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Capítulo 1 - Piloto - Caleb O momento era simbólico para Caleb. Por muito tempo, ele viu aquele simples gesto que estava prestes a fazer como um ritual religioso tão sublime, místico e aguardado que poderia ser facilmente comparado ao sacrifício de um ser humano a alguma divindade. Esperava que aquele feito pudesse desencadear as forças mais ocultas do universo e reestruturar até mesmo a complexa cadeia de relações entre tempo e espaço que formava a própria realidade. Porém, ao fim do acontecimento de poucos segundos, absolutamente nada mudou. As imagens não saíram de foco e depois voltaram, a terra não tremeu, um furacão não se formou e tampouco um trovão sacudiu o céu, o que logicamente implicava na ausência de qualquer relâmpago sobrenatural. Ele continuava na cozinha de sua casa, com sua mãe do lado o observando com um sorriso e os contornos cinzentos de sua realidade flutuando monotonamente no local, como um filme antigo, mudo e em escalas de sépia cinzenta. Caleb achava que, se fechasse os olhos e se concentrasse, poderia sentir aquela sinfonia que julgava ser tocada enquanto ele vivia. Uma sinfonia feita de notas baixas e graves, sempre tocadas num volume baixo e da forma mais suave possível, se utilizando, no máximo, de cinco conjuntos básicos de notas. Não era uma melodia dançante, empolgante ou daquelas que arrepiavam a nuca e percorriam a espinha até o cóccix. Não era, porém, o tipo de sinfonia que derramaria lágrimas de tristeza ou mergulharia alguém na depressão. Pelo menos não mais. Há muito aquela canção perdera a capacidade de provocar alguma emoção que não fosse pena pela mediocridade. Caleb comprimiu os lábios ao se sentir desconfortavelmente representado pela vela que acabara de soprar. A vela do bolo de sua festa surpresa treze anos. De uma festa surpresa da qual apenas ele e sua mãe participavam. O garoto fitou a fumaça que subia da vela por um instante antes de se virar para sua mãe e deixar um sorriso brotar em seu próprio rosto. Marilen era a única que poderia arrancar aquele gesto de Caleb da forma mais sensível, com seu rosto arredondado, olhos azuis bem claros,

A Última Peça

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Capítulo 1- Piloto -

Caleb

O momento era simbólico para Caleb. Por muito tempo, ele viu aquele simples gesto que estava prestes a fazer como um ritual religioso tão sublime, místico e aguardado que poderia ser facilmente comparado ao sacrifício de um ser humano a alguma divindade. Esperava que aquele feito pudesse desencadear as forças mais ocultas do universo e reestruturar até mesmo a complexa cadeia de relações entre tempo e espaço que formava a própria realidade.

Porém, ao fim do acontecimento de poucos segundos, absolutamente nada mudou. As imagens não saíram de foco e depois voltaram, a terra não tremeu, um furacão não se formou e tampouco um trovão sacudiu o céu, o que logicamente implicava na ausência de qualquer relâmpago sobrenatural. Ele continuava na cozinha de sua casa, com sua mãe do lado o observando com um sorriso e os contornos cinzentos de sua realidade flutuando monotonamente no local, como um filme antigo, mudo e em escalas de sépia cinzenta. Caleb achava que, se fechasse os olhos e se concentrasse, poderia sentir aquela sinfonia que julgava ser tocada enquanto ele vivia. Uma sinfonia feita de notas baixas e graves, sempre tocadas num volume baixo e da forma mais suave possível, se utilizando, no máximo, de cinco conjuntos básicos de notas. Não era uma melodia dançante, empolgante ou daquelas que arrepiavam a nuca e percorriam a espinha até o cóccix. Não era, porém, o tipo de sinfonia que derramaria lágrimas de tristeza ou mergulharia alguém na depressão. Pelo menos não mais. Há muito aquela canção perdera a capacidade de provocar alguma emoção que não fosse pena pela mediocridade.

Caleb comprimiu os lábios ao se sentir desconfortavelmente representado pela vela que acabara de soprar. A vela do bolo de sua festa surpresa treze anos. De uma festa surpresa da qual apenas ele e sua mãe participavam.

O garoto fitou a fumaça que subia da vela por um instante antes de se virar para sua mãe e deixar um sorriso brotar em seu próprio rosto. Marilen era a única que poderia arrancar aquele gesto de Caleb da forma mais sensível, com seu rosto arredondado, olhos azuis bem claros, cabelos negros e um sorriso largo, delicado e tão honesto que sempre derretia toda a camada de gelo que Caleb criava ao seu redor, às vezes, de forma dramática.

Porém, mesmo sorrindo, cortou o bolo ciente da fumaça que subia do pavio negro da vela.Era um gás cinza, ralo e de formato uniforme. Levitava suavemente pelo ar com uma leve inclinação e

formando uma linha de contornos tão paralelos que, se fosse mais nítida, a fumaça pareceria um barbante se erguendo sozinho. No final, aquela uniformidade e aquele cinza claro simplesmente se dissipavam no ar. E isso era tudo. Aquele era todo o resquício de um momento pelo qual Caleb havia aguardado tanto.

