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Moderna PLUS GEOGRAFIA LYGIA TERRA REGINA ARAUJO RAUL BORGES GUIMARÃES CONEXÕES Volume único www.modernaplus.com.br Parte I Sociedade e espaço Unidade A O mundo contemporâneo Capítulo 2 A formação da economia global A Velha América, sob nova direção Um filme genialmente dirigido e estrelado por Clint Eastwood, Gran Torino (2008) retrata com rara sensibilidade a agonia da Velha América. Nele, Eastwood interpreta Walt Kowalski, um sujeito mal-humorado, resmungão e racista que teima em não reconhecer os movimentos do mundo. Veterano da Guerra da Coreia, ostenta a bandeira dos Estados Unidos na fachada de sua casa e pragueja contra seus vizinhos de origem asiática. Ex-funcionário da Ford, vocifera contra os filhos que ‘traíram’ a pátria e se renderam à eficiência dos carros japo- neses. O Gran Torino que dá título ao filme é um Ford modelo 1972, enorme e beberrão, que o protagonista mantém intacto, com muito orgulho. O tipo de carro que ninguém mais quer e que ajudou a condenar a indústria automobilística norte- -americana à bancarrota atual. Coincidência ou não, Gran Torino estreou no mercado americano 100 anos depois que o pioneiro Henry Ford lançou seu primeiro Modelo T, o carro robusto e relativa- mente barato que inaugurou a moderna era dos automóveis. Pouco tempo depois, em 1913, os carros da Ford Company passaram a ser produzidos em série, de forma a atender um mercado de consumo que crescia exponencialmente. Utilizando as então recentes conquistas no campo da ele- tricidade, Ford inventou um sistema de trabalho fabril revolu- cionário: a linha de montagem. Nesse sistema, os trabalhadores permanecem em seus postos, realizando tarefas simples e repetitivas, enquanto uma esteira elétrica move as peças sem- pre na mesma velocidade, imprimindo um ritmo constante à produção. Essa engrenagem padronizada ampliou de maneira vertiginosa o volume e reduziu os custos de produção. Por causa dela, a Ford se transformou em líder absoluta do mercado americano. As dezenas de fábricas de automó- veis que existiam nos Estados Unidos em 1917, excetuando a Ford, empregavam juntas 70 mil operários e produziam 280 mil unidades. A Ford Company, empregando 13 mil funcio- nários, produziu 310 mil unidades nesse mesmo ano. Na década de 1920, a maior parte dessas fábricas já havia encerrado suas atividades. As duas grandes que sobreviveram, General Motors e Chrysler, adotaram o sistema produtivo co- nhecido como fordismo, que se espalharia para o conjunto da economia industrial no decorrer do século XX, atravessando a Depressão dos anos 1930 e a Segunda Guerra Mundial. Estava formado o trio de ouro da indústria automobilís- tica norte-americana, que dominava os mercados do país e do mundo. Detroit, capital do estado de Michigan e sede de operações das Três Grandes, se transformou em um dos centros mais dinâmicos da economia americana. Os sindicatos dos metalúrgicos das montadoras dos Estados Unidos, também reunidos em Detroit, despontavam como TEXTO COMPLEMENTAR a organização sindical mais poderosa do mundo. A empáfia do velho Kowalski é uma herança desses tempos de glória. Após a Segunda Guerra, porém, empresas automobilísticas surgidas na Europa e no Japão passaram a competir diretamente com as gigantes americanas, primeiro nos mercados mundiais e, depois, no próprio território dos Estados Unidos. Produzindo carros mais eficientes e econômicos, essas novas empresas cresceram no rastro da crise do petróleo da década de 1970. Na mesma época, a japonesa Toyota promovia uma nova revo- lução na indústria automobilística, introduzindo a automação e a organização flexível de trabalho no lugar da rigidez fordista. Pressionada pela concorrência, a indústria automobilís- tica americana entrou em uma espiral de declínio: no início dos anos 1980 empregava mais de 1 milhão de trabalhadores, hoje emprega pouco mais de 200 mil. Parte dessas pessoas trabalha nas japonesas Honda e Toyota, que se instalaram nos Estados Unidos nesse período, mas buscaram localiza- ções distantes dos poderosos sindicatos tradicionais. Detroit, a outrora ‘capital mundial do automóvel’, é atualmente a capital americana com maior índice de desemprego, além de ser uma das mais miseráveis: um terço da população sobrevive abaixo da linha de pobreza. [...] Ao que parece, eficiência energética é o novo nome do jogo, e o governo Obama pretende distribuir as cartas, já que as Três Grandes chegaram à bancarrota por conta própria. Para renascer das cinzas, a indústria automobilística dos Estados Unidos deverá seguir um padrão ambientalmente sustentável. Certamente, não haverá lugar para o Gran Torino na Detroit ‘verde’ que o presidente pretende ajudar a construir.ARAUJO, Regina. Boletim mundo: geografia e política internacional. São Paulo: Pangea, ano 17, n. 2, p. 9, abr. 2009. Por causa da concorrência externa e da crise internacional, em 2009, não só a Ford como a Chrysler e a General Motors acumulam prejuízos e suas ações têm apresentado forte queda. As três já receberam do governo bilhões de dólares em empréstimos e créditos. Na foto, Gran Torino modelo 1972, da Ford (EUA, 2008). ALBERTO E. RODRIGUEZ/ GETTY IMAGES • Empáfia. Arrogância, orgulho, presunção. • Bancarrota. Quebra, falência; ruína, decadência.

