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A VIAGEM DO EMIGRANTE DOS TEMPOS DA VELA AO SEGUNDO PÓS-GUERRA COM PARTICULAR ATENÇÃO À PARTIDA DO PORTO DE TRIESTE de Francesco Fait Para nós observadores do século XXI a viagem do emigrante possui uma importância particular, de tudo, já perfeitamente presente às milhões de pessoas que nas décadas e séculos passados foram protagonistas ou testemunhas e aos observadores que lhe precederam. Não a caso, no período que ficou conhecido como “grande emigração transatlântica”, entre 1871 e 1914, existia o costume de esticar um fio do convés do navio à terra firme, o qual se arrebentava no momento em que o navio se distanciava do cais para levar a sua carga de emigrantes ao oceano. Era uma simbologia forte e evidente, apesar de, na realidade, não totalmente representativa, seja porque amiúde os emigrantes eram viajantes experientes e sagazes que arrebentavam e emendavam o fio várias vezes (basta pensar a Golondrinas e Birds of Passage, que se movevam sazonalmente entre a Europa e as Américas), seja porque frequentemente o embarque acontecia em portos estrangeiros, em terras nas quais o viajante não haviam nenhum vínculo, e então nestes casos o fio já havia sido arrebentado centenas e milhares de quilômetros atrás, talvez em qualquer estação ferroviária rumorosa e cheia de gente. Sem contar que a viagem pelo mar, a travessia transoceânica, era só um segmento da viagem do emigrante, que teve e teria tido outras fases igualmente importantes no percurso de casa ao porto de embarque, na permanência no próprio porto e então, no desembarque acontecido, no mesmo modo, de novo em porto e finalmente ainda em viagem até o destino final. Porém, continua de qualquer forma inegável que a travessia oceânica seja embebida de um peso simbólico tendendo a caracterizar-la como o ápice e o emblema da experiência emigratória. As viagens, viagens por mar para fins emigratórios, em fundo se assimilham todas

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A VIAGEM DO EMIGRANTE DOS TEMPOS DA VELA AO SEGUND O

PÓS-GUERRA COM PARTICULAR ATENÇÃO À PARTIDA DO PORT O DE

TRIESTE

de Francesco Fait

Para nós observadores do século XXI a viagem do emigrante possui uma

importância particular, de tudo, já perfeitamente presente às milhões de pessoas que

nas décadas e séculos passados foram protagonistas ou testemunhas e aos

observadores que lhe precederam. Não a caso, no período que ficou conhecido como

“grande emigração transatlântica”, entre 1871 e 1914, existia o costume de esticar

um fio do convés do navio à terra firme, o qual se arrebentava no momento em que o

navio se distanciava do cais para levar a sua carga de emigrantes ao oceano. Era uma

simbologia forte e evidente, apesar de, na realidade, não totalmente representativa,

seja porque amiúde os emigrantes eram viajantes experientes e sagazes que

arrebentavam e emendavam o fio várias vezes (basta pensar a Golondrinas e Birds of

Passage, que se movevam sazonalmente entre a Europa e as Américas), seja porque

frequentemente o embarque acontecia em portos estrangeiros, em terras nas quais o

viajante não haviam nenhum vínculo, e então nestes casos o fio já havia sido

arrebentado centenas e milhares de quilômetros atrás, talvez em qualquer estação

ferroviária rumorosa e cheia de gente. Sem contar que a viagem pelo mar, a travessia

transoceânica, era só um segmento da viagem do emigrante, que teve e teria tido

outras fases igualmente importantes no percurso de casa ao porto de embarque, na

permanência no próprio porto e então, no desembarque acontecido, no mesmo modo,

de novo em porto e finalmente ainda em viagem até o destino final. Porém, continua

de qualquer forma inegável que a travessia oceânica seja embebida de um peso

simbólico tendendo a caracterizar-la como o ápice e o emblema da experiência

emigratória.

As viagens, viagens por mar para fins emigratórios, em fundo se assimilham todas

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nos paradigmas que as compõem, ao ponto que poderiam ser fatas análises

diacrônicas a partir do período da vela ao segundo pós-guerra fazendo um confronto e

comparando-os, por exemplo, a gênese da decisão de partir ao invés da alimentação,

ou o pernoitamento a bordo, ou então o alojamento uma vez alcançado o porto de

desembarque.

A presente contribuição tentará recontar tais paradigmas sobretudo com respeito ao

período mítico da viagem do emigrante, incluindo as últimas décadas de 1800 e os

primeiros anos de 1900, com particular atenção a situação do porto de Trieste, que na

primeira década do século XX teve um papel muito significante para o tráfego

emigratório europeu às Américas (e que foi notável também no período entre as duas

guerras com respeito às partidas dos hebreus para a Palestina e de um certo interesse

particular para a emigração italiana assistir do segundo pós-guerra).

Foram utilizadas fontes diversas, que se referem à bibliografia científica, à

documentação arquivada, à análise de prosas de escritores, às recordações

autobiográficas daqueles que haviam atravessado o oceano como emigrante. Não é

este o lugar para uma reflexão historiográfica sobre as fontes mas um elemento

chama atenção já à primeira vista: a viagem com fins emigratórios era interpretada

em modo muito diverso de quem o analisava com respeito a quem o vivia, e não era

só uma questão de diferença de padrão cultural. Assim sendo, por exemplo, Georges

Guyan comentava em 1898 a visão de frotas de emigrantes italianos em movimento:

“Os emigrantes são mandados tão distante, em terras incultas, para preparar-las, de

maneira que depois, em um segundo momento, sejam trabalhadas e as regiões nas

quais terminam aglomerados, são ainda mais inóspitas, poderíamos dizer, ainda mais

selvagens que as partes remotas da Itália que foram as suas demoras anteriores; e,

entre o ponto de partida e aquele de chegada, essa gente atravessou a civilização

contemporânea como o viajante apressado atravessa um oásis, vindo das regiões do

deserto mais distante. È gente destinada a não usufruir da civilização intra vista per

um momento; os emigrantes não são iniciados a ela, não participam, senão

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completamente em modo passivo, isto é, na medida em que são vítimas.” 1

O escritor francês no parágrafo apenas citado descrevia pelo menos dois tòpoi

emigratórios: o emigrante visto como vítima e a antinomia civilização/não-

civilização, tòpoi sobre os quais se

poderia discutir. No primeiro caso se pode observar como não é tão óbvio dar ao

imigrante o estereótipo do despreparado 2. No segundo emerge com certa prevenção e

pressa no subdividir o mundo em zonas geográficas, incluindo-as ao grupo da

civilização ou àquele contrário e no negligenciar que até nas zonas identificadas

como civis existiam espaços, outrossim vastos, de marginalidade, também sendo

aceita a observação que o emigrante entrava em contato com uma civilização

somente “vislumbrada”, com a qual haveriam contato a distância, permanecendo

fatalmente confinados nos vagões ferroviários de terça e quarta classe somente para

serem transferidos em pousadas ínfimas, dispersas nas periferias das grandes

cidades, ou naquelas estruturas frequentemente perigosas e imundas que eram a casa

do imigrante.

Porém podem parecer muito diferente da imagem apenas descrita as valutações de

alguns que a experiência emigratória tinham vivido realmente, obtendo uma visão

mais astuta e desencantada, que pode derivar ao mesmo tempo da proximidade e

distância aos eventos narrados (proximidade por terem sido protagonistas e distância

pelo tempo decorrido entre o evento da imigração e o momento da recordação), mas

também, provavelmente, da luz refletida do sucesso substancial da experiência

emigratória, quando o sucesso aconteceu. Em fundo, a vida a bordo através do

oceano não era nada mais do que uma fotografia do que acontecia em terra firme. Se

nascia , se adoentava, se morria:

“Muitas mulheres eram... quase no fim e partivam igualmente, talvez convencidas de

economizar na viagem ou economizar no parto, porque não custava nada; a verdade

era que as crianças pequenas menores de 6 meses ou menores de um ano não

pagavam nada, estavam com a mãe. Em cada viagem nascia um, dois; um ou dois...

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bem, sempre bem, sempre bem. Nenhuma criança jamais morreu. Em vez disso, em

cada viagem morriam um ou dois homens, talvez idosos, talvez tristes, não sei que

coisa tinham.” 3

1. A citação é transcrita de Giuseppe D'Angelo, Il viaggio, il sogno, la realtà. Per

uma storia dell'emigrazione italiana in Venezuela (1945 – 1990), Edizione del

Paguro, Salerno, 1995, p. 10.

2. A este propósito foi observado como a escolha inicial dos emigrantes era muito

frequentemente mais estratégica do que geralmente se possa pensar: “Os

acontecimentos depois de chegar ao novo mundo valiam quase sempre para provar

que, juntamente a uma parte 'irreflexiva' e alcançado definitivamente o seu destino, a

maior parte dos emigrantes, era residente in pectore que naquele passo não era

desprovida de um próprio projeto e colocava em prática, antes e depois da partida da

Europa , uma série de movimentos estratégicos, de maneira alguma ingênua, mirados

a realização, através da valorização de poucos recursos (solidariedade familiar e

parental, instituições mutualísticas étnicas, redes de relações interpessoais, etc.), de

resultados satisfatórios.” Fonte: E. Franzina, Traversate, Le grandi migrazioni

transatlantiche e i racconti italiani del viaggio per mare, Editoriale umbra, Foligno,

2003, p. 27.

3. Texto retirado das memórias de Lucia Nebbiolo Gonella, piemontese, que em 1901

emigrou em Argentina recém-nascida, atravessando várias vezes o oceano até 1960,

ano no qual reentrou na Itália para residir definitivamente em Gênova. Fonte: C.

Lupi, “Trenta giorni di macchina a vapore”. Appunti sul viaggio delgi emigranti

transoceanici, “Movimento operaio e socialista”, N.3, setembro-dezembro 1983, p.

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A decisão de partir

A decisão de partir, de deixar a própria casa, de iniciar a viagem, possui razões que

remontam a situações de necessidade ou de desconforto: miséria, desemprego,

exploração, impostos excessivos, usura, conjuntura do clima ou do mercado.

Situações profundas, enraizadas, insolúveis em breve tempo, que em um certo ponto

porém parecem ser resolvidas jogando a carta da emigração. Sobre a escolha de

emigrar e sobre a meta decidida, pelo menos na primeira fase da “grande emigração”,

os intermediários, os mediadores, os funcionários da emigração, os representantes das

companhias de navegação possuem um papel fundamental e se tornam imediatamente

os destinatários da polêmica anti-emigratória, imediatamente dedicada a descrever-

los como perturbadores sutis e desonestos e, de reflexo, a descrever o futuro

emigrante como autômatos privados de discernimento:

“Por toda a parte estão espalhados personagens que sentem o cheiro da miséria e da

insatisfação e oferecem o bilhete de embarque àqueles desgraçados que querem

abandonar a pátria, ou lhe instigam a vender a casa, ou as propriedades rurais e a

terra, para obter o dinheiro da viagem. Os médicos que estudam o poder da sugestão

poderiam fazer observações certeiras sobre os emigrantes, para ver como uma idéia

introduzida no cérebro pode agir quase sem uma participação da consciência sobre a

vontade do homem. A fome, a fraqueza, o abatimento exaltam a manipulabilidade e

tornam mais fácil a sugestão. O vetor estende a mão a estes miseráveis para levantar-

los e emprega toda a arte do seu trabalho para impressioná-los, para interessar-los,

para jogar nos seus cérebros a idéia da redenção. Uma vez obtida a promessa ele faz

com que ela seja mantida: sustentando-os se titubeantes, conduzindo-os em frente

mesmo quando davam um passo para trás.”4

A propaganda, o advertising emigratório, foi em cada caso um fenômeno vasto,

complexo e estruturado, bem além do clichè do recrutador turvo e enganador, da qual

a figura em todos os casos foi somente a ponta do iceberg, ou seja, o elo da corrente

mais perceptível e percebido pelo emigrante, e próprio por isso submetido

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frequentemente a recriminações e represarias dos descontentes e delusos. 5

4. A. Martellini, Il commercio dell'emigrazione: intermediari e agenti, em P.

Bevilacqua, A. De Clementi, E. Franzina (coordenado por), Storia dell'emigrazione

italiana. Partenze, Donzelli, Roma, 2001. p.293. Algumas vezes, aqueles que

induziam a emigração eram pessoas insuspeitáveis, como aconteceu em Cavenzano

(Campolongo al Torre, Udine) onde a falar foi o padre durante uma homilia dominical

em 3 de novembro de 1878, na qual, “tendo como pretexto o argumento da homilia

'sobre os Faraós' disse que aqui também existiam faraós que davam a entender ao

povo que nas Américas deveriam lutar contra serpentes e contra a febre amarela.

