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A TEORIA DA ACTIO LIBERA EM CAUSA INTRODUÇÃO A punição aos atos ofensivos cometidos por pessoas ébrias sempre foi discutida nas sociedades pela história. Essas pessoas enquanto embriagadas por vários fatores deveriam ser punidas por seus delitos e crimes? Cada sociedade propôs um formato para tratar do assunto. A actio libera in causa vem para discutir a imputabilidade do sujeito, dentro da esfera da culpabilidade, enquanto este estiver embriagado. A teoria resume-se na “[...] punição dos agentes que, no momento da prática da conduta, estavam totalmente privados de sua capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de se determinar de acordo com esse entendimento” (CONTI, 2013). A teoria consiste numa ficção jurídica criada por meio de política criminal para desqualificar a imputabilidade, isto é, a impossibilidade de imputar responsabilidade a pessoas por seus atos contrários à lei, deslocando artificialmente o momento da análise da imputabilidade para quando o sujeito ainda está sóbrio. O trabalho vem para trazer alguns delineamentos sobre o assunto, entre eles, conceitos jurídicos que circundam a teoria em destaque, críticas e casos concretos que brevemente serão discutidos para que seja percebido como a teoria vem sendo utilizada nos casos concretos. 1.1. HISTÓRICO Pelo período da antiguidade, segundo CONTI (2013), os “estados de perturbação transitória da consciência” eram ignorados quando para imputar responsabilidades a alguma pessoa. Esse “estado” ainda

A Teoria Da Actio Libera Em Causa

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 A TEORIA DA ACTIO LIBERA EM CAUSA

INTRODUÇÃOA punição aos atos ofensivos cometidos por pessoas ébrias

sempre foi discutida nas sociedades pela história. Essas pessoas enquanto embriagadas por vários fatores deveriam ser punidas por seus delitos e crimes? Cada sociedade propôs um formato para tratar do assunto.

A actio libera in causa vem para discutir a imputabilidade do sujeito, dentro da esfera da culpabilidade, enquanto este estiver embriagado. A teoria resume-se na

“[...] punição dos agentes que, no momento da prática da conduta, estavam totalmente privados de sua capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de se determinar de acordo com esse entendimento” (CONTI, 2013).

A teoria consiste numa ficção jurídica criada por meio de política criminal para desqualificar a imputabilidade, isto é, a impossibilidade de imputar responsabilidade a pessoas por seus atos contrários à lei, deslocando artificialmente o momento da análise da imputabilidade para quando o sujeito ainda está sóbrio.

O trabalho vem para trazer alguns delineamentos sobre o assunto, entre eles, conceitos jurídicos que circundam a teoria em destaque, críticas e casos concretos que brevemente serão discutidos para que seja percebido como a teoria vem sendo utilizada nos casos concretos.

1.1. HISTÓRICO

Pelo período da antiguidade, segundo CONTI (2013), os “estados de perturbação transitória da consciência” eram ignorados quando para imputar responsabilidades a alguma pessoa. Esse “estado” ainda poderia servir até como atenuantes de penas capitais porquanto o autor não estivesse em plenas faculdades mentais. Segundo CONTI (2014),

“[...] os jurisconsultos romanos, nas breves incursões feitas no tema da embriaguez de que se tem registro, compreendiam-na como um “ímpeto intermediário entre o dolo e o caso fortuito.” Isto é, para os romanos antigos não poderia ser considerada uma ação dolosa porque o agente não estava nas plenas faculdades mentais no momento do cometimento da ação delituosa, nem tampouco poderia ser considerado caso fortuito porque não foi um caso de força maior fora da alçada de previsibilidade do agente.

Já Aristóteles apud CONTI (2013), diz que

“Sempre que por ignorância se pratica um delito o sujeito não se conduz voluntariamente, a não ser aquele que cometa seja causa da ignorância, como acontece com os ébrios, os quais causam danos ou injúria sendo causa da ignorância.”

Segundo apontamentos de Damásio de Jesus apud CONTI (2013), Do trecho depreende-se que para o grego era perfeitamente

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possível punir o ébrio que cometesse crimes já que a embriaguez já era um ato “reprovável em si mesmo”.

Enfim, na antiguidade ainda não se possuía um entendimento complexo sobre a teoria em questão. Contudo isso não quer dizer que os ébrios não possuíssem suas punições por parte de suas sociedades.

Já na idade média, segundo CONTI (2013), houve contribuições do Direito Canônico para entendimento da matéria. Isso porque embora fosse reprovável embriagar-se, foi reconhecido a impossibilidade de atribuir ao ébrio as ações cometidas pelo mesmo enquanto fora de si. Nisso consistia um forte caráter subjetivo ao se atribuir a culpa por atos delituosos.

Baseados numa passagem bíblica em Ló, segundo CONTI:

“[...] que, visão de Santo Agostinho, não teria cometido pecado ao praticar incesto com suas filhas quando estava embriagado, porquanto ignorava, no momento do ato, sua condição de parente, somente podendo ser culpado por ter abusado do vinho”.

O entendimento era que não sendo punível os atos praticados durante o clímax da embriaguez, era totalmente reprovável e passível de punição o ato de embriagar-se por escolha livre, consciente e voluntária (CONTI, 2013).

Contudo, minoritariamente, Tomás de Aquino citado por Sznick (CONTI, 2013), sustentava que ao contrário da posição majoritária,

“[...] os dois fatos cometidos (o delito cometido e a embriaguez) eram menos grave que o fato isolado, cometido sem o uso de qualquer bebida alcoólica, enquanto que, paralelamente, dois pecados não são sempre mais graves que um único pecado e, portanto, ao delinquente embriagado devia aplicar-se uma pena inferior àquela prevista por um só delito.”

Nesse caso a embriaguez era um caso de redução de pena quando o agente criminoso estivesse em estado de embriaguez, a não ser que o mesmo se embriagasse para a prática de crimes com a prévia intenção de cometê-los. Nesse ponto começava-se a introduzir fundamentos da teoria do actio libera in causa.

Com o Renascimento, o assunto toma maiores contornos e começa a delinear suas formas. Para Bártolo (1313-57) e Baldo (1327-1406), era suficiente que a embriaguez “[...] tivesse sido voluntária para que se pudesse punir ações praticadas inconscientemente” (CONTI, 2013).

O entendimento firmado pelos autores foi que ainda que o autor não pudesse ser responsabilizado pelos atos cometidos durante o estado de embriaguez, ao mesmo poderia ser imputado sua responsabilidade pelos atos antecedentes porque estava em plenas faculdades mentais nesse momento. Posteriormente também foi inserida a embriaguez culposa (Farinacio).

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Para SZNICK apud CONTI (2013),

“Foi somente no século XVI, a partir de Claro que perfeccionando-se a ciência se operou uma discussão de diversos casos. Nesse período, fez escola o conceito que, em relação a uma embriaguez completa, a responsabilidade a título de dolo para o delito cometido, devesse substituir por aquele a título de culpa.”

Então, ficou entendido através dos autores que aqueles agentes embriagados por caso de força maior ou fortuito não poderiam ser punidos por estar ausente a culpa ou dolo ato antecedente à embriaguez. Contudo se a embriaguez fosse voluntária e consciente, e então nessa situação praticasse atos criminosos, o agente agia culposamente, porque o crime não foi premeditado no ato antecedente. E ainda foi sustentado que se fosse possível prever o ato, o agente seria responsabilizado por dolo sem direitos a atenuantes, equiparando-se a embriaguez preordenada.

