62
[1]

A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

  • Upload
    marcos

  • View
    218

  • Download
    4

Embed Size (px)

DESCRIPTION

O poeta e ensaísta mexicano Octavio Paz dizia que o homem é tempo, perpétuo movimento. Tal assertiva ocorreu-me ao avançar pelas linhas do livro A Trajetória do Indivíduo, de Fábio Ribas. Um livro onde o dito e o não dito interpenetram-se, trabalham juntos pela construção do Sentido, ou para que o leitor colha o sentido que, num jogo de chiaroscuro (para usar um termo das artes plásticas) goteja das metáforas e parábolas. E o mi(ni)stério da parábola aqui aflora como a relva dos campos, sobeja e farta; a psico-saga do autor em busca do Sentido é narrada através de madura poesia e prosa poética larga e prenhe de conotações, em voz cujo timbre lembra o Zaratustra nietzschiano, ou o André Gide de Frutos da Terra; mas, enquanto tais autores empreenderam o afastamento de Deus, equivocando-se em direção ao abismo, Ribas avança em caminho inverso, em busca de Redenção, escalando através de brumas e intempéries o cume da transcendência.

Citation preview

Page 1: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[1]

Page 2: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[2]

FÁBIO RIBAS

A Trajetória

do Indivíduo

Chapada dos Guimarães - MT

2015

Page 3: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[3]

Dedico este livro aos professores e alunos do CLM daquela

maravilhosa turma de 1995 da Missão ALEM.

Page 4: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[4]

Índice

APRESENTAÇÃO ..................................................................... 05 PREFÁCIO .................................................................................. 06 PREFÁCIO DO AUTOR .......................................................... 10 NASCEDOURO .......................................................................... 13 SINA ............................................................................................. 15 O OUTRO .................................................................................... 16 EU .................................................................................................. 17 O OUTRO .................................................................................... 18 O TROVÃO ................................................................................. 19 A LUZ ........................................................................................... 20 O SALTO ..................................................................................... 21 O CAMINHO .............................................................................. 22 A VERDADE .............................................................................. 23 A VIDA ......................................................................................... 24 A BUSCA ..................................................................................... 25 A CASA ........................................................................................ 26 QUASE ......................................................................................... 28 O NADA ....................................................................................... 30 O SONHO .................................................................................... 31 O NADA ....................................................................................... 34 O NADA ....................................................................................... 35 O DESÂNIMO ............................................................................ 37 A EXISTÊNCIA .......................................................................... 38 A CONVERSA ............................................................................ 39 A FILOSOFIA ............................................................................. 41 DIGRESSÃO ............................................................................... 43 AQUELA FOLHA DOS VERSOS .......................................... 46 RESPOSTA ................................................................................. 48 O PROFETA DO ENGANO .................................................... 49 O ESTRONDO ........................................................................... 50 O VULTO .................................................................................... 51 O VENTO .................................................................................... 52 O MILAGRE ............................................................................... 53 A POMBA .................................................................................... 54 A ÁGUIA ...................................................................................... 58 O ENCONTRO-CONFRONTO .............................................. 59 EPÍLOGO ..................................................................................... 60

Page 5: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[5]

Apresentação

O poeta e ensaísta mexicano Octavio Paz dizia que o homem é tempo,

perpétuo movimento. Tal assertiva ocorreu-me ao avançar pelas linhas do

livro A Trajetória do Indivíduo, de Fábio Ribas. Um livro onde o dito e o

não dito interpenetram-se, trabalham juntos pela construção do Sentido, ou

para que o leitor colha o sentido que, num jogo de chiaroscuro (para usar

um termo das artes plásticas) goteja das metáforas e parábolas. E o

mi(ni)stério da parábola aqui aflora como a relva dos campos, sobeja e

farta; a psico-saga do autor em busca do Sentido é narrada através de

madura poesia e prosa poética larga e prenhe de conotações, em voz cujo

timbre lembra o Zaratustra nietzschiano, ou o André Gide de Frutos da

Terra; mas, enquanto tais autores empreenderam o afastamento de Deus,

equivocando-se em direção ao abismo, Ribas avança em caminho inverso,

em busca de Redenção, escalando através de brumas e intempéries o cume

da transcendência.

Em sua jornada o autor vale-se do método socrático, dialógico,

abraçando/confrontando interlocutores, que são como estágios de sua

peregrinação. A linguagem velada/parabólica dá o tom de suas

elucubrações, são os enigmas/signos de sua batalha mental e espiritual. E é

gratificante acompanhá-lo em seu avanço, sua ascensão do vale do ateísmo

ao monte da transfiguração, à sarça onde o Único Deus se revela aos olhos

da finitude humana.

Um livro assaz singular dentro de nossa literatura poética cristã, que

surge para enriquecer o bastião de nossas letras.

Sammis Reachers

Page 6: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[6]

Prefácio

Conheci o Fábio na primeira metade da década de 1990. Um jovem

aluno de Letras que se destacava por sua facilidade com as palavras. Mais

amante da Literatura que da Linguística, disciplina que eu ensinava. Um

dia, o Fábio brincalhão fez uns trocadilhos a uma pergunta minha. Não

podia ficar calada. Falei, me revelei. A partir daí a trajetória do Fábio rumo

a outro caminho se inicia, no cronos.

Muito do que ele passou durante essa trajetória eu já sabia. Mas, ao

iniciar a leitura deste livro, fui descobrindo trajetos que desconhecia e que

se parecem tanto com os meus, os do Bunyan, do Agostinho e de todos os

caminhantes, peregrinos que somos. Não sou da Literatura, nunca gostei de

teoria nessa área. Gosto de Literatura, sou leitora apaixonada! Linguista

que sou, as palavras me encantam. Linguista que ama a Fonologia, não se

pode deixar de amar a beleza que os sons podem trazer aos ouvidos, à alma

e ao coração. Esse “A Trajetória do Indivíduo” encanta, seja pela

construção morfossintática bem elaborada, seja pela doçura e dureza dos

sons no encontro ou na solidão das palavras, seja na tessitura dos sentidos.

Que quero dizer ao meu ex-aluno de Fonologia e Semântica? O que

digo é que o texto do Fábio é bem construído, tanto na forma quanto no

sentido “É terra também. Semelhante rasgo. Estreito”. Tira os pontos e se

ouvirá outra coisa. Deixa os pontos, pois com eles ouço os passos no

caminho. Fábio está caminhando, ora com passos curtos, ora largos e vice-

versa. O estilo do Fábio satisfaz os ouvidos de quem ama profissionalmente

os sons, mas, creio, também os ouvidos de quem simplesmente ouve. E a

professora de Semântica, essa que se encanta com o universo da

significação, o que tem a dizer? Digo que há denso conteúdo, de quem

Page 7: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[7]

viveu na própria alma o encontro com Aquele/Outro que não se confunde

com qualquer um, e de quem se dedica a conhecer. Conhecer mais,

conhecer tudo que pode ser conhecido “Não quero encontrar o outro se isso

significa esbarrar em mim mesmo”. Aqui os passos são largos, quase

corrida. Nada pontua. E o sentido dessa noção de quem sou se escancara,

mas também esbarra no “se”. Se não é comigo o encontro, quero. Se sim,

não quero. Fábio, estudioso de Filosofia, conhece essa dualidade e a

formulação do desejo do Outro tão famoso nos círculos intelectuais e como

estudioso de Teologia, sabe que há Outro, Aquele Eu Sou, o único que nos

pode encontrar e que não se confunde com nenhum outro. Mas, como

homem desgarrado, peregrino nessa trajetória imposta pelos nossos

primeiros pais, ele sabe que “És morto se continuares a permanecer vivo.