Quando o garoto ofereceu o primeiro pedaço de bolo à sua mãe, pensou no pedido que fizera antes de apagar aquela chama dançante que, pela proximidade com seu rosto, inundava sua pele com uma agradável calor. No momento, sentiu o simbolismo da chama da mesma forma com que sentiu o simbolismo da fumaça. O destaque que a luz dela causava no aposento, em especial contra a superfície de granulado negro do bolo, era a representação perfeita de sua última esperança. Seu pedido era ainda mais brilhante que o fogo. Uma fogueira talvez não o representasse bem, a não ser que fosse ritualística; nesse caso, seria a representação perfeita. Mas Caleb aguardara tanto aquele momento de transição simbólica para seus treze anos que não se importou. Soprou a chama, animado,e viu ela sendo substituída rapidamente pela fumaça. A vela sequer lutara para sobreviver ante ao sopro do adolescente ou deixara em seu pavio aquele brilho

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abrasivo que poderia reviver a chama. Um único sopro cuidara de apagar o fogo. Caleb se decepcionou com a falta de dramaticidade do momento.

Agora, porém, tudo que restava era o fiapo de fumaça e o resto de uma festa para duas pessoas.Marilen pegou o prato com o primeiro pedaço sorrindo e deu um beijo em seu filho.Caleb mal notou. Estava olhando a fumaça desaparecer completamente do pavio.

Marilen

– Aí o cara na plateia não parou de falar por um segundo – contou Caleb – até que o loiro fortão na fileira da frente levantou e disse que se o cara contasse mais uma coisa do filme, ele ia se certificar de que não iria mais abrir a boca por um bom tempo.

Marilen fez uma cara horrorizada, enquanto Caleb dava uma discreta risada.– O cara não soltou mais nenhum “piu” durante o filme. Mas eu bem que ouvi ele chamando o loiro de

bombado nervosinho enquanto a gente saia da sala.– Caleb, isso foi sério – comentou a mulher, séria. – Não sei porque você está rindo. Estou cogitando

seriamente não te deixar mais ir nesses lugares sem mim.Imediatamente, o filho parou de rir e olhou para a sua mãe com indignação, tal como ela achava que

faria.– Mas mãe, isso nunca aconteceu antes quando eu fui no cinema! – Justificou ele, enquanto finalmente

Marilen sentia vontade de rir da defesa dele. – Foi a primeira vez, e nem chegou a dar uma briga, mesmo. E se desse, eu sairia na hora; a senhora sabe muito bem que eu não curto violência.

Ao final da frase, a voz do adolescente falhou e Marilen, notando o porquê, se apressou em dizer para animá-lo:

– Eu estou brincando com você, meu anjo. Eu sei que você não ia se envolver nessas coisas e que toma cuidado quando sai sozinho. Só queria ver sua reação.

– Ufa! – Suspirou Caleb, com a mão no peito. Logo depois, deu um sorriso visivelmente forçado a ser doce e inclinou a cabeça, fazendo charme: – Então a senhora então podia deixar eu ver “Ossos na Cabana” final de semana que vem, né?

Marilen sorriu de volta e disse, deixando claro que não estava brava, mas que não iria mudar de opinião:

– Não! Só deixei você ir hoje porque era seu aniversário e porque eu queria te distrair enquanto fazia o bolo surpresa da sua festa.

Caleb deu de ombros com uma cara de “não custava nada pedir” e voltou comer seu bolo. Enquanto ele fazia isso, Marilen pensou no quão boba fora em sua atitude de fazer uma festa surpresa. Somente quando havia colocado o bolo no forno se dera conta de que a festa acabaria sendo passada apenas com os dois. E, o que era pior, ambos o fariam sabendo que não havia jeito do evento ser de outra maneira. A mulher pensou, por um momento, até em chamar algumas de suas colegas de trabalho da loja de móveis local, mas lembrou-se que todas estavam a semana inteira fazendo planos para ir ao festival de rock na cidade ao lado, Três Palmeiras. Como Árcado era um município pequeno e sem muitas opções de lazer, seus habitantes constantemente usufruíam dos serviços de lazer dos municípios da região. Assim, quando Caleb chegara e encontrara o bolo na mesa e o cartaz em cartolina de feliz aniversário preso no teto, Marilen não soube se sua cara de surpresa fora pela festa em si ou pela audácia que a originara. A mulher agradecia a Deus que seu filho era discreto o bastante para sorrir e fingir que a festa realmente o estava divertindo.

Ou, pelo menos, ele fingira bem até apagar a vela do bolo. Marilen testemunhou a animação se esvair de seu rosto como ar escapa de uma bola furada enquanto Caleb soprava a vela azul que ela colocara em cima do confeitado. Depois disso, o rapaz comeu seu pedaço de bolo de forma muito silenciosa, forçando Marilen a puxar o assunto de como fora seu dia no cinema, antes que o clima ficasse pesado demais.

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– Eu encontrei três pessoas da minha sala no cinema – comentou ele, de repente, despertando Marilen de seus devaneios sobre o erro da festa. Quando olhou para seu filho, viu que ele colocava o prato de bolo vazio em cima da mesa e olhava para o joelho de Marilen como se os olhos dela ficassem ali. – Eu sei que não deveria falar de coisas tristes, principalmente hoje, mas queria desabafar com alguém e bem... – Ergueu os braços com um sorriso meio irônico no rosto – Não tem lá muita gente aqui para eu conversar.