Com isso já se aproximavam dos conceitos modernos da teoria da actio libera in causa que serão tratados a seguir.

1.2. CONCEITOS

Antes de adentrar ao cerne do trabalho, resta dirimir alguns conceitos relativos à Teoria do Crime. A matéria penal vem para proteger os bens jurídicos mais importantes do sujeitos, sendo tratado como ultima ratio dos Ordenamentos Jurídicos das sociedades atuais. As leis penais, atualmente possuem um caráter finalista, que visa a responsabilização subjetiva dos agentes delinquentes em detrimento de uma responsabilização objetiva. Seu princípio geral é nullum crimem, nulla poena sine lege que significa que “Art. 1º CP Não há crime sem lei anterior que o defina”.

O crime se configura através de aspectos materiais e formais. Como material, podemos definir como aqueles que o legislador pretende defender em sua política criminal; e formal: Tipicidade (fato típico), Antijuridicidade, Culpabilidade (dolo ou culpa).

Contudo, antes se entende, para evitar equívocos, crime material como sendo aquele crime que exige um resultado concreto para além da conduta (admitem tentativa), enquanto que crime formal é aquele dito de mera conduta, que se exaure no momento em que acontece não necessitando um resultado.

O crime possui em sua consecução uma espécie de ordem cronológica, segue um caminho até seu exaurimento. Esse caminho é chamado de iter criminis e pode ser subdivido em quatro ou cinco fases: a cogitação, a preparação, a execução, a consumação; e o exaurimento, dependendo do referencial adotado.

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A cogitação consiste na fase interna em que o agente ainda está planejando internamente o crime e desejando executá-lo. Na segunda fase, preparação, o que antes foi planejado é externalizado quando o agente começa os atos preparatórios para o cometimento do crime. Ainda na fase externa, na terceira fase, a execução, o agente executa o crime premeditado e preparado, começando a lesar o bem jurídico. Na quarta fase ocorre a consumação em que acontece os resultados e efeitos desejados pelo agente. E por fim o exaurimento, quando cessam os efeitos e resultados da ação.

1.2.1. TIPICIDADE

O fato típico é o primeiro elemento para se configurar um crime. É aquele fato que está previsto nos códigos penais que quando ocorre é subsumido à norma. Para se configurar o fato típico, este necessita de alguns requisitos:

Conduta dolosa ou culposa: o agente deve agir por ação ou omissão humana, consciente e voluntária;

Resultado: a ação ou omissão do agente deve modificar o mundo exterior;

Nexo causal: deve haver um nexo de causa-efeito ligando a ação ou omissão e o resultado;

Tipicidade: o fato deve estar previsto no ordenamento para realizar sua subsunção.

Isso lembrando que age com dolo aquele que atua com vontade e consciência sobre o fato. Responde também por dolo aquele que podendo prever os resultados de sua ação, assume o risco de sua ação. Age com culpa aquele que por negligência, imperícia ou imprudência não cumpre com o dever de cuidado sobre suas ações ferindo bens jurídicos de outras pessoas.

Dolo pode ser subdividido na forma mais básica em direto (consciência e vontade), ou eventual (assume o risco de produzir o resultado).

Já a culpa (imprudência, imperícia e negligência) pode ser subdivida em: consciente em que há previsibilidade do resultado mas o agente atua com imperícia, imprudência ou negligência, inconsciente (CP não distingue da consciente) em que não há previsibilidade do resultado apesar da conduta ser perigosa.

São casos de exclusão de fato típico, quando o mesmo não está previsto no ordenamento. Isto é, não há crime sem lei que o anteceda.

1.2.2. ANTIJURIDICIDADE

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Aqui resta entender que antijurídico é o fato típico contrário à lei que um agente comete através de uma ação ou omissão dolosa ou culposa.

São casos de exclusão de antijuridicidade quando o agente atua para proteger um bem jurídico relevante. Eles subdividem-se em:

Estado de necessidade: quando dois bens jurídicos colidem e a escolha entre um e outro não são reprováveis;

Legítima Defesa: quando alguém sofre uma agressão injusta, iminente e atual a um bem jurídico seu, este possui o direito de defender sua esfera jurídica utilizando meios suficientes para tanto;

Estrito cumprimento do dever legal: quando o agente atua conforme a lei obedecendo ao ordenamento.

Exercício regular de um direito: quando o agente atua exercendo um direito seu previsto em lei.

1.2.3. CULPABILIDADE

Muitos autores entendem a culpabilidade como pressuposto de aplicação de pena, como o professor Damásio de Jesus, contudo o entendimento adotado será o de requisito do crime.

Os elementos da culpabilidade são:

Imputabilidade: se é possível imputar crimes ao agente, se o mesmo é capaz no momento do fato típico, etc.;

Potencial consciência de ilicitude: se o agente entende que sua ação é antijurídica;

Exigibilidade de conduta diversa: se no momento dos fatos, o agente poderia ter agido de forma diferente. Nesse caso a inexigibilidade de conduta diversa, ocorre quando não é possível exigir que o agente atue de forma diferente. São casos de coação moral irresistível (a física exclui o crime); e obediência hierárquica;

1.2.3.1. IMPUTABILIDADE APLICADA À TEORIA DO ACTIO LIBERA IN CAUSA

Resolve-se a imputabilidade como

“[...] o universo próprio de características de uma pessoa, indicativo de sua maturidade e higidez mental, capaz de lhe conferir plena capacidade de entendimento e determinação (ou posicionamento) sobre o caráter ilícito do fato, e, por conseguinte, aptidão para que lhe seja atribuída a prática de uma conduta delituosa, bem como aplicada a sanção penal direta correspondente (pena criminal).” (MACHADO, ___)

A teoria abarcada pelo CP está no art. 26:

“É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar?se de acordo com esse entendimento.”

Do artigo 26 depreende-se que para um sujeito ser imputável, ele depende de um fator biológico e psicológico, no tempo da ação ou omissão. Como fatores biológicos entende-se a idade para ser imputado crimes aos indivíduos, isto é, dependendo da política criminal de uma sociedade a imputabilidade pode variar com a idade, no Brasil são 18

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anos; também entende-se como biológicos os fatores pertinentes às faculdades mentais, doenças, desenvolvimento mental adequado, etc. Já para o fator psicológico, o mesmo compreende o teor volitivo do agente em atuar ilicitamente ou não. Conforme os ensinamentos de PONTE apud MACHADO, “só é imputável o indivíduo que tem capacidade de entender e de querer”. E como ao tempo da ação ou omissão devemos concluir que deverá ser avaliado o estado do agente no momento da prática do crime, se este estava em plenas capacidades biopsicológicas para agir.

Nesse momento em que a Teoria do Actio Libera in Causa entra na Teoria do Crime. Isso porque quando o agente se enquadra nos casos dessa teoria ele está em estado de embriaguez. Este que pode ser definido segundo VIDAL, “[...] a intoxicação do organismo causada pelo álcool ou substâncias de efeitos análogos”.

A embriaguez pode ser subdividida em:

Quanto ao grau:

Completa: não tem consciência de seus atos;

Incompleta: apesar de ter ingerido substâncias que possam o ter embriagado ainda não perdeu a consciência e a vontade sobre seus atos;

Quanto à origem ou natureza:

Acidental (VIDAL): “é a embriaguez derivada de caso fortuito, força maior ou erro, segundo nosso particular ponto de vista, inobstante haja coincidência quanto ao tratamento jurídico penal dado às três hipóteses: se plena a embriaguez, vale dizer, completa, isenta o agente de pena (art. 28 §1º, CP); se incompleta, a pena poderá ser reduzida (art. 28, §2º, CP).”

