servem o primado da Escritura e o patrimônio doutrinal da Igreja indivisa. Lembrando sempre do que aconselha o magistério: que se considere a hierarquia das verdades; e a distinção entre o depósito da fé e as formulações historicamente usadas para expressá-lo. Somente assim se poderá discernir o que é “essencial” para um consenso doutrinal “suficiente”, favorável ao reconhecimento dos ministérios e à unidade eucarística. d) Ecumenismo eclesial e Igreja ecumênica: Cuidar da unidade é cuidar da Igreja. Cuidar da Igreja é cuidar da unidade. Ambas se promovem mutuamente, porque compõem o mesmo mysterium unitatis que o Pai decretou, o Filho instaurou e o Espírito suscita continuamente. O ecumenismo é chamado a ser eclesial. As igrejas são chamadas a serem ecumênicas. Necessitamos um maior fluxo de contribuições entre hierarquia e base, centro e periferia do diálogo. E isto se alcança com o encontro das pessoas, na ação e oração comuns.

Texto disponibilizado pela

COMISSÃO EPISCOPAL PASTORAL PARA O ECUMENISMO E O DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO da CNBB

Dom José Alberto Moura – presidente Pe. Marcial Maçaneiro SCJ – assessor