Marilen deixou seu prato de bolo em cima da mesa também, não sabendo se ria ou chorava depois do comentário irônico de Caleb. Por via das dúvidas, torceu o lábio para o lado num gesto meio dúbio.

– Eles não te deram feliz aniversário, certo? – Tentou adivinhar a mulher, fazendo uma cara mais lamentosa.

– Certo – respondeu Caleb, com o rosto sério, mas os olhos castanhos meio instáveis. Marilen notou que o brilho da lâmpada fluorescente da cozinha brincava no reflexo ocular de seu filho, como se eles estivessem mais úmidos que o normal. Atestar isso deu a ela uma pontada de dor no coração e ela segurou o impulso de abraçá-lo. – Mas eu não estou triste com isso. Eu não ligaria se algumas pessoas esquecessem meu aniversário. Isso deve ser muito comum. Mas mãe! – E nesse instante o garoto a fitou diretamente. – Eu também queria que você não fosse a única pessoa a me dar parabéns. Ou a única com quem eu converso o dia inteiro.

O garoto fez uma pausa e Marilen sentiu seu coração palpitar mais rápido. Prometera a si mesma que diria tudo para Caleb assim que ele completasse 13 anos, mas chegara o momento e ela ainda se sentia frustrantemente despreparada. Construíra uma mentira tão confortável em sua vida com seu filho que, no momento que planejara desconstruí-la, não encontrava coragem para fazê-lo. Agora ali estava seu filho, jogando para ela tudo aquilo que suas falhas no passado haviam causado.

– Sabe, eu andei pensando – voltou a dizer Caleb – e eu queria te falar antes de voltar a fazer isso. Enquanto eu estava apagando a vela, pensei em algo que a senhora pode não gostar muito. Faz tempo que eu não faço isso mais, porém realmente acho que está na hora de eu voltar a tentar fazer amizades com as pessoas. Sabe, me aproximando delas pelo gosto cultural, que nem eu fazia antes.

Marilen fitou seu filho, mais surpresa do que ficara na cena de agressão verbal do cinema. E isso não era a toa. Já fazia dois anos que Caleb não tentava fazer amizades e entrar nos grupos sociais de sua escola, depois que ele havia sido vítima de um terrível incidente, quando tinha pouco mais de dez anos. O acontecimento alterara a mente de uma criança que, desde os sete anos, tinha o costume de mudar penteados, roupas, gostos culturais e modos de falar apenas para poder impressionar os colegas de escola e conseguir fazer amizade com eles. Marilen até perdera as contas de quanto dinheiro gastara tentando auxiliar a mudança de estilo de seu filho de uma tribo cultural para outra. Dentro de si, havia uma recusa gigantesca em permitir que seu filho se rebaixasse ao nível de crianças que não queriam fazer amizade com ele. Porém, Marilen sabia que as coisas não eram do jeito que aparentavam ser. E, o que era pior, ela não podia simplesmente explicar que sabia os motivos que causavam aquilo, ou o que sabia. Assim, ela financiou as mudanças culturais de seu filho de bom grado, no fundo como um pedido mudo de desculpa pelas mãos atadas e sua própria culpa ao ajudar a atá-las.

Após seus dez anos, porém, Caleb parara subitamente suas tentativas, e Marilen testemunhou um decaimento gigantesco no ânimo do filho. Ele se tornara mais taciturno, era flagrado chorando mais vezes e nunca tinha algum assunto de escola para falar com a mãe. A mulher percebera que Caleb estava perdendo um pouco de sua visível sensibilidade e interesse em saber a história de outras pessoas. Antes, ele era curioso e interessado em histórias de vida delas, mas há muito essa qualidade se transformara, no máximo, num daqueles falsos interesses que as pessoas demonstram pelas histórias para se mostrarem educadas e comunicativas. E, sem dúvidas, Caleb jamais passara tanto tempo enfiado nos livros. Não que Marilen achasse isso ruim de alguma forma, mas também queria que o filho tivesse interesse por esportes. Se seus planos para o futuro dele dessem certo, isso poderia fazer toda a diferença.

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– Eu te apoio – disse Marilen, séria. Dentro, porém, sentiu vontade de sorrir e abraçar o filho para comfortá-lo, como quase sempre ficava ao estar perto dele. – Se é o que você realmente quer, eu te dou o apoio que precisar.

Caleb ergueu as sobrancelhas, arregalou os olhos e abriu um grande sorriso. Sua mãe não podia julgá-lo por tamanha demonstração de surpresa. Há dois anos, após o incidente que transformara Caleb, ela ficara possessa pela mais profunda raiva. Jurou perseguir os responsáveis por todos os lugares e acabar com eles de qualquer maneira que conseguisse. Durante seu acesso de fúria, acabara dizendo que a culpa fora dela, por deixar Caleb se rebaixar ao nível daqueles “humanos mesquinhos”. Apenas ao final da frase a mulher se dera conta do grande erro que cometera e, quando tentou corrigir, explicando ao filho que apenas queria dizer que seus coleguinhas foram mal agradecidos, ela ouviu a seguinte resposta:

– Você está certa, mãe. Eles não merecem os esforços que eu fiz. Eu nunca mais vou tentar agradar eles, pode ficar tranquila.