Fortuita: é a embriaguez que não foi desejada, que ocorreu por causa ignorada pelo agente;

Força maior: quando o agente não pode evitar a situação de se embriagar;

Não-acidental: essa é a embriaguez que não se deduz acidentalmente, subdividindo-se em voluntária (dolosa), culposa e preordenada. Em nenhum dos casos fica excluída a imputabilidade do agente.

Voluntária (MARQUES apud VIDAL): “quando o agente se entregou às libações alcoólicas com o propósito de embriagar-se”. Não exclui a imputabilidade (art. 28 II, CP);

Culposa (VIDAL): quando o agente não tem o propósito de se embriagar mar isso acontece. Não exclui a imputabilidade (art. 28 II, CP);

Preordenada (CONTI, 2013): “o agente faz-se instrumento de si mesmo para praticar o delito”. Isto é, o agente embriaga-se como ato integrante do iter criminis ou para apresentar uma escusa por estar em situação de imputabilidade no momento do crime. Aqui a pena é agravada;

Patológica ou crônica (VIDAL): “quando assemelha-se à doença mental, retirando do agente, total ou parcialmente, a capacidade de entendimento e volição”. Esse seria o caso de alcoolismo crônico (BITENCOURT, 2014). Segue tratamento do art. 26, CP;

Habitual ou agudo (BITENCOURT, 2014): é representado pelo alcoolismo agudo. Segue tratamento, segundo BITENCOURT, do art. 26, CP.

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Há de considerar também que os casos da embriaguez crônica e habitual são tratadas como doenças e por isso o tratamento é o do art. 26, CP, igualando-os como doentes mentais para o nível de imputabilidade.

Nesse momento adentramos na teoria do trabalho quando QUEIROS apud MACHADO

“[...] identifica que as ações livres em sua causa como aqueles ‘casos em que alguém, no estado de não-imputabilidade, é causador, por ação ou omissão, de algum resultado punível, tendo se colocado naquele estado, ou propositadamente, com a intenção de produzir o evento lesivo, ou sem essa intenção, mas tendo prevista a possibilidade do resultado, ou, ainda, quando a podia ou devia prever”.

Então, como não é possível imputar responsabilidade a alguém completamente embriagado no momento em que estava cometendo o fato, que o legislador criou uma ficção jurídica por motivo de política criminal para através, do ato antecedente, responsabilizar o agente delinquente por seus atos enquanto em situação de inimputabilidade, quando não ocorrer caso fortuito ou de força maior (art. 28, §1º CP), situação em que não há crime.

2. TEORIA DA ACTIO LIBERA IN CAUSASegundo NASCIMENTO apud RIBEIRO, a teoria se adequa para

os casos

“[...] em que alguém, no estado de não-imputabilidade, é causador, por ação ou omissão, de algum resultado punível, tendo se colocado naquele estado, ou propositadamente, com a intenção de produzir o evento lesivo, ou sem essa intenção, mas tendo previsto a possibilidade de resultado, ou, ainda, quando podia ou devia prever”.

Como dito anteriormente, para se imputar responsabilidade jurídica a alguém é necessário que este esteja em plena capacidade de entender (a antijuridicidade) e de ter vontade de praticar o ato. A imputabilidade deve existir no momento do crime e não antes ou depois segundo a teoria do crime e da imputabilidade utilizada majoritariamente.

Partindo do argumento acima, vê-se inadmissível que seja imputado culpa a alguém antes ou depois do acontecimento do crime. Isso porque o mesmo não possuía conhecimento sobre o fato que estaria ocorrendo em seu nome, não percebendo a realidade do crime.

O “[...] dogma da teoria da imputação está na exigência de que esteja presente, durante a realização da atividade ilícita, o elemento subjetivo do tipo, isto é, dolo ou culpa, a fim de evitar a tão odiosa responsabilidade penal objetiva” (CONTI, 2013). Ainda com CONTI, cita SANTOS que diz que “Não existe dolo anterior, nem dolo posterior à realização da ação típica”. São fatos “imprudentes”.

Então a contra sensu do código, não seria possível culpabilizar alguém através da teoria da actio libera in causa porque o agente está em

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“[...] estado de completo torpor no momento da prática do verbo núcleo do tipo, não podendo dizer que ele agia com consciência na realização da conduta (dolo), tampouco que agia de maneira não diligente voluntariamente (culpa)” (CONTI, 2013).

Disso se tem a conclusão que a responsabilização tem que ser objetiva, isto é, que o agente em plenas condições de entender e querer cometeu o ato ilícito. Então, se não for possível essa imputação, sequer haverá crime, porque quem não está nessas condições não forma nem fato típico.

Segundo CONTI (2013),

“[...] a punibilidade das actiones liberae in causa, quando analisada sob diferentes ângulos da teoria do delito, encontra uma série de obstáculos: seja em virtude da teoria da imputação, seja por força do princípio da culpabilidade ou mesmo por ausência de conduta, não seria possível atribuir ao agente as ações típicas praticadas durante estados transitórios de inconsciência, sob pena de caracterização de responsabilidade penal objetiva, repudiada por nosso sistema jurídico-penal”.

Então, ainda com CONTI,

“[...] a solução encontrada pela maior parte dos penalistas foi tentar, de algum modo, relacionar a ação delitiva praticada inconscientemente ao ato precedente de se colocar em tal situação, antecipando a análise da imputabilidade para o momento anterior em que a vontade do agente era livre e psiquicamente normal”.

A partir disto é possível inferir que a actio libera in causa vem como força de política criminal para se evitar os danos que possam ser causados por ébrios, trazendo mais um teor de defesa social com teor mais pragmático que teórico.

A seguir no trabalho, tratarei de cinco fundamentos levantados por CONTI em seu trabalho, para a aplicação da teoria em questão, sendo: teoria do dolo inicial e antecedente; teoria do dolo no processo de execução; teoria da causalidade mediata; teoria da equivalência dos antecedentes; teoria do instrumento de si mesmo.

2.1. TEORIA DO DOLO INICIAL E ANTECEDENTE

Nesta teoria, somente seria possível punir o agente que se colocou espontaneamente em estado de inimputabilidade já quisesse o resultado que viesse a se concretizar posteriormente.

Para CONTI (2013),

“Nessa lógica, a teoria da actio libera in causa serviria para antecipar a imputação do resultado ilícito para o momento em que o agente, de maneira livre e consciente, deliberou a prática criminosa, isto é, para o momento em que, por exemplo, decidiu se embriagar, conduta esta que, não fosse pela ficção jurídica, não poderia ser punida por configurar mero ato preparatório”.

Por fim, aqui nada obsta para que a responsabilização se desloque para o momento antecedente à situação de inimputabilidade. Segundo CONTI,

“[...] a adoção dessa teoria implica a restrição da actio libera in causa aos casos de embriaguez preordenada, excluindo de seu âmbito de aplicação, por conseguinte, a embriaguez voluntária e a embriaguez culposa”.