As serpentes, disse ele, são elas que se alimentam do pobre povo para sustentar o seu

lobo; e a febre amarela é aqui, onde eu desde quando sou pároco enterrei entre 7 e

800 indivíduos dos quais pelo menos 600 mortos de pelagra, como posso comprovar

dom os meus registros. …

Não creditem, disse, que eu estou aconselhando vocês a emigrarem; mas ao invés de

morrer de pelagra será sempre melhor tentar a América; a menos que os seus patrões

não mudem o sistema, para não chegar ao ponto de conduzir os bois sozinhos e

arrastar o arado.”

Fonte: F. Cecotti, D. Mattiussi, Un'altra terra, un'altra vita. L'emigrazione isontina in

Sud America tra stroria e memoria (1878 – 1970), Centro de Pesquisa e

Documentação Histórica e Social “Leopoldo Gasparini”, Gorizia, 2003, pp.18-19.

5. Se vede por exemplo nas linhas que seguem, nas quais Francesco Sartori, um

agricultor vêneto, fala sobre as boas-vindas reservadas aos intermediários em

Marselha, em novembro de 1877, que haviam prometido um embarque em um navio

a vapor que se revelou no fim das contas um navio a vela:

“Chegaram os traidores de Marselha. De P..., C... e T... E nós em cerca de 100 pessoas

os encurralamos e queríamos matar todos os três. Uma confusão, extraordinário

assim.”

Fonte: E. Franzina, Merica! Merica! Emigrazione e colonizzazione nelle lettere dei

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contadini veneti e friulani in America Latina (1876 – 1902), Cierre Edizione, Verona,

1984, p.79.

A partir do terço quarto do século XIX foram os países de imigração a criar canais de

comunicação com a Europa, frequentemente mandando seus agentes além do oceano.

Brasil e Argentina ofereciam condições atraentes (respectivamente passagem gratuita,

aquisição imediata dos direitos civis, repatriação gratuita para viúvas, órfãos e

trabalhadores inválidos e alojamento gratuito em hotel para emigrantes por alguns

dias com viagem gratuita em direção ao interior do país) predominantemente na Itália

e na Europa Meridional. No caso dos Estados Unidos, a propaganda e a venda de

terras para produção e cultivo, que se endereçou principalmente a Grã Bretanha e

Europa Setentrional, foi organizada por vários estados como Texas, Virginia ou

Califórnia, mas também por companhias ferroviárias como a Illinois Central, a

Kansas Pacific, a Missouri Pacific, a Union Pacific. Foram utilizadas técnicas

publicitárias avanzatas e persuasivas, sobretudo feita pelas companhias ferroviárias

que invadiram estações, hotéispara emigrantes e pontos e portos de embarque e de

desembarque com material de todos os tipos e em alguns casos mais além com

exposições itinerantes, organizaram pequenos albergues nos lugares de destinação

como primeira assistência, incentivaram os recém-chegados a escrever para casa

esperando assim obter novas adesões.6

Na Itália, a controlar o recrutamento dos emigrantes, foram, antes da lei de 1901, as

grandes agências, geralmente localizadas em cidades litorâneas, como as genovesas

Colajanni, Laurens, Gondrand ou as napolitanas Ciamberini, Rocco Piaggio e

Raggio, as quais foram obrigadas porém pela mesma lei a transferir esta gestão às

companhias de navegação. A estrutura das agências antes e das companhias depois

era pulverizada em uma rede verdadeiramente maciça, que obviamente cresceu junto

com o desenvolvimento quantitativo do tráfego emigratório: em 1892 os mediadores

eram cerca 5.000, em 1895 7.000, em 1901 10.000 e em 1911 13.000.7 Sobre o tipo

de pessoa que se dedicava a tal atividade não havia diferença substancial entre a

situação precedente e aquela sucessiva à lei de 1901, que tinha abolido a figura da

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agência de emigração para confiar também a fase do recrutamento ao vetor, ou seja, à

companhia de navegação. Se tratava em todos os casos de pessoas que tinham um

certo prestígio ou credibilidade social, uma certa cultura, além de um discreto grupo

de ocasiões nas quais podiam mostrar tais dotes: prefeitos, secretários municipais,

párocos, professores primários, autoridades municipais, marechais da polícia

aposentados, barbeiros, comerciantes. 8

Avaliar o impacto e o sucesso da propaganda sobre a decisão de emigrar é nos dias

atuais muito difícil. A grande quantidade de material que restou para a posteridade

(anúncios em jornais, panfletos, brochuras, folhetos) poderiam induzir a superestimar

o peso e o papel, enquanto que parece realmente que, passada a fase inicial na qual as

únicas informações sobre o mundo ao qual se aspirava eram aquelas fornecidas por

quem tinha interesse em alistar mão-de-obra e passageiros, fossem mais credíveis as

notícias que chegavam de parentes e conhecidos que a emigração haviam já vivido ou

estavam vivendo. E frequentemente os canais da comunicação se tornavam então as

cartas, documentos caracterizados de uma evidência comunicativa que a publicidade

– frequentemente e notoriamente abusiva ou mesmo enganadora – de certo não

possuía. Quem as escrevia conhecia a situação, seja em pátria que no novo mundo, e

não devendo vender nenhuma passagem podia ser considerado sincero e honesto nas

valutações.9

_______________________________________

6. P. Taylor, The Distant Magnet. European Migration to the USA, Eyre &

Spottiswoode, Lodon, 1971, pp 76 – 79.

7. A. Martinelli, Il commercio dell'emigrazione …, cit., p. 297

8. Op. Cit., p. 301.

9. É sempre necessário, porém levar em conta que existem também cartas por assim

dizer inspiradas, seja no senso emigracionista que no senso anti-emigracionista, nos

quais eventos desconfortáveis eram ocultados o deformados por várias razões; no

primeiro caso, por exemplo, para receber o dinheiro pela intermediação e no segundo

para favorecer os ambientes próximos aos proprietários de terras que temiam o êxodo

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dos agricultores das suas terras.

A viagem antes da viagem, a escolha do porto, o pernoite e o embarque no navio

Muito frequentemente o emigrante, logo após ter deixado a terra dos antepassados,

alcançava o porto de embarque em trem, provando no “vapor terrestre” aquelas

condições de imundice, super lotação e promiscuidade que caracterizariam as fases

sucessivas da viagem. Teodorico Rosati, um especialista em saúde marítima, em 1908

lançava acusas contra a sociedade ferroviária italiana que “concedendo aos

emigrantes o desconto de 50% na tarifa ordinária, ensacava aqueles desgraçados em

vagões de quarta classe, fazendo-os viajar mais lentamente que os trens de carga, e

dando até a preferência de trânsito aos trens com gado.” 10 Acontecia sempre que os

emigrantes na sua viagem de trem devessem trocar de vagão em estações em países

dos quais não conheciam a língua, e hoje se encontram nos arquivos históricos, em

maio a documentos seqüestrados das autoridades policiais, mapas manuscritos nos

quais estão marcados os nomes das localidades onde efetuar as trocas de trem para

chegar ao porto de embarque. 11 Informações que poderiam ser dadas também por

representantes das diversas companhias de navegação localizadas nos pontos mais

freqüentados, os quais faziam notar a sua afiliação com distintivos ou peças de

vestuário decoradas com as cores sociais das respectivas sociedades. Para o

emigrante era já iniciada a aventura em um território desconhecido, para decifrá-lo

era forçado ás vezes a confiar nos conselhos e nas experiências de gente nunca antes

vista, que não raramente se revelava fanfarrão, trapaceiro o ainda pior, e podiam

realmente terminar muito mal por terem acreditado em pessoas erradas. Não era um

caso, de fato, que nos terminals ferroviários das cidades litorâneas estariam como

sentinelas, a ajudar os órgãos competentes, representantes de sociedades

humanitárias, como a San Raffaele, ou – presença documentada na estação de Trieste

nos primeiros anos de 1900 – da Liga Contra o Tráfico das Brancas.

A respeito da escolha do porto de embarque ao qual destinar o emigrante, não se

tratava decerto de uma questão sobre a qual fosse dado um modo ao interessado de

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pronunciar-se; muito claro deste ponto de vista um documento não reconhecido (mas

produzido no ambiente da Câmara de Comércio de Trieste, então – somos em 1913 –

cidade do império austro-húngaro), no qual se pleiteava uma norma sobre a

emigração que canalizava integralmente o grandioso movimento nacional no porto de

Trieste:

“Somente na Áustria, onde o respeito da liberdade individual não é muito marcado

em outros campos, se opõem [à fixação por lei da obrigação de servir-se do porto de

Trieste para os emigrantes austríacos]: 1. que não é lícito realizar violência à livre

escolha da via de embarque da parte do emigrante, 2. que a viagem via Trieste há

uma duração maior, 3. que os meios de transporte disponíveis em Trieste não são

suficientes para cobrir todo o movimento migratório do país.

Não será difícil de minar estas objeções. Não é o emigrante a escolher o porto de

embarque, mas as companhias de navegação as mesmas que segundo as indicações

do grupo aumentam ou abaixam os preços de passagem em modo de equalizar o

número de emigrantes transportados por cada sociedade à quota atribuída nos acordos

internacionais; mas a multidão inumerável de agentes, mediadores e intermediários

de todos os gêneros que exploram o emigrante ignorante e analfabeto fazendo-o

viajar cegamente, frequentemente com longos giros viciosos.”12

___________________________________

10. T. Rosati, Assistenza sanitaria degli emigranti e marinai, Vallardi, Milão, 1908,

p.69

11. Um mapa muito bonito desse tipo se encontra reproduzido em F. Cecotti, D.

Mattiussi, Un'altra terra, un'altra vita … , cit., p.25

12. Arquivo do Estado de Trieste, Câmera de Comércio, arquivo 155, posição 305-05

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Eis então a situação do mercado internacional dos embarques dos emigrantes

delineada com eficácia, esta era dominada por um cartel de empresas que reunia

companhias de navegação inglesas, holandesas, alemãs, francesas e norte americanas,

que de fato determinavam o tráfego emigratório entre a Europa e o Canadá e os EUA.