Contudo, viverás se morreres da morte do Outro”. Fábio sabe retrucar,

como todo mortal “Nada disso! Estou bem e satisfeito! Sou importante e

filho abastado”. Fábio, como todos nós se preocupa com a segurança que a

família pode dar “o que serei se deixar minha casa?”

Reconheci claramente o ex-aluno de Semântica nesse A Trajetória

“Deparei-me com referências estranhas entre si sobre o mesmo referente”.

Até Ducrot, Fábio? Ou será Eco? “Pode o objeto ser tantos? Pode alguém

estar enganado? Ou mentindo? (...) Seria a falência do nosso discurso a

falência do próprio referente?” Tenho que admitir, Fábio, você entendeu!

Me pergunto aqui se esse “Quase” não nasceu durante minha aula sobre

Sentido e Referência lá no Torto. Talvez. Mas, aprendeu além da teoria!

Sigo o A trajetória. Me deparo com Kyrios e ouço Saulo “Quem és

tu, Senhor?”. Saber que Fábio sempre esperava pelo único Senhor

entronizado faz a minha própria trajetória se desenhar como certeza e

incerteza: “Todavia explicou-me que a morte era apenas uma figura de

linguagem, um simples recurso de retórica”. Nesse Nada creio que todos se

reconhecem, pois, quem nunca? Quem nunca se perguntou se a trajetória

Page 8: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[8]

leva mesmo a algum lugar? Que peregrino cristão nunca encontrou o

Obstinado pelo caminho? Ou dentro de si mesmo? Nessa trajetória, o

indivíduo, seja Fábio, Paulo, João, Agostinho, o filho, a filha, sempre vai

encontrar conversas que oscilam entre a Verdade e as verdades, a Palavra e

as palavras, filosofias diversas, pois “Os discursos estão enfermos”.

A inteligência fina e o espírito filosófico do Fábio se revelam em

Filosofia “Há uma quase eternidade e o que digo leva-me ora a um extremo

e ora a outro” e Digressão “Marcelo, os vivos são mortos” e Fábio

poeticamente nos mostra que ninguém por si mesmo pode guerrear para

sair do túmulo. Esse indivíduo se ofusca com o Vulto “A luz do sol se fez

sobre a águia que me levava em suas asas e vi seu bico abrindo-se para me

devorar”, cai com o Vento “uma forte rajada de ar arremessara-me da asa

da águia” e se depara com o milagre que se apresenta na “presença

inesperada do Outro!”

Fábio narra poeticamente “Certa vez, alguém cantou que havia uma

criada no alto de uma escada segurando um vaso. Por descuido da criada, o

vaso caiu e se desfez em pedaços, em tantos cacos, todos esses cacos

miravam os olhos da criada descuidada...”, faz dissertar a Primeira Pessoa

“Faço a necessária distinção entre a transparência semântica do

significante, para que flua o significado que determina...” e mostra que

mascarados somos todos até que se revele Aquele/Outro que nos

desmascara e que não falseia o discurso cujas regras cria e respeita. A

trajetória que se inicia na eternidade se aproxima do início do fim perenal

no encontro com o que É Um em três “São apenas Um. Os três são Um” e

que aponta para aquilo que “É o fim da busca”. Fim que se bifurca em dois

sentidos, no mínimo: limite/objetivo e o indivíduo dessa trajetória, Fábio e

todos nós, se encontra-confronta com a Morte e o Sangue! A sua sem

sangue e a do Outro com seu sangue! Nessa altura de A Trajetória, choro!

Não o choro da tristeza, mas o choro da alegria de “A certeza de ter sido

Page 9: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[9]

encontrado”! Agora no finzinho, só faltam três páginas para terminar esse

A trajetória, me pergunto o que virá e me deparo com uma pessoa livre

“Preste atenção: feneceste teu indivíduo, nasceu tua pessoa: estás liberto!”

O sabor e o saber se encontram nas últimas linhas da Trajetória e o Amor

que o indivíduo, agora pessoa, conheceu no Outro pode se dirigir a outro

indivíduo que sempre encontrará e ao qual poderá comunicar “Eu sou

santo, porque o meu Deus é Santo”.

O jovem estudante que conheci no início dos 90 se revela nesse “A

Trajetória do Indivíduo”: um poeta, escritor. A leitura desse livro instiga,

satisfaz o senso estético e alimenta a esperança e a devoção.

Dalva Del Vigna

Brasília, dezembro de 2015

Page 10: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[10]

Prefácio do autor

Este livro conta a história de um personagem atormentado por vozes

que gritam dentro dele. Inesperadamente, nosso personagem inicia sua

trajetória em busca de respostas sobre as vozes e as personalidades internas

que oprimem sua vida. Durante a trajetória, ele encontra novos personagens

que apresentam para ele seus discursos e tentam convencê-lo de suas

verdades. Contudo, a angústia do nosso personagem principal só aumenta

conforme ouve outros discursos e ideias. Mas quem (ou o quê), na verdade,

é o nosso personagem? Conseguirá explicação para sua alma atormentada?

E o que o aguarda no fim dessa jornada?

Esta história em versos foi escrita há 20 anos! Foi uma maneira

pessoal de compreender e colocar em ordem o turbilhão de grandes

mudanças que estavam ocorrendo naquele tempo: a minha conversão, a

minha saída do império das trevas para o Reino da maravilhosa luz do

Senhor Jesus.

Depois de tantos anos, é muito bom poder revisitar aquele momento

tão marcante na minha vida. Eu tinha apenas 22 anos de idade e cursava a

Faculdade de Letras da Católica em Brasília. Uma das minhas professoras

era missionária e, graças ao seu testemunho, comecei a ser incomodado

pelo Evangelho. Essa professora, Dalva Del Vigna, encaminhou-me a um

curso de Linguística, que, na verdade, era parte de um curso para formação

de missionários tradutores da Bíblia. Descrente, pude ali ouvir a pregação

do Evangelho e ouvir os mais diversos testemunhos dos alunos que

atuavam nos campos espalhados pelo mundo, mas que se encontravam em

Brasília para se aprimorarem ainda mais para o serviço do Senhor. Era o

curso do CLM (Curso de Linguística e Missiologia) da Missão ALEM –

Associação Linguística Evangélica Missionária.

Page 11: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[11]

Naquele ano de 1995, encontrei muitas pessoas que me ajudaram a

me ver como pecador e necessitado da glória de Deus. Uma dessas pessoas

foi o professor Isaac Costa de Souza, que, naquele ano, deu-me as aulas de

história da evangelização no Brasil Indígena. Com Isaac, pude conhecer um

Brasil que a escola nunca me ensinou e, muito menos, os meus anos como

seminarista católico me contaram. Até que ele me deu para ler o livro

“Fator Melquisedeque”, de Don Richardson, que me mostrou que a Bíblia é

um livro para todos os povos!

A maneira que encontrei para lidar com tudo aquilo que acontecia

dentro de mim foi escrever este livro, que fala de tudo isso que ocorreu

comigo, mas de modo simbólico e imaginativo.