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2.2. TEORIA DO DOLO NO PROCESSO DE EXECUÇÃO

Aqui nesta teoria, “bastaria que o dolo estivesse presente em qualquer dos momentos do processo de execução do delito” (CONTI, 2013). Aqui a vontade inicial do agente em se colocar na situação de inimputabilidade alongar-se-ia por toda execução do crime que dali fosse desencadeado, atingindo o resultado inconscientemente. Aqui o ato de quem se embriaga para cometer crimes é considerado com parte dos atos executórios.

SZNICK apud CONTI define:

“O agente, embriagando-se, inicia o processo executivo do delito, completa os atos preparatórios, com a consequência de que o próprio processo sofra um alargamento: a causa adequada ao resultado – aquela de beber – é logicamente inserida no iter criminoso, porquanto dirigida à realização do ato”.

Aqui o agente seria responsabilizado pelos atos antecedentes ao resultado do ato criminoso subsequente, quando o mesmo estava embriagado. Segundo Queirós, nesse caso a actio libera in causa estaria “restrita aos casos de embriaguez preordenada” (CONTI, 2013). Então nessa teoria o agente apenas poderia ser responsabilizado quando se embriagasse preordenadamente e a embriaguez voluntária ou culposa seriam casos de inimputabilidade.

2.3. TEORIA DA CAUSALIDADE MEDIATA

O maior teórico dessa corrente é CARRARA. O conceito chave é que,

“[...] o agente que, atuando de maneira livre e consciente, coloca-se voluntariamente em estado de inconsciência ou para ele se deixa arrastar, dá causa – ainda que indiretamente – aos resultados que depois venha a praticar nessa condição, podendo por eles ser responsabilizado através da actio libera in causa” (CONTI, 2013).

QUEIRÓS apud CONTI analisando CARRARA diz que quando a embriaguez voluntária é completa, é excluída a possibilidade de dolo, mas subsiste a culpa. Caso seja incompleta, apensa conforma-se como atenuante. Se acidental e completa, não se pode imputar responsabilidade e se for incompleta e o agente ainda possuir controle biopsicológico sobre seus atos, mantém-se a imputação com na teoria clássica do crime, salvo quando possa ser diminuído o dolo ou a culpa.

Nessa teoria se pune o que o ébrio fez, pensou, planejou, desejou antes de estar embriagado. Dispensa-se o elemento subjetivo para toda execução do crime, sendo possível imputar responsabilidade ao agente analisando a culpabilidade antes do torpor da embriaguez. Não é necessário que o dolo permaneça durante toda a execução do crime.

Nesse caso, com MAYER apud RIBEIRO, divide-se o fenômeno das actiones libera in causa em duas secções:

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“Na primeira ação, está a vontade livre do agente dirigida à realização de um resultado, já na segunda ação, está a conduta não livre produtora do resultado visado. Essas duas ações estão ligadas ao elemento essencial à caracterização da teoria: o nexo causal (CHAMON JUNIOR, 2003a; NASCIMENTO, 1992).”

Para essa teoria, concluindo, não interessa o tipo de dolo (direto ou indireto), apenas resta saber se há nexo de causalidade entre o ato de embriagar-se de forma livre e consciente e a antijuridicidade póstuma.

“Se a ação ou omissão produzida inconscientemente de algum modo decorreu do ato anterior, seja este doloso ou culposo, é possível aplicar a fórmula da actio libera in causa para fins de responsabilização do agente” (CONTI, 2013).

Aqui, busca-se refutar o argumento da responsabilidade penal objetiva dizendo que apenas poderia ser imputada a responsabilidade ao agente respeitando-se o nexo causal entre o ato de embriagar-se e o resultado criminoso quando já embriagado.

2.4. TEORIA DA EQUIVALÊNCIA DOS ANTECEDENTES

Nessa teoria cria-se um postulado causa causae est causa causati (a causa da causa também é causa do que foi causado). O cerne dessa teoria é que

“[...] o sujeito que voluntariamente se coloca em estado de inimputabilidade deu causa à causa do resultado ilícito posteriormente produzido, não havendo, bem por isso, qualquer óbice a sua responsabilização” (CONTI, 2013).

Essa teoria é adotada pelo CP brasileiro, quando no artigo 13, “O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera?se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido”.

Nesta teoria, o agente é punido pelos atos subsequentes à sua ação de embriagar-se voluntariamente para colocar-se em situação de inimputabilidade. Aqui empreende-se uma sequência lógica e natural sem que se o agente não tivesse se embriagado nunca haveria de ocorrer os resultados supervenientes de sua decisão voluntária de embriagar-se. O agente é bem punido pelos fatos que antecederam os resultados supervenientes.

Aqui ocorre o alargamento da actio libera in causa para além da embriaguez preordenada, alcançando também a culposa e a voluntária. “A imputação se dará a título de dolo ou culpa, a depender do elemento subjetivo do agente no momento antecedente” (CONTI, 2013).

Nessa teoria os adeptos concordam com os da causalidade mediata no quesito de punibilidade dos agentes (dolo e culpa). No entanto divergem quanto à previsibilidade do agente em relação aos fatos supervenientes. Para a teoria da equivalência dos antecedentes, bastaria “[...] conditio sine qua non, que o ato antecedente tenha sido causa daquilo que causou o ato subsequente, pouco importando se este

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último estava ou não situado dentro da linha de desdobramento causal normal do primeiro” (CONTI, 2013).

2.5. TEORIA DO INSTRUMENTO DE SI MESMO

Nesta o agente que “[...] voluntariamente se coloca em estado de inconsciência visando, com isso, cometer determinado injusto penal, está fazendo de si  mesmo um instrumento para a obtenção do resultado danoso, sendo perfeitamente possível responsabilizá-lo” (CONTI, 2013).

O agente ao se colocar em embriaguez preordenada atua como autor mediato da ação, porque usa a si mesmo, quando embriagado, como executor (autor imediato) de suas intenções volitivas antecedentes ao estado de inimputabilidade.

Aqui se entende, segundo RIBEIRO, que haveria dois sujeitos. O primeiro premedita a ação principal coloca-se em estado de inimputabilidade (embriagando-se), e o segundo seria o mesmo já embriagado, que executa o crime premeditado quando estava sóbrio.

Aqui SILVA (2004, p.83) apud RIBEIRO, disserta que:

“De sua parte, Ernst Beling compara a actio aos casos de autoria mediata, explicando que na actio libera in causa“alguém se coloca a si mesmo em um estado de incapacidade de querer ou de inimputabilidade, e executa em tal estado a ação ou a omissão que acarreta o resultado”. Na hipótese, como diz Mayer, o agente usa o seu próprio corpo como instrumento na execução do crime (grifo original).”

Por fim, é bom dizer que os adeptos, em maioria, dessa teoria compreendem apenas a actio libera in causa para os crimes cometidos após a embriaguez preordenada, quando o agente “[...] somente faz de si mesmo instrumento para obtenção de um resultado aquele que efetivamente deseja ou, ao menos assume o risco de produzi-lo” (CONTI, 2013).

2.6. VISÃO CONTEMPORÂNEA

Na doutrina pátria, encontramos a definição de Narcélio de Queirós apud MACHADO, como dito anteriormente, dizendo que

“São os casos em que alguém, no estado de não-imputabilidade, é causador, por ação ou omissão, de algum resultado punível, tendo se colocado naquele estado, ou propositadamente, com a intenção de produzir o evento lesivo, ou sem essa intenção, mas tendo prevista a possibilidade do resultado, ou, ainda,  quando a podia ou devia prever”.