E Caleb cumpriu sua promessa à risca, porém Marilen jamais soube se ele realmente entendera que ela não o estava acusando pelo que acontecera. Aos poucos, porém, quando seu filho começou a se tornar mais e mais melancólico, ela rezou para que ele decidisse voltar ao antigo hábito de tentar fazer amizades, ou pelo menos sobrevivesse com ânimo o bastante e por tempo suficiente para o momento em que pudesse compreender toda a verdade que Marilen tinha para lhe contar.

– Você disse que tomou essa decisão enquanto soprava a vela – comentou Marilen, querendo fugir da cara de surpresa do filho. – O que aconteceu exatamente?

Caleb virou o pescoço e fitou a vela em cima do bolo.– Nada exatamente – respondeu. – Eu apenas... pensei, sabe?E, de repente, se levantou da cadeira e tirou a vela do bolo. Marilen o fitou enquanto ele ia até o

armário da cozinha e, de uma das portas mais altas, retirava o pires de uma xícara. Caleb então levou a vela para a pia e sua mãe levantou uma sobrancelha quando ele acendeu uma das bocas do fogão. O garoto aproximou a vela do feixe de fogo azul e uniforme e seu pavio enegrecido acendeu-se novamente numa pequena chama laranjada e brilhante. Marilen notou que um sorriso se formara no rosto de seu filho nesse momento, com o reflexo da luz da vela estampado em seus olhos animados. Caleb então virou a vela azul na horizontal e, após pingar um pouco de cera no pires, ficou-a na superfície do minúsculo prato. Com cuidado, repousou o objeto em cima da pia e se afastou, fitando-o por um momento antes de se virar para Marilen e dizer:

– Já que essa é uma festa surpresa de aniversário diferente, achei melhor tomar uma atitude diferente.A mulher deveria estar com uma cara muito desentendida no rosto, pois Caleb, quando a viu, deu

risada e voltou a se sentar perto da mãe, segurando sua mão em cima da mesa. – Geralmente, as pessoas costumam apagar uma vela e fazer um pedido – explicou o garoto, brincando

com os dedos de sua mãe e sorrindo. – Eu decidi fazer diferente: em todo aniversário, vou acender uma vela e fazer um pedido. Quem sabe assim não tem mais efeito.

Marilen fitou o filho, maravilhada pela criatividade, mas preocupada com o que a motivara.– Tá tudo bem mesmo, Caleb? – Perguntou.Por um instante, o garoto abriu a boca e Marilen pensou que ele fosse dizer alguma coisa. Porém, ele

logo a fechou e, depois de um breve segundo de pausa, respondeu, com a face meio séria:– É, acho que estou. – De repente, um sorriso se abriu em seu rosto e ele disse, virando-se para

Marilen: – Digo, isso vai depender do que eu ganhei de presente da senhora.A mulher riu.– Que interesseiro você, hein? Pois bem, seu presente está em cima da sua cama.Na verdade, a mãe do garoto já sabia que ele havia descoberto seu presente. Marilen escondera o livro

que comprara para o filho debaixo de uma pilha de roupas de cama, dentro do seu guarda-roupa. O encadernado fora muito bem embrulhado e possuía um laço impecável ao redor da embalagem, feito pela funcionária da livraria. Porém, mais cedo, quando Marilen fora pegar o presente para deixá-lo na cama do

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filho, a embalagem parecia mais amassada e o nó do laço estava mais frouxo, mal feito e torto que antes. A mulher não precisava de muitas dicas para saber que seu filho de alguma forma encontrara o presente antes da hora. Além disso, não era do feitio de Caleb perguntar se havia presente em seu aniversário.

O garoto sorriu, sem surpresa aparente na informação de que ganhara um presente e levantou-se da cadeira lentamente. Antes que ele se virasse para abrir o embrulho, porém, Marilen seguiu seu gesto e o abraçou apertado. O gesto foi retribuído por Caleb e Marilen sentiu o toque físico de seu filho avivar todos os compromissos que tinha a cumprir para com ele. Quando se soltaram, Marilen fitou Caleb carinhosamente, passando a mão em seu rosto oficialmente adolescente, mas infantil demais para ser considerado dessa forma.

– Vai tudo mudar a partir de agora, Caleb – disse Marilen, sorrindo. E, naquele momento, ela se deu conta de que começara a acontecer. Uma vez que seu filho houvesse completado treze anos, cedo ou tarde chegaria o derradeiro momento em que ela teria de contar a ele a verdade que o perseguia e que fazia seus amigos se afastarem tanto. Assim, suas palavras não soaram como uma promessa, tal como deveriam, mas sim como uma afirmação.

Caleb não tinha meios de saber o quão certo era aquilo que sua mãe dizia, mas ele aparentemente sentiu o tom convincente da frase, pois estremeceu sob a mão de Marilen.

