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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XIX Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste – Fortaleza - CE – 29/06 a 01/07/2017 1 A trilha musical como elemento tradutor da vida mental no cinema 1 Isadora Meneses RODRIGUES 2 Universidade Federal do Cariri, Juazeiro do Norte, CE RESUMO Este artigo é resultado da dissertação de Mestrado de minha autoria defendida e aprovada em 2015 no Programa de Pós-Graduação em Comunica da Universidade Federal do Ceará. O objetivo é analisar o filme The Hours (2002), adaptação fílmica do romance homônimo de Michael Cunningham (1998). O pressuposto é de que a trilha musical, composta pelo músico norte-americano Philip Glass, é o elemento fílmico que sugere a expressão de um fluxo de consciência na película. Ou seja, é a música que traduz a vida mental dos personagens. Nesse sentido, procuramos articular autores da teoria literária, da teoria do cinema e dos estudos musicais para tratar da relação entre texto, imagem em movimento e som. PALAVRAS-CHAVE: cinema; fluxo de consciência; tradução; trilha musical; literatura Introdução Michael Cunningham, escritor contemporâneo norte-americano, descreveu o seu livro The Hours, de 1998, como um riff de Mrs. Dalloway, romance publicado em 1925 pela escritora inglesa Virginia Woolf. Um riff é uma progressão de acordes que são repetidas no contexto de uma música, formando a base ou o acompanhamento. A comparação de Cunningham sugere uma melodia conhecida reverberando ao longo de uma nova partitura, ou seja, algo já existente que é transformado e reconfigurado por outro. O crítico literário Tory Yong (2003) considera essa definição musical de Cunningham muito mais envolvente do que algumas terminologias literárias que tentam definir The Hours como imitação ou homenagem, pois avalia que o escritor não apenas reescreveu o romance de Woolf, mas também adaptou a protagonista de Mrs. Dalloway ao mundo contemporâneo, além de encarnar, em seus personagens, as teorias de caracterização na ficção moderna defendidas pela escritora inglesa no início do século XX. 1 Trabalho apresentado no DT 4 Comunicação Audiovisual do XIX Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste, realizado de 29 de junho a 1 de julho de 2017. 2 Mestre pelo programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal do Ceará e professora do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Cariri (UFCA), e-mail: [email protected]

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A trilha musical como elemento tradutor da vida mental no cinema1

Isadora Meneses RODRIGUES2

Universidade Federal do Cariri, Juazeiro do Norte, CE

RESUMO

Este artigo é resultado da dissertação de Mestrado de minha autoria defendida e

aprovada em 2015 no Programa de Pós-Graduação em Comunica da Universidade

Federal do Ceará. O objetivo é analisar o filme The Hours (2002), adaptação fílmica do

romance homônimo de Michael Cunningham (1998). O pressuposto é de que a trilha

musical, composta pelo músico norte-americano Philip Glass, é o elemento fílmico que

sugere a expressão de um fluxo de consciência na película. Ou seja, é a música que

traduz a vida mental dos personagens. Nesse sentido, procuramos articular autores da

teoria literária, da teoria do cinema e dos estudos musicais para tratar da relação entre

texto, imagem em movimento e som.

PALAVRAS-CHAVE: cinema; fluxo de consciência; tradução; trilha musical;

literatura

Introdução

Michael Cunningham, escritor contemporâneo norte-americano, descreveu o seu

livro The Hours, de 1998, como um riff de Mrs. Dalloway, romance publicado em 1925

pela escritora inglesa Virginia Woolf. Um riff é uma progressão de acordes que são

repetidas no contexto de uma música, formando a base ou o acompanhamento. A

comparação de Cunningham sugere uma melodia conhecida reverberando ao longo de

uma nova partitura, ou seja, algo já existente que é transformado e reconfigurado por

outro. O crítico literário Tory Yong (2003) considera essa definição musical de

Cunningham muito mais envolvente do que algumas terminologias literárias que tentam

definir The Hours como imitação ou homenagem, pois avalia que o escritor não apenas

reescreveu o romance de Woolf, mas também adaptou a protagonista de Mrs. Dalloway

ao mundo contemporâneo, além de encarnar, em seus personagens, as teorias de

caracterização na ficção moderna defendidas pela escritora inglesa no início do século

XX.

1 Trabalho apresentado no DT 4 – Comunicação Audiovisual do XIX Congresso de Ciências da Comunicação na

Região Nordeste, realizado de 29 de junho a 1 de julho de 2017.