A actio libera in causa é uma ficção jurídica utilizada para aferir a imputabilidade de sujeitos que se encontram em estado de inimputabilidade por embriaguez, descolando o elemento subjetivo para ação antecedente aos resultados supervenientes. Isto é, com ela é possível atribuir culpa a alguém mesmo que este se encontre em estado

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de inimputabilidade, dentro das previsões do ordenamento de cada sociedade.

MASSON apud CONTI analisa os efeitos da actio libera in causa,

“Invoca-se essa teoria, portanto, para justificar a punição do sujeito que, ao tempo da conduta, encontrava-se em estado de inconsciência. Possibilita-se então a análise do dolo ou da culpa, revelados no momento em que se embriagou.”

A visão majoritariamente adotada pela doutrina contemporânea é a concepção que abrange a embriaguez preordenada, a voluntária e a culposa. Também importante ressaltar uma minoria divergente que resiste a essa ampliação. Para eles a actio libera in causa deve somente tratar da embriaguez preordenada, negando a possibilidade de punir aqueles agentes que se encontrem em estados de inimputabilidade por embriaguez voluntária ou culposa.

Por fim, a compreensão do tema deve atender a própria análise dos vocábulos segundo CONTI, “‘actio’ (referente à conduta, seja comissiva ou omissiva) ‘libera’ (livre) ‘in causa’ (na causa, isto é, no momento antecedente do qual se originou o resultado)”.

3. LIMITES E CRÍTICASAs principais críticas e limites impostos a teoria da actio libera in

causa condizem com a colisão da mesma com a teoria do delito. A ficção jurídica criada para se punir o agente delituoso é empregado de forma desfavorável ao réu (CONTI, 2013), em detrimento que de acordo com a teoria do delito não seria possível responsabilizar esses agentes.

O artifício da actio libera in causa depende mais de uma política criminal porque aumenta o poder punitivo do estado. Segundo CONTI,

“À luz de um Estado Democrático de Direito, intui-se que o emprego de tal artifício deve se dar de maneira estrita, racional e proporcional, em conformidade com o núcleo essencial dos direitos fundamentais e sem afrontar os princípios constitucionais penais, sob pena de arbitrariedade e ilegitimidade da ingerência estatal”.

CONTI em sua dissertação separa esses limites em alguns quesitos: voluntariedade do ato antecedente; nexo de causalidade; previsibilidade objetiva do resultado; inaplicabilidade da teoria da vontade residual. E logo após traça algumas críticas: do apego à realidade como garantia do indivíduo; responsabilidade penal objetiva e culpa versari in re illicita.

3.1. LIMITES

3.1.1. VOLUNTARIEDADE DO ATO ANTECEDENTE

Page 13: A Teoria Da Actio Libera Em Causa

Aqui o limite se impõe na vontade do agente em se embriagar. Os casos fortuitos ou de força maior são eliminados da possibilidade de se imputarem responsabilidades a alguém. Contudo resta lembrar que não é crime colocar-se em estado de embriaguez, sem que haja o resultado, sendo impossível punir alguém por um resultado que não ocorreu.

Aqui, “[...] somente as ações que efetivamente tenham sido livres em sua causa (isto é, no ato antecedente) poderão ser punidas através da teoria ora em estudo. (CONTI, 2013)” Isso significa que não haverá punição para os casos fortuitos ou de força maior em que seja inevitável o estado de ebriez. Então, ainda com CONTI, a teoria da actio libera in causa “[...] fica restrita ao contexto da embriaguez preordenada e da embriaguez não acidental, seja esta última culposa ou voluntária (dolosa)”.

3.1.2. NEXO DE CAUSALI DADE

É necessário um vínculo de causa-efeito entre o ato de embriagar-se e os resultados supervenientes. A causa antecedente tem que ser de fato a causa da causa subsequente que resultou no crime.

Conclui-se com CONTI,

“Não sendo possível estabelecer tal liame de consequencialidade, não será possível responsabilizar o agente pelo ato antecedente, ainda que ele o tenha praticado dolosamente e mesmo que ele quisesse que com isso o posterior resultado fosse implementado (preordenação). Nesse caso, não há que se falar sequer em tentativa, uma vez que o ato antecedente, em si mesmo considerado, pode no máximo configurar ato preparatório e, portanto, impunível”.

3.1.3. PREVISIBILIDADE OBJETIVA DO RESULTADO

Aqui se depreende que o resultado não basta ter ocorrido após o agente se colocar em estado de inimputabilidade, é fundamental que esse resultado seja previsível na esfera de possibilidades do agente de se precaver da ocorrência do evento delituoso. A previsibilidade objetiva do resultado torna-se conditio sine qua non para se fundamentar a actio libera in causa. E é através desse argumento que se contraria a tão repudiada responsabilidade penal objetiva.

CONTI concordando com QUEIRÓS, diz que

“[...] somente poderá ser imputado ao agente aquele resultado cuja ocorrência derive naturalmente da colocação em estado de inconsciência, em conformidade com as regras de experiência. Deve o agente enquanto ainda está consciente, ter possibilidade de realizar a representação mental das prováveis consequências do ato antecedente”.

Então, o agente deve inexoravelmente deter a possibilidade de antever a ocorrência do resultado específico e determinado, não bastando apenas a previsão genérica que seria possível ocorrer o fato subsequente ao ato de embriagar-se. Se não houver essa ligação, o agente poderia ser punido por quaisquer ações que cometesse em estado de torpor, sendo punido apenas por estar simplesmente neste estado de ebriez, dispensando o dolo e a culpa. Haveria assim, uma espécie de presunção do dolo ou da culpa.

Page 14: A Teoria Da Actio Libera Em Causa

De acordo com a doutrina majoritária, não se depende da voluntariedade do ato de se colocar em estado de inimputabilidade, sendo fundamental que o agente deseje o resultado do ilícito superveniente, ao menos que o mesmo seja previsível no momento da prática do primeiro ato, são os casos de dolo ou culpa no antecedente momento de embriagar-se.

Contudo, o CP atual no art. 28, II diz que “Não excluem a imputabilidade penal: a embriaguez, voluntária ou culposa, pelo álcool ou substância de efeitos análogos”. Sendo que a exposição de motivos de 1940 da parte geral admite a teoria do actio libera in causa. Para NORONHA apud CONTI, “ao se contentar com o simples fato de o agente ter se embriagado de maneira livre para possibilitar sua imputação, nosso legislador acabou consagrando inadmissível hipótese de responsabilidade objetiva”.

3.1.4. INAPLICABILIDADE DA TEORIA DA VONTADE RESIDUAL

Aqui alguns doutrinadores dizem que resta uma vontade mínima quando o agente delinque. Isto quer dizer que subsistiria no estado de inconsciência um agir mínimo do agente que o conduz à prática delituosa. A embriaguez para esses adeptos nunca geraria absoluta ausência de vontade.

Para HUNGRIA apud CONTI,

“Diante de todas essas considerações, o legislador brasileiro não podia ter hesitado em equiparar a vontade do ébrio à vontade condicionante da responsabilidade e, consequentemente, da punibilidade. No caso da embriaguez preordenada, o agente responderá sempre a título de dolo (e com a pena agravada); no caso da embriaguez culposa, responderá por crime doloso ou culposo, segundo as indicarem as circunstâncias ou, seja, segundo a direção ou atitude da residual vontade que existe segundo a direção ou atitude da residual vontade que existe no estado de ebriedade. Não é necessária uma relação finalística entre a embriaguez e a conduta aberrante: basta o nexo de causalidade entre aquela e esta, de par com a previsão ou possibilidade de previsão dos anarquizantes efeitos da ingestão do álcool ou substância análoga.”