– Tomara – respondeu, e seus olhos repousaram sobre a pia, onde a vela de aniversário lançava sua pequena gota de fogo para cima. O garoto então sorriu, de modo bem particular e, após abraçar sua mãe, deu meia volta para a porta da cozinha e foi para o quarto.

Marilen viu-o saindo e, enquanto escutava o som de um embrulho sendo rasgado no aposento particular dele, levou os pratos até a pia e guardou o bolo na geladeira. Havia acabado de apagar a luz da cozinha quando interrompeu-se e fitou a vela atentamente.

Em seu canto na pia, o objeto derramava uma luz alaranjada pela superfície de mármore, tão pouco nítida que sua luminosidade se espalhava como se fosse um gás condensado. Marilen então pensou nos motivos que poderiam ter levado seu filho a acender a vela justo naquele aniversário, mais de dois anos depois do acontecimento mais aterrorizante de sua vida.

Por um momento, Marilen pensou em apagar a vela para evitar que, de alguma forma, ela pudesse iniciar um foco de incêndio. Estava a dois passos dela, porém, quando parou e virou-se. Se apagasse a pequena chama, ficaria no escuro, pois se esquecera de reacender a lâmpada da cozinha. Por um momento, então, a mulher fitou novamente a vela e deu as costas para ela, botando na cabeça que mal nenhum poderia vir dela.

Assim que saiu da cozinha, Marilen pensou novamente em suas palavras.Vai tudo mudar a partir de agora.Lembrou-se do que a trouxera até ali e no que seus planos diziam que deveria acontecer a partir

daquele momento. De repente, a vela de Caleb pareceu ter sido uma ótima ideia. Talvez um pouco de esperança não

matasse ninguém.Ainda que arriscasse botar fogo na casa.

Aryana

O calor das chamas lambia o rosto de Aryana quando ela despertou de seu sono sem sonhos.Estava deitada de bruços em uma grama áspera e comichosa. Envolta de seu corpo, um círculo de fogo

crepitava, brilhante, com o diâmetro perigosamente maior que sua altura. Bastava um único movimento sonolento para o lado para que a grossa capa encapuzada que usava se acendesse como uma tocha.

Seus olhos se abriram, lutando contra a poderosa sensação de vertigem que lhe tomava o cérebro. Na primeira tentativa de se erguer, seu corpo desabou no chão e seu estômago pareceu querer sair pela boca. Após respirar profundamente, Aryana içou-se para cima mais uma vez, quase esbarrando no fogo durante o

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movimento. A moça pulou o círculo rapidamente para que a barra de sua capa marrom não se incendiasse e, no ato, sua tontura, unida a um terreno levemente inclinado, quase a levaram para o chão novamente. Recompondo-se, a mulher ergueu a cabeça para olhar ao redor.

Estava em uma colina alta e de base muito extensa. Uma vez superada a vertigem, Aryana conseguia se por em pé facilmente na leve inclinação do terreno. A alguns metros de distância, havia um limite para uma cultura de plantas tão altas quanto um homem. Uma lembrança distante informou à moça que aqueles estranhos vegetais, com espigas pendendo de seus galhos, eram chamados de milho naquelas terras.

Um céu noturno pontilhado de estrelas erguia-se acima de sua cabeça e uma lua minguante batalhava para lançar sua fraca luminosidade por entre as nuvens delgadas. Ao longe, atrás de outras colinas, Aryana pôde ver o fantasma das luzes de alguma cidade humana cobrindo a linha do horizonte como uma neblina luminosa e fazendo parecer que o sol não houvesse partido, mas sim que espreitasse por detrás das colinas, como se aguardasse a hora em que a lua dormiria e suas luzes poderiam se erguer, pujantes, sobre a terra.

De repente, um movimento atraiu o olhar de Aryana e ela viu os pés de milho à sua frente começarem a se mexer enquanto ouvia o som de passos dentro da plantação. Seus reflexos se ativaram instintivamente e ela mexeu dentro de sua capa até encontrar o cabo da adaga e sacá-la. No silêncio da noite, o som de seu aço raspando no couro da bainha foi quase um sussurro da própria tensão instalada no ambiente. A moça flexionou os joelhos e se preparou para a defesa, quando um homem emergiu por entre os vegetais.

Assim como Aryana, ele vestia uma capa de viagem marrom e grossa, porém, diferente desta, seu capuz estava abaixado. Assim que o rosto dele foi iluminado pelo luar, a mulher soltou o ar preso em seus pulmões, aliviada.

– Aí está você! – exclamou Mitchell. – Estava começando a pensar que você tinha sido tragada no caminho como nas primeiras experiências com esse rito. E o que pensava em fazer com essa adaga? – Indagou, ao ver a arma na mão da moça.

– Não senti sua aproximação – desculpou-se ela, guardando o objeto na pequena bainha presa ao seu cinto por dentro das vestes, no lado esquerdo de seu quadril. – Isso é muito estranho. Pensei que, depois que chegasse aqui, teria mais sensibilidade às perturbações.