2 Mestre pelo programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal do Ceará e professora do curso

de Jornalismo da Universidade Federal do Cariri (UFCA), e-mail: [email protected]

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Em The Hours (1998), acompanhamos um dia comum de três mulheres que

vivem em tempos e espaços diferentes. Temos a personagem Virginia Woolf, em

Richmond, escrevendo o livro Mrs.Dalloway, em 1923. A outra mulher, Laura Brown, é

mostrada em um dia de 1949 vivendo conflitos em relação à maternidade e à família ao

mesmo tempo em que prepara uma festa de aniversário para o marido. Casada com um

herói da Segunda Guerra Mundial, Dan, mãe do pequeno Richard e grávida do segundo

filho, acompanhamos o dia em que Laura começa a ler Mrs. Dalloway. A última mulher

que acompanhamos é Clarissa Vaughan, editora de livros que prepara uma festa em

homenagem ao amigo e poeta Richard Brown em um dia qualquer de 1998, em Nova

York. Richard, que ao final do romance sabemos ser o filho de Laura Brown, é portador

do vírus HIV e neste dia irá receber o prêmio literário Carrouters pelo conjunto da obra.

Se no tempo cronológico o romance se passa em apenas um dia na vida de cada

uma das protagonistas, a narrativa psicológica alcança vários anos das vidas de Laura,

Clarissa e Virginia. Para conseguir esse efeito, Cunningham estrutura seu livro por meio

do fluxo de consciência, artifício que marcou a ficção desenvolvida por Virginia Woolf

e muitos outros escritores do começo do século XX, como James Joyce e Dorothy

Richardson. Segundo o teórico Robert Humphrey, as narrativas de fluxo de consciência

caracterizam-se como um tipo de ficção em que “a ênfase principal é posta na

exploração dos níveis de consciência que antecedem a fala com a finalidade de revelar o

estado psíquico dos personagens” (HUMPHREY, 1976, p.4).

Em 2002, The Hours foi adaptado para o cinema pelo cineasta Stephen Daldry.

O filme, de título homônimo, traz basicamente o mesmo enredo do romance de

Cunningham. Para a tradução do fluxo de consciência no audiovisual, evitou-se o

flashbacke e o voice-over, recursos usuais do cinema para narrar ou mostrar o

pensamento dos personagens. Neste trabalho, nos debruçamos justamente sobre essa

tradução do fluxo de consciência literário para o filme. Mesmo que muita dessa

subjetividade do livro esteja dissolvida nos diálogos, o nosso pressuposto é que a trilha

musical, composta pelo músico norte-americano Philip Glass, é o elemento fílmico que

sugere um fluxo de consciência na película. Não só pelo estilo da composição, pós-

minimalista, se aproximar de conceitos estéticos da ficção de fluxo de consciência, mas

também pelo modo como essa música se entrelaça às imagens, tendo momentos de

entrada e saída de cenas que indicam uma conexão entre as mentes de Clarissa, Virginia

e Laura.

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A representação da vida mental no cinema para além do voice-over

A tradução do fluxo de consciência foi uma das principais preocupações de

Cunningham ao ser informado de que seu romance iria ser adaptado por Stephen

Daldry. O romancista acreditava que no cinema a subjetividade seria perdida, mas que a

história ganharia a potência dos gestos. “O que aprendi ao ver o filme foi que você

perde a habilidade de entrar na mente dos personagens, mas ganha a habilidade da

Meryl Streep de separar a gema do ovo, daí revelando o que você precisa saber sobre

ela naquele instante e antes dele”. (CUNNINGHAM, 2003).3

Como defendeu Rodrigues (2015), se fossemos pensar em um sentido clássico

de tradução, procurando equivalências entre passagens específicas do texto literário e

das cenas fílmicas, seria apropriado dizer que Daldry traduziu o fluxo de consciência

nos diálogos. São nas cenas dialogadas onde podemos encontrar trechos que são

traduções quase exatas de extensas passagens do livro de Cunningham. Desse modo,

podemos chegar à conclusão de que o fluxo de consciência foi excluído do filme, em

termos de tradução do signo estético. O que foi para a tela foi apenas a tradução do

conteúdo do romance, do seu enredo.

A tradução do fluxo de consciência para o cinema, ou seja, do pensamento dos

personagens e da apresentação de suas vidas mentais, têm sido um dos desafios desde o

surgimento do audiovisual. Mark Cousins (ct. DINIZ, 2005, p.6) considera que o

cinema jamais conseguiria incorporar a voz íntima dos personagens sem usar o recurso

do voice-over. Marcel Martin, em A linguagem cinematográfica (2003), também reserva

um papel fundamental ao recurso para a apresentação do tempo psicológico no cinema.

Segundo o autor, “a voz off abre ao cinema o rico domínio da psicologia em

profundidade ao tornar possível a exteriorização dos pensamentos mais íntimos”

(MARTIN, 2003, p.114). A vantagem do voice-over, para Martin, é que o recurso

apresenta o pensamento do personagem sem o risco de cair na inverossimilhança,

colocando esses problemas de consciência “impossíveis de exprimir a não ser pela

palavra”, sem recair na estética do cinema mudo. (MARTIN, 2003, p. 187).

Essas afirmações, em um primeiro momento, nos parecem razoáveis pela

enorme quantidade de adaptações da literatura que utilizam o artifício. Mrs. Dalloway

3 Indico que todas as traduções de textos em língua estrangeira citados nesse trabalho são de minha

autoria.

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(1997), de Marlene Gorris, adaptação do romance homônimo de Woolf, por exemplo,

usa o voice over para levar trechos exatos do romance para o audiovisual.

Sendo ainda mais radicais que Cousins e Martin, os teóricos da literatura vem,

tradicionalmente, defendendo que o melhor meio de representação da consciência é o

romance e que esse seria um dos motivos para a literatura ser tão mal adaptada para o

audiovisual. James Wood, ao comentar sobre as possibilidades de construção do

personagem na literatura, declara que “ao contrário do cinema, por exemplo, o romance

pode nos revelar o que pensa um personagem” (Wood, 2012, p.89). Em Consciousness

and the Novel (2002), David Lodge também retoma o argumento sobre a

impossibilidade de o cinema mostrar a vida interior, algo que, segundo o autor, seria

causado pela própria natureza do audiovisual uma verdadeira “inabilidade do meio de

fazer justiça ao que é indiscutivelmente o mais importante componente dos livros—sua

representação detalhada e sutil da vida interior. (LODGE, 2002, p.3079).

Nesse livro, o autor chega a trazer argumentos importantes sobre o fracasso de

adaptações de romances de fluxo de consciência, como a tentativa de erotização de

personagens e a facilitação dos desfechos e tudo o mais que possa contribuir para fazer,

nas palavras dele, “um filme comercialmente bem sucedido para um público moderno.”

(Lodge, 2002, p.3079).

Nesse sentido, nos aproximamos do que defende Robert Stam em A literatura

através do cinema (2008). O autor afirma que embora o incremento tecnológico e a

época do surgimento do cinema nos faça declarar o cinema como moderno, a estética

dominante do meio herdou as aspirações miméticas do realismo literário do século XIX

e esse é um dos principais motivos para que a literatura de fluxo de consciência seja mal

adaptada.

Na contramão da teoria literária, os estudiosos do cinema declararam que a

natureza do audiovisual é uma das mais favoráveis para representação da vida interior.

Nos mais diferentes períodos e com um vocabulário bastante variado– alguns falam em

monólogo interior (Eisenstein, 2002), outros em experiência espiritual (BALÁZS, 1931)

ou mesmo em cinema de poesia (Pasolini, 1976) –, podemos encontrar a reflexão sobre

a representação do fluxo de consciência e do que aqui chamamos de vida mental em

diversos pensadores da área.

O caminho que propomos aqui, portanto, é pensar essa apresentação da vida

mental no cinema em outros termos, uma aparição por meio da trilha musical. Isso

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porque durante a maioria das cenas de The Hours estamos sempre ouvindo uma música

extradiegética composta pelo músico norte-americano Philip Glass. Mesmo vivendo em

épocas distintas, as mulheres sempre compartilham a mesma trilha musical. Dessa

forma, defendemos que é no campo sonoro que há uma expressão da técnica defluxo de

consciência literário em The Hours. A seguir, buscamos analisar quais os princípios

composicionais da trilha e quais os princípios de inserção das músicas no filme.

Não pretendemos fazer uma análise de partitura da trilha musical, a nossa

abordagem da música será sempre na sua relação com os outros componentes fílmicos.

Para a nossa análise, dividimos o filme em 32 sequências4 que se organizam muito mais

em função do som do que das imagens. Optamos por manter a nomenclatura musical

proposta por Englander (2012), que distingue cinco temas musicais que aparecem e

reaparecem ao longo do filme: Death Progression, Sleeping Theme, Waking Theme,

Bell Theme e Metamorphosis Two.

