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Se existe uma banda que tocaria até os instantes finais do fim do mundo, esta banda seria os Rolling Stones. E não é por nenhum atributo mágico ou simpatia pelo capiroto. É simplesmente pelo que criaram para a cultura terráquea - seja lá o que isso signifique - ao longo de mais de cinco décadas de existência. Um dos homens mais inteligentes do Brasil, o filósofo Mário Sérgio Cortella, cita sempre em suas palestras a música (I can´t Get No) Satisfaction como exemplo de uma insatisfação positiva, ligada a uma tendência a fazer sempre mais e melhor, a não estacionar e se deixar corroer pelo tédio. É ter o tempo ao seu lado e saber usá-lo. Mesmo se você não for um fã nático por literatura, certamente já ouviu falar de Machado de Assis. Mesmo se você não for um fissurado em artes plásticas já ouviu falar na Monalisa do Da Vinci. Mesmo se você for um marciano recém- chegado à Terra já ouviu falar da Capela Sistina, da Quarta Sinfonia de Mahler ou dos Rolling Stones. Ou seja, os caras estão tão presentes e são tão importantes na cultura planetária quanto as obras citadas. Não se trata mais de um bando de outsiders brincando de ser rebeldes. A profecia de Jagger, proferida em 1964, se realizou e foi além: são muito mais que a maior banda de rock de todos os tempos. O encontro dos dois meninos na Dartford Maypole County Primary School em Londres, ainda nos anos 50, mesmo que por obra do tal acaso, foi a raiz que fez crescer, de um lado, a figura do frontman, do bandleader. Mick Jagger no palco, à frente dos Stones, é, sem medo de errar, o que todo cantor de rock (ou de outros estilos) gostaria de ser. De outro lado, Keith Richard, sempre discreto e competente, é o guitar man por excelência, fazendo de sua guitarra uma espécie de terceiro membro superior. Da junção de seus dez dedos pegajosos e de sua inspiração surgiram os riffs e solos que estão inscritos de forma indelével na história da música – e do instrumento. Basta lembrar de Street Fighting Man, Simpathy for the Devil, Gimme Shelter e Satisfaction, só para ficar no óbvio. Mas reduzir o grupo a rebolados, gingados, gestos ambíguos é miopia, diria cegueira mesmo, de quem ainda não entendeu quem são os caras. São 39 discos oficiais de estúdios – 16 deles cotados de quatro e meia a cinco estrelas no Allmusic Guide. Mais várias coletâneas, discos ao vivo, discos pirateados, discos salteados, discos roubados etc e tal. São 170 composições creditadas a dupla Jagger/Richards, segundo o site songwriters hall of fame. Trabalho tão fecundo quanto o de Lennon e MCcartney, o dos irmãos Davies ou Roberto e Erasmo. Sim. Roberto e Erasmo, por que não? Me diga! Fecundo não só em quantidade como também em qualidade. Afinal, quantas músicas dos Stones não alcançaram o número 1 do hit parade do seu coração? Depois do começo de carreira tocando Chuck Berry (Come on), Beatles (I Wanna be Your Man), Buddy Holly (Not Fade Away), Howlin' Wolff (Little Red Rooster), logo decolaram com suas próprias composições. E nunca mais desceram. E do palco? Também não. Da primeira apresentação no Marquee Club em Londres em 1962 até o próximo sábado no Maracanã, são 50 anos de performance ao vivo. “O único modo honrado de deixar os Stones é morrer”, disse Keith Richards certa vez a revista inglesa Mojo. Lips Like Brown Sugar Pode-se considerar que os Stones tiveram uma certa evolução ou passagem por diversos estilos, como no blues de início de carreira, o psicodelismo de Their Satanic Majesties Request, o hard rock, a disco de Miss You no começo dos anos 80. Mas fez desses estilos um mix próprio, de cuja sonoridade se ouvem ecos décadas a frente. De Smiths a Echo and the Bunnymen. De Mott the Hopple a Queen. Além da já citada influência de Jagger sobre os novos pretendentes a rock'n'roll star. Até nosso muso Zé Ramalho da Paraíba quis sê-lo. O cinema usou mas nunca abusou das músicas do grupo. Taylor Hackford, Michelangelo Antonioni, Stanley Kubrick, Laurence Kasdan, Cameron Crowe, Terry Gillian, Hal Ashby, foram alguns grandes diretores que tiveram músicas dos Rolling Stones em seus melhores filmes. Mas um em

A Trilha Sonora Do Fim Do Mundo

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Se existe uma banda que tocaria até os instantes finais do fim do mundo, esta banda seria os RollingStones. E não é por nenhum atributo mágico ou simpatia pelo capiroto. É simplesmente pelo quecriaram para a cultura terráquea - seja lá o que isso signifique - ao longo de mais de cinco décadasde existência. Um dos homens mais inteligentes do Brasil, o filósofo Mário Sérgio Cortella, citasempre em suas palestras a música (I can´t Get No) Satisfaction como exemplo de uma insatisfaçãopositiva, ligada a uma tendência a fazer sempre mais e melhor, a não estacionar e se deixar corroerpelo tédio. É ter o tempo ao seu lado e saber usá-lo. Mesmo se você não for um fã nático porliteratura, certamente já ouviu falar de Machado de Assis. Mesmo se você não for um fissurado emartes plásticas já ouviu falar na Monalisa do Da Vinci. Mesmo se você for um marciano recém-chegado à Terra já ouviu falar da Capela Sistina, da Quarta Sinfonia de Mahler ou dos RollingStones. Ou seja, os caras estão tão presentes e são tão importantes na cultura planetária quanto asobras citadas. Não se trata mais de um bando de outsiders brincando de ser rebeldes. A profecia deJagger, proferida em 1964, se realizou e foi além: são muito mais que a maior banda de rock detodos os tempos.