Espero que você possa mergulhar nesse maravilhoso universo ao

qual fui arrebatado pelo poder do Espírito Santo. Hoje trabalho entre povos

indígenas do Brasil, sou pastor e missionário. Tenho uma família linda e

que só foi-me possível tê-la graças a minha salvação por Cristo Jesus.

Casado com Lucila e pai de duas lindas mocinhas, Ana Lissa e Gisele. Por

causa delas, tenho um blog pró-família, que é o “Casal 20”

(www.casal20ribas.blogspot.com.br). Além disso, publico artigos sobre os

mais variados assuntos no GospelPrime e no site Morávios.

Publicar este livro escrito há tantos anos é chamar você para celebrar

junto comigo Aquele que me salvou e tem cuidado de mim por todos estes

anos. Portanto, a Ele toda a glória!

Fábio Ribas, 18/11/2015

Page 12: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[12]

Page 13: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[13]

NASCEDOURO

(aviso aos que seguem)

Os olhos vastos... Julguei luz,

era treva o que havia, era cego...

Piscadelas... Rastejei, revolvi

conforme impele a natureza. Caí.

Arrastei-me à semelhança de meus pares,

era reflexo o que as oculares de cada um via. Cegos.

Da terra nasci. Herdado o mesmo pó natural,

do qual surgimos, compartilhamos a miséria igual.

Era de se esperar que a vida fosse o que se mostrava,

entretanto, expeliu-me dali outra força externa: o céu.

Não adianto nada, no entanto.

A história que conto é minha.

Diferi no que busquei (nada buscava),

mas encontrei a mim e conteúdo outro.

É similar o nascedouro de todos. Traço a rota

da minha procura e dela faço a tua angústia, leitor.

Tu que, porventura, aí estejas do lado outro desta janela,

pela qual me vês e te vês. Irás rastejar comigo a nossa sina.

Page 14: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[14]

Narro, assim, o nosso passo

neste compasso de busca e perda, mas há o ponto

(e sempre haverá) em que deverás, leitor, andar

não outro caminho, mas teu próprio passo, desatar teu laço.

Nascemos de mesma nascente. Nascedouro igual.

Nascidos para nutrir o ventre com o pó do qual viemos.

Da terra nada sabia. E impelido no intuito de ir,

segui nascido, despercebido do próprio caminho.

Sei, meu caro, também aprendi:

“A linguagem é uma fonte de mal-entendidos”!

Mas ouso seguir e quero que sigas também,

pois os símbolos revelam velando e velam revelando

até que haja o limite (e este sempre haverá):

a dilatação do signo, a fronteira responsável do significado.

Page 15: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[15]

SINA

A vida é a luta pela comida.

A sobrevivência aguerrida!

Se éramos semelhantes, não o éramos ali.

Na boca que sorve toda bebida da vida, a vida é morte!

A labuta nos regia. Operários. Era terra o que se comia e eu

temia que fossemos nós quem nos comíamos. A luta do dia!

Da terra se vinha, a terra era a vinha. A vinha era o outro.

Ele gritava o grito rouco, morria. Pátria dos que se comiam.

Page 16: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[16]

O OUTRO

Esbarro no outro-coisa. Nada em mim, pensei, igual a ele.

A boca vomita o que o ventre não sustenta. Mas permanece

aberta a boca para o que é vida. É o outro, outro. Não

eu. Outro. Eu não sou o outro. Eu não quero ser o outro.

Esbarro no outro-coisa. Nada em mim, pensei, idêntico

ao outro distante. O outro com sua baba morna e a fúria.

Acuado no encontro-confronto. E se o outro não existir?

E se eu apenas tiver tropeçado no espelho deste corredor?

Page 17: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[17]

EU

Acuado. E se o outro não existir?

E se a vida for apenas este tropeço?

Nada sei de mim a não ser o que esta natureza impele:

Natureza escura. Natureza chão. Singro sobre os outros.

É sobre o outro que me vou. Anulo em meu pé a pegada

do outro. Engulo o outro. Trago o outro. Como o outro. Eu.

E se eu for este tão dessemelhante de mim?

Se me soubesse tão diferente de mim por igual ao outro,

persistiria até o fim?

Page 18: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[18]

O OUTRO

Esbarro novamente. Será espelho? Imagem de mim?

Teria que me ver aceitando essa vista de ser tão feio.

Contudo, se não for espelho, ainda terei de ser feio:

o outro veio do meu mesmo meio (da terra que sorvo).

Somos milhares de tantos irmãos. Filhos de igual grotão

seco, sem esteio. Esse nascedouro que nos faz todos iguais

é menos justo do que aquilo visto há pouco: o morredouro.

O morredouro que nos invalida todas as diferenças. Sigamos.

Page 19: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[19]

O TROVÃO

O som. A surdez. Estancamos a rotina operária da terra.

Ouça. É o barulho da luz quando faz guerra contra a treva.

O estrondo abriu o nicho luminoso sobre mim. Dimensão

inexistente até aqui. Abaixo, detrás, ao lado, à frente. Segui.

Page 20: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[20]

A LUZ

O estrondo reagiu algo. Percebi-o. O frio sumiu. O frio.

Revela-se a existência do frio que nunca antes percebera.

A treva surgira naquele momento ali no nicho aberto de luz.

A treva, então, fez-se no instante em que eu deixara de vê-la.

Page 21: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[21]

O SALTO

Saí da malha a que pertencia. O tecido ao qual costurava

minha pele branca, babada. Rasguei. A tessitura se desfez.

Todos passaram despercebidos do rasgo ali no alto.

A luz fazia o círculo. Eu na roda de luz. Subi só. Saltei.

Page 22: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[22]

O CAMINHO

É terra também. Semelhante rasgo. Estreito.

Da largura só de mim. Apertado. A passagem.

Os gritos cessaram lá embaixo. Já não os ouço.

A algazarra. Eram sempre gritos e eu não sabia.

A luz revelara a treva e o silêncio, o som.

Afastei-me. Perplexo. Não olhei para trás.

Page 23: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[23]

A VERDADE

- Ele existe.

- Quem?, perguntei.

- O Outro, respondeu-me a própria luz.

- Mas não procuro o outro. Deixei-os para trás!

- Foges dos outros, porque foges de ti mesmo, mas acabarás por encontrar o

Outro...

- É o outro semelhante a mim?, indaguei sem saber de onde vinha aquela

voz. - O outro, continuei, o outro, que sou eu, é feio. A baba morna e a

fúria. Não quero encontrar o outro se isso significa esbarrar em mim

mesmo.

- Irás encontrá-lO, porque o Outro encontrou a ti primeiro.

- É inevitável o encontro-confronto? Mas ele é feio e não me quero saber

assim. Fugi de mim e, agora, dizes que rumo ao outro? Sou

demasiadamente semelhante a mim.

Page 24: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[24]

A VIDA

- Se não encontrares o Outro, permanecerás morto.

- Mas sou vivo, respondi asperamente.

- És morto se continuares a permanecer vivo. Contudo, viverás se morreres

da morte do Outro.

- Mas sou vivo!, repeti com mais agressividade.

- Irás te descobrir morto. O outro que viste é espelho da tua imagem de

agora, porém não foi assim desde o princípio. E retornarás, se morto, ao

princípio.

- Mas eu sou vivo!!!, encerrei.

Page 25: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[25]

A BUSCA

O que buscaria aquele que nada saiu a buscar?

Não procurava e fui procurado. Estranho diálogo.

Encontro fátuo entretece-me dentro.

Percepção que se esvai esvanecendo...

Page 26: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[26]

A CASA

Rota estreita. Rota de poucos. Nada exato.

Tudo (im)perfeito. Incomensurável. Curto. Dilatado.

Vasto. Pouco.

Anseio indesejável.

- Quem és?, indaguei.

- Sou mais um que segue adiante.

- Por que pisas tão devagar? Que é isso?

- Minha casa, respondia-me aquele novo personagem, meus bens,

lembranças, gente. Outros, eu, tu, ontem, amanhã, o lago, a floresta, o que

sei, o que não sei, eles, a maçaneta, a vida, substantivos, hiat...

- E andas tão devagar, repliquei, deixas essas coisas e verás...

- Não posso, ele me interrompeu. - E para que deixaria? Sei que chegarei

lá. É minha casa. É o que sou. Meu lar! Estás louco? Como encontrarei o

Outro se não for mais eu mesmo?

- Alguém lá atrás disse-me que era preciso a morte...

- Nada disso! Estou bem e satisfeito! Sou importante e filho abastado.

Influente de onde vim. É minha identidade. O que serei se deixar minha

casa?

EU!, respodi em silêncio. Era tão semelhante a mim...

a não ser pela casa carregada. Julguei-o até ser o outro,

que eu mesmo nem procurava. Ele

permaneceu ali no nada. E eu segui.

Tentei dizer ainda alguma palavra

Page 27: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[27]

para ver no que ela implicava ali,

mas não deu em nada: a palavra sozinha é muda,

a palavra só carece de um mundo e eu não percebia.

Page 28: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[28]

QUASE

- Sou nada. Sou pó. Da terra vim e para ela retornarei. Sou pequeno. Morri.

- Morreste?!, surpreendi-me com a presença de uma nova criatura.

- Terminei a caminhada. Eu O encontrei. Não sou nada. Sou mínimo.

Compreendi.

- É verdade, então?! Há o outro? Alguém contou-me da morte, mas...

- Compreendi todo plano, meu amigo, alcancei o que buscava. Agora,

retorno ao meu modo de vida. Sei de todas as coisas. Entendi o Outro.

Preciso voltar.

- E voltar para onde?, perguntei. - Não se pode permanecer no outro?

- Para quê? Basta o encontro, o entendimento, a compreensão... além disso,

há a minha vida e eu preciso retornar a ela.

- Não disseste que passaste pela morte?, intriguei-me.

- Sim! É uma metáfora! Uma imagem... Crias que seria literal?!

- Não... Literal não, mas, ao menos, queria que fosse real.

- Meu amigo babento, disse-me rindo, a morte não mata. E o Outro é o

Outro. Dado o encontro, devo voltar. Foi um momento, um êxtase, e será

para sempre uma lembrança...

- O outro... a morte... imagens... Preciso definir significados. Sinto-me

como que passando por uma floresta confusa onde olhares familiares, mas

escondidos, miram este meu corpo...

- …

- Deparei-me com referências estranhas entre si sobre um mesmo referente.

Pode o objeto ser tantos? Pode alguém estar enganado? Ou mentindo? E se

nada existir? Ou se não conseguirmos entender mais nada, porque nos

afogamos em meio a tantos discursos sobre o referente? Seria a falência do

nosso discurso a falência do próprio referente?... E se não houver, enfim, a

verdade? Se existirem tantas leituras sobre o objeto, terminaremos por

perdê-lo de nós mesmos? Haveria ainda, em meio ao oceano histórico

Page 29: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[29]

desse excesso de interpretações, um lugar no qual poderíamos nos

encontrar? Sinto que as palavras se esvaziam de seus significados. Elas

estão sangrando por este caminho sem volta e eu estou perdido em meus

questionamentos...

Temi, pois, quando o observei, vi que seu rosto falava

do que sua boca não queria me dizer com as palavras...

Ele saiu rindo, esse transeunte. Encontrar o outro é isso?!

Nada diferente. Nem este e nem o que carregava sua casa.

Page 30: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[30]

O NADA

Vi em ambos personagens a mesma baba e fúria.

E se for apenas o nada?... Adormeci cansado de palavras.

Page 31: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[31]

O SONHO

Nada nunca se mostrou aos meus olhos assim.

Estas imagens nunca antes vira. Verde. Lago. Floresta.

Quietude. Na relva, deixei-me observar aquele personagem

em nada igual aos outros dois que conhecera nesta trajetória.

Palavras brotavam das pegadas daquele novo personagem.

Um jardim de letras em que me lia o que se ia em mim, vívido.

Nele estava escrito:

O LAGO E O LIDO

Kyrios

Lídimo discurso

no decurso do verso

palavra sêmen que enxerto

No tronco largo do já dito

tentar outra espécie, novo algo

'tretanto, a lida se reflete, sei,

as palavras são éguas trotando

Entre o lago e o lido

há espelhos que repetem

nossos infinitos vazios

Kyrios

Page 32: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[32]

espero

remir

(há corpos que são casas

e o meu não é casa. Meu

corpo é uma igreja pagã)

Almejo, como que entendendo:

- Um só Senhor

Kyrios

entronizar

À escolha de outro, fixo-me à entrada dessas praças,

quero, contudo, cego,

o outro

para me contemplar

que já és flor sobre meu

altar

Há luz em nós e são trevas

(quão densa treva é minha luz...)

Era de uma opacidade teus olhos

(feito os olhos de tantos):

duas tábuas escuras que me refletiam

Nada de ti quando te chegavas, é

bom ser dito, todavia, a minha luz era de

outro

roubada

Page 33: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[33]

É do sol que furto a luz com a qual te encantavas

e em ti não há nada além de mim. Fúria.

Não eras a mim que ansiavas: o brilho

claro lançava-te de volta a ti.

Podia perceber a aproximação dos teus passos

Narcose dos teus preciosos passos

Nem corrias e nem caminhavas

circulavas em torno de si

circundavas as margens

Retesava-me a cada dia

encantado encontrado

em conto contava

tua chegada, sim, águas clareadas

era todo lume que em mim havia

E quando te atiravas de joelhos

à orla do meu corpo, era meu o canto

respirado saído mais úmido

dissonante canto meu que ouvias

Ferido corpo, talho aberto ao toque de tuas mãos em concha,

permitido. Sei que eras bem vindo, mesmo que farsa fosse até

mesmo

meu corpo ferido. O que amei em ti é o que de mim admiro...

Feneceste-me em mim de tanto querer-te teu olhar

era teu lume que em mim jazia

esperando Kyrios, até Kyrios chegar!

Fim

Page 34: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[34]

O NADA

Despertei. O pranto é medo de esvanecer a razão. Ri de mim.

Mas o que é a loucura? Ter chegado aqui para descobrir o nada...

Reter a vazão do leito que se esvai de mim.

Palavras sangram e eu também...

Verter a razão do rio que vai para muito além de mim.

Abandonei o tecido-casa da malha que me encadeava!

É nada a marcha travada. Indago se a luz não foi delírio,

se sair é a loucura e permanecer fosse sensato. Que sou?

Se não houvera luz, não saberia da treva e do frio

e não haveria esta dor que há agora. Quem é Kyrios?

Page 35: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[35]

O NADA

- Para onde vais?

- Vou, respondi aquele outro.

- Mas se vais, vais ao nada, sabes?

- Não encontrastes o outro?, indaguei.

- És mais um louco? Não há o Outro?

- Como? Se conheci quem passou por mim nesta trajetória e disse já o ter

encontrado!

- Será? O que sabes ser o Outro?

- É preciso a morte...

- E esse que dizes ter encontrado, por acaso ele estava morto?

- Ele me disse que sim. Todavia, explicou-me que a morte era apenas uma

figura de linguagem, um simples recurso de retórica.

- O que é a morte, meu amigo babado e viscoso?

- …não sei bem. Certa vez, vi um igual e seu grito rouco. Foi seu último

som. Dali já não se ergueu mais. Estava morto.

- A morte é dor então?

- Não!... Não sei.

- A morte é dor então?

- Talvez, respondi.

- Então, procuras deliberadamente a dor?, insistiu aquele outro.

- Não!... Não sei. Ela é apenas uma figura de linguagem, a morte.

- E qual a validade de se buscar algo que não seja aquilo que se procura, ao

contrário, dizes que tua busca é por um simulacro? Qual a validade desta

tua trajetória? Afinal, procuras pelo símbolo ou pela realidade por este

indicada?

- Mas ele era igual a mim... o que me disse que havia morrido...

- Quem?

- Aquele que me disse ter encontrado o outro.

Page 36: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[36]

- Aquele que, segundo ele mesmo te disse, estava morto?, riu-se de mim.

- Sim. Havia nele esta mesma baba morna e a fúria que agora vejo em nós.

- E ele ia aonde quando o encontrou?

- Retornava ao lugar de onde todos viemos.

- Andar novamente na mesma malha? Viver aquela mesma vida? Ser da

mesma forma? É por isso mesmo que tanto buscas nesta trajetória?

- Não sei.

- Ouça-me, meu amigo confuso e perdido, o Outro não existe. O que há são

peregrinos tristes e vazios e angustiados demais com este seguir da malha.

Não querer ir com a malha é compreensível e justo. Tomar outra direção,

parar, lutar, conscientizar os indivíduos da mutilação da malha é isso tudo

muito louvável e preciso. Mas sair em busca do Outro que, no fim, não vai

dar em nada?! O que procuras, meu jovem, é o nada. É a superstição. É o

produto da euforia das mentes fracas e cansadas...

Page 37: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[37]

O DESÂNIMO

Por horas, permaneci ali, ouvindo-o até que ele se fosse.

O abismo em mim estava aberto, uma fissura de alto a baixo.

Quando olhei dentro desse buraco, vi em mim esterco.

O esterco úmido das palavras daquele outro transeunte.

O esterco lógico das suas ideias... Estava eu novamente

arredado à malha fria e vã do nada.

Era tudo nada. A caminhada nada do ser.

A caminhada do ser. A c mi a a do r.

A do r. Eu definhava.

Eu era pedacinhos, pedacinhos cada vez menores...

Page 38: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[38]

A EXISTÊNCIA

Coloquei-me à margem do caminho. À beira. Deixei-me ali.

O fim, decerto, viria. Enfado de tudo. Alma fatigada de falar,

caminhar, pensar, viver, ser... Estanquei-me a mim, e não

ao sangue que já se ia de mim, precipitado na rota de volta.

Filete vermelho escoando

como que retornando ao ralo de onde vim. Natureza.

Tanto para vir até aqui

e o que há em mim retorna a contragosto meu.

Luta que se luta contra si mesmo,

para, sarcasticamente, derruir na direção oposta desta luta.

Silêncio vacilante.

As vozes andam de um lado a outro aqui dentro.

Os su j e i t os di s p e r so s!

Patética cena da traição de mim mesmo,

O que haveria de mais trágico do que o que há em mim?

A ermo da orla do abismo da existência

vencida pela métrica da anti-poesia. Palavra vã. Luta vã.

Percurso ridículo do círculo que é a estética da náusea.

A patética trajetória do indivíduo...

Page 39: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[39]

A CONVERSA

- Poeta, se não tivéssemos te encontrado antes...

- Cuidamos de ti. Costuramos os cortes e fizemos os curativos.

- Poeta, que caminho querias seguir?

- Sei que não seria o da paz. Não te sinto em paz. O que está em torno de ti

é negro. Uma aura negra. Estás saturado. É preciso desbloquear os fluxos

de energia acumulados. Distender os seus pontos...

- Lá vem novamente essa conversa. O que o Poeta vai pensar de nós dois?

Olá, disse um deles se dirigindo a mim, nós somos os que seguem!

- Por que estou sendo chamado assim?, perguntei ainda atordoado pelo

cansaço da trajetória.

- Por causa disto. É teu?

- Sim... É minha folha de versos...

- Bonito, um deles disse.

- Mas triste, Poeta!, disseram em uníssono.

- Triste foi a condição em que me encontraram. Obrigado.

- Não fales muito, perdeste muito do teu sangue.

- Para onde seguis?

- Qualquer caminho, respondeu um deles.

- Qualquer caminho nos levará, disse o outro.

- Aonde pretendeis chegar?

- No Outro.

- Todavia, disse um deles, que busca é essa se o Outro já está dentro de

nós? Vejo as criaturas da terra andando para lá e para cá em seus caminhos

tão díspares. Respeito todos, sei que, uma hora ou outra, todos chegarão ao

Outro, porém a caminhada de alguns é mais arrastada. Se ao menos as

criaturas percebessem logo que o Outro está dentro de cada um de nós! Eu

O encontrei. Descobri o Outro dentro de mim.

- Sim, concordo, retornou o outro, quando dizes que todos os caminhos

Page 40: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[40]

levarão ao nosso encontro com o Outro. Porém, não posso crer que

devemos correr para dentro de nós. O Outro está lá em algum lugar e vou

encontrá-lo. Cada qual no seu caminho, uma hora esbarraremos no Outro.

A nossa procura será atendida. Afinal, Ele nos deve isso.

- Ele quem?, perguntei.

- O Outro. Ele nos deve a resposta a nossa busca. Abandonamos casa,

família, amigos, isso tudo deixamos por nossa busca. Ele nos deve!

- Com certeza!, enfatizou o outro. - Por onde temos passado, respeitamos as

trilhas alheias, o caminhar de cada um, somos instrumentos de paz.

Levamos amor, alegria e fé às criaturas. Deixamos marcas aonde quer que

passemos. São obras que tem que ser levadas em conta! Somos sua imagem

e semelhança e refletimos seu caráter. Assim, estou convicto de que Ele

pagará essa dívida para conosco. Somos tão bons!

- Como encontraste em ti o outro?, perguntei.

- Ora, a minha busca veio mostrar a beleza que há nas criaturas. Somos

seres de possibilidades infinitas, somos eternos! Nossa história, Poeta, não

se restringe ao que nossos olhos veem aqui. Há um processo de busca que

só terminará quando, finalmente, de tão semelhantes a Ele, iremos nos

misturar para sempre em sua essência. Mas já somos o Outro. Estamos

evoluindo!

- Não creio assim, interveio o outro, creio que há muitos caminhos e que a

dívida será paga para com a luta da criatura. Porém dizer que estamos

evoluindo na terra do bicho que come o seu igual? Há guerras, meu caro,

há fome, há dor e, como vimos aqui mesmo, há o desejo da morte.

- Isso são apenas interferências, ruídos, retornou o outro, são os que ainda

não alcançaram o grau evoluído que nós já alcançamos que estão presos a

esse tipo de coisas. Um dia, esses retornarão mais aperfeiçoados... Somos

ainda um mundo de expiação! Creio, porém, que mais um pouco e

estaremos numa nova era. O nosso mundo já está na nova era, mas nem

todos despertaram ainda...

Page 41: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[41]

A FILOSOFIA

Quantos saberes! Quantos encontrares!!!

Há a baba morna e a fúria em todos os meus interlocutores.

Encontrarei também as suas perguntas e respostas?

Se milhões de caminhos, milhares de entendimentos?

Quantas verdades e eu sem nenhuma!

O que já se pensou por toda a História?

Quantas verdades? Quantas picadas abertas

em meio à terra? Careço ir...

Os discursos estão enfermos.

Digo: Pedra. Mas nada digo sobre a pedra.

Digo: árvore. E nada digo dessa árvore.

Digo: eu. E nada sabem de mim. Algo há, eu sei.

Eu sei que Algo há,

mas o que há não sei.

Há uma escuridão luminosíssima,

um longo caminho entre um ponto e outro.

Mesmo no quadro das possibilidades,

há o campo da certeza, eu sei que há.

Cada probabilidade deve conter em si

Page 42: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[42]

o impulso que nos levará, sei, ao definido:

- Será o caos a única alternativa à ordem?

Há uma quase eternidade e o que digo

leva-me ora a um extremo e ora a outro.

Eles se foram e deixaram a folha de meus versos.

Pagarei a dívida, pois sobrevivi a mim mesmo. Ir.

Page 43: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[43]

DIGRESSÃO

Dar-me um nome? Todo nome é engano.

O nome restringe, diz pouco. Nome não revela conteúdo.

Se me desse um nome, teria que me dar vários nomes:

um substantivo a cada transeunte que vaga aqui dentro.

Meus personagens não têm nome, pois o nome não diz nada.

Nome não é identidade. Meu nome não discursa sobre mim.

Sou chamado por outros a vir a ser na existência deles

através de um nome, é verdade, tolo acordo social...

Mas nunca me chamam por inteiro,

quando me chamam pelo meu nome.

Que todo herói necessita um nome, eu sei

A Historia silencia os anônimos, também sei.

E nada sabem os que me conhecem pelo meu nome.

A criatura não cabe em seu nome, a criatura que sou

contém a criatura que és, Marcelo, meu nome é pouco,

nada diz dos anônimos que inscrevem guerra e paz em mim.

Penso que todo herói desespera por um nome:

Portanto, o teu será Marcelo. Eis nosso nome.

Não que este seja o teu, mas é por não ser...

Page 44: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[44]

no Éden, onde vagueio e a tudo nomeio,

Marcelo, consagro-te cavaleiro do Reino,

embora tu não saibas o meu nome verdadeiro.

Iludo-me crendo ser o meu nome terceiro,

e há tantos quanto tantos são meus medos

de me descobrir partido em muitos inteiros.

Há aqui bem dentro de mim, Marcelo, um ateu

que por estes dias ou noites morreu!

Ao lado dos outros, quiseste saber a hora segura,

porém não posso precisá-la em teu obituário:

atesto tão somente que este ateu sequer nasceu...

Está lá, estático, qual morto enganando-se estar vivo,

feito louco que se sabe são ou ódio que se anseia amor.

Marcelo, mas não sei quando (se foi entre a terça-feira

ou a quinta ou entre o sábado e a segunda) ele morreu...

Esperava por alguém entre os que aqui se encontram em mim

que soubesse algo, entretanto, Marcelo, os vivos são mortos.

Veja! Tive que gritar teu nome, Marcelo, meu Lázaro,

que eras fétido e já morto de quatro dias: “Vem para fora”!

Marcelo é um nome esvaziado e preenchido de sentido

Page 45: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[45]

quando sinto a falta de um amigo no silêncio deste meu umbigo.

Nome não diz nada, não chama nada, mas evoca:

manifesta a tantos Marcelos e Pedros e árvores e

cenas e tormentos e neuroses e meninas e histórias e tantas

as personagens e quantos equívocos e sonhos quebrados e...

Page 46: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[46]

AQUELA FOLHA DOS VERSOS

“, que ainda há esse beijo molhado

...se a criança não morre...

Dos baldes, lembra?

Pás e outros apetrechos

levados à praia: branca!

Das manhãs, nossas

paz e castelos e planos

cavados d'areia: monazítica!

O Espaço e o Tempo... ainda... 'inda...

Do centro do tórax à ponta da mão, um metro, certo?

A ampulheta marcando seu quarto de hora vaga...

(Resvalam-se instantes eternais em se mirando

grãos tragados por um vão que, nem eu sabia,

estrangulava o tempo no corpo fugidio d'areia)

Estrelas são rasguinhos no véu que nos cobre

Mínimas ilhas distantes demais...

Estrelas em par são vesguinhos tão tristes

Mais tristes são aquelas espelhos de luzes alheias.

Fomos traídos, criança:

Apagado o sol

que beleza restaria?

, que ainda há essa praia em nossas manhãs!

Page 47: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[47]

Será o albor abeirando-se e já tragando todos?

O monstro feio do fim do fogo fátuo das nossas frustrações!

Queria dizer-te outras coisas:

estrelas são respingos de um sol que se vai

para que na noite haja a esperança ainda que esparsa...

...o mais belo dos beijos: o céu deita sobre o março

e o sol que se lança inteiro neste encontro

respingos de si mesmo... (as estrelas, as estrelas!...)

Entregar-te tais versos de alegria, mas não! As estrelas

são expelidas das águas marinhas qual faz a esposa

repugnada de um marido cujo corpo lhe causa asco...

- Insensato, ó Poeta, que ouves as estrelas!

Elas são pó e ilusão e mais nada... Elas, as estrelas

sobrevivem de furtar o fogo fácil que arde nas lajes das necrópoles...

Sobre o beijo molhado? Há muito que, no músculo de sua língua,

a criança carrega um tumor que lhe putrefaz

O albor dos castelos deixados à beira mar...

- O sol está mesmo é morrendo afogado!”

Page 48: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[48]

RESPOSTA

Não, não quero mais findar. Perecer aqui.

Sigo o luzeiro que um dia se abriu sobre mim.

Page 49: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[49]

O PROFETA DO ENGANO

- Estás mais próximo do que quando começaste!

- Quem és agora?, surpreendi-me.

- Sou aquele que te apontará o Outro.

- Muitos já tentaram fazer isso antes de você, mas nada se deu em mim.

Ainda ouço tantas vozes em mim, quanto percebo que estou distante de

algum lugar que possa dar-me paz. E dizes que estou mais próximo do que

quando comecei?, desistia diante daquele meu novo interlocutor.

- Que queres?, enfatizou o Profeta.

- Eu necessito de um ouvinte sensível! Quero encontrar o que não sei o que

é, porém sei que me é imprescindível. Quero entender e ser entendido. Por

que tantas vozes fora e dentro de mim e tantos caminhos e palavras

semelhantes, mas díspares em conteúdo? Preciso definir...

- Eu sei que a Tragédia e a Comédia são feitas das mesmas letras...

- Quando digo outro, por que falamos de coisas diferentes e fingimos falar

das mesmas coisas?, exigi esclarecimento.

- O significado de uma palavra é o seu uso na linguagem...

- Preciso definir! As muitas leituras findam ambíguas e contraditórias.

Posso ser muitos, sendo um? Posso ser muitos sendo um? Posso ser tantos,

ou tantos os quanto encontro são míopes e eu não caibo em olhar algum?

Sou um diamante lapidado em dez mil faces ou apenas um vaso que caiu

das mãos da criada descuidada?

- Irás ouvir o estrondo e deverás seguir adiante. Encontrarás o Outro,

porque Ele já te encontrou. Irás ter todas as tuas respostas. Encontrarás o

Outro e Ele te fará reinar ao lado dEle. Ele será a sombra, o vulto que verás

ao sair daqui. O Outro é belo, majestoso e te fará conhecer o revelado e o

oculto. Queres ver o que o Outro vê? Queres ter este poder?

Page 50: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[50]

O ESTRONDO

Um cheiro estranho invadiu-me as narinas.

Era agradável o odor que revelou o fétido que havia.

Era malcheiroso o que se me ia às narinas

E a descoberta disso revelaria o que estava ali.

Fui alçado ao alto mais uma vez. Novo salto.

Deparei-me com um novo mundo e seu aprazível ar.

Vi aquelas que eram lendas contadas pelos antigos da malha.

Lembrei-me daqueles que pereceram por ensinar esses mitos.

Histórias alucinadas de ar. Os poetas mortos

por sonhar com as estrelas e o mundo de cá.

Muito mais que meus versos pudessem criar: as estrelas!

Page 51: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[51]

O VULTO

Sob meus pés, a terra. A sombra pôs-se diante de mim.

À sua presença, atemorizei-me por toda sua força e fúria!

- Sou eu quem procuras. Sou o Outro.

- És o outro?, surpreendi-me diante da excessiva sombra que via.

- Sou eu quem procuras. É por mim que anseias.

- Quem é o outro?, quis saber.

- Sou a águia que plana no alto. Linda e robusta. Atravesso os milhares de

quilômetros como se não fossem nada. Observo a terra e suas criaturas.

Conheço o verão e o inverno. A altitude e a profundidade. O odor fétido de

onde vens e o cheiro bom das estrelas.

- De onde vim?

- Vejas por ti mesmo.

Tomou-me numa de suas asas

e vi a terra da qual saí e abaixo dela a malha.

- Vens da terra. Nasces da putrefação da vida. És verme. Mas evoluístes

agora e és Outro comigo. És deus! És o verme-deus! Nascestes da

decomposição, entretanto és um deus de possibilidades infinitas! Creia em

mim e te farei rei de todos os que nada entendem. Reine comigo sobre eles.

- Um verme? Nascido da decomposição do que foi vida? Todavia, agora,

sou chamado a reinar ao lado da bela águia neste mundo de menores.

- Feche os olhos e creia!, enquanto ela falava a mim, vi o raiar da luz por

detrás dela: o sol. A luz do sol se fez sobre a águia que me levava em suas

asas e vi seu bico abrindo-se para me devorar.

Page 52: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[52]

O VENTO

Eu fora enganado. Caía no nada. Nada me sustentava.

Uma forte rajada de ar arremessara-me da asa da águia.

O corpo mínimo no ar, caindo.

Fatalismo, entreguismo, resignação...

Page 53: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[53]

O MILAGRE

A mão fez-se sob minhas costas. A mão me sustentou.

Sim! Era a presença inesperada do Outro!

Page 54: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[54]

A POMBA

Sob outra asa me encontrava. Salvo da queda.

A mão que senti seria delírio? O devaneio do sumidouro?

- Quem és?, quis saber.

- O que buscas?

- Um caminho, refleti.

- Só há um caminho, embora muitos peregrinos desta trajetória terminem

por se perder nos atalhos e picadas abertas.

- No início, nada queria encontrar. Nunca desejei sair da malha. Se não

fosse o círculo de luz que se abriu sobre mim e o turbilhão de vozes que me

atormentava...

- Elas ainda atormentam?

- Pensei que fosse a malha, mas carreguei em mim todas as vozes. Quantos

podem habitar em mim?

- Não deveria ser assim.

- Eu sou tantos. São tantos os que vagueiam aqui dentro. Cada um com sua

face, história e crença... Mas sei que há uma identidade por debaixo disso

tudo. Preciso vir a ser!

- Olha lá embaixo e vê a tua águia. O que vês? O teu caminho te levou ao

engano dela. Quantos pensam ter encontrado o Outro? Quantos encontram

aquela galinha e pensam ser ela a águia. Quantos já se deixaram ir nas

palavras daquele profeta do engano. Tantos são os caminhos quantos são os

enganos das criaturas!

- Sinto que há entre as criaturas um contrato, um contrato entre o dito e o

não dito. Todavia, conheci muitos nesta trajetória que têm rasgado o

contrato. Eu creio no contrato que me impede de ir além do escrito e de

ficar aquém do não escrito. Eu preciso vir a ser!... E as vozes?

- Certa vez, alguém cantou que havia uma criada no alto de uma escada

Page 55: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[55]

segurando um vaso. Por descuido da criada, o vaso caiu e se desfez em

pedaços, em tantos cacos, todos esses cacos miravam os olhos da criada

descuidada...

- São cacos de um vaso único, as vozes que sou?

- Sim, as criaturas defrontam-se com seu turbilhão de vozes. Não são nem

diversas identidades e nem identidades em constante mutação, são apenas

máscaras! É tão mais fácil resignar-se e tratá-las como naturais, que não se

percebe mais os resquícios da imagem original por debaixo da dura e

espessa crosta das máscaras. Suas vozes ou identidades são cacos de um

vaso original. Tu és, meu filho, ruína de glória que despencou não por

descuido de alguém, mas por tua própria vontade.

- Vejo que fui buscado!, surpreendi-me mais uma vez.

- Se sabes ter sido buscado, bastaria um caminho traçado?

- Não. Não segui qualquer caminho, mas aquele que a luz me abriu. Fiz-me

ir através da área de luz.

- O que buscas?

- Aquele que, então, buscou-me primeiro!

- Já sabes de onde vens?

- Da terra. Da decomposição da vida. Sou verme. Minha natureza é a baba

morna e a fúria!

- Mas não deveria ser assim.

- Como não? Tantos transeuntes e todos, até a galinha e o profeta do

engano, todos exalavam a baba morna e a fúria!

- Olhes bem, disse-me apontando para si mesmo.

Onde estão a baba morna e a fúria naquele ser?

Seria possível livrar-me daquilo que de mim era tão natural?

- Aquele que te criou não te criou assim.

- Eu sou o meu semelhante. A malha que há é de iguais que lutam pela

Page 56: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[56]

sobrevivência e comem a terra e comem o outro. Mas, agora eu sei, há o

Outro... A mão que me amparou a queda!

- Fostes adulterado. És imagem do outro que do Outro. Olha a tua volta. O

que há?

- O azul e o marinho do céu. Sei que há estrelas, embora agora eu não

possa vê-las. Há o ar agradável às narinas, há essa luz da bola de fogo...

- Por mais belo que tudo pareça, meu filho, tudo o que vês foi vilipendiado.

- Que poder é este que fez quedar toda a beleza das estrelas?

- Foi uma força que alterou toda a ordem do Cosmos. O vaso que

despencou e que os fez ruínas de glórias imemoriais.