Aqui a teoria do actio libera in causa tornar-se-ia ilimitada. Não haveria qualquer impedimento em se punir um agente por eventos antijurídicos após a embriaguez voluntária ou culposa, mesmo que não fosse possível prever os resultados supervenientes, restando apenas que fosse possível prever que poderia infringir alguma lei.

NORONHA apud CONTI, argumenta que se a vontade residual realmente existisse, não precisaríamos da tal teoria da actio libera in causa já que todo agente atuaria de forma volitiva ao praticar os crimes, podendo ser aplicada a teoria clássica do delito sobre dolo ou culpa.

Segundo BITENCOURT (2014, p. 493), “Hungria confundia o sentido da actio libera in causa, com a arbitrária política criminal adotada

Page 15: A Teoria Da Actio Libera Em Causa

do Código Penal de 1940 relativamente aos efeitos da embriaguez, que consagrava odiosa reponsabilidade penal objetiva”.

Conclui-se que esta vontade residual remonta a tempos lombrosianos, sendo uma aberração lógica para os ditames atuais das ciências em geral. Além do que, com CONTI,

“[...] mesmo que se admita a existência de alguma vontade a reger o comportamento do indivíduo inconsciente, o injusto eventualmente praticado nessa condição não poderá ser considerado culpável, já que ainda que houvesse voluntariedade quanto ao ato subsequente, evidente que o agente tem capacidade para entender o caráter ilícito do fato ou de se determinar de acordo com esse entendimento. Assim, quer em sede de tipicidade, quer em sede de culpabilidade, impõe-se a absolvição”.

3.2. CRÍTICAS

3.2.1. DO APEGO À REALIDADE COMO GARANTIA DO INDIVÍDUO

Ao agente só pode ser atribuído os fatos cometidos com dolo ou culpa. Nullum crimem sine conducta (não há crime sem conduta). Segundo ZAFFARONI apud CONTI,

“O princípio nullum crimem sine conducta é uma garantia jurídica elementar. Se fosse eliminado, o delito poderia ser qualquer coisa, abarcando a possibilidade de penalizar o pensamento, a forma de ser, as características pessoais etc. Neste momento de nossa cultura isso parece suficientemente óbvio, mas, apesar disto, não faltam tentativas de suprimir ou de obstacularizar este princípio elementar”.

A partir dessas premissas então seria impossível imputar culpa a alguém enquanto está privado de sua consciência, não haveria sequer crime, porque não haveria vontade. No entanto a actio libera in causa desloca a imputabilidade para o momento anterior ao estado de inimputabilidade em que o agente atua volitivamente para se colocar em estado de embriaguez.

Infere-se então que a actio libera in causa atua como uma ficção jurídica para transformar o que não seria possível de punir em punível. Resta entender que a teoria em questão depende de política criminal para existir e delimitar seus parâmetros, e que essa política deve se ater ao restrito entendimento que deva ser utilizada a teoria para casos mais gravosos para, assim, evitar punições indevidas a lesões de bens jurídicos de menor valor social interferindo em malefício do réu.

3.2.2. RESPONSABILIDADE PENAL OBJETIVA E CULPA VERSARI IN RE ILLICITA

Em tempos passados o simples resultado já era motivo para alguém ser punido, dependendo apenas de um nexo de causalidade para tanto. Atualmente, com o acréscimo do princípio da culpabilidade, o

Page 16: A Teoria Da Actio Libera Em Causa

agente só pode ser punido se agir com culpa ou dolo. Quando esse princípio é violado, entende-se que houve uma responsabilização objetiva.

O versari in re illicita corresponde a possibilidade de “[...] responsabilizar o agente pelo simples fato de a conduta que causou o resultado ter sido voluntariamente praticada” (CONTI, 2013). A aplicação desse princípio pode ampliar, segundo ZAFFARONI E PIERANGELI, o poder estatal de punição. Pareceria uma espécie de culpabilização infinita, com uma série de responsáveis. Isto é, responsável não é só quem mata, mas também quem fabricou a arma.

Para a doutrina, quando o agente que não se colocou em estado de embriaguez de forma preordenada é passível de responsabilização, existe um caso de versari in re illicita. No caso seriam a embriaguez voluntária e a embriaguez culposa. Argumentando que se não há consciência não há crime.

Ao se respeitar o princípio da culpabilidade, restam apenas duas alternativas ao legislador, segundo CONTI: a primeira em responsabilizar o autor a título de culpa pelo crime em situação de inconsciência (desde que haja previsão legal para tanto); ou criar um tipo penal para o agente que se colocar em tal estado de inimputabilidade e que cometa um resultado danoso supervenientemente.

TELES apud CONTI entende que a segunda opção seria mais plausível, buscando a tipificação da reprovabilidade de se colocar em estado de embriaguez preordenadamente, voluntariamente ou culposamente e que assim cometa um fato tipificado no código.

O Código Penal Português, citado por RIBEIRO, traz a seguinte redação, atendendo à segunda opção segundo CONTI (2013):

“quem, pela ingestão de voluntária ou por negligência, de bebidas alcoólicas ou outras substâncias tóxicas, colocar-se em estado de completa inimputabilidade e, nesse estado, praticar acto criminalmente ilícito, será punido com prisãode até um ano e multa de 100 dias.

Aqui o código português não se importou em “[...] conciliar a actio libera in causa com o princípio da culpabilidade na embriaguez voluntária e culposa” (CONTI, 2013). Aqui, os lusitanos apenas adotaram uma política criminal em que como exceção, essa conduta seria punida objetivamente.

O Código alemão, segundo CONTI, trás solução mais adequada:

“No direito penal alemão, pretendendo contornar o aspecto de quem bebe, voluntariamente, mas sem a intenção de cometer crimes, nem assumindo o risco de fazê-lo, criou-se figura típica específica: ‘Quem se coloque em um estado de embriaguez premeditada ou negligentemente por meio de bebidas alcoólicas ou de outras substâncias estimulantes, será punido com pena privativa de liberdade de até cinco anos ou com multa quando se cometa neste estado um fato ilícito e por esta causa não possa ser punido, porque como consequência da embriaguez seja inimputável’ (art. 323a, CP alemão). A pena não poderá ser superior àquela que seria imposta pelo fato cometido no estado de embriaguez (art. 323a, II, CP alemão).”

Page 17: A Teoria Da Actio Libera Em Causa

ZAFFARONI apud CONTI prefere a primeira alternativa em responsabilizar os agentes da actio libera in causa apenas por culpa, se esta estiver prevista no ordenamento. Para ele seria atípico o dolo, porque este não seria atual no momento de torpor em que o crime é cometido, caindo sobre a responsabilidade penal objetiva. Já para a tipicidade culposa, seria inútil utilizar a teoria em discussão, porque ao tipo culposo não é exigido que a culpa seja concomitante ao resultado.

Não precisaria então utilizar a referida teoria na situação culposa porque bastaria a violação do dever de cuidado que tenha causado um resultado danoso para que o agente seja responsabilizado, caso isso possa ser previsto. Somente nos casos dolosos que seria necessária a antecipação da análise da imputabilidade e a vontade subjetiva para poder se punir alguém.