A partir da nossa decupagem, observamos que apenas três sequências do filme

não são acompanhadas pela música de Philip Glass. A música, portanto, se mostra

fundamental no processo de montagem da obra fílmica. Dessas três não acompanhadas

pela música de Glass, há uma cena que contém uma música diegética, a única do filme,

que Clarissa está ouvindo quando o personagem Louis chega para visitá-la. Nas 29

sequências acompanhadas pela música de Glass, contudo, há momentos de silêncio que

serão fundamentais na investigação da relação entre música e imagem.

Philip Glass: uma música para a consciência

Além de ser composta pelo músico norte-americano Philip Glass, a trilha

musical do filme teve a sua orquestra regida pelo britânico Nick Ingman. A trilha não é

composta apenas por arranjos originais. Algumas músicas são baseada em

Metamorphosis Two, composta por Glass nos anos de 1980 e lançada pela primeira vez

no álbum Solo Piano (1989). Esta música, inclusive, tem uma forte relação com a

literatura, já que foi originalmente pensada como uma tradução musical do clássico

romance de Franz Kafka, A Metamorfose. Outra música bastante repetida em The Hours

é The bell theme, baseada em Protest, ato II, cena III, da ópera Satyagraha, lançada em

1986 no álbum Songs from the Trilogy.

4 A decupagem completa do filme pode ser encontrada na minha dissertação de mestrado, intitulada “A

tradução do fluxo de consciência literário na trilha musical do filme The Hours” (2015).

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Michael Cunningham, que confessa ter escutado Glass e lido Virginia Woolf

durante quase toda a sua vida adulta, ao saber que o compositor tinha concordado em

contribuir para a trilha sonora do filme de Stephen Daldry, considerou que essa junção

era “boa demais para ser verdade” (CUNNINGHAM, 2002b, n.p). Ao mesmo tempo, a

associação parecia inevitável, já que o escritor avalia que há uma proximidade

espetacular entre a literatura de Woolf e a música do norte-americano. Para o

romancista, Glass e Woolf estavam “mais interessados naquilo que continua do que

naquilo que começa, chega a um clímax, e termina; ele (Glass) insiste, assim como fazia

Woolf, que a beleza muitas vezes reside mais precisamente no presente do que na

relação do presente com o passado ou o futuro”. (CUNNINGHAM, 2002b, n.p).

Algumas das características apontadas por Cunningham, como a falta de clímax

e a insistência no momento presente, são características associadas ao estilo musical

pelo qual Glass é mais conhecido, o minimalismo. Há, contudo, bastante controvérsia

sobre o enquadramento estilístico da trilha musical de The Hours. Samantha Englander

(2012) e Roger Hillman/Deborah Crisp (2014), por exemplo, a partir de uma análise de

partitura da trilha, classificam como minimalista as composições criadas por Glass,

assim como a pesquisadora Rebecca Eaton (2008) em sua análise sobre a inserção de

músicas minimalistas no cinema. Contudo, estudiosos da música minimalista, como

Dimitre Cervo(1999), Julio Cesar Lancia (2008) e Alex Ross (2009), consideram que o

termo, atualmente, é usado de forma pouco rigorosa e avaliam que o que Glass produziu

depois dos anos de 1980 não pode mais ser analisado como minimalismo. Longe de

tentar resolver o impasse, consideramos que explorar um pouco do estilo das

composições de Glass nos ajudará a entrelaçar a trilha musical de The Hourscom a ideia

de fluxo de consciência literário. Isso porque, mesmo que não se enquadre totalmente

no minimalismo clássico, parece ser consenso entre os teóricos que o que o compositor

produziu após sua fase minimalista continua sendo influenciado por muitos princípios

composicionais do estilo.

Das técnicas de composição minimalista, nos interessa perceber como esse estilo

é caracterizado pelo desvio da composição ocidental, principalmente durante a

predominância da tonalidade, caracterizada por uma narratividade que visa sempre um

desenvolvimento e uma conclusão. Segundo Ross (2009), La Monte Yong, Glass, Reily

e Reich, ao deixarem a concepção de um trabalho musical como atividade linguística

contida em si mesma, aproximam-se do ritmo frenético das metrópoles modernas,

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principalmente as composições de Glass, “que parecem emanar o brilho neon de Times

Square.” (ROSS,2009, p. 527).

Esse desvio da narrativa musical ocidental se deve, principalmente, pela forte

influência exercida pela música experimental norte-americana, em obras como as de

John Cage e Morton Feldman, em que a relação causal foi substituída pela sucessão de

eventos com pouca ou nenhuma conexão aparente, daí Cunningham ter a sensação de

que Glass está mais focado no presente e no contínuo do que em um desenvolvimento

narrativo que caminha para um desfecho. Segundo Ross (2009), esses compositores nos

desafiaram a perceber o mundo de dentro de suas cabeças, fazendouma “sinfonia digital

das ruas”.

Mesmo que por aproximação teórica, antes de uma análise das relações da

música com as imagens do filme, nos parece que, de fato, não haveria melhor escolha

do que utilizar uma música minimalista para traduzir o fluxo de consciência literário.

Assim como as cidades americanas eram as protagonistas das composições de Glass, a

representação dessas cidades também era um desafio para Woolf, que transformou

Londres em uma protagonista ativa em Mrs. Dalloway. De acordo com crítica inglesa

Anne Banfield, o romance é, para Woolf, “a exploração da força metonímica da vida

urbana” (2009, p. 883), a representação da sua sobrecarga sensorial, que leva ao limite o

nosso sistema nervoso.

Dos procedimentos minimalistas, o método da repetição pela adição ou

subtração controlada de notas é um dos que ainda estão presentes nas peças musicais de

Glass até hoje, sendo extremamente marcante na trilha sonora de The Hours,

principalmente nas músicas que são reformulações de composições suas dos anos de

1980: a Metamorphosis Two e The Bell Theme. Esse método gera no espectador uma

expectativa de alteração, já que, a cada repetição inalterada, o ouvinte anseia pela

próxima adição/subtração. Essa falta de direcionalidade e esse aparente estado estático,

segundo Lancia (2008), está diretamente ligado à possibilidade da música em explorar o

tempo, dando uma percepção distorcida de sua passagem, um efeito de tempo

comprimido ou estendido, uma mera sucessão de momentos semelhantes sem uma

conexão de finalidade entre eles.

Não era isso que Virginia Woolf buscava? Nos seus romances, o sentimento de

fora de tempo é dado justamente pelo entrelaçamento entre o momento presente e a

memória. Essa noção de passagem de tempo distorcida é particularmente especial em

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The Bell Theme, música mais tocada durante o filme (ao todo oito sequências).

Englander (2012) destaca que The bell theme parece se referir a passagem do tempo no

sentindo de que parte dela alude aos sons de sinos. Dessa forma, apesar de carregar uma

noção de atemporalidade, devido às estruturas repetitivas, os sinos nos lembram,

implicitamente, a passagem regular e cronológica. Dessa forma, “enquanto a música em

The Hours representa uma fuga da realidade, mesmo na retirada mental dos

personagens, a presença da realidade ainda paira continuamente”. (ENGLANDER,

2012, p.17).

A partir dessas considerações sobre o estilo da trilha musical de The Hours,

começamos agora a análise efetiva do entrelaçamento dessas músicas compostas por

Glass com as imagens fílmicas. De acordo com Claudia Gorbman (1987, p.86), em

filmes de narrativa convencional, os significados musicais estão sempre subordinados

aos significados da narrativa. Portanto, por mais que a música queira subverter os

princípios da escrita clássica de música para cinema, ela irá sempre conotar alguma

coisa quando tocada junto a imagens narrativas.

A ideia é que as cavernas se comuniquem e venham à tona

O livro de receitas mostra o bolo ideal. Laura o lê cuidadosamente enquanto o

pequeno Richie lhe ajuda a peneirar a farinha. Mesmo que a face de Laura possa

demostrar certa apreensão, ela parece, ao mesmo tempo, fascinada pelo momento. De

repente é fácil assar um bolo e criar um filho. Nessa ocasião, ela ama o filho como

supostamente deveria, sem se ressentir ou desejar ir embora. Os dois estão tentando

fazer o melhor bolo possível para mostrar a Dan o quanto ele é amado. Para Stephen

Daldry (2003), esse parece ter sido o momento da narrativa em que Laura e o filho

foram mais felizes. A música que acompanha toda essa sequência é The bell Theme,

sem pausa, com a sua repetição de notas que traz a ideia de circularidade e de tempo

suspenso.