O cartel subdividia preventivamente entre os participantes zonas de influência e

portos de partida, escalas e destinos. Quanto entre a programação e a realidade se

realizavam descartes se aplicava uma tarifa de compensação em virtude da qual as

sociedades que haviam trabalhado mais do que o devido eram obrigadas a dar uma

parte do próprio lucro àquelas que, ao contrário, haviam sido penalizadas. 13 A

influenciar na fixação dos percentuais confiados às diversas companhias nos vários

portos não era só a força contratual das próprias companhias, sendo frequentemente

determinantes com respeito às decisões, algumas vezes somente anunciadas, dos

governos. É então neste sentido provável que a dar uma quota relevante das

emigrações Westbound para os Estados Unidos à companhia triestina Società

Austriaca di Navigazione (mais conhecida simplesmente como Austro Americana) e

assim com respeito ao porto de Trieste, não haviam sido irrelevantes, as prospectivas

de uma “nacionalização” da emigração austríaca que seria portanto partida toda da

capital do Litoral Austríaco. Trieste soube assim conquistar nos primeiros anos de

1900 a quota de 4% da emigração continental em direção ao Estados Unidos, o que a

permitiu de colocar-se em nono lugar na classificação relativa aos anos 1908 – 1913. 14 A importância da escala triestina teria crescido ainda mais, havendo já sido

previstas para o futuro percentual maior que o dobro (precisamente de 7 % depois de

primeiro de maio de 1915 e de 10 % para o período incluso entre o primeiro de

janeiro de 1919 e 31 de dezembro de 1929), se não se fosse intrometido o início da

primeira guerra mundial a zerar os tráfegos emigratórios.

Uma vez fora do trem, os emigrantes haviam o problema do pernoitamento até o

momento ao qual seriam embarcados, e a situação era diferente de acordo com a

cidade e o país ao qual haviam tido a sorte de terem sido endereçados. Na Itália, já

antes de 1901, a permanência antes do embarque era por lei responsabilidade do

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mediador, com o objetivo de eliminar o costume de afluir os emigrantes furtivamente

com larga antecedência com respeito à data de partida para assim fornir a vasta rede

de operadores econômicos que tiravam vantagem das suas permanências na cidade.

Do ponto de vista infra-estrutural, não existiam os hotéis ou casa dos emigrantes, mas

somente as pousadas autorizadas, que em 1905 eram a Nápoles 87 (com 2400 camas),

em Gênova 33 (720 camas), em Palermo 25 (770 camas), em Messina 18 (341

camas). 15

___________________________________

13. E. Franzina, Traversate..., cit., p. 40.

A prática dos cartéis, que era permitida do direito internacional e se realizava à luz do

dia: servia para evitar formas de concorrência, ditas “a faca”, que haviam no passado

causado danos enormes às companhias. A Hamburg-Amerika Linie avia iniciado em

1885 fazendo um acordo com as companhias britânicas para reduzir o volume dos

tráfegos destas últimas companhias a Hamburgo em troca de um abandono alemão de

Gutemburgo. Depois, em 1888, foi feito um acordo entre as companhias alemãs e a

Red Star Line da Antuérpia. Em 1892, estas companhias, juntamente com a Holland-

Amerika Linie, fundaram o assim chamado “grupo do atlântico norte” - North Atlantic

Steamship Association – com o intuito de fixa algumas regras para a publicidade

comparativa e as quotas dos tráfegos futuras em proporção às divisórias de 1880. Em

1908 foi a Cunard Line a promover um cartel com as outras companhias com a idéia

de fixar as tarifas e repartir os fluxos emigratórios.

Fonte: P. Taylor, The Distant Magnet, …, cit., p. 95.

14. G. Russo, Emigrazione transoceanica e trasporti marittimi dal porto di Trieste,

“Bollettino dell'emigrazione”, N.2, 1919, p.4. A classificação é a seguinte: Nápoles

156.125 passageiros em média ao ano; Brema 150.249; Gênova 126.897; Hamburgo

115.676; Havre 73.752 (a média se refere porém ao período 1908 – 1912); Antuérpia

69.697; Roterdã 47.229, Fiume (atualmente Rijeka) 25.616, Trieste 25.391.

Parece evidente portanto que, à luz do tráfego de dimensões colossais que se deu nos

anos precedentes à primeira guerra mundial 16 – anos nos quais a liderança nas

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partidas para as Américas foi concedida dos portos da Europa setentrional àqueles

italianos – grande parte dos emigrantes se dispersavam nas cidades portuárias

confiando-se à estalajadeiros abusivos. Estes terminavam por formar um verdadeiro e

próprio lobby, capaz de obter em 1907 em Nápoles o fechamento de uma casa do

emigrante que poderia ter hospedado 900 emigrantes,17 de induzir a cidade a uma

greve geral quando, quatro anos depois, para enfrentar uma epidemia de cólera, as

autoridades sanitárias preparam um posto de saúde para emigrantes.18 Os portos

italianos eram deficitários também de outras infra-estruturas necessárias às operações

de embarque: basta citar o caso de Gênova que por grande parte de 1800 se serviu de

um atracadouro, Ponte Calvi, privo de construções ou barracas, e apenas entre os

anos 1877 e 1890, no âmbito de ampliar as estruturas portuárias, um atracadouro

propositalmente construído (Ponto Federico Guglielmo) foi destinado somente ao

tráfego de passageiros e foi erguida a Estação Marítima, dotada de dois edifícios

utilizados para controles e serviços (alfândega, consultas médicas, lojas, latrinas)

separados por um barracão capaz de proteger do sol e das intempéries os passageiros

em espera. 19

Muito diversa a situação nos portos alemães, como Hamburgo, onde existiam

adicionalmente um condomínio para os emigrantes que se estendia “sobre uma área

de 25.000 metros quadrados concedido gratuitamente pelo Estado por 25 anos à

Hamburg-Amerika Linie”, com tantas lojas, locais de culto e de entretenimento, ou

como Brema, onde haviam preferido evitar a centralização e logo utilizar as

pousadas, “50 pousadas para 3.775 emigrantes, e se necessário também para mais de

5.000”, cada uma das quais constituía um “alojamento bom sob qualquer aspecto e

funcionando em modo impecável”.20

Em Trieste, a sociedade líder do mercado local da emigração, a Austro Americana,21

ao contrário

______________________________________

15. A. Molinari, Porti, trasporti e companie, em P. Bevilacqua, A. De Clementi, E.

Page 14: A VIAGEM DO EMIGRANTE DOS TEMPOS DA VELA AO … · imigrante o estereótipo do despreparado 2. No segundo emerge com certa prevenção e pressa no subdividir o mundo em zonas geográficas,

Franzina (editado por), Storia dell'emigrazione italiana. Partenze, cit., p. 251

16. Em 1913, ano no qual o tráfego atingiu o seu ápice, os volumes de tráfego foram:

Nápoles:209.835; Gênova: 138.166; Palermo: 62.745; Messina: 6.367.

Fonte: A. Molinari, Porti, trasporti e compagnie, ci., p. 247.

17. G. Rossoli, L'assistenza sanitaira all'emigrazione di massa verso le Americhe

(1880-1915), em “Sanità, scienza e storia”, N. 2, 1986, p. 187.

18. A. Molinari, Porti, trasporti e compagnie, cit., p.252

19. A. Gibelli, Emigranti, bastimenti, transatlantici. Genova e la grande ondata

migratoria, in P. Campodonico, M. Fochessati, P. Piccione (editado por),

Transatlantici, Scenari e sogni di mare, Skira, Milão, 2004, p. 200.

20. T. Rosati, Assistenza sanitaria degli emigranti e dei marinai, cit., pp. 47-48.

21. De 1903, ano em qual foi ativado o serviço de transporte além do oceano de

emigrantes pela Cunard Line no porto de Trieste, até 1914, ano em que tal serviço foi

interrompido por conta da explosão do conflito, a Austro Americana, embarcou 83%

dos emigrantes e as concorrentes Cunard Line e Canadian Pacific Railway

respectivamente embarcaram 14,7 e 2,3% dos 220.312 passageiros de terça classe

que tiveram como destino: 73,5% em direção ao Estados Unidos, 22.1% para

América do Sul e 4,4% para o Canadá.

Fonte: A. Kalc, Prekooceansko izseljevanje skozi Trst 1903 – 1914, em “Zgodovinski

časopis”, ano 46, 1992, n.4, pp. 484 e 489.

das concorrentes na praça, escolheu seguir o modelo do porto de Hamburgo,

munindo-se de uma casa do emigrante,22 que foi várias vezes visitada por

autoridades, sanitárias e de segurança pública, que produziram continuamente

documentos preocupantes e alarmantes.

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Em março de 1905 interveio uma guarda sanitária da Prefeitura de Trieste que iniciou

o seu relatório notando que para os mil e duzentos viajantes em partida com o

piróscafo Gerty, faltavam colchões, sendo disponíveis “600 colchões novos e 300

colchões em uso sobre piróscafos”. Assim prosseguia o elenco das irregularidades: “

Uma parte dos emigrantes não recebe nem ao menos uma coberta para a noite [..] Os

emigrantes se cortam os cabelos [assim no original Nota do autor] ou se raspavam a

barba nos dormitórios [..] Nos dormitórios por causa da massa de pessoas, por causa

de muito lixo acumulado, pelo barro que existe em todos os ambientes, sem que

ninguém se preocupe em deixar aberta pelo menos uma parte das janelas há um fedor

insuportável [..] São unidos 2 ou 3 assim chamados leitos e sobre eles fazem dormir 5

– 6 pessoas [..] Os banheiros são mantidos pessimamente”.23

Em abril de 1906 foi registrado um caso de varíola, que foi pretexto para o relatório

de um médico do Hospital civil, que escreveu entre outras coisas:

“... o espaço disponível é somente para no máximo 700 emigrantes e os irmão

Cosulich colocam lá mais de 1.000. As macas são muito próximas umas das outras; e

estão presentes até nos corredores. Até os refeitórios deixam muito a desejar, não

existem lixeiras estáveis, o lixo é simplesmente empilhado no quintal onde

permanece por muitos dias e no fim são entregues aos agricultores (!).

Sendo assim, um local onde se considera um fluxo extraordinário de emigrantes (100

recém-chegados por dia) constitui um permanente perigo. E a prova foi obtida

precisamente com este caso de varíola – que pode infectar sabe-se lá quantos

indivíduos, aglomerados como senão naqueles ambientes. A casa de boas-vindas não

é dotada de nenhum aparato de desinfecção a vapor; em certas cidades onde fluem

tantos emigrantes tudo é melhor organizado; cito Marselha, Gênova, Nápoles e etc.!”. 24

____________________________________________

22. Para tal fim adquiriu um edifício que foi projetado em 1980 e materializado logo

depois. Se encontrava no distrito periférico de Servola, de frente para o mar, e era

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uma bela construção localizada no centro de uma área verde. As dimensões em planta

eram 38 x 50 metros e era constituído de um porão, dois andares superiores mais um

terceiro andar no sótão. O proprietário era a Sociedade dos Amigos da Infância e

servia para dar alojamento a colônias de crianças, frequentemente com doenças

pulmonares, fazendo-as gozar dos benefícios dos banhos de mar. Em 1893 em todo o

edifício haviam quatro salões destinadas a dormitórios, dois deles capazes de

hospedar “15 meninos” e duas capazes de hospedar “15 pagantes”. Em agosto de

1894 os técnicos da Sociedade projetaram a preparação de outros dois grandes

quartos no sótão. Em 1913 a Casa do emigrante sofreu enormes mudanças: aumento

do edifício, ao qual foi adicionado 3 andares, e a usa destinação exclusiva a

dormitórios, capazes de dar descanso a 3000 emigrantes, e adicionando outros dois

edifícios destacados, os quais combinados como pavilhões de isolamento e outro de

refeitório. A nova Casa do emigrante não pôde quitar as suas tarefas por alguns

meses, em um primeiro momento por causa da explosão da guerra e da conseqüente

cessação dos fluxos emigratórios e em um segundo momento, a partir de outubro de

1916, sendo destinada a um hospital auxiliar. O edifício em questão existe ainda hoje,

embora reestruturado recentemente. Se encontra na Via Italo Svevo 15 e hospeda uma

escola.