No entanto ZAFFARONI apud CONTI entende que “Não havendo tipicidade objetiva [...], não esse pode conceber o dolo”. Isso porque nesse momento apenas há a vontade de embriagar-se e o desejo enquanto embriagado de cometer o crime. Para o autor não é possível atribuir dolo ao desejo porque não há tipificação para tanto.

Para o mestre, segundo as palavras de CONTI,

“[...] não seria possível, dentro da tipicidade dolosa, antecipar o juízo de imputabilidade para o momento do ato antecedente de se colocar em estado de inconsciência, pois o sujeito sóbrio não sabe do que será capaz de fazer quando totalmente entorpecido”.

Para Zaffaroni o indivíduo inconsciente não teria domínio final do fato delituoso. Isto é, não possuiria controle sobre si mesmo enquanto embriagado.

CONTI ousa refutar essa ideia a partir da tese do instrumento de si mesmo, quando o agente de forma mediata embriaga-se para enquanto embriagado execute os crimes antes premeditados de forma imediata. O autor sóbrio seria o mentor do crime cometido enquanto embriagado. Assim perfeitamente o agente poderia ser culpado a título de dolo.

CONTI conclui seu pensamento:

“Em suma, nosso entendimento é no sentido de que a actio libera in causa deveria ficar restrita aos delitos preordenados. Fora disso, concordamos com Zaffaroni quanto à desnecessidade de se recorrer à teoria nos casos em que o agente induz em si a inconsciência de maneira voluntária ou culposa, sem visar à prática de delito, hipótese em que responderá normalmente por crime culposo, desde que haja previsi-bilidade objetiva do resultado porquanto já caracterizada a quebra do dever de cuidado”.

3.2.3. ATENTADO AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

É bom considerar que críticos dessa teoria atribuem que a partir da Constituição Federal de 1988 este instituto da actio libera in causa

Page 18: A Teoria Da Actio Libera Em Causa

resta desatualizado. Devendo este estar subordinado aos preceitos da dignidade humana, respeitar o princípio da anterioridade, da culpabilidade, etc.

Segundo RIBEIRO, “Cabe ao legislador brasileiro a tarefa de atualizar o diploma penal à luz da Constituição Federal de 1988, a fim de tornar legítima uma punição merecida”. O legislador brasileiro deve buscar soluções em nível de política criminal para colocar o instituto da actio libera in causa de acordo com as leis constitucionais vigentes respeitando os direitos fundamentais atribuídos às pessoas no Brasil.

4. COMO A TEORIA DA ACTIO LIBERA EM CAUSA FOI RECEPCIONADA PELO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

A presente teoria adentrou no ordenamento a partir da Exposição de motivos de 1940 da Parte Geral do Código Penal em que previa, segundo RIBEIRO:

“Ao resolver o problema da embriaguez, do ponto de vista da responsabilidade penal, o projeto aceitou em toda a sua plenitude a teoria da actio libera in causa ad libertatem relata, que, modernamente, não se limita ao estado de inconsciência preordenado, mas se estende a todos os casos em que o agente se deixou arrastar ao estadado de insconsciência (grifo nosso) (NUCCI, 2009b, p. 303)”.

Abarcada pela atual exposição de motivos quando:

“24. Permanecem íntegros, tal como redigidos no Código vigente, os preceitos sobre paixão, emoção e embriaguez. As correções terminológicas introduzidas não lhes alteram o sentido e o alcance e se destinam a conjuga?los com disposições outras, do novo texto.”

Outros aspectos são os trazidos pelo art. 26, e art. 28, II, §1º e 2§. Seguem abaixo:

“Art. 26. É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar?se de acordo com esse entendimento.

Embriaguez

II – a embriaguez, voluntária ou culposa, pelo álcool ou substância de efeitos análogos.

§ 1o É isento de pena o agente que, por embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou força maior, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar?se de acordo com esse entendimento.

§ 2o A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, por embriaguez, proveniente de caso fortuito ou força maior, não possuía, ao tempo da ação ou da omissão, a plena capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar?se de acordo com esse entendimento.”

Logo, o instituto baseia-se não só por uma lei, mas também na Exposição de Motivos de 1940. RIBEIRO, em sua dissertação traz casos concretos de aplicabilidade da actio libera in causa que serão dispostos abaixo.

Page 19: A Teoria Da Actio Libera Em Causa

Então pode se concluir com RIBEIRO que,

“[...] para punir aqueles crimes cometidos em estado de ebriez preordenada ou não o Código Penal brasileiro optou pela actio libera in causa, que pela análise da culpa – sentido amplo – no momento de se embriagar, legitima a punição do delito causado inconscientemente.”

Contudo não se pode esquecer que há controvérsias quando esses institutos se contrapõem à luz da nova CF/88 e o rol de direitos fundamentais positivados desde então.

4.1. JURISPRUDÊNCIA

Abaixo vou relacionar como o STJ e o STF vem tratando a teoria do actio libera in causa.

4.1.2. STJAgRg no REsp 1165821 / PR

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL

2009/0221697-6

Processo

AgRg no REsp 1165821 / PRAGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL2009/0221697-6

Relator(a)

Ministro JORGE MUSSI (1138)

Órgão Julgador

T5 - QUINTA TURMA

Data do Julgamento

02/08/2012

Data da Publicação/Fonte

DJe 13/08/2012

Ementa

PENAL E PROCESSUAL PENAL. EMBRIAGUEZ COMPLETA. INCIDÊNCIA DO ART. 28, §§ 1º E 2º DO ART. 28 DO CÓDIGO PENAL. INVIABILIDADE. SITUAÇÃO FÁTICA NÃO ANALISADA NA ORIGEM. SÚMULA N. 211/STJ. INCIDÊNCIA. RECONHECIMENTO DO AUMENTO DA PENA DECORRENTE DA OCUPAÇÃO DE CARGO EM COMISSÃO. ENTENDIMENTO EM SENTIDO CONTRÁRIO. INVIABILIDADE. SÚMULA N.º 7/STJ.

1. Dada à adoção da teoria da actio libera in causa pelo Código Penal, somente a embriaguez completa decorrente de caso fortuito ou força maior que reduza ou anule a capacidade de discernimento do agente quanto ao caráter ilícito de sua conduta, é causa de redução ou exclusão da responsabilidade penal nos termos dos §§ 1º e 2º do art. 28 do Diploma Repressor.

2. In casu, o estado de embriaguez completa, a ocorrência de caso fortuito ou força maior, bem como a redução ou anulação da capacidade de discernimento do agente não restaram analisadas pelo Tribunal local, tornando-se, pois, inviável o exame direto por este Sodalício Superior ante a ausência de prequestionamento da situação fática - Súmula n.º 211/STJ -.

Page 20: A Teoria Da Actio Libera Em Causa

3. A incidência da majorante prevista no art. 327, § 2º, do Diploma Penalista, incide a todos aqueles que, à época dos fatos, detinham cargos em comissão, tendo em vista a maior reprovabilidade do agente que vale de sua posição para a prática da conduta infracional. 

Precedentes.

4. In casu, tendo o Tribunal de Origem afirmado que o Agente ocupava cargo em comissão a época do fato criminoso, é de rigor a incidência da respectiva majorante, não sendo possível a este Sodalício Superior proferir entendimento em sentido contrário quanto à não ter o agente se valido de sua posição para a perpetração da conduta ilícita, pois tal operação demandaria revolvimento do material fático/probatório dos autos, vedado na presente seara recursal -Súmula n.º 7/STJ -.

5. Agravo regimental a que se nega provimento.

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, negar provimento ao agravo regimental. Os Srs. Ministros Marco Aurélio Bellizze, Adilson Vieira Macabu (Desembargador convocado do TJ/RJ) e Laurita Vaz votaram com o Sr. Ministro Relator.

Acórdão

Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Gilson Dipp.

Palavras de Resgate

BIS IN IDEM.

Referência Legislativa

LEG:FED DEL:002848 ANO:1940

*****  CP-40     CÓDIGO PENAL

ART:00028   PAR:00001   PAR:00002   ART:00327   PAR:00002

LEG:FED SUM:******

*****  SUM(STJ)  SÚMULA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

SUM:000007  SUM:000211

Processo

REsp 908396 / MGRECURSO ESPECIAL2006/0257094-3

Relator(a)

Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA (1128)

Órgão Julgador

T5 - QUINTA TURMA

Data do Julgamento

03/03/2009

Data da Publicação/Fonte

DJe 30/03/2009

Ementa

Page 21: A Teoria Da Actio Libera Em Causa

PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO ESPECIAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO.MOTIVO FÚTIL. EMBRIAGUEZ. COMPATIBILIDADE. RECURSO ESPECIAL NÃO-PROVIDO.

1. Pela adoção da teoria da actio libera in causa (embriaguez preordenada), somente nas hipóteses de ebriez decorrente de "caso fortuito" ou "forma maior" é que haverá a possibilidade de redução da responsabilidade penal do agente (culpabilidade), nos termos dos §§ 1º e 2º do art. 28 do Código Penal.

2. Em que pese o estado de embriaguez possa, em tese, reduzir ou eliminar a capacidade do autor de entender o caráter ilícito ou determinar-se de acordo com esse entendimento, tal circunstância não afasta o reconhecimento da eventual futilidade de sua conduta. 

Precedentes do STJ.

3. Inviável, na via extraordinária, desconstituir os fundamentos adotados pelo Tribunal a quo sem que haja uma análise acurada da matéria fático-probatória – no caso o exame dos limites da embriaguez para verificação de culpabilidade –, consoante determina a Súmula 7/STJ.

4. Recurso especial não-provido.

Acórdão

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da QUINTA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, conhecer do recurso, mas lhe negar provimento. Os Srs. Ministros Napoleão Nunes Maia Filho, Jorge Mussi e Laurita Vaz votaram com o Sr. Ministro Relator.

Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Felix Fischer.

Referência Legislativa

LEG:FED DEL:002848 ANO:1940

*****  CP-40     CÓDIGO PENAL

ART:00028 PAR:00001 PAR:00002

LEG:FED SUM:******

*****  SUM(STJ)  SÚMULA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

SUM:000007 SUM:000083

4.1.2. STFHC 107801 / SP - SÃO PAULO HABEAS CORPUSRelator(a):  Min. CÁRMEN LÚCIARelator(a) p/ Acórdão:  Min.

LUIZ FUXJulgamento:  06/09/2011           Órgão Julgador:  Primeira Turma

Ementa Ementa: PENAL. HABEAS CORPUS. TRIBUNAL DO JÚRI. PRONÚNCIA POR HOMICÍDIO QUALIFICADO A TÍTULO DE DOLO EVENTUAL. DESCLASSIFICAÇÃO PARA HOMICÍDIO CULPOSO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. EMBRIAGUEZ ALCOÓLICA. ACTIO LIBERA IN CAUSA.AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO ELEMENTO VOLITIVO. REVALORAÇÃO DOS FATOS QUE NÃO SE CONFUNDE COM REVOLVIMENTO DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. ORDEM CONCEDIDA. 1. A classificação do delito como doloso, implicando pena sobremodo onerosa e influindo na liberdade de ir e vir, mercê de alterar o procedimento da persecução penal em lesão à cláusula do due process of law, é reformável pela via do habeas corpus. 2. O homicídio na forma culposa na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB) prevalece se a capitulação atribuída ao fato como homicídio doloso decorre de mera presunção ante a embriaguez alcoólica eventual. 3. A embriaguez alcoólica que conduz à responsabilização a título doloso é apenas a preordenada, comprovando-se que o agente se embebedou para praticar o ilícito ou assumir o risco de produzi-lo. 4. In casu, do exame da descrição dos fatos empregada nas razões de decidir da sentença e do acórdão do TJ/SP, não restou demonstrado que o paciente tenha ingerido bebidas alcoólicas no afã de produzir o resultado morte. 5. A doutrina clássica revela a virtude da sua justeza ao asseverar que “O anteprojeto Hungria e os modelos em que se inspirava resolviam muito melhor o assunto. O art. 31 e §§ 1º e 2º estabeleciam: 'A embriaguez pelo álcool ou substância de efeitos análogos, ainda quando completa, não exclui a responsabilidade, salvo quando fortuita ou involuntária. § 1º. Se a embriaguez foi intencionalmente procurada para a prática do crime, o agente é punível a título de dolo; § 2º. Se, embora não preordenada, a embriaguez é voluntária e completa e o agente previu e podia prever que, em tal estado, poderia vir a cometer crime, a pena é aplicável a título de culpa, se a este título é punível o fato”. (Guilherme Souza Nucci, Código Penal Comentado, 5. ed. rev. atual. e ampl. - São Paulo: RT, 2005, p. 243) 6. A revaloração jurídica dos fatos postos nas instâncias inferiores não se confunde com o revolvimento do

Page 22: A Teoria Da Actio Libera Em Causa

conjunto fático-probatório. Precedentes: HC 96.820/SP, rel. Min. Luiz Fux, j. 28/6/2011; RE 99.590, Rel. Min. Alfredo Buzaid, DJ de 6/4/1984; RE 122.011, relator o Ministro Moreira Alves, DJ de 17/8/1990. 7. A Lei nº 11.275/06 não se aplica ao caso em exame, porquanto não se revela lex mitior, mas, ao revés, previu causa de aumento de pena para o crime sub judice e em tese praticado, configurado como homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB). 8. Concessão da ordem para desclassificar a conduta imputada ao paciente para homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB), determinando a remessa dos autos à Vara Criminal da Comarca de Guariba/SP.

Decisão

Após o voto da Senhora Ministra Cármen Lúcia, Relatora-Presidente, que denegava a ordem de habeas corpus, pediu vista do processo o Senhor Ministro Luiz Fux. 1ª Turma, 31.5.2011.

Decisão: Por maioria de votos, a Turma concedeu a ordem de habeas corpus, nos termos do voto do Senhor Ministro Luiz Fux, Redator para o acórdão, vencida a Senhora Ministra Cármen Lúcia, Relatora-Presidente. 1ª Turma, 6.9.2011.

5. CONSIDERAÇÕES FINAISHá de se entender que o assunto é relevante quando se leva em

consideração os altos índices de consumo de drogas lícitas e ilícitas que podem gerar danos sociais gravosos enquanto seus agentes estão embriagados.

Ficou entendido que o objetivo básico da actio libera in causa é o de alcançar o agente que, enquanto em estado de inimputabilidade, comete crimes. Isso pode variar, conforme demonstrado no trabalho, de acordo com a tese ou pressuposto adotado para entender a matéria.

Também pode ser interpretado que, enquanto não for reformulado o entendimento sobre o assunto, resta aos cidadãos brasileiros respeitarem as leis e os entendimentos vigentes. Isso quer dizer que não só na embriaguez preordenada o agente poderá ser punido, mas também na embriaguez voluntária ou culposa.