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Henrique Leitão. O investigador da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa vai fazer um estudo inovador sobre os roteiros náuticos ibéricos dos séculos XVI e XVII. A ideia é perceber como nasceu a ideia da Terra global. Este cientista vai tentar explicar como os portugueses inventaram a ideia da globalização FILOMENA NAVES Físicoehistoriadordaciência,Henrique Leitão acaba de ganhar uma bolsa de dois milhões de euros do Conselho Europeu de Investigação.Vai fazer um estudo sistemá- tico dos roteiros náuticos oceânicos que serviram a portugueses e espanhóis para se lançarem nas navegações de longa dura- ção, apartir do final do século XV. Adocu- mentação, que foi sendo enriquecida a cada viagem, contém as primeiras infor- mações chegadas à Europa sobre outros continentes, mares, ventos, e animais e plantas. Até hoje nunca foi analisada do ponto de vista dahistória da ciência. Fazen- do esse estudo inovador, Henrique Leitão espera compreender como emergiu essa ideia, hoje banal, da globalidade daTerra. Como o contacto com outras realidades da meteorologiaedo clima, dageografiaeda naturezae asua comparação e análise na épocaforjaramessaideia revolucionária, que ajudou depois à construção do pensa- mento científico. São muitas as perguntas e Henrique Leitão espera muitas novidades. Que documentos vai investigar? Os roteiros oceânicos são documentos co- nhecidos muito nahistóriaportuguesa. Sobre alguns deles trabalhos muito bons, mas a perspetiva foi sempre a da história da náutica, porque têm instruções para fazer uma viagem. Em geral são manuscritos, em- bora mais tarde haja alguns impressos. Têm uma história muito antiga, mas tornam-se verdadeiramente interessantes quando pas- sam a ser oceânicos. Por exemplo, numa via- gem de Lisboa a Goa, tem todas as instru- ções para o piloto fazer a viagem, mas vão sendo corrigidos e ampliados de viagem para viagem. E é extraordinário quando as viagens passam a ser de uma dimensão imensa, como as viagens portuguesas do sé- culo XVI, porque tem de constar ali uma in- formação de um oceano inteiro, quase da es- cala do planeta. Dei-me conta, algum tempo, de que estes documentos são reposi-

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Henrique Leitão. O investigador da Faculdadede Ciências da Universidade de Lisboa vai fazerum estudo inovador sobre os roteiros náuticos ibéricosdos séculos XVI e XVII. A ideia é perceber comonasceu a ideia da Terra global.

Este cientista vaitentar explicarcomo os portuguesesinventaram a ideiada globalização

FILOMENA NAVES

Físicoehistoriadordaciência,HenriqueLeitão acaba de ganhar uma bolsa de doismilhões de euros do Conselho Europeu deInvestigação.Vai fazer um estudo sistemá-tico dos roteiros náuticos oceânicos queserviram a portugueses e espanhóis para se

lançarem nas navegações de longa dura-ção, apartir do final do século XV. Adocu-mentação, que foi sendo enriquecida acada viagem, contém as primeiras infor-mações chegadas à Europa sobre outroscontinentes, mares, ventos, e animais eplantas. Até hoje nunca foi analisada doponto de vista dahistória da ciência. Fazen-do esse estudo inovador, Henrique Leitãoespera compreender como emergiu essaideia, hoje banal, da globalidade daTerra.Como o contacto com outras realidades dameteorologiaedo clima, dageografiaedanaturezae asua comparação e análise naépocaforjaramessaideia revolucionária,que ajudou depois à construção do pensa-

mento científico. São muitas as perguntas eHenrique Leitão espera muitas novidades.

Que documentos vai investigar?Os roteiros oceânicos são documentos co-nhecidos há muito nahistóriaportuguesa.Sobre alguns deles há trabalhos muito bons,mas a perspetiva foi sempre a da história danáutica, porque têm instruções para fazeruma viagem. Em geral são manuscritos, em-bora mais tarde haja alguns impressos. Têmuma história muito antiga, mas tornam-severdadeiramente interessantes quando pas-sam a ser oceânicos. Por exemplo, numa via-

gem de Lisboa a Goa, tem todas as instru-ções para o piloto fazer a viagem, mas vãosendo corrigidos e ampliados de viagempara viagem. E é extraordinário quando as

viagens passam a ser de uma dimensãoimensa, como as viagens portuguesas do sé-culo XVI, porque tem de constar ali uma in-formação de um oceano inteiro, quase da es-cala do planeta. Dei-me conta, há algumtempo, de que estes documentos são reposi-