Fontes: Prefeitura de Trieste, Área de Planejamento Urbano, Arquivo de desenho

técnico, desenho 6536 e Arquivo Geral da Prefeitura de Trieste, Magistrado Civil,

Seção IV, 566/13.

23. Arquivo Geral da Prefeitura de Trieste, Magistrado Civil, exibição 22.502/1905,

1/9-2/1905.

24. Arquivo Geral da Prefeitura de Trieste, Magistrado Civil, exibição 25.129/1906,

4/4-1/1906. Outros casos de varíola na Casa do emigrante da Austro Americana se

deram em 1913.

O problema sanitário foi levantado ainda, continuamente, tanto até forçar a Austro

Americana a substituir a prática de lotar além da medida a Casa do emigrante e a

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procurar locais suplementares, utilizando “também próprias embarcações que serviam

de albergues provisórios em mar: um albergue flutuante, que não permite que os

emigrantes proliferem na cidade e sejam hospedados no centro da cidade, trazendo

tanto perigo para a nossa saúde pública”.25

Resta o fato que a questão sanitária ligada a passagem na cidade de milhares de

emigrantes por ano era de extrema urgência, sobretudo para uma cidade que, como

Trieste, revelava em matéria de saúde e higiene um sofrimento surpreendente. A

cidade havia crescido em modo desproporcional naquela década entre os

recenseamentos de 1900 e 1910, dando vida a um aumento demográfico de mais de

50.000 habitantes, mensurável na ordem de 28,5%, enquanto o sistema de esgoto e

aquele fornecimento de água restavam totalmente inadequados. A situação habitativa

era desastrosa, somente em parte aliviada pelo programa de edificação de casas

populares confiado ao Instituto Municipal de Habitações Mínimas. Entre as classes

populares imperava a tuberculose, o alcoolismo, a pobreza e a decadência. E se

difundiam as epidemias, como o tifo e a varíola, que em 1913 registrou 15 casos

mortais.26

Portanto parece hoje que fosse freqüente o medo que entre os passageiros de terceira

classe existissem portadores de infecções capazes de funcionar como estopim e

infectar alojamentos populares, “aluga-leito” ou mesmo a Casa do emigrante.

Os lugares de recuperação para os emigrantes são sempre descritos, em documentos

históricos, que se ocupam de questões que interessam a burocracia sanitária, e de

quem os escreve a distância de anos em uma prospectiva de reconstrução histórica,

como péssimos e portanto investidos de reprovação. E é certamente possível segui-

los em caráter “concentracionais”, basta pensar somente ao fato que vinham

posicionados o mais próximo possível às estações ferroviárias para evitar ou reduzir

ao mínimo relacionamentos e contatos com os residentes até a partida do navio. Mas

ocorre sempre ter presente o fato que foi muito pior aos emigrantes que terminavam

naqueles portos privos de infra-estrutura dedicadas à eles, obrigados a mover-se em

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grupos à mercê de contágios e pessoas mal-intencionadas, para depois acamparem

sobre os bancos a esperar o navio compondo aquelas imagens de uma multidão

indefesa e desesperada que foram tantas vezes descritas.

Chegava finalmente o momento do embarque, precedida das fases de preparação do

navio, que decerto deveriam parecer misteriosas a quem as via pela primeira vez: o

vai-e-vem de trabalhadores que efetuavam manutenções e preparação de bordo, dos

“coffinanti” que derrubavam o conteúdo dos seus cestos enormes nos funis para o

carvão. E, finalmente, acontecia o embarque através do passadiço, símbolo e prelúdio

daquela “realidade líquida” que teria sido para todos a base de apoio do navio na fase

de passagem do velho ao novo mundo.27

______________________________________

26. Em dezembro de 1913 a Prefeitura confiou um estudo sobre as causas da difusão

do tifo a um cientista trazido propositalmente de uma outra cidade. O relatório não foi

de maneira alguma tranqüilizante, resultando inexistentes ou insuficientes todas

aquelas “instituições geralmente elencadas no conceito de 'saneamento higiênico'.

Estas são: uma boa canalização, um distanciamento ideal dos lixões e das imundices,

uma provisão irrepreensível de água, o controle do mercado de alimentos, o

melhoramento das más condições de moradias”. Algumas circunstâncias resultavam

particularmente alarmantes, como por exemplo “o fato, que na peixaria, além da água

de Aurisina [ou seja do aqueduto público] foi canalizada a água do porto, depois de

ser feita uma simples depuração. Ora, aquela água marinha foi colhida a somente 150

metros da saída de alguns canais da cidade e é exposta além de tudo a contínua

poluição dependendo do movimento dos navios.”

Fonte: W. Prausnitz, Parere del Prof. Prausnitz sulle condizioni igieniche di Trieste in

nesso all'epidemia di tifo, Graz, 1913, Arquivo General da Prefeitura de Trieste,

Magistrado Civil, Seção V, 1913/2-3697.

A travessia

Antes do advento dos navios a vapor, os emigrantes viajavam a vela. Se tratava de

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travessias que frequentemente se transformavam em verdadeiras e próprias odisséias,

e não é a caso que se referiam aos navios a vela, na metade de 1800, chamando-os

Coffin Ships. Eram embarcações que efetuavam transportes mistos, pessoas e

mercadorias (como farão também depois, por décadas, os navios a vapor). Por quanto

diz respeito à direção da Europa à América setentrional, no trajeto Westbound,

transportavam, além de passageiros, também ferro, tecidos, vidro, tijolos e produtos

químicos e ao retorno, no trajeto Eastbound, algodão, tabaco, trigo, gado e porcos.28

Os emigrantes zarpavam da Havre para Nova Orleans, de Brema para Baltimor, de

Liverpool para Nova Iorque, Quebéc e Boston, dividindo a viagem com vacas,

ovelhas, porcos, à mercê dos ventos, das correntes, das geleiras.

Sendo aleatória a duração da viagem, era muito difícil para os passageiros calcular as

provisões e o dinheiro de qual munir-se, o que os deixavam expostos à fome o aos

truques da tripulação que conheciam perfeitamente o mecanismo e os abusam ás

vezes dando conscientemente notícias erradas no momento do embarque.29

Nos tempos da vela não demorou muito para se improvisar vetores para os

emigrantes, bastava ter um veleiro de dimensões médias; o investimento poderia ser

até modesto mas, reciprocamente, o frete era muito elevado: em 1851 o frete por

emigrante era páreo ao custo por tonelada de um veleiro. 30

Muito frequentemente a partir da improvisação nasciam situações críticas. De uma

dessas, que se refere a cidade de Trieste, restaram pistas nos arquivos porque foi de

uma gravidade tal para ter sido objeto de interesse da parte das autoridades judiciárias

e da polícia da cidade, então capital do Litoral Austríaco. Em 1888 dois banqueiros

triestinos, Isacco e Giuseppe Morpurgo, alugaram três navios a vapor do Lloyd

Austriaco, o Helios, o Orion e o Medusa, que zarparam de Trieste respectivamente

em 25 de outubro, 25 de novembro e 27 de dezembro, todos os três diretamente ao

Brasil com as suas cargas de emigrantes do território de Trieste e do Reino da Itália.31

A tentativa dos irmãos Morpurgo de dedicar-se continuamente e definitivamente ao

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tráfego de emigrantes teve um fim frustrante por uma série de fatores concomitantes,

primeiro de tudo uma ação penal por seus danos feita pela polícia austríaca e a

proibição de instituir agências de emigração a Trieste emitido da autoridade local do

Litoral Austríaco em janeiro de 1889. Mas foi uma tentativa notável, que na primeira

viagem teve um epílogo muito interessante, com um contingente de cerca duzentos

triestinos que, desembarcando em uma localidade diferente a respeito daquela

acertada, reagiram a delusão produzida pela mudança das promessas e a realidade

com uma série de reivindicações e

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27. G. Carosio, Navi da emigranti, em Lamerica! 1892 – 1914 Da Genova a Ellis

Island: il viaggio per mare negli anni dell'emigrazione italiana, Sagep, Genova,

2008, p.80.

28. P. Taylor, The distant Magnet, cit., p. 107.

29. M. A. Jones, Transatlantic Steerage Conditions. From Sail to Steam, 1819 – 1920,

em B. Flemming Larsen, H. Bender, K. Vein (Editores), On distant shores.

Proceedings of Marcus Lee Hansen Immigration Conference, Aalborg, Denmark,

June29 – July 1, 1992, The Danes Worldwide Archieves, 1993, p. 68.

30. A. Molinari, Porti, trasporti e compagnie, cit., p. 242

31. A reconstrução da história dos triestinos repatriados se encontra no Arquivo do

Estado de Trieste, sede do Litoral, Atos Gerais, b. 481, f. 1.604.

exigências, às quais na subscrição dos contratos, o intervento do cônsul austríaco e

enfim o repatriamento à Trieste, via Gênova em um navio inglês, que os permitiu de

tornar a casa em 14 de janeiro de 1889, dois meses e meio depois da partida. O

comportamento recalcitrante e pouco remissivo tomado no Brasil pelos triestinos

poderiam ser um convite a reflexão sobre o esteriótipo do emigrante como sujeito

passivo, abandonado à uma corrente que era incapaz de controlar.

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A passagem entre a era da vela e aquela a vapor poderia ser desempenhado na vida e

na experiência de Andrea Gagliardo, um agricultor genovês que desde 1847 até 1888

embarcou 14 vezes para a América. De algumas das 14 viagens restaram traços

escritos no Arquivo Ligure da Escritura Popular que se encontra na Universidade de

Gênova, o que permite confrontos interessantes. Existem duas notas sobre um seu

manuscrito autobiográfico, separados entre eles por pouco mais de uma década, que

fixam com clareza exemplos de transformações epocais na história das emigrações

internacionais: “1847. Brigantino Bettuglia de Gênova a Nova Iorque. 57 dias. 1861.

Vapor Etna de Liverpool a Nova Iorque. 17 dias.” 32 Se trata de uma verdadeira

revolução, que se investiu sobre as variáveis principais da viagem do emigrante, ou

seja, o porto de embarque, o tipo de embarcação e a duração da viagem.

Não apenas os navios a vapor haviam suplantado os navios a vela, 33 se abriu uma

nova fase que em breve se tornou uma epopéia: havia chegado o tempo dos desafios

tecnológicos e construtivos entre as grandes companhias de navegação (Cunard Line,

White Star Line, Hamburg-Amerika Linie, Norddeutscher Lloyd …, as mesmas que se

colocavam na mesa para repartir as fatias do mercado dos tráfegos emigratórios

criando os cartéis), que se empenharam com todos os seus recursos e energia para

construir o maior, mais veloz e mais luxuoso navio. Foi o período dos gigantes do

mar, dos desafios para rasgar a Fita Azul do concorrente, dos recursos pesados a

serviço do progresso da indústria marítima. Mesmo se, ocorre observar, do ponto de

vista da viagem do emigrante, os grandes transatlânticos representavam a excelência,

o pico, as exceções, enquanto a extra-grande maioria dos circulantes continuou a ser

constituído de navios velhos, lentos e espartanos.