Mitchell aproximou-se em curtas passadas e Aryana pôde vê-lo melhor. Apesar dos ombros largos e do tamanho avantajado, ele tinha rosto fino e um queixo redondo coberto pela rala barba que lhe poluía a face. Seu nariz era largo e reto, e cabelos castanhos e enrolados caiam sobre sua fronte até a altura das sobrancelhas. Ao se aproximar mais um pouco, a mulher conseguiu ver a luz do círculo de chamas refletir no grande poço de escuridão que eram seus olhos. Ela olhou para o fogo e perguntou:

– Você emergiu junto com Aldrich e Robert?– Não – respondeu o outro, desviando o olhar do círculo flamejante. – Todos emergiram em lugares

diferentes, se bem que você estava mais distante de nós. E quanto a não sentir minha presença, Robert teve de usar a mim e Aldrich como reservas. Estamos um pouco fracos.

Aryana franziu o cenho de indagação e exclamou:– Mas ele já fez isso antes! Inclusive tinha dito que seis reposições seriam mais que suficiente para a

viagem. O que saiu errado?Mitchell manteve um grave silêncio reflexivo por alguns segundos, como se ponderasse algum assunto

aleatório a sua companheira, antes de, finalmente, anunciar:– Vamos. Quando chegarmos lá, eles explicarão a você.E virou-se para a mesma direção de onde surgira, enquanto sacava sua espada que mal podia ser vista

na escuridão da noite. Sem alternativa, Aryana o seguiu, entrando na plantação. Os pés de milho haviam crescido bem próximos uns aos outros e seus caules eram firmes, o que tornava a caminhada entre eles uma atividade trabalhosa. Porém, uma vez lá dentro, não foi tão difícil, já que Mitchell abria o caminho por entre as plantas pela segunda vez com uma lâmina a altura do serviço. Os únicos inconvenientes eram as espigas que batiam no rosto da moça e os galhos secos que lhe espetavam. Permaneceu nessa situação por algumas dúzias de minutos quando enfim saíram da plantação e se depararam com uma cerca, constituída de estacas

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de madeira presas ao chão e ligadas umas às outras por fios metálicos que, em alguns pontos, se enrolavam em pontas afiadas e perigosas. Aryana aproximou-se com cuidado e agachou-se para poder observar melhor o trabalho.

– Engenhoso – comentou, pressionando levemente o dedo contra o bico pontiagudo. – Os humanos realmente sabem viver bem sem nossas habilidades. Você sabe o nome disso?

– Tanto aqui como em nossa terra, se chama cerca – resmungou Mitchell, erguendo uma sobrancelha.– Estou falando do fio de metal com os espinhos – retrucou ela, enviando ao parceiro o olhar mais

azedo que sabia.– Se me lembro bem, é chamado de arame farpado. Não me diga que vai querer fazer mais uma

coleção estranha? – Mitchell adotou um tom zombeteiro. – Pensei que os “garfiels” de prata fossem o suficiente.

Aryana revirou os olhos.– O nome correto é “garfos” – lembrou, zangada. – E só perguntei por curiosidade, para sua

informação. Além do mais, eu tenho apenas cinco garfos, não uma coleção, e eles são muito lindos. Voltando ao assunto, e então? – cobrou, levantando-se e apontando para a cerca de arame farpado. – Você já abriu caminho por aqui?

– Claro que não! – Respondeu o homem com a expressão séria novamente. – Existem quatro círculos de fogo crepitando em um raio de aproximados cento e cinquenta metros, sem contar o caminho que eu fui forçado a abrir dentro da plantação de milhos. Não precisamos chamar ainda mais atenção e deixar mais rastros de nossa passada. Principalmente nas atuais circunstâncias.

– Está falando daquilo que nos fez emergir em lugares diferentes? – arriscou Aryana.Mitchell pareceu avaliá-la por algum tempo antes de, enfim, responder:– Sim, Robert saberá explicar melhor que eu.– Fico aliviada, então.Ele fingiu uma cara ofendida que logo foi denunciada pelo sorriso.– Minhas explicações são tão ruins a ponto de você preferir as de Robert? – perguntou, em tom de

mágoa forçada.– Não – murmurou Aryana, segurando o riso. – É porque não vou demorar tanto para ter a resposta, já

que ele e Aldrich estão vindo para cá. Veja! – E levantou o braço, apontando para dois homens vindo, ao longe, em sua direção. Um deles parecia se apoiar nos ombros do outro, diminuindo o passo de ambos. Mesmo distante, a mulher conseguiu distinguir as capas de viagem marrons que os cobriam.

– O que esses dois tolos pensam que estão fazendo? – Indignou-se Mitchell, esquecendo totalmente sua parceira e pulando a cerca de arame farpado para ir ao encontro dos outros dois homens. Seu movimento ao fazê-lo foi tão rápido e ágil que a capa pareceu estar colada a seu corpo durante o salto.

– Mitchell, espere por mim! – chamou Aryana, em vão, pois seu companheiro já corria pelo grande pasto verde à sua frente. De repente, latidos irromperam pela noite, vindos do alto da colina onde estavam. Olhando para o lugar, a moça pôde ver, a uns cem metros, um grande estábulo antigo e, para seu terror, as luzes de dentro começaram a se acender. Ela praguejou baixinho e se dirigiu à estaca de madeira. Apoiando-se sobre o braço direito, pulou a cerca, mas, quando seus pés tocaram o chão e tentaram correr, algo a puxou pela veste. Assustada, Aryana constatou que um pedaço de seu manto se prendera numa farpa do arame. Respirando fundo, desprendeu o tecido e voltou a correr.

Mitchell corria a tal velocidade que já quase alcançara Robert e Aldrich e a mulher se surpreenderia se conseguisse alcançá-los tão rápido. Estava na metade do caminho e tinha a respiração ofegante quando ouviu os latidos se aproximando. Para seu pavor, cães corriam colina abaixo, vindos do estábulo em sua direção. Mesmo correndo mais depressa do que suas pernas suportavam, os animais estavam a poucos metros dela. Quando percebeu que não conseguiria correr rápido o suficiente, Aryana decidiu se preparar para uma eventual defesa. Sua mão agarrou o cabo da adaga e o puxou da pequena bainha de couro em seu

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cinto. Assim como quando notou a chegada de Mitchell momentos antes, ela flexionou os joelhos e se preparou para golpear os grandes cachorros que lhe arreganhavam os dentes, em ameaça...

Quando o ar tremulou como se tivesse vida própria envolta dos animais e, estes que até um momento atrás corriam cheios de energia para defender o território de seu dono, agora caíam como que atingidos por um relâmpago. Surpresa, Aryana olhou para o lado e viu ao longe Robert ou Aldrich, não podia determinar bem qual, com o braço esticado e uma estranha luz verde ácida irradiando de sua mão.

A mulher observou o corpo caído do cachorro mais próximo e notou que ele ainda respirava. “Desmaiado”, concluiu. Mais calma, retornou a adaga para a bainha de seu cinto e voltou a correr, apesar de um pouco mais lenta, ao encontro de seus companheiros. Quando se aproximaram, Aryana ouviu a voz grossa e rabugenta de Robert lhe dar suas características boas-vindas e provas de amor: reclamações.

– Vejam só! Eis a talentosa arqueira de nosso grupo! Uma pena que ela não saiba cumprir ordens e manter a discrição tão bem quanto atira.

Apesar do escárnio, havia uma nítida fraqueza em seu modo de falar. Logo, a mulher percebeu que era ele quem estava sendo carregado pelo homem que só podia ser Aldrich. Ambos tinham os capuzes levantados, lançando sombras sobre seus rostos.

– Afinal, o que está acontecendo aqui? – indagou ela, com pouca paciência para a questão. – Primeiro emergimos distantes uns dos outros e Mitchell me diz que você usou a ele e Aldrich como reservas. Agora, Robert, você está mais fraco do que jamais havia visto na minha vida como companheira de vocês. Exijo explicações.

– E você as terá, Aryana – ela ouviu a voz fraca e melodiosa de Aldrich escapar por seu capuz. O homem raramente falava, preferindo escutar e observar, por isso a moça não pode deixar de se surpreender com sua repentina manifestação. – Porém, antes disso...

– Deveria se calar um pouco e vir conosco até um lugar mais seguro – interrompeu Robert, a voz um pouco mais fraca a cada palavra dita. – Ambos sabemos que Aldrich não possui a mesma obstinação que você por falar, portanto eu mesmo lhe direi o que está acontecendo. Mas, caso seus olhos não estejam sendo tão bem usados quanto sua língua, estou extremamente fraco – e fez um gesto indicando o corpo inclinado – e a maldita malha que está por baixo da minha roupa não me deixa respirar direito. Além do mais, estamos parados como estúpidas presas no pasto e existem algumas dúzias de animais desacordados bem ali adiante. Assim que o dono perceber que seus cães não voltaram, virá atrás de nós e não temos condições de travar lutas no momento, mesmo que o adversário em questão fosse um mero humano.

– Diz “mero” porque nunca viu as armas que eles possuem. – argumentou Mitchell, erguendo os olhos para o estábulo no topo da colina, como se tentasse enxergar algo na região. – Mesmo uma das mais simples nos daria trabalho demais no momento. Mas, voltando ao foco, poderíamos nos esconder debaixo daquelas pequeiras.

Aryana olhou para onde ele apontava e constatou, mesmo sob a fraca luz do luar, que havia mesmo árvores ao longe, com grandes frutos redondos pendendo de seus galhos. A maioria delas tinha seus troncos curvados e levemente retorcidos, como se as frutas que carregassem as tivessem deixado corcundas. Entretanto, Aryana notou que havia algo de muito errado com aquelas pequeiras, como se...

– Não são pequeiras, certo Aldrich? – perguntou.– Não – respondeu o outro. – Apesar da breve semelhança, as pequeiras têm troncos mais retos e altos.

Além disso, o sumo dos peques é mais líquido, adocicado e age como um estimulante mais poderoso em nosso organismo. Os humanos chamam essas árvores a nossa frente de macieiras, e seus frutos de maçãs. Se olharmos mais de perto, veremos o quanto são diferentes umas das outras.

– O importante é que elas são altas e espessas o suficiente para nos escondermos por alguns minutos. – interviu Mitchell, dando um passo à frente e se encaminhando às macieiras. – Vão vir comigo ou vão ficar aí esperando para testar suas habilidades contra as armas humanas?