O encontro dos dois meninos na Dartford Maypole County Primary School em Londres, ainda nosanos 50, mesmo que por obra do tal acaso, foi a raiz que fez crescer, de um lado, a figura dofrontman, do bandleader. Mick Jagger no palco, à frente dos Stones, é, sem medo de errar, o quetodo cantor de rock (ou de outros estilos) gostaria de ser. De outro lado, Keith Richard, semprediscreto e competente, é o guitar man por excelência, fazendo de sua guitarra uma espécie deterceiro membro superior. Da junção de seus dez dedos pegajosos e de sua inspiração surgiram osriffs e solos que estão inscritos de forma indelével na história da música – e do instrumento. Bastalembrar de Street Fighting Man, Simpathy for the Devil, Gimme Shelter e Satisfaction, só para ficarno óbvio. Mas reduzir o grupo a rebolados, gingados, gestos ambíguos é miopia, diria cegueiramesmo, de quem ainda não entendeu quem são os caras.

São 39 discos oficiais de estúdios – 16 deles cotados de quatro e meia a cinco estrelas no AllmusicGuide. Mais várias coletâneas, discos ao vivo, discos pirateados, discos salteados, discos roubadosetc e tal. São 170 composições creditadas a dupla Jagger/Richards, segundo o site songwriters hallof fame. Trabalho tão fecundo quanto o de Lennon e MCcartney, o dos irmãos Davies ou Roberto eErasmo. Sim. Roberto e Erasmo, por que não? Me diga! Fecundo não só em quantidade comotambém em qualidade. Afinal, quantas músicas dos Stones não alcançaram o número 1 do hitparade do seu coração? Depois do começo de carreira tocando Chuck Berry (Come on), Beatles (IWanna be Your Man), Buddy Holly (Not Fade Away), Howlin' Wolff (Little Red Rooster), logodecolaram com suas próprias composições. E nunca mais desceram. E do palco? Também não. Daprimeira apresentação no Marquee Club em Londres em 1962 até o próximo sábado no Maracanã,são 50 anos de performance ao vivo. “O único modo honrado de deixar os Stones é morrer”, disseKeith Richards certa vez a revista inglesa Mojo.

Lips Like Brown Sugar

Pode-se considerar que os Stones tiveram uma certa evolução ou passagem por diversos estilos,como no blues de início de carreira, o psicodelismo de Their Satanic Majesties Request, o hardrock, a disco de Miss You no começo dos anos 80. Mas fez desses estilos um mix próprio, de cujasonoridade se ouvem ecos décadas a frente. De Smiths a Echo and the Bunnymen. De Mott theHopple a Queen. Além da já citada influência de Jagger sobre os novos pretendentes a rock'n'rollstar. Até nosso muso Zé Ramalho da Paraíba quis sê-lo.

O cinema usou mas nunca abusou das músicas do grupo. Taylor Hackford, Michelangelo Antonioni,Stanley Kubrick, Laurence Kasdan, Cameron Crowe, Terry Gillian, Hal Ashby, foram algunsgrandes diretores que tiveram músicas dos Rolling Stones em seus melhores filmes. Mas um em

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especial demostrou e ainda vem demostrando devoção e amizade à banda. Não só em um, masvários dos filmes de Martin Socorsese tem Jagger e cia na trilha. Scorsese chegou a filmar até odocumentário Shine a Ligth, em 2008, sobre a turnê A Bigger Bang Tour. Mas 40 anos antes, umentão enfent terrible na época, um francês de quem muito se ouviria falar, tanto quanto Scorsese, fezum filme também memorável sobre a banda. Jean Luc Godard. O filme, one Plus One ou Simpathyfor the Devil. O inquieto cineasta europeu utiliza o grupo e o lançamento da clássica canção pararealizar uma espécie de cine-reportagem. Em pauta vários temas presentes no emblemático ano:liberação feminina, drogas, capitalismo, consumismo, política, publicidade, lutas raciais e Stones,claro. Aliás, eles têm também o mérito de terem vivido e participado, de um jeito ou de outro, demomentos especiais na história mundial na última metade do século passado: Contracultura, Guerrado Vietnã, crise econômica dos anos 70, neoliberalismo em sua terra natal, queda do muro, BarackObama.

Ou seja, sábado dia 20 de fevereiro, às 21h30, o palco do Maracanã vai receber não a maior bandade rock do mundo, não a banda mais velha em atividade, não a ginga de Jagger, não os lábios deborracha. Vai receber um patrimônio cultural de nossa época, em plena atividade. Goste você demúsica ou não.