Foi assim que os emigrantes encontraram-se a dividir a viagem com os “passageiros

de classe”, onde na definição é subentendida o cardinal primeira. E é uma

categorização tão forte que permanece ainda hoje no linguajar para definir alguma

coisa refinada, algo que se diz, justamente, de classe. Nascia uma dicotomia perene

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que se nutria de oposições: tantíssimos os passageiros na terceira classe, poucos na

primeira; pouquíssimo espaço para o necessário, muito para o desnecessário; atração

pelo destino final, consciência vaga ou nula da sua existência e essência;34 a viagem

como fim ou distração e a viagem como obrigação para a sobrevivência ...

______________________________________________

32. A. Molinari, Porti, trasporti e compagnie, cit., p.237

33. A alternação aconteceu com uma certa cautela: os navios antes foram em ferro

para depois tornar-se nos anos oitenta de 1800 em aço (e diminuir 15% do peso).

Munidos de uma única hélice, mantiveram mastro e vela em caso de avaria, cautela

rendida excessiva após a difusão de cascos com duas hélices. Quase

contemporaneamente se iniciou a utilizar a eletricidade a bordo, que logo permitiu às

embarcações de adotar frigoríferos e eliminar portanto a necessidade de transportar

gado vivo para ser abatido durante a navegação, o que trouxe todos os benefícios do

ponto de vista sanitário.

Fonte: P. Campodonico, Dal Great Eastern al Queen Mary. Nascita di un mito

moderno, in P. Campodonico, M. Fochessati, P. Piccione (editado por),

Transatlantici. Scenari e sogni da mare, cit., pp. 26 e 30.

34. A consciência do destino muitas vezes variava de acordo com a nacionalidade dos

viajantes: “[...] the Germans have maps in their pockets and point out just the place of

their several

O alojamento a bordo dos emigrantes nos navios a vapor podia acontecer, como nos

tempos da vela, em navios que carregavam também mercadorias (e em tal caso as

paradas nos portos eram particularmente trabalhosas porque deviam organizar os

dormitórios em estruturas modulares que vinham várias vezes montadas e

remontadas) ou então, nos transatlânticos, juntamente aos passageiros de segunda e

terça classe. Segundo observadores contemporâneos, a melhor solução não era

nenhuma das duas, mas uma terceira, ou seja a construção de piróscafos dedicados

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somente aos emigrantes. De fato, as naves mistas não andavam bem depois de serem

readaptadas sobre a base da “engenhosidade especulativa com regulamento a mão” e

os transatlânticos muito menos pois viciados das circunstâncias que “era muito dar à

eles a comodidade e o luxo das classes, porque todos os cuidados [poderiam]

deveriam ser endereçados à população esfarrapada formada pelos emigrantes.”35

Para reconstruir a vida de bordo no decorrer da viagem são ainda muito úteis os guias

do emigrante, sempre pródigo de conselhos e advertências. 36 Mas existem também

outras fontes, que executavam a mesma função com tons menos paternalistas e com

mais afeto e participação, como as cartas que quem havia já emigrado mandava à

casa, para beneficiar os parentes e amigos que estavam para empreender-se a viagem.

Eis um exemplo, tirado de uma carta de 1902 de Konstanty Butkowski aos pais, na

qual, em referimento à próxima ida para América do irmão Antoni, o jovem escrevia:

“Queridos pais … vos informo que mandei uma passagem para o navio a Antoni …

Esperem de recebe-la logo … E lembre-se, Antoni, não mostre os seus documentos a

ninguém, exceto nos portos em que deve mostra-los … E se receber logo a passagem,

não espera, mas venha imediatamente … E mande-me um telegrama da Castle

Garden. Não pagará muito, e eu irei à estação ferroviária. Porte com você quinze

rublos, bastarão, e troque rapidamente em dinheiro prussiano. E quanto ao vestuário,

traga os piores que tem, mais ou menos 3 camisas velhas, que você possa ter uma

muda sobre a água. E quando atravessar felizmente a água então jogue fora todas

aqueles trapos. Não traga nada com você, exceto aquilo que você veste. E não use

nem ao menos bons sapatos, ma tudo da pior qualidade. Quanto a comida, traga um

pouco de pão seco e muito açúcar, e cerca de um quarto de álcool, e um pouco de

carne seca. Depois, traga algumas cebolas, mas não traga queijo … E seja prudente

com o dinheiro em todos os portos. Não fale com nenhuma garota sobre a água. …

“37

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destination” enquanto “the Polish emigrants […] do not understand where they are

going […] because it is all 'America'.”

Fonte: P. Taylor, The Distant Magnet, cit., p. 66.

35. T. Rosati, Assitenza sanitaria degli emigrati e marinai, cit., p. 72.

36. Eis um exemplo: “[O emigrante] A bordo não faça ruído, tenha um

comportamento sério e respeitoso com todos, especialmente com as mulheres; não

moleste os outros, não suje o pavimento, ao descamar a pele, tenha cura da sua

pessoa, lave-se, penteie-se, troque frequentemente de roupas, não jogar, não compre

alimentos além daqueles disponíveis a bordo; seja respeitoso, educado e leia algum

livro instrutivo e pelo menos, para não ficar no ócio, se sabe ler pouco, se exercite na

leitura para se aperfeiçoar. Nos dias de mar agitado não se exponha no convés, nas

escadas, nas escotilhas, para evitar desgraças. Se possui crianças com você, vigie-as

atentamente, cuide rigorosamente da sua limpeza. Para qualquer reclamação contate o

Real Comissário viajante, que se encontra a bordo do piróscafo, e na sua falta, o

médico de bordo faz a sua vez.”

Fonte: Manuale per l'istruzione degli emigranti, Comissário Geral da Emigração,

Roma, 1925, p.126.

Muito interessantes os temas que vinham tocados na carta em forma de advertências:

não vestir boas roupas (que as condições da viagem renderiam inúteis por serem

usados noite e dia, pela contaminação com líquidos orgânicos – fezes, urina e vomito

próprio e dos companheiros de viagem – e pelo efeito do pó de carvão que envolvia

como uma nuvem os navios em viagem) 38; não vestir sapatos bonitos (que seriam

roubados durante a noite); levar comida calórica e fácil de conservar (que serviria a

integrar a refeição ou a substituí-lo quando o passageiro houvesse sofrido de mal de

mar); ser prudente em cada porto com o dinheiro e não falar com as garotas (para

evitar de cair em engano ou em fraudes, que evidentemente eram ás vezes também

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camufladas por intrigas de fundo sentimental).

Nas cartas dos emigrantes se encontrava muito frequentemente a recomendação de ter

cuidado com a própria bagagem de mão.39 Enquanto com os pertences colocados no

bagageiro do navio, restava só esperar que não se realizassem furtos nas várias

passagens de mão dos pacotes, furtos que não eram de fato infrequentes. Eis os

lamentos de um emigrante, confiada a uma carta escrita do Brasil em 1889:

“Não é raro o caso que […] o emigrante resta privo do volume de bagagem que

exportou da Europa, que são raríssimos aqueles que chegavam felizes a Colonia. À

um deles, não há muito tempo, que se lamentava que havia perdido todos os seus

baús, teve a resposta que não devia lamentar-se, que objetos de vestuário existem

também aqui. Duas esposas, casadas pouco antes de vir aqui, tinham guardado as

coisas no criado-mudo e chegando em São Paulo o encontraram cheio de carvão. Os

furtos que eram cometidas impunemente nos portos de Santos e Rio de Janeiro, com

respeito às bagagens dos emigrantes, são inacreditáveis e eu precisaria de um

quaderno inteiro para relatar todos os particulares.” 40

Ao que diz respeito às bagagens de mão, nos papéis arquivados se encontram não

raramente, documentos capazes de ilustrar as suas consistências. Se tratam de verbais

redigidos em forma de inventário do comandante o dos oficiais superiores em caso de

óbito do proprietário. 41

______________________________________

38. O pó de carvão criava um tipo de névoa, motivo pelo qual os projetistas dos

navios da época do vapor escolheram a pintura de cor preta. Eis um outro testemunho

sobre os efeitos do carvão: “Não te digo que névoa de carvão que havia ao redor.

Estávamos todos assim pretos e como fazia calor, porque é uma terra quente, não sei,

todos suados e escorria a gota branca na pele preta.”

Fonte: Trenta giorni di maccina a vapore..., cit., p.477.

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39. Também Karl Rossmann, o emigrante kafkiano embarcado em um navio da

Hamburg-Amerika Linie diretamente para Nova Iorque, considerava muito a sua

bagagem, ao ponto que, durante a viagem, no dormitório havia “... por cinco noites

continuamente suspeitado de um pequeno eslovaco que dormia duas beliches além da

sua, à esquerda, temendo que mirasse a sua bagagem. Karl temia que o eslovaco

espera somente que ele no fim, vencido pelo cansaço, se adormecesse para puxar as

malas com um lungo bastão com o qual brincava ou fazia pequenas acrobacias

durante o dia.”

Fonte: Franz Kafka, Il fochista, em Racconti. Descrizione della tragedia dell'uomo

moderno, Biblioteca Universale, Rizzoli, 1991.

40. Carta de Francesco Costantin, Colonia Angelica, São Paulo-Brasil, 8 de junho de

1889, em E. Franzina, Merica! Merica! …, cit., p.174.

41. Eis um, redigido ao leprosário de San Bartolomeo nas redondezas de Muggia em

3 de julho de 1911 para se responsabilizar dos efeitos da defunta Maria Soldan,

galega, morta por cólera asiática. A senhora tinha 28 anos, morava em Nova Iorque e

viajava em companhia dos quatro filhos que

foram confiados a uma estrutura assistencial triestina. A sua bagagem de emigrante

continha:

No caso apenas citado na nota de rodapé se entende que a azarada súdita austro-

húngara era uma viajante habitual das circunstâncias que era dotada de louças e

talheres para fazer as refeições. Aos emigrados que não eram assim cientes e

previdentes, o necessário vinha alugado no momento da primeira refeição com a

obrigação de restituir na chegada eventuais objetos danejados o perdidos. A refeição

acontecia de maneira diferente dependendo se o navio possuía ou não um refeitório.

Os navios das companhias italianas eram desprovidos de refeitórios (foi introduzida

uma experimentação apenas em 1906, a bordo do piróscafo Roma que fazia a rota

entre Gênova e Buenos Aires, mas iniciaram a difundir-se muito mais tarde e com

notável resistência por causa do espaço que vinha ocupado com a sua presença,

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subtraindo-o das beliches),42 e as refeições vinham servidos através da formação de

um grupo de seis pessoas, das quais uma retirava a comida também para os outros e

esta tinha o dever de distribuí-lo segundo critérios de igualdade.43 Eis um exemplo do

funcionamento de tal sistema:

“Bom, somos a bordo, fizemos logo amizade com uma pequeno grupo de homens que

procuravam amigos para fazer um grupo de cinco para comer. Porque não tinham

mesas e cadeiras, as pessoas comiam sentadas no chão. Então dissemos: “Sim, nós

somos em dois”, “Nós somos aqui”, “Se nos aceitam ficamos felizes”. Aqueles lá

beatos e felizes também nos deram o número para comer, que era como uma bacia

para a sopa ou macarrão, uma bacia mais baixa para a comida, um prato de lata fundo

para todos (tudo lata, é?), uma colher e um garfo, faca não. Os homens tinham os

canivetes, e então o usavam, eram eles que cortavam. E beber... o copo naturalmente

de lata com alça, senão queimava... Bom aquele café! Seria porque eu nunca tinha

bebido, enfim... café, nada de leite... leite somente para as crianças até dez anos, para

mim o davam ainda. E para o lanche uma sopinha... passava a enfermeira com... É,

era necessário fazer fila na porta da cozinha. A cozinha era lá no alto, na parte de

dentro. O homem encarregado do vinho, o homem encarregado da sopa e da comida,

faziam um pouco de fila, pegavam as coisas, depois vinham para nós e cada um havia

já encontrado um cantinho. Se tinham encontrado um cantinho nas cordas, sobre um

banco qualquer, muitos traziam as espreguiçadeiras, não muitos mas muitos enfim.”44

Com referência à quantidade de comida que vinha administrada aos emigrantes

devemos retornar a um fenômeno já mencionado, ou seja, sobre o comportamento

muito frequentemente tomado pelos membros da tripulação que chegavam a

administrar doses menores dos alimentos com respeito ao previsto com o objetivo de

complementar o deficit com a venda de porções subtraídas da carga do navio ou

mesmo introduzidas ilegitimamente da terra de maneira premeditada.