Aryana ergueu os ombros, tentando demonstrar indiferença.– Já que é a única maneira que eu tenho de conseguir alguma resposta, não faço objeções – replicou.

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O pomar de maçãs não ficava muito longe de onde estavam. O único motivo que os atrasou foi a fraqueza de Robert em se locomover, mesmo se apoiando nos ombros de Aldrich. A integrante feminina do grupo, acostumada a caminhadas rápidas e ágeis com seus companheiros, não pôde deixar de se sentir incomodada pelo repentino ritmo lento e vagaroso do grupo. Logo, por ócio, desatou a comentar:

– Uma pena que a Peça esteja em uma cidade tão bucólica. Gostaria de visitar uma daquelas tais de metrópoles e admirar a genialidade desses humanos. Lembram-se dos desenhos nos livros daquelas torres quadradas imensas, revestidas de vidro, que eles chamam de prédios? – perguntou, fantasiada.

– Sim – respondeu Mitchell que, mesmo a vários passos de vantagem, ainda mantinha-se atento à conversa. – Lembro dos carros também. Eles são tão diferentes entre si que parece existir um para cada pessoa nessas terras.

Aryana lembrou-se dos automóveis e concordou com a afirmação de seu companheiro sobre a quantidade enorme de modelos que vira. O carro era uma espécie de máquina semelhante a uma carruagem que não exigia ser puxada por animais. Aryana não sabia exatamente como eles funcionavam, mas era justamente isso que tornava os carros uma tecnologia tão misteriosa.

Aldrich comentou em voz baixa sobre a facilidade com que farmacêuticos daquelas terras preparavam suas poções e cataplasmas e Robert, que ainda estava fraco demais para falar algo nítido em voz alta, sussurrou algo como “Aryana” e “fala desnecessariamente”.

Enfim, após sua marcha lenta, os quatros viajantes chegaram ao pomar de maçãs. Alegando motivos de segurança, Mitchell os levou mais para o centro do local, onde as árvores encobririam sua presença. Robert pediu a Aldrich que o ajudasse a se aproximar de uma macieira de tronco grosso e desabou ao chão, apoiando as costas ali mesmo. Gemendo de alívio por finalmente se sentar, murmurou à companheira:

– Diga agora o que quer saber, Aryana. Julgo-me suficientemente aliviado de cansaço e em adequado repouso para lhe responder qualquer coisa.

– Agradeço – respondeu a moça. Pensou rapidamente em qual seria sua primeira pergunta e, escolhida esta, anunciou-a: – Por que você está tão fraco se usamos seis materiais de reserva e, além disso, teve que usar a energia de Mitchell e Aldrich também? E por que, mesmo usando tudo isso de energia, ainda emergimos tão distantes uns dos outros?

– Não poderia ter feito uma pergunta de cada vez? – suspirou Robert, cansado. – Bem, seja como for, as duas perguntas tem a mesma resposta. O “caminho” que utilizamos até aqui está sendo demasiadamente aproveitado por alguém. E eu diria que envolve muitas pessoas, pela quantidade absurda de esforço que isso me consumiu.

– É possível que o uso excessivo da travessia a desgaste?– Não só é possível como já aconteceu algumas vezes no passado, quando testaram esse ritual de

passagem. De qualquer maneira, nós utilizamos uma espécie de túnel para vir a este mundo, como já lhe expliquei. Porém, este é tão frágil quanto instável. Ele nos permite poucas passagens em um determinado período de tempo medido em meses. Pelo visto, houve muitas passagens nos últimos dias e nem quero imaginar o que pode dar errado se essa situação continuar da maneira como está. Na verdade, tivemos muita sorte de não sermos engolidos por uma fenda espacial no meio da trajetória.

– Não foi somente sorte, Robert – interveio Mitchell. – Você realmente é muito talentoso e evitou que algo ruim nos acontecesse.

O outro deu um sorriso agradecido.– Obrigado pela gentileza, Mitchell, mas creio ainda assim que a sorte nos favoreceu muito. Se a

passagem estiver mesmo sendo utilizada na frequência com que penso que está, logo ela irá se desgastar totalmente e impossibilitará o transporte entre mundos. O que foi, Aryana?

A mulher estava com uma cara pensativa e séria, e olhava fixamente para uma mancha de luminosidade da linha do horizonte, onde poderia apostar que havia uma cidade.

– Isso só pode significar que eles a rastrearam antes de nós, não é? – indagou.

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O homem, mesmo sentado, dirigiu seu olhar para o mesmo lugar que o dela, sendo seguido por Mitchell e Aldrich. Após alguns segundos, respondeu:

– Acho que sim. O que mais iria fazer com que eles usassem tanto a passagem? Agora que as outras Peças já tomaram seus próprios rumos, não somente Incidira como outros reinos querem a última.

Aryana pensou nas palavras de um antigo texto, conhecido de todos os que eram como ela. De todos que eram como Mitchell, Robert e Aldrich. De todos que vinham do mesmo lugar que eles.

“Não podemos perder mais essa chance”, pensou com certa selvageria.– Mais alguma pergunta, Aryana? – ouviu Robert dizer.– Não – anunciou, convicta. – Mas acho melhor que você se levante. Temos uma longa estrada pela

frente.