Em Unheard Minimalisms (2008), Rebecca Eaton defende que trilhas

minimalistas normalmente atraem mais atenção para si, mesmo quando inseridas em

narrativas bastante convencionais. Citando como exemplo o poder de intromissão da

trilha musical de The Hours, a autora destaca a repercussão que essa audibilidade da

música gerou na crítica especializada em cinema. Artigos jornalísticos, que raramente

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comentam as trilhas musicais, colocaram o som como um dos principais aspectos do

filme de Sephen Daldry, chegando a classificar a música como “barulhenta” e

“intrusiva”. Essas análises se distanciam sobremaneira dos princípios clássicos de

composição e inserção musical no cinema elencados por Claudia Gorbman em Unheard

Melodies (1987).

Inaudibilidade, continuidade e significante de emoção. Esses são alguns dos

princípios de composição, edição e mixagem de música para o cinema clássico

enumerados por Gorbman (1987). Como defende Rodrigues (2015), se o filme The

Hours, em relação ao entrelaçamento das imagens, segue os esquemas de montagem do

cinema clássico, a inserção sonora se distancia dos princípios convencionais.

Destacamos esses três princípios clássicos porque eles estão em The Hours, mas de

forma bastante peculiar.

A inaudibilidade, por exemplo, parte do princípio de que a música não deve ser

ouvida conscientemente pelo espectador, devendo ter o seu ritmo e volume

subordinados aos diálogos e às imagens. De acordo com Gorbman (1987), muito do que

virou estratégia clássica de inserção na música no cinema veio dos preceitos do

compositor russo Leonid Sabaneev, que considerava que a música deve aparecer no

cinema sempre em segundo plano, nunca chamando mais atenção do a imagem em

movimento.

O que percebemos, logo nas primeiras sequências do filme, é que as

composições de The Hours estão distantes de serem invisíveis ou inaudíveis. Pelo

contrário, a trilha é extremamente intrusiva, sobrepondo, muitas vezes, os diálogos e os

efeitos sonoros que reproduzem os sons ambientes. Na cena descrita acima, em que

mãe e filho preparam o bolo, a música se faz notar pelo fato de jamais subordinar o seu

volume à presença ou não dos diálogos entre Laura e Richie, participando de toda a

sequência, que dura um pouco mais de um minuto. Além disso, essa invisibilidade

desaparece pelo uso do contraponto entre o que é visto e o que é ouvido. Como uma

música tão angustiante pode servir de tema para uma cena banal e feliz entre mãe e

filho? A trilha musical, portanto, aparece menos como um fundo para a encenação e

mais como um equivalente da narrativa que se constrói nos pensamentos de Laura

Brown. Esse uso da música será constante em todo o filme.

Já o princípio da continuidade prevê que o papel da música nos filmes é

completar os espaços vazios entre cenas ou entre diálogos, suprimindo o silêncio sem

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atrair especial atenção para si. Esse uso da música surge “de um medo do silêncio e de

um êxtase visual” (GORBMAN, 1987, p.89). Mais uma vez, a cena que trouxemos no

início do tópico exemplifica um modo alternativo de trabalhar o princípio da

continuidade. A música que ouvimos na sequência é um prolongamento sem cortes da

música da sequência anterior, em que temos Virginia Woolf caminhando por Richmond

ao mesmo tempo em que decide o destino da personagem do seu livro. Nesse sentido, a

música de Philip Glass até serve para ligar as sequências, mas quase nunca para

completar vazios e momentos de silêncios, que são fundamentais na composição do

filme.

O tipo de continuidade estabelecida é outra, uma espécie de ligação entre os

pensamentos de Clarissa, Laura e Virginia, conectando mentes assim como Woolf

queria fazer com a sua escrita em fluxo de consciência: escavar lindas cavernas por trás

dos personagens e buscar a comunicação entre elas, dando ao romance humanidade,

humor e profundidade.

O último princípio que destacamos, a música como significante de emoção, é um

aspecto encontrado em quase todos os livros que tratam do papel desempenhado pela

música no cinema. Gorbman (1987) define como a capacidade de a música levar uma

dimensão irracional, emotiva ou intuitiva a elementos objetivos do filme (imagem,

diálogos e os outros efeitos sonoros). Em The Hours, a música até agrega valor emotivo

às imagens, mas não no sentido de representar sentimentos chaves, como é comum na

decupagem clássica (medo, romance, suspense, tristeza etc). Voltando à cena do bolo,

por exemplo, não conseguimos distinguir uma emoção humana que defina a ação,

principalmente pela aparente contraposição entre a situação mostrada e a subjetividade

de Laura.

Essa dissonância entre o que é visto e o que é mostrado tem como exemplo

perfeito a cena em mãe e filho cantam os parabéns para Dan, o pai. O filme mostra uma

sala de jantar de uma família perfeitamente feliz. Essa sequência tem uma

particularidade de enquadramento em relação ao restante do filme. Se em geral temos a

predominância do plano e do contra plano, com a câmera raramente mostrando dois

personagens no mesmo quadro, na sequência do aniversário temos um plano geral tanto

no início quanto no fim da cena, quando a câmera vai se afastando lentamente e nos

deixa por alguns segundos observando o momento perfeito da família Brown, como se

aquela cena fosse uma pintura.

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Metamorphosis Two acompanha o quadro perfeito, a mesma composição da

sequência imediatamente anterior, em que temos o suicídio de Richard. Se o

acompanhamento musical parece se encaixar perfeitamente na sequência do suicídio,

começando lenta e tendo o seu clímax no momento em que o poeta cai da janela, na

cena do aniversário ela parece totalmente fora de lugar. Indiferente a todos os

personagens da situação, menos a Laura, que sabe exatamente que aquilo não passa de

uma representação, em que ela está posando de esposa e temendo estar eternamente

presa ao quadro.

A falta de aderência que a música pode demonstrar em relação à situação

mostrada é definida por Chion (1994) como efeito anempático. Essa indiferença é

frequentemente marcada por uma música com forte regularidade rítmica, o caso da

música tocada na cena, com sua repetição constante de notas por meio da técnica da

adição/subtração. Chion acrescenta ainda que essa aparente (aparente!) ingenuidade da

música em relação ao que se passa nas imagens não significa que haja uma suspensão

da emoção da cena, pelo contrário, ela “reforça a emoção individual dos personagens”

(CHION,1994, p.15). O efeito anempático descrito por Chion nos remete ao conceito de

música meta-diegética proposto por Gorbman (1987). Para tratar da interação entre

música e narrativa, a autora deixa de lado a nomenclatura clássica que opõe música

diegética e música não diegética e acrescenta a ideia de uma música ligada à

subjetividade de um único personagem da cena, uma música que traduz o pensamento,

como se saísse de dentro da cabeça dos personagens. Essa música não precisa estar

necessariamente em estado de paralelismo com o clima da imagem, remetendo ao efeito

anempático de Chion. Na nomenclatura de David Bordwell e Kristin Thompson (1979),

essa música meta-diegética é equivalente ao “som interno”, referente aos sons

percebidos unicamente pelo personagem sobre o qual está centrada a cena.

A música tocada na sequência do aniversário de Dan, portanto, assim como na

cena de preparação do bolo, parece ter efeito de contraponto/não paralelismo em relação

a encenação apenas para os outros personagens, mas se apresenta em perfeita harmonia

com o estado de espírito de Laura Brown, que, assim como Richard na cena anterior,

está em busca de um meio de escapar da sua vida sufocante.

A não conformidade da música com o caráter geral da situação mostrada, mas

sua ligação profunda com a emoção de um único personagem é uma das características

fundamentais da inserção da música em The Hours. Defendemos, portanto, que a trilha

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musical só diz respeito às personagens principais. Isso pode ser notado não só pelo fato

de a música aderir apenas ao estado psicológico de Laura, Woolf e Clarissa, mas

também pela análise dos momentos em que essas músicas entram e saem de cena. É

como se os outros personagens não tivessem vida mental, a comunicação se dá apenas

entre as três mulheres. O que fica claro, portanto, nessas entradas e saídas do

acompanhamento musical, é que quando as protagonistas estão em cena a música é

intrusiva, visível e audível, mas quando as três mulheres entram em contato com o

mundo dos coadjuvantes, a trilha vai cessando aos poucos até parar. Dessa forma,

defendemos que a trilha musical está relacionada apenas às subjetividades de Clarissa,

Laura e Woolf.

No livro de Cunningham, o único momento em que a história se afasta do ponto

de vista das três personagens acontece na visita de Louis e no jantar de Sally. No filme,

a sequência em que Louis aparece é caracterizada pela ausência da música de Glass. São

nove minutos sem intervenção musical. No início da sequência temos uma música

diegética, Four Last Songs,de Richard Strauss. Uma música romântica que destoa de

todo o resto das músicas que tínhamos ouvindo até ali. Logo que Louis chega ao

apartamento, Clarissa se apressa em desligar o som e a partir daí o silêncio é opressivo.

Opressivo porque nessa sequência aparecem elementos que normalmente

disparam a música no filme. Louis, por exemplo, traz a literatura de Richard para o

centro do debate, fazendo Clarissa recordar do passado, do verão em Wellfleet. Nessa

conversa, Clarissa se mostra cada vez mais nervosa, até que desaba em choro. Uma cena

como essa, com forte carga emocional, sem acompanhamento musical, faz com que o

espectador possa dar a sua própria interpretação, uma vez que não existe conteúdo

emocional explicitado pela música. É o que Chion (1994) chama de silêncio estrutural.

Segundo o autor, quando um som previamente apresentado em um filme se faz mais

tarde ausente em pontos estruturalmente correspondentes, o filme nos encoraja a esperar

a música como na seção anterior e quando não há, tomamos consciência de sua

ausência.

Por fim, destoando do padrão de inserção da música de Glass no filme, temos a

composição final. A personagem Julia, filha de Clarissa, dá um abraço carinhoso em

Laura, que se mostra surpresa e aliviada. Como se o abraço da filha de Clarissa

representasse algum tipo de perdão e entendimento. O abraço marca o fim do seu ciclo

narrativo. Julia sai de cena e a música de Glass começa. Inicialmente bem baixa,

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aumentando de volume conforme a história se encaminha para um fim. Há um corte e

vemos Virginia Woolf na cama, olhando fixamente para o teto, como se estivesse

pensando. Ao mesmo tempo, a sua voz em off narra uma espécie de desfecho para a

carta que aparece na primeira sequência do filme. Em paralelo, Clarissa também

encerra a sua trajetória, apagando as luzes da casa, fechando as janelas e se preparando

para dormir. Há um corte para a próxima sequência sem que a música seja interrompida.

Somos levados novamente ao início do filme. Virginia está no rio enquanto escutamos a

sua voz recitando o que seria o final da sua carta de suicídio. A música de Glass, que

começou quando Laura foi deixada sozinha no quarto, continua com o surgimento dos

créditos finais.

No artigo Minima Romântica (2007), a pesquisadora Susan McClary nota que,

ao final do filme, a trilha de Glass torna-se estruturalmente mais próxima do

romantismo musical, divergindo da estrutura minimal que dominou a película até então.

McClary interpreta que esse momento representa o despertar de Clarissa para a vida e a

escolha de Virginia pela morte, o fechamento de duas narrativas com escolhas opostas.

Em a Audiovisão(1994), Chion prevê a utilização da música no fim de filmes como

resumo da história, no sentido de descrever o sentimento principal da narrativa.

Gorbman (1987) considera que o padrão de inserção musical em finais de filmes na

estética clássica é que elas recuperam a história e direcionam o seu encerramento. Nesse

sentido, essa é uma das poucas sequências em que a música segue um padrão clássico

de entrada em cena, dando à diegese o seu fechamento formal. A ideia de continuidade

e falta de encadeamento narrativo, características principais da música minimalista,

estão agora ausentes.

Considerações finais

Michael Cunningham parece ter um entendimento claro do funcionamento da

música no filme, ao afirmar que as pessoas ficaram chocadas com a trilha justamente

por ela não ser uma música de fundo, que emoldura sentimentos. Para o autor (2003), a

música de Philip Glass “está para a história assim como a linguagem rebuscada está

para o livro”, sendo essa linguagem rebuscada a série de artifícios que permitem com

que o fluxo de consciência dos personagens venha à tona na literatura. Nesse sentido, a

conexão entre as subjetividades e pensamentos dos personagens, um dos principais

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intuitos do fluxo de consciência woolfiano, de fato ocorre, mas apenas entre as três

protagonistas: Clarissa, Laura e Virginia. Os personagens paralelos—Sally, Dan, Julia,

LouiseNelly, não têm vida mental na película.

A comunicação dos fluxos de consciência em Virginia Woolf, como defende

James Wood (2012), vai muito além da ligação entre as mentes da Sra.Dalloway e

Septimus, os protagonistas. É, ao contrário, uma exploração minuciosa das várias almas

que compunham a cidade de Londres e que despertavam a atenção dos personagens.

Contudo, ainda que se distancie do fluxo de consciência woolfiano, nos parece

equivocado afirmar que a tradução do fluxo de consciência não foi efetivada no filme de

Stephen Daldry. Apesar de o filme ser caracterizado por uma encenação que privilegia

gestos, diálogos e caracterização de atores, a música nos dá a ideia de tempo não

cronológico, do tempo do pensamento, mesmo que esses fluxos só possam chegar até os

limites permitidos por uma narrativa convencional.

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