________________________________________

“5 colheres comuns; 3 garfos comuns; 1 canivete; 1 prato de lata,1 espelhim; 3

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pentes; 9 copos de vidro variados; 1 pacote de chá; 1 escova para roupas; 43 peças de

vestuário para crianças; 23 peças de vestuário feminino; 3 lenços; 4 pedaços de fita

colorida; 1 toalha; 3 toucas para crianças; 5 pedaços de tecido variado; 1 cinto

feminino; 2 pares de sapatos de crianças; 4 pares de sapatos de mulher; 3 pedaços de

sabão; 1 manto pequeno; 38 pedaços de retalhos; 1 baú; 1 mala; 1 saco; 3 cadeados

para a bagagem; 1 porta-moeda contendo 2 passagens para bagagens e 1 passagem

Nova Iorque – Trieste, 2 anéis de ouro, 35 ¼ dólares.”

Fonte: Arquivo do Estado de Trieste, Governo Marítimo, b. 860, fascículo 5.494 de

1913.

42. G. Rosoli, L'assistenza sanitaria all'emigrazione di massa …, cit., p.204

43. Critérios que eram muitas vezes virtuais, sem manifestar-se em comportamentos

efetivos, sendo fatalmente destinados a prevalecer os passageiros fornidos de dinheiro

que aceitavam de corromper os homens da tripulação, as mulheres jovens que

aceitavam de utilizar a sua graciosidade, os homens robustos e prepotentes.

Fonte: P. Taylor, The Distant Magnet, cit., p.138

44. Trenta giorni di macchina a vapore …, cit., p.476

No que diz respeito à qualidade dos alimentos, essa devia ser geralmente dita como

muito discutível. Nesse propósito ocorre registrar o estupor de alguns observadores

com a visão de que fossem nojentos os emigrantes em termos de gostos alimentares.

Escreveu também Robert Louis Stevenson, que em 1879 tinha viajado a bordo do

Devonia de Glasgow a Nova Iorque, misturando-se frequentemente durante o dia aos

emigrantes (mas dormindo de qualquer maneira em uma cabine de segunda classe):

“Houve alguém que estava assim próximo de morrer de fome na sua casa, que saltou

sobre o navio, digamos, com o diabo nos calcanhares; para eles era tudo maravilhoso,

e o nosso o navio mais esplendoroso. Mas a maior parte era profundamente

descontente. Eu me surpreendi ao ver que possuíam gostos tão delicados, visto que

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vinham de um país em condições desastrosas como a Grã Bretanha, e muitos de

Glasgow que, comercialmente falando, era a morte, e eram desocupados a tanto

tempo. Eu também vivia quase exclusivamente, como eles, de pão, mingau e sopa, e

achei o todo, se não de luxo, ao menos decente. Mas estes trabalhadores gritavam

enfaticamente o seu protesto. Não era “comida para seres humanos”, era “bom para

os porcos”, era “uma vergonha”. Muitos viviam quase exclusivamente de biscoitos,

outros das suas provisões pessoais, e alguns pagavam a mais para ter porções

melhores.” 45

O pernoitamento a bordo acontecia nos dormitórios, salões que poderiam conter até

algumas centenas de pessoas, um verdadeiro caos, permanentemente sujas, úmidas,

infestadas de germes, bactérias e parasitas, impregnados de um fedor para o qual os

médicos de bordo cunharam o neologismo “fedor de emigrante”. 46 A área dos salões

era realmente irrespirável por muitos fatores entre eles a temperatura, o ácido

carbônico e o vapor de água causado pela respiração, os produtos tóxicos voláteis

frutos da secreção dos corpos, a presença de fezes e urina e vômito, não retidos pelo

mal de mar, que ninguém se preocupava em remover do pavimento e das vestes.47 Os

dormitórios dos emigrantes eram divididos por sexo: até uma certa idade os meninos

podiam estar com as mãe naquele reservado as mulheres, para passarem

sucessivamente àquele dos homens. Ao pôr-do-sol acontecia a separação e nos diários

de bordo dos piróscafos poderia calhar de ler que algumas vezes uma manobra

causava preocupação à tripulação. De fato, não eram raros os casos nos quais eram os

próprios núcleos familiares a ver com maus olhos a divisão, preferindo se misturar

com os parentes – mesmo que fosse do sexo oposto – que a proximidade com

desconhecidos do mesmo sexo. 48

____________________________________________

45.L. Stevenson, Emigrante per diletto, Einaudi, Turim, 1987, p.15

O motivo do emigrante que se lamenta desproporcionalmente a respeito dos

desconfortos foi sublinhado também por uma colega do escritor escocês, Amy

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Allemand Bernardy, autora em 1913 de um livro intitulado L'Italia randagia

attraverso gli Stati Uniti, que dizia: “A bordo não é sempre verdade que o emigrante

seja sempre vítima. Mas pelo quanto se lamentam, setenta e cinco vezes para cada

cem estava pior a sua casa e estará pior na sua casa nova.”

Fonte: E. Franzina, Traversate. Le grandi migrazioni transatlantiche …, cit., p. 64

46. A. Molinari, Le navi di Lazzaro … cit., p. 157.

Do mesmo teor outras vozes, como aquela já ouvida de Teodorico Rosati: “bem quem

não viu um dormitório de emigrantes em ação, digamos, não sabe em que coisa se

transforma depois de alguns dias estes leitos. O emigrante ali se deitava vestido e

calçado, o usa como depósito de sacos e malas; as crianças ali deixam urina e fezes; e

ainda vomitam; todos, de uma maneira ou de outra, o reduzia, depois de alguns dias,

a uma casa de cachorro.”

Fonte: T. Rosati, Assistenza sanitaria degli emigranti e marinai, cit., p.91

47. A Molinari, Le navi di Lazzaro …, cit., p. 17-18.

48. M.A. Jones, Transatlantic Steerage Conditions …, cti., p. 67

Era delicadíssima em qualquer caso o posicionamento em bordo das garotas que

viajavam sozinhas, muito frequentemente, assediadas, molestadas o até mesmo

violentadas sexualmente por outros emigrantes, mas sobretudo por membros da

tripulação.49 Não era raro de fato os comandantes dos navios serem obrigados a

intervir contra os seus subalternos, como fez, por exemplo, o comandante do

piróscafo Argentina em viagem em 1925 de Trieste a Nova Iorque, que no diário de

bordo invocou “os procedimentos adequados da parte da Capitania do Porto” da

cidade giuliana contra 5 fogueiros e 4 carvoeiros senhor de ter arrombado noite a

dentro uma porta de comunicação com a idéia de acessar os dormitórios dos

emigrantes.50

O governo da nave não era de qualquer forma simples da exercitar para o comandante

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que detinha a responsabilidade e que devia supervisionar as atividades de centenas, ás

vezes milhares, de emigrantes e ao mesmo tempo ter em mãos as intemperanças dos

membros da tripulação. Não era infrequente o caso que os segundos envolvessem os

primeiros agitando-os com pretextos; assim acontecia, por exemplo, a bordo do

piróscafo Sofia em viagem entre Trieste e o Brasil em 1923, onde membros da

tripulação induziram os emigrantes a um protesto organizado contro a qualidade da

comida, uma macarronada definida “nojenta”.51 Particularmente intratáveis e

ingovernáveis eram os fogueiros, que de propósito mantinham frequentemente baixa

a pressão das caldeiras com o objetivo de diminuir a velocidade e condicionar o

comandante, que se via obrigado a obedecer aos pedidos e reivindicações – podemos

imaginar a contra gosto – para não causar atrasos.

O caso dos membros da tripulação que, apenas tocado o porto de chegada, se

confundiam com a multidão na área de desembarque sem deixar pistas era tão

freqüente que fez surgir a suspeita que não se tratavam de desertores, como vinham

indicados nos diários de bordo dos navios que abandonavam arbitrariamente, mas sim

de emigrantes que tinham escolhido um meio de viajar menos desconfortável e

promíscuo e mais trabalhoso dos seus “colegas”. Não é uma hipótese da excluir que

em princípio existisse um acordo com o comandante do navio, que podia ser

induzido a fechar os olhos por causa da dificuldade de alistar o pessoal para o

trabalho braçal e também pelo fato que a última parte do pagamento de cada desertor

não era feita, tornando-se uma economia de despesas a disposição das companhias e

talvez até – querendo pensar mal – do próprio comandante. 52

________________________________________

49. O fenômeno era tão difundido ao ponto do Congresso dos Estados Unidos em

1860 votou uma lei que punia com um ano de cárcere e uma substanciosa multa

pecuniária comandantes e oficiais que, como acontecia sempre, circundavam as

passageiras com promessas de matrimônio para depois abandoná-las no porto de

destino.

Ana Herkner, inspetora de uma comissão americana sobre a emigração, em 1908

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atravessou por 3 vezes o Atlântico como uma emigrante qualquer e referiu um

contexto de ausência total de legalidade e respeito para com as mulheres. Do

momento da partida as mulheres não acompanhadas perdiam qualquer foma de

privacidade, sendo continuamente molestadas pelos membros da tripulação: quando

se vestiam o se despiam nos dormitórios onde qualquer um podia ter acesso; ao ar

livre, nas pontes, onde stewards, bombeiros, marinheiros, e outros homens da

tripulação endereçavam à elas comentários vulgares e passavam até, não raramente,

às vias de fato.

Fonte: M. A Jones, Transatlantic Steerage Conditions …, cit., pp. 70 e 75-76.

50. Arquivo do Estado de Trieste, Diário de bordo do piróscafo Argentina, livro um,

Diário geral e de contabilidade, N. 1.611, p. 15, 22 de outubro de 1922.

51. Arquivo do Estado de Trieste, Diário de Bordo do piróscafo Sofia, livro um,

Diário Geral e de contabilidade, N 1.361, pp. 69-70, 2 de agosto de 1923.