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tórios de informação importantíssima paraahistória da ciência.Em que sentido?Além da informação técnica sobre como via-jar, contêm dados sobre ventos, correntes,contornos de costa, perigos no mar, obser-

vações de animais, instruções do género"quando vires certos animais, estás em talzona", informações sobre fenómenos me-teorológicos e sobre magnetismo. Os pri-meiros grandes levantamentos de magne-tismo ao longo da Terra aparecem nestes do-cumentos do século XVI e XVII. Então isto

quer dizer que temos uma massa documen-tal enorme em Portugal e em Espanha. Ago-ra é preciso ter um olhar completamente di-ferente sobre estes documentos.Queolharéesse?O que mostra pessoas que, pelo facto de es-tarem a deslocar-se fisicamente, começam atrabalhar com conceitos e noções da Terra

que são em si globais. Em vez de dizerem,por exemplo, que no ponto A ou no ponto B

sopra um vento, começam a dizer que háventos regulares habituais em certas zonasdo globo, e isto é uma diferença enorme.Apartir dessa altura começa a fazer-se com-parações. Comparam-se certos tipos de ven-tos no Índico com os do Atlântico, fenóme-nos meteorológicos de um mar, com os deoutro mar, e então começa a nascer progres-sivamente esta ideia, para nós hoje tão fami-liar, de uma globalidade do comportamentogeral daTerra. Que teve de ser construída.Isso deu origem a conceitos sobre a estrutu-

ra daTerra que são também eles muito glo-bais. Era impossível a uma pessoa sentadanum gabinete, por mais genial que fosse,

chegar a estas ideias. Então é isto que quere-mos agora estudar. E a nossa pergunta é esta:como é que isso se formou?Como percebeu que era preciso fazer essapergunta?Eu conhecia os roteiros do ponto de vista dahistória da náutica. Há poucos anos supervi-sionei uma tese de doutoramento muitoboa, do comandante Malhão Pereira, emque pela primeira vez começámos a olharpara aqueles roteiros fazendo outras per-guntas. Por exemplo, que tipo de informa-ção sobre a história natural está ali? Nos anos

que durou o trabalho, fui-me dando contada riqueza destes documentos, de imensaimportância para a história da ciência, masque ainda não foram explorados como tal.Também porque há dificuldades óbvias. Es-tão em português e espanhol, línguas com as

quais muitos historiadores não conseguem

trabalhar, e a maior parte são manuscritos.Isso levou a que os historiadores de ciêncianunca os tivessem considerado importan-tes. Dei-me conta disto e, falando com cole-

gas portugueses e estrangeiros, ficou óbvio

para todos.Foi só a questão da língua que arredou osinvestigadores estrangeiros do seu estudo,ou não sabiam da existência destes docu-mentos?Foi sobretudo por causa da língua, mas tam-bém porque a discussão em torno da mo-dernidade científica ficou muito colocadano final do século XVII e na astronomia.Hoje, não sou só eu, muitas pessoas questio-nam isso e pensam que a construção de umaciência moderna teve que ver com muitos

fatores, que não foram só os debates astro-nómicos nem a história tradicional de Gali-leu, Kepler e Newton. Teve que ver, e isso

hoje é muito mais claro, com este movimen-to expansionista da Europa, que colocouproblemas completamente novos, porquese encontraram continentes, animais e

plantas completamente diferentes. Esta in-formação foi toda usada, e existiram institui-ções e pessoas cujo trabalho foi analisá-la,mas sobre as quais sabemos pouquíssimo.Naépoca, esses roteiros eram estudados?Estamos muito interessados nessa questão.O que sabemos é que o resultado do que es-tava nos roteiros começa, a certa altura, a in-fluenciar a maneira como se descreve a na-tureza. É completamente diferente ver estu-dos ou descrições daTerra no século XV e noséculo XVII. Passa a haver uma familiaridadecom outros sistemas climáticos ou regimesde ventos, e já se sabe perfeitamente quenoutras regiões do mundo háfenómenosque são diferentes, mas comparáveis. Até aoséculo XV não se tem a mais pequena ideiadisso. A resposta é sim, os roteiros foram es-tudados na época, mas ainda sabemos pou-co sobre isso, ou sobre como essa informa-ção depois se difundiu. O exemplo mais ób-vio é o do magnetismo terrestre. Nasprimeiras viagens não há nenhuma ideia de

que há magnetismo em toda aTerra. Isto vaisendo percebido a pouco e pouco, mas no fi-nal do século XVI é absolutamente claro queem qualquer ponto daTerra há um magne-tismo, que é diferente de sítio para sítio, e

que aTerra, toda ela, é como uma espécie deum grande íman complexo. Não é dito destamaneira, mas há coleções imensas de dadosmagnéticos, que iam sendo medidos duran-te as viagens, com a anotação da declinação

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magnética, que é a diferença entre o nortemagnético e o norte geográfico. Há colegasda geofísica muito interessados nestes da-dos porque isso é informação sobre o cam-po magnético daTerrano passado.Então isso ainda não está sistematizado.Não. Estes roteiros são mais um exemplo deuma imensa documentação portuguesaque ainda não foi suficientemente estudadado ponto de vista da história da ciência.Anovidade do projeto é colocar estes docu-mentos num âmbito diferente, para sabercomo as nossas ideias sobre aTerra comoum todo se formaram, a partir do saberre-colhido durante essas primeiras navegaçõesoceânicas. O objetivo é também fazer uma

análise de como nós, europeus, formámosestas ideias que temos sobre aTerra. Implicaanalisar os documentos, as instituiçõesonde eles eram analisados e um certo tipode personagens, que não sabemos se eramcientistas de topo, mas entre os quais havia

pessoas de níveis mais artesanais, como pi-lotos, construtores de instrumentos ou car-tógrafos, e tentar perceber como funciona-vam entre si, para perceber como tratavamestes documentos.Disse que ainda há documentos destes pordescobrir. O que éque indicia isso?Amaneira como os últimos têm aparecido,muitas vezes metidos no meio de outros do-cumentos, em coleções de miscelâneas. E as

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bibliotecas estão cheias dessas miscelâneas.Outros estão referenciados, mas nuncafo-ram lidos. Aqui já temos uma ideia do queexiste. Em Espanha sabemos menos, tere-mos de ver os arquivos espanhóis. E a seguiré preciso fazer comparações com roteirosingleses e de outros países, como a Holanda,para ver em que medida eles foram influen-ciados por estes roteiros oceânicos da Pe-nínsula Ibérica, do final do século XV, que fo-ram os primeiros. Sabemos que os dos ou-tros países foram influenciados por estes.

Daqui a cinco anos, se as coisas correrembem, podemos ter uma ideia consideravel-mente diferente da que temos hoje sobre omodo como pensámos esta ideia da globali-dade da Terra. Não foi alguém sozinho numgabinete que inventou uma ideia como esta.E por causa disto que as navegações portu-guesas e ibéricas são tão importantes.Noentanto, elas têm estado no centro deuma polémica por causa do projeto deMuseu das Descobertas, que há quemconteste, dizendoqueissoécelebrarumaatividadeque esteve ligada à escravatura.A polémica faz sentido?Acho bem que as pessoas discutam tudo, eisto é uma coisa tão importante que as pes-soas devem discuti-la. Amim incomoda-meque haja aspetos de imposição de uma certavisão da história, penso que não está bem.Claro que temos de arranjar uma maneirade contar isto de forma rica e informada,mas não podemos chegar ao ponto de nãopoder falar das navegações. Se quiserem di-zer que o fenómeno foi muito mais comple-

"Não sou só eu,muitas pessoaspensam quea construção daciência modernateve que ver commuitos fatores,incluindoas navegaçõesoceânicasibéricas."

"Os roteirosnáuticos

portuguesesforam copiadosdiretamente paraoutras línguas,na época."

xo, com certeza. Mas em história da ciência,nas viagens, a sua preparação e os seus resul-tados, não é possível não falar de descobri-mento. Dá a sensação de que simplesmentenão se quer falar disto e seria totalmente in-compreensível que ficássemos agora impos-sibilitados de falar do período claramentemais interessante da nossa história científi-ca. Não há nada comparável a isto na nossahistória científica.Os resultados do seu projeto poderãoajudara tornar esta discussão mais aberta?Penso que não. Estou a tratar de história daciência, e neste debate é a leitura geral sobrea expansão portuguesa que está em jogo.O que posso dizer é que em relação aos con-tributos científicos foi muito mais interes-sante do que as pessoas pensam e isso, espe-ro, o projeto poderá mostrar. Hoje percebe--se que é muito difícil entender o século XVIIcentro-europeu sem perceber o século XVIibérico, por causa das navegações.

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Sao cinco anos de projeto. O tempo vaichegar para tudo?A equipa que vamos criar será decisiva. Se

conseguirmos contratar investigadores e

alunos de doutoramento muito bons, con-seguiremos fazê-lo em cinco anos. Vamoscontratar quatro investigadores pós-douto-rais, mais dois alunos de doutoramento,porque também é muito importante treinarpessoas, uma pessoa para fazer a gestão de

projeto e a sua divulgação, e uma pessoapara a parte informática, porque vamos fa-zer uma grande base de dados. A informaçãotoda vai ser disponibilizada internacional-mente, porque o seu interesse é de âmbitointernacional.O queé que esse conhecimento trouxena altura a Portugal eà Europa?A primeira coisa é que estes roteiros portu-gueses foram copiados diretamente paraoutras línguas. Mas depois há uma transmis-são silenciosa, de grande dimensão, que nãoestá ainda bem identificada, eissosóse cla-rifica fazendo uma comparação com os ro-teiros desses países. Esse trabalho nunca foifeito, e nós vamos fazê-10.Qual é hoje a resposta à pergunta de comosurgiram os concehosglobaissobreaTerra,sem essa informaçãoda qual vai à procuranos roteiros?Há várias teorias. Há quem diga que isso teve

que ver com a Guerra Fria, por ter havido le-vantamentos fotográficos de toda aTerra deuma grande precisão. E outras. Mas discor-do. Penso que há um percurso históricoimenso, que toda a documentação o confir-ma. E essa anterioridade histórica precisa deser analisada. Como historiador da ciêncianão consigo ficar convencido de que noçõessobre aglobalidade da Terra não estivessemassociadas à deslocação física de pessoas.E isso obriga a repensar muitas das coisas

que dizemos sobre a modernidade científicada Europa.