A velha américa

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Page 1: A velha américa

Moderna PLUS GEOGRAFIA LYGIA TERRA

REGINA ARAUJO

RAUL BORGES GUIMARÃESCONEXÕES

Volume único

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Parte I Sociedade e espaçoUnidade A O mundo contemporâneo Capítulo 2 A formação da economia global

A Velha América, sob nova direção

“Um filme genialmente dirigido e estrelado por Clint Eastwood, Gran Torino (2008) retrata com rara sensibilidade a agonia da Velha América. Nele, Eastwood interpreta Walt Kowalski, um sujeito mal-humorado, resmungão e racista que teima em não reconhecer os movimentos do mundo. Veterano da Guerra da Coreia, ostenta a bandeira dos Estados Unidos na fachada de sua casa e pragueja contra seus vizinhos de origem asiática. Ex-funcionário da Ford, vocifera contra os filhos que ‘traíram’ a pátria e se renderam à eficiência dos carros japo-neses. O Gran Torino que dá título ao filme é um Ford modelo 1972, enorme e beberrão, que o protagonista mantém intacto, com muito orgulho. O tipo de carro que ninguém mais quer e que ajudou a condenar a indústria automobilística norte--americana à bancarrota atual.

Coincidência ou não, Gran Torino estreou no mercado americano 100 anos depois que o pioneiro Henry Ford lançou seu primeiro Modelo T, o carro robusto e relativa-mente barato que inaugurou a moderna era dos automóveis. Pouco tempo depois, em 1913, os carros da Ford Company passaram a ser produzidos em série, de forma a atender um mercado de consumo que crescia exponencialmente.

Utilizando as então recentes conquistas no campo da ele-tricidade, Ford inventou um sistema de trabalho fabril revolu-cionário: a linha de montagem. Nesse sistema, os trabalhadores permanecem em seus postos, realizando tarefas simples e repetitivas, enquanto uma esteira elétrica move as peças sem-pre na mesma velocidade, imprimindo um ritmo constante à produção. Essa engrenagem padronizada ampliou de maneira vertiginosa o volume e reduziu os custos de produção.

Por causa dela, a Ford se transformou em líder absoluta do mercado americano. As dezenas de fábricas de automó-veis que existiam nos Estados Unidos em 1917, excetuando a Ford, empregavam juntas 70 mil operários e produziam 280 mil unidades. A Ford Company, empregando 13 mil funcio-nários, produziu 310 mil unidades nesse mesmo ano.

Na década de 1920, a maior parte dessas fábricas já havia encerrado suas atividades. As duas grandes que sobreviveram, General Motors e Chrysler, adotaram o sistema produtivo co-nhecido como fordismo, que se espalharia para o conjunto da economia industrial no decorrer do século XX, atravessando a Depressão dos anos 1930 e a Segunda Guerra Mundial.

Estava formado o trio de ouro da indústria automobilís-tica norte-americana, que dominava os mercados do país e do mundo. Detroit, capital do estado de Michigan e sede de operações das Três Grandes, se transformou em um dos centros mais dinâmicos da economia americana. Os sindicatos dos metalúrgicos das montadoras dos Estados Unidos, também reunidos em Detroit, despontavam como

TEXTO COMPLEMENTAR

a organização sindical mais poderosa do mundo. A empáfia do velho Kowalski é uma herança desses tempos de glória.

Após a Segunda Guerra, porém, empresas automobilísticas surgidas na Europa e no Japão passaram a competir diretamente com as gigantes americanas, primeiro nos mercados mundiais e, depois, no próprio território dos Estados Unidos. Produzindo carros mais eficientes e econômicos, essas novas empresas cresceram no rastro da crise do petróleo da década de 1970. Na mesma época, a japonesa Toyota promovia uma nova revo-lução na indústria automobilística, introduzindo a automação e a organização flexível de trabalho no lugar da rigidez fordista.

Pressionada pela concorrência, a indústria automobilís-tica americana entrou em uma espiral de declínio: no início dos anos 1980 empregava mais de 1 milhão de trabalhadores, hoje emprega pouco mais de 200 mil. Parte dessas pessoas trabalha nas japonesas Honda e Toyota, que se instalaram nos Estados Unidos nesse período, mas buscaram localiza-ções distantes dos poderosos sindicatos tradicionais. Detroit, a outrora ‘capital mundial do automóvel’, é atualmente a capital americana com maior índice de desemprego, além de ser uma das mais miseráveis: um terço da população sobrevive abaixo da linha de pobreza. [...]

Ao que parece, eficiência energética é o novo nome do jogo, e o governo Obama pretende distribuir as cartas, já que as Três Grandes chegaram à bancarrota por conta própria. Para renascer das cinzas, a indústria automobilística dos Estados Unidos deverá seguir um padrão ambientalmente sustentável. Certamente, não haverá lugar para o Gran Torino na Detroit ‘verde’ que o presidente pretende ajudar a construir.”

ARAUJO, Regina. Boletim mundo: geografia e política internacional. São Paulo: Pangea, ano 17, n. 2, p. 9, abr. 2009.

Por causa da concorrência externa e da crise

internacional, em 2009, não só a Ford como a Chrysler e a General Motors acumulam prejuízos e suas ações têm

apresentado forte queda. As três já receberam do governo

bilhões de dólares em empréstimos e créditos. Na

foto, Gran Torino modelo 1972, da Ford (EUA, 2008).

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• Empáfia. Arrogância, orgulho, presunção.

• Bancarrota. Quebra, falência; ruína, decadência.