52. Em certos casos os abandonos arbitrários eram em cada viagem números. Só para

fazer um exemplo, se via o caso do piróscafo Presidente Wilson do qual, durante a

viagem partida da Trieste

Do ponto de vista sanitário, o navio era um lugar patogênico por excelência, como

evidenciado das estatísticas italianas elaboradas pelo Comissariado Geral da

Emigração entre os anos 1903 e 1925. As patologias que se difundiam a bordo

mudavam de freqüência e de intensidade dependendo se a viagem era para a América

setentrional ou meridional e se era a viagem de ida ou de volta. Ao que diz respeito à

América do Sul, nas viagens de ida prevaleciam sarampo, malária e sarna, enquanto

nas viagens de retorno tracoma, tuberculose e sarampo. Com respeito aos Estados

Unidos, nas viagens de ida predominavam sarampo, malária, pneumonia, nas viagens

de retorno, tuberculose, sarampo e alienação mental. As tipologias das doenças

registradas nas viagens de ida são diferentes de acordo com os destinos, também

devido ao sistema de controle dos vários países, que haviam malhas mais ou menos

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estreitas de acordo com as diversas legislações. Malhas que eram estreitíssimas no

caso dos Estados Unidos, especialmente depois que foi instituída, com o intuito de

limitar o quanto possível os rejetos por motivos sanitários no porto de desembarque e

os conseqüentes, dolorosos, procedimentos de repatriamento, a figura do médico

americano que examinava os emigrantes nos portos de embarque. 53

As estatísticas do Comissariado Geral da Emigração nos fornecem os dados de

mortalidade durante a travessia entre os anos 1903 e 1935. Também neste caso

devemos distinguir as viagens de ida e de volta e os destinos das proveniências, além

de obviamente o ano de referência. Para as viagens de ida para a América do Norte os

picos se deram em 1918, 1917 e 1922 (com taxas de 1,2, 0,7 e 0,6 por mil,

respectivamente); para a América do Sul os picos se deram em 1920, 1921 e 1922

(com taxas de 0,7, 0,6 e 0,6 por mil). Para a viagem de retorno, os picos,

decididamente em aumento, se deram para a América do Norte em 1918, 1917 e 1916

(com 3,15, 2,9 e 2,1 por mil, respectivamente) e para a América do Sul em 1919,

1921 e 1903 (com taxas de 1,8, 1,8 e 1,7 por mil). 54 Vítimas privilegiadas das

patologias de bordo eram as crianças, que sucumbiam ao sarampo que de todas as

outras doenças, por causa da superlotação, da falta de lugares para quarentena, da

pouca eficácia do serviço sanitário e, no caso dos bebês, do fato que por culpa do

estresse da travessia as mães perdiam o leite.

A agravar os quadros clínicos já comprometidos contribuía muito frequentemente a

naupatia, o mal de mar, condição que é sempre invocada nas histórias dos emigrantes:

“Se o tempo é favorável vai tudo bem, mas é difícil fazer uma viagem tão longa

sempre com bom tempo. Não encontro palavras adequadas para descrever-lhes por

inteiro a perturbação a bordo do piróscafo, os choros, os rosários e as bestemias

daqueles que fizeram a viagem involuntariamente, em tempos de tempestade. As

ondas assustadoras que se erguiam em direção ao céu, e depois formavam vales

profundos, o navio apanhou da poupa a prua, apanhou dos lados. Não lhes

descreverei os espasmos, os vômitos (com reverência) e as contorções dos pobres

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passageiros que

__________________________________________

em 22 de dezembro de 1923, nas escalas dos portos de Nápoles, Algéria e Nova

Iorque e Boston “desertaram” em tudo 83 homens da tripulação.

Fonte: Arquivo do Estado de Trieste, Diário Náutico do piróscafo Presidente Wilson,

livro um, Diário geral e de contabilidade, N. 1.014.

53. O médico americano era um verdadeiro e real pesadelo para os emigrantes: “Em

pé ao lado da passagem de uma porta que dava acesso à ponte de embarque, entre um

guarda da polícia e um outro, mastigando um charuto e qualquer cigarro, este cérebro

da medicina olha, toca, empurra e rejeita os emigrantes que se metem em fila um

atrás do outro e um rigor extremo é reservado às doenças dos olhos, e ele gira as

pálpebras de todos, um à um, alí ao ar livre, no meio da poeira, alternando este

exercício digito-oftálmico com qualquer trago que, de tanto em tanto, dá em seu

charuto que queima com dificuldade.”

Fonte: T. Rosati, Assistenza sanitaria degli emigranti e marinai, cit., p. 47

54. Reformulação dos gráficos presentes em A. Molinari, Le navi di Lazzaro …, cit.,

pp. 143-144.

ainda habituados a estes cumprimentos. O dia em que o mar é tempestuoso, poucos

são aqueles que vão pegar comida, o chefe do refeitório podeira deixar de tocar o

sino.”55

A descrição de tempestades e temporais é presente com altíssima freqüência também

nos diários de bordo escritos pelos comandantes, que não economizavam palavras em

descrições detalhadas com particular atenção às condições do mar e às repercussões

sobre a carga do navio. Havia uma razão precisa para tanto interesse pelas condições

climáticas: se tratava de anotações feitas para aliviar a responsabilidade do vetor no

caso em qual a mercadoria sofresse qualquer dano através da demonstração que havia

sido feito de tudo o possível para evitá-los. 56

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No curso da navegação havia sempre o risco de acidentes ou mesmo de naufrágios.

Aconteceram naufrágios famosos e alguns mesmo célebres, sobre os quais não seria o

caso de discorrer. Fazemos uma exceção para o mais notório de todos ao ponto de ser

transformado em proverbial, aquele do Titanic, e somente como observação digo que

apesar dos emigrantes terem sido a “extra-grande” maioria dos passageiros, foram

muito poucos os que se salvaram. Na época dos fatos explodiram polêmicas ferozes

em mérito, e alguns disseram que a causa de tantas mortes foram as suas próprias

aversões em abandonar o navio, porque não poderiam acreditar que o navio não era

inafundável, porque não queriam deixar a bordo as malas, porque eram alojados em

posições tais para poder alcançar as pontes superiores somente com muito atraso. 57

A socorrer os náufragos da capitânia do White Star Line foi um piróscafo da

concorrência, o velho e golpeado Carpathia da Cunard Line, que percorria a rota da

Fiume (e Trieste) a Nova Iorque e, encontrando-se a cerca de 40 milhas do local do

desastre com os seus 740 emigrantes a bordo e 325 homens da tripulação, lançou o

S.O.S. para o Titanic. O capitão Rostron não exitou a lançar o navio além dos 17 nós

(velocidade que se dizia ter sido alcançada somente em testes) e depois de 4 horas de

corrida louca no oceano cheio de icebergs alcançou e salvou os sobreviventes, 712,

dos quais um morreu a bordo por hipotermia.58

______________________________________________

55. Carta de Francesco Costanti, Colonia Angélica, São Paulo – Brasil, 8 de junho de

1889, em E. Franzina, Merica! Merica! …, cit., p. 174.

56. Eis um exemplo: “Nas tardes o mar piorava muito e imprimia ao piróscafo

fortíssimos movimentos bruscos. Frequentemente o navio era golpeado pelo mar.

Frequentemente a hélice saía fora d'água e a máquina sofria agitações acentuadas

assim como o navio.”

Fonte: Arquivo do Estado de Trieste, Diário Náutico do piróscafo Belvedere, Livro

um, Diário geral e de contabilidade, N. 1.623, p. 75, 26 de setembro de 1922.

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57. P. Campodinico, Dal Great Eastern al Queen Mary. Nascita di un mito moderno,

em P. Campodonico, M. Fochessati, P. Piccione (editado por), Transatlantici. Scenari

e sogni di mare, cit., p. 51.

58. Carlo Gerolimich, que foi comandante do Austro Americana confiou às linhas de

um de seus livros a receita de como evitar um desastre como aquele do Titanic:

“Várias propostas foram expostas para defender os navios dos icebergs que desciam à

deriva no caminho de Nova Iorque:mas nenhum deles teve até hoje aplicação prática.

… Mas, entanto, o único modo para proteger-se das geleiras errantes é a atenta e

ininterrupta vigilância: e quando a névoa envolve o navio o melhor é confiar nas

graças de Deus e diminuir o máximo possível a velocidade. Quem não é fatalista

dificilmente se conforma com o primeiro remédio, e quem tem pressa não aceitará

por nada o segundo...”

Fonte: C. Geromolimich, Manuale pratico del capitano e armatore, Ettore Vram,

Trieste, 1915, pp. 395-396.

Mas na travessia oceânica não haviam somente doenças, lutos, tragédias, enganos,

opressões, misérias. Ás vezes se passava o tempo com serenidade se não até mesmo

divertindo-se, graças a passatempos organizados, como os fogos de artifício descritos

por De Amicis,59 ou ao passar pela linha do Equador fazer o batismo dos emigrantes

que pela primeira vez se encontravam no outro hemisfério, ou espontâneos como as

danças ao som de pequenas orquestras improvisadas.

Muito vívidas as recordações de uma emigrante, das quais as histórias de quando era

uma criança já nos foram úteis, sobre o modo no qual, os peixes e os pássaros que

acompanhavam o piróscafo podiam com a sua companhia oferecer um divertimento

aos pequenos passageiros:

“Ah, as gaivotas, quantas gaivotas! Nunca vistos, naturalmente. Voavam aqui e lá

pedacinhos de qualquer coisa, porque lhes davam pouco. Não é como hoje que ela

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tira da sala de jantar um cesto de pão. Então o tinham um pouco em contato, é? Mas

em resumo, as crianças... Porque os cozinheiros, os camareiros, jogavam os restos,

não sei, e então aquelas gaivotas! E então os peixes que voavam, para nós

pequeninos! Voavam dos cardumes de pequenos peixinhos que pareciam feitos de

prata, nos seguiam. E depois dos peixinhos... o que eram, aqueles, espertos, são

espertos … os golfinhos. E depois uma vez, foi no Mafalda, que batemos naquela

baleia lunga 14 ou 15 metros, a dividimos em dois. Coitada! Chorávamos todos: era

em pedaços. O comandante poderia ter evitado... mas, não sei.”60

Terra!, o desembarque, hotéis para emigrantes, as viagens depois da travessia

A visão da terra era um momento mágico da vida de bordo, o sinal que alguma coisa

estava para mudar, que a sua sorte havia mudado, e de fato eram comemorados com

gritos de júbilo:

“Quando depois de um longa navegação de 30 dias finalmente o dia 11 de janeiro de

uma bela manhã se iniciou a ver as montanhas do Brasil e naquele momento todos

nós começamos a gritar e viva e viva a América ...”61

Era a América, finalmente, os emigrantes se espremiam nas grades de proteção, as

crianças vinham erguidas sobre os ombros, todos se lavavam, os homens se

barbeavam, as crianças eram vestidas pelas mães com as suas melhores roupas para

encontrar com os pais, a gente se interrogava sobre as perguntas que seriam feitas no

desembarque e quem havia já vivido a experiência emigratória dava ____________________________________________________________________

59.“Quando se acenderam as primeiras tochas, se ouviu um estouro e viva, e foram

vistas mil e seiscentos rostos iluminados, uma vasta multidão de gente paradas nas

escotilhas e nos parapeitos, agachadas no teto das tavernas e das gaiolas, agarrados

aos mastros, pendurados nos cabos, em pé sobre cadeiras, sobre as colunas, sobre

barris, sobre os lavatórios; e como não tinha mais nenhum palmo vazio sobre o

convés, e também os bordos da embarcação eram escondidos por tantas pessoas,

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assim toda aquela multidão parecia suspensa no ar, e que voava lenta sobre o mar,

como um enxame de espectros.”

Fonte: E. De Amicis, Sull'Oceano, Oscar Mondatori, Milão, 2004, cit., p.153

60. “Trenta giorni di macchina a vapore.” …, cit., pp. 477

61.Carta de Gio Batta Mizzan ao irmão, Boca do Monte – Santa Maria, Rio Grande

do Sul – Brasil, 17 de março de 1878, em E. Franzina, Merica! Merica! …, cit., p. 81

Um outro testemunho, desta vez literária, vem de Oceano de Alessandro Baricco:

“Aquele que primeiro viu a América. Em todas os navios existe um. E não precisa

pensar que sejam coisas que acontecem por acaso, não... e muito menos por uma

questão de dioptrias, é o destino, aquele. Aquela é a gente que sempre teve aquele

instante estampado na vida. E quando eram crianças, você podia olhá-los nos olhos, e

se olhava bem, já lá via, a América, já pronta a exultar, a escorrer pelos nervos e

sangue e sei lá, até o cérebro e de lá à língua, até por fim, dentro do grito

(GRITANDO), América, existia já, naqueles olhos, de menino, toda a América.”

conselhos. Mas a viagem não tinha acabado, outras provas esperavam os emigrantes,

particularmente severas para quem estava para atracar nos Estados Unidos através do

porto de Nova Iorque. Até 1891, os imigrantes apenas chegados a Nova Iorque eram

recebidos e examinados em Castle Garden, mas a partir do ano seguinte entrou em

função Ellis Island, estrutura gigantesca, eficientíssima e perfeita para as suas

funções e dimensões, que peneirava em cada ano, centenas de milhares de imigrantes.