- Por que tuas palavras têm tão clara luz?, indaguei seguro.

- Meu filho, ouça atentamente as palavras que agora falo: eu respeito o

contrato. Faço a necessária distinção entre a transparência semântica do

significante, para que flua o significado que determina, e a opacidade

estética que se aplica ao significante em variados graus, para que se abra o

leque de significados. Labuto a mensagem real jogando com essas duas

peças. Estabeleço de antemão as regras do discurso e nunca as traio, apenas

as suplanto em momentos precisos. Não confundo a clareza literal da

minha mensagem com a surpresa e incerteza do sobre-código superposto

aqui. Tal precisão luminosa é o que não se espera das criaturas, enquanto

seres que se profanaram! Portanto, se não vês a verdade, isso deve-se aos

teus olhos que não veem. Então saiba, meu pequenino filho, que se

chegares a ver a luz é tão somente porque fui eu mesmo quem demovi as

trevas de tua cegueira.

- Quem és tu?, finalmente perguntei.

- Nós estávamos lá e nos abrimos sobre ti em luz para te buscar. Somos o

trovão. Éramos a luz, o silêncio, a voz e a mão a te suster. Estávamos

sempre lá!

- És o Outro?

- Somos o Outro!, respondeu poderosamente.

Page 57: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[57]

- São muitos o Outro?

- São apenas Um. Os três são Um! Perplexo? Isto é bom. A perplexidade é

a paixão que te levará ao conhecimento e o desejo de conhecer é o anseio

de ser encontrado! Olha para baixo e verás.

- O que é aquilo?

- É o fim da tua busca!

Page 58: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[58]

A ÁGUIA

Dei-me conta do frio que me entranhava, insuportável frio.

Deixado ali perto daquilo. Era aquilo que eu procurava?!

Não era aquilo o que eu esperava. Fora uma vez mais enganado?

Aquilo era um verme que agonizava diante de mim. Ser disforme

era aquele verme diante de mim. Gritava seu gemido dilacerante.

O seu aspecto não era agradável aos meus olhos. Por quê?

Ele estava ferido e se feria ainda mais. Consumia-me o frio

e o horror daquela cena. Era por demais alto e aquele ar

desaparecia. Onde? Onde a baba morna e a fúria?

Seu aspecto era mais grotesco do que o do verme!

Depois de toda a trajetória, o fim é nada? Morreríamos ali?

Arrancava com seu bico pedaços inteiros do próprio corpo!

Era loucura a cena! As penas embebidas de sangue

eram postas ao seu lado. Ele morria e eu também morreria.

- Vai! Segue para debaixo das penas embebidas de sangue, ordenava-me a

pomba!

Page 59: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[59]

O ENCONTRO-CONFRONTO

Aquecido, vi sua morte lenta e melancólica.

Estranha caminhada. Exausto, eu adormeci.

Abandonei-me ao universo das minhas inferências.

O bicho não estava mais ali, só a ausência total da fúria.

Disse-me que seria o fim da minha busca.

E o que encontrei? A certeza de ter sido encontrado!

Ainda se me escorre a baba morna e a fúria,

mas me foi dado algo contra mim, enfim:

A certeza daquilo que espero

e a prova das coisas que ainda não posso ver!

Fecho os olhos. As vozes cessaram.

Tudo se fez novo: o vaso restaurado!

Fecho os olhos. Sei dos estragos da nossa existência:

a cobiça, o assassínio, a inveja, o ciúme, a mesquinhez.

Ouço, agora, a voz da Pomba em mim:

- O pecado é a imagem de Deus corrompida em nós!

Page 60: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[60]

EPÍLOGO

- Quero ir!, insisti com a Pomba.

- Sei que queres ir, disse-me afetuosamente.

- Quero estar com a Águia.

- Certamente estarás com ela, porque já estamos em ti.

- Quero habitar com Ela, tentei convencê-la.

- Certamente, irás, porque já habito em ti. Mas, agora, é preciso que

retornes.

- Nesta trajetória, encontrei outro que retornava deste encontro... Ele queria

retornar à malha de onde todos viemos.

- Foste encontrado por Aquele a quem muitos buscam. E por teres sido

encontrado, achaste o que outros apenas dizem ter encontrado.

- Não entendo...

- Neste momento, meu filho, as sombras dão lugar à realidade. Há em ti

mais que a simplória conversão de convicções: fez-se nova vida! É preciso

expandir os símbolos para que se tornem explícitas as referências

implícitas. Deves dominar o limite entre o que indica e o que é indicado,

para que não pervertas a tua adoração e venhas a substituir o Criador pela

criatura, a Palavra pelas palavras. E, agora, é preciso viver essa nova vida

na volta ao outro.

- Sinto-me como que marcado. Como que um selo estivesse sobre minha

fonte e que agora sou propriedade dEle. Percebo a imagem dEle em mim...

- E perceberás cada vez mais se retornares. Preste atenção: feneceste teu

indivíduo, nasceu tua pessoa: estás liberto! Terás um nome novo pelo qual

Nós te chamaremos e te traremos à nova existência.

- É preciso se saber conhecido!

- Muito mais do que conhecer, é preciso se saber conhecido por Ele. E Eu

te farei lembrar de que és filho dEle.

- Antes, eu vivia num quarto. Todos somos residentes desse quarto, havia

Page 61: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[61]

uma porta num dos cantos desse quarto... Mas a porta era apenas um

desenho. A porta intransponível, porque inexistente! Era um engano...

- Foi quebrada a parede deste quarto que te separava. Não há mais

separação entre nós. E tens que proclamar esta Verdade a outros: só há

pessoa quando há relação! A descoberta da tua pessoa se expande na

continuidade com o outro!

- É preciso amar!, compreendia naquele momento a razão porque deveria

retornar.

- É preciso que reflitas a nossa imagem, amando como Nós nos amamos

desde a eternidade. E amando o outro como aprendeste a amar a ti mesmo,

porque descobriste que fora amado por Nós antes que nos conhecesse. É

preciso refletir a Nossa imagem, perdoando o outro como foste perdoado,

pois encontraste abrigo através da morte dAquele que te ama: a Águia

revelou a Verdade! Meu filho, foste salvo pelo Amor. A Águia manifestou

um amor que tu não conhecias, mas estava bem próximo de ti: um amor

gerado na Eternidade! Fizeste a paz consigo e é preciso que faças a paz

com o outro, apresentando a ele o Amor que conheceste da Águia.

- Preciso regressar e romper a superficialidade da malha!

- O Amor que conheceste não é um sentimento, mas uma decisão que

transforma o teu íntimo e te leva a amar o outro. E essa decisão será

natural, porque Eu luto dentro de ti contra a baba morna e a fúria.

A trajetória do indivíduo encerrava-se ali,

porque não havia mais um indivíduo, mas a pessoa.

Lembrei-me que nasci cego.

Compreendi que nascera morto.

A busca do vir a ser:

A minha identidade está guardada nas mãos do Pai.

Page 62: A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

[62]

Abro os olhos e miro no céu a Águia

e o traço do seu arco invisível rasgando o azul.

Persisto na rota desta fresta estreita:

o sabor do saber inicia-se neste momento.

É a evidência do Eterno! A fenda aberta e a trajetória:

roturas feitas pela Águia, Senhorio ao qual me entrego!

Eu sou santo, porque o meu Deus é Santo!