Em 1907, o ano do recorde, foram controlados mais de um milhão de emigrantes, em

só dia daquele ano foram 11.747.62

A estrutura, que se encontrava sobre uma ilha na baia de Nova Iorque, na foz do rio

Hudson, a duas milhas de Manhattan, foi projetada em 1897 e era constituída de

vários edifícios, 36, onde trabalhavam mais de 500 pessoas, ás quais se juntaram em

1901 o General Hospítal Building. Sobre todos dominava o Main Building, com três

andares, divididos respectivamente do baixo ao alto em depósito de bagagens, sala de

registro, consultas médicas , sala de entrevista, e dormitório. Os navios a vapor eram

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muito grandes para poder atracar e então os passageiros de terceira classe eram

transferidos a Ellis Island a borde de tender , não raramente depois de uma espera

que podia durar até dias inteiros, mas de qualquer maneira, não antes que um médico

do Immigration Service tivesse acertado através de uma visita médica a bordo que

não existissem epidemias e que as normas do direito marítimo e da navegação fossem

respeitadas. 63

Depois de uma breve entrevista os passageiros de primeira e segunda classe podiam

desembarcar sem outras formalidades, enquanto os emigrantes deviam descer com as

bagagens de mão que deviam entregar com o próprio nome ou se analfabetos, com

um símbolo de reconhecimento. Deviam então submeter-se à Line Inspection que

substituiu, a partir de 1905, o exame médico não mais realizável devido ao grande

tráfego de passageiros. Os imigrantes deviam desfilar de maneira que os médicos que

os observavam pudessem perceber anomalias físicas evidentes. Depois vinha o exame

do Eyeman, que verificava se o recém-chegado não era infectado com o tracoma

utilizando uma ferramenta especial, um tipo de fórcipe que servia para levantar as

pálpebras e era muito incômodo e doloroso. Quem se encontrava em condições

clínicas suspeitas era marcado sobre as vestes com um traço de giz, segundo um

código que a cada letra correspondia uma patologia ou uma parte do corpo, para ser

encaminhado a uma visita suplementar que,64 onde ao final se fosse diagnosticada

uma doença infecciosa ou deficiência mental, teria determinado o repatriamento

forçado às custas da companhia de navegação da qual o rejeitado se era servido para

fazer a viagem de ida. 65 Então, depois da realização dos controles sanitários era o

momento da inspeção legal, que

__________________________________________

62.G. Rocchi, La selezione degli emigranti a Ellis Island, em Lamerica! …, cit.,

p.112

63. Ibidem.

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64. Estas eram as correspondências entre as letras e os déficits encontrados: B – dor

nas costas, C – Conjuntivite, CT – tracoma, E – Olhos, F – Rosto, FT – pés, G –

garganta, H – coração, K – hérnia, L – manco, N – pescoço, P – físico e pulmões, PG

– gravidez, SC – couro cabeludo, S – arteriosclerose, X – suspeita de doença mental,

X (cursiva) – doença mental confirmada.

Fonte: N. Di Paolo, Ellis Island. Storia, versi, immagini dello sradicamento, ISLA –

Instituto de Estudos Latinoamericanos Pagnai, Cidade do Sol, Nápoles, 2001.

65.Para obter a diagnose definitiva de doença mental vinham feitas aos candidatos

perguntas de lógica muito simples dentro da Mental Room, do tipo “é manhã ou tarde,

quantas patas tem um cachorro, quantas tem um cachorro e uma vaca juntos” e em

geral era pedido ao examinando de inserir algumas figuras geométricas no lugar certo

dentro de uma moldura. Para levantar suspeitas aos examinadores bastava muito

pouco. Era suficiente dar a impressão de ser excêntrico no modo de vestir,

excessivamente gentil, impaciente, imprudente, nervoso, imperativo, rir e sorrir

muito, ser vulgar, gritar, falar a baixa voz ou trêmula, chorar, ser perplexo...

Fonte: G. Rocchi, La selezione degli emigranti a Ellis Island, em Lamerica! … , cit.,

p.116

se realizava através de perguntas voltadas para verificar que, com base na lei da

imigração de 1907, os candidatos ao ingresso no País não fossem desprovidos de

dinheiro (deveriam ter pelo menos 25 dólares ou, em caso contrário, uma referência e

endereço de um amigo ou parente que garantia assistência em caso de necessidade) e

não fossem e em direção à locais onde, em naquele momento, segundo as autoridades

americanas não havia necessidade de não-de-obra. A permissão vinha também negada

a quem, frequentemente ingenuamente acreditando em tal modo de poder

impressionar favoravelmente os examinadores, declarava de ter já um trabalho que o

esperava ou mais além de ter já estipulado um contrato.66

Para quem emigrava para a América Latina, as verificações no desembarque eram

muito menos meticulosas, e os emigrantes eram acolhidos em estruturas ão muito

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diferentes das pousadas ou dos albergues para emigrantes já experimentados nos

portos de embarque, as casas de imigração ou as Hospedarias de Imigrantes. Eis um

judicio de como se apresentava a Hospedaria de Santos, Brasil, nos primeiros anos

do 1900:

“[...] um grande estabelecimento constituído de um complexo de grandes quartos,

separados por quintais e reunidos por passagens cobertas, onde os emigrantes

estavam por três ou quatro dias antes de ir à parte interna. Aqui faziam os contratos

de trabalho com os famosos fazendeiros. Na Hospedaria os emigrantes tem

alojamento e comida gratuitos; mas qual alojamento e qual comida! O leito não é

nada mais do que uma esteira sobre a terra nua, e a comida é pão e sopa. As

condições higiênicas deste local são tão carentes, tanto para ser comentada nas

publicações oficiais do país.”67

Uma vez desembarcado e acomodado de maneira provisória, o emigrante percorria o

último segmento da sua viagem, que chegava assim ao final: a pé, em caroça, em

barcos, em navios de acordo com o destino, do estado das vias de comunicação do

país, da disponibilidade de dinheiro. Em muitos casos se prolongava por dias e dias

uma viagem que devia ser avertida como interminável:

“... antes das 12 antes do dia chegamos ao porto do 'Rio Zanero' nasceram 3

morreram 7 … Depois do 'Rio Zanero' fomos em rumo à 'Santa Caterina' e depois a

Rio Grande e depois fomos à 'Porto Alegro' e depois a Rio Pardo descemos em terra

mas toda a navegação por mar até ali durou 42 dias, aqui em Rio Pardo paramos por

6 dias e depois colocamos nas carroças as bagagens, as mulheres e as crianças e quem

queria entre os homens caminhava mas de Rio Pardo até 'Santa Maria Bocca di

Monti' tínhamos atravessado pradarias selvas e bosques, fizemos comida no

acampamento sob as tendas mas a nossa 'navegação' nas carroças durou 15 dias, a

comida era suficiente para todos: matávamos um boi por dia sopa e pão eram

suficientes o café abundante, no final chegamos todos em um bosque onde se viam

'ramos e céu' ali todos estávamos desesperados e não sabíamos o que fazer, no fim eu

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e outros três amigos de Belluno começamos a caminhar em direção à Santa Maria

que era distante 6 horas para procurar uma colônia o que tivesse terra disponível,

finalmente depois de vários dias de caminhada encontramos diversos pontos onde

segundo nós a terra custava muito, mas rodando e procurando finalmente

encontramos uma boa colônia …” 68

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66. A. Molinari, Le navi di Lazzaro …, cit., p. 54

67. T. Rosati, Assistenza sanitaria degli emigranti e marinai, cit., p. 154.

68. Carta de Gio Batta Mizzan ao irmão, Boca do Monte – Santa Maria, Rio Grande

do Sul – Brasil, 17 de março de 1878, em E. Franzina, Merica! Merica! …, cit., pp.

81-82.

Partidas dos emigrantes do porto de Trieste entre as duas guerras e no segundo

pós-guerra

O período da “grande emigração” se concluiu em 1914, com a explosão da prima

guerra mundial. Com o conflito terminado, os movimentos emigratórios deram sinal

de melhoramento, e a cidade de Trieste que parecia ter todas as credencias para

tornar a ter um papel em primeiro plano graças à um vetor de antes da guerra, a

Austro Americana, que havia no meio tempo mudado ração social e se chamava

Consulich Socità Triestina di Navigazione. A Consulich parecia favorecida pelos

próprios recursos, entre os quais uma frota de muito respeito e uma ótima rede

comercial capaz de ser facilmente reativada, sem contar outros fatores como a

exclusão do mercado de duas sociedades líderes como a Hamburg-Amerika Linie e

Norddeutscher Lloyd, que tiveram os seus navios requisitados durante a guerra. A

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situação era porém muito mudada do ponto de vista internacional por causa da

destruição do império austro-húngaro e o nascimento dos estados sucessores, e

haviam nascidos novos, perigosos concorrentes, como por exemplo Gdansk, que

gozava de uma boa posição geográfica e da proteção do governo polaco que

pressionava, segundo algumas fontes, o próprio consulado de Nova Iorque a negar os

vistos aos emigrantes que declaravam o desejo de repatriação através do porto de

Trieste. 69

Nos anos 20 Trieste se tornou o porto de embarque para os aliyà, termo hebraico que

significa subida e indica a vontade dos hebreus pela diáspora dos emigrantes na

antiga terra de Israel com o propósito de estabelecer-se permanentemente. Tal fluxo

emigratório foi em qualquer forma muito numeroso, da ordem de, segundo alumas

avaliações, 150.00 pessoas. 70 E se desenvolveu substancialmente em duas fases: uma

inicial que teve como protagonistas prevalentemente hebreus sionistas de

nacionalidade polaca, e uma segunda que viu ao invés, prevalecer hebreus alemães ou

de outros países que caíram no domínio nazista.71

As viagens vinham gestidas e organizadas do Lloyd Triestino e em certos casos,

diário de bordo sanitário emergiam situações das quais deviam reinvocar as viagens

dos emigrantes da época da vela o da primeira fase do vapor, antes que fosse

difundido a bordo o uso de sistemas de refrigeração dos alimentos:

“Colocar os animais à bordo é um fato muito deplorável que acontecia

constantemente nos piróscafos desta sociedade, que fazem o serviço nas linhas do

Mar Negro e nas costas da Ásia Menor. […] A sociedade armadora os tirava o

máximo de interesse, porque os animais compensavam pelo frete, o capitão do navio

tinha um percentual sobre cada animal, assim colocavam estes animais em qualquer

espaço disponível, não solo na estiva, mas também nos espaços cobertos.” 72

Até o segundo pós-guerra a cidade giuliana (Trieste) teve um papel de uma certa

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importância nas partidas de navios de emigrantes, de um tipo inédito em respeito ao

passado, emigrantes desta vez assistidos, ou seja emigrantes que o Estado incentivava

a partir. As partidas aconteciam na Estação Marítima, praticamente da Piazza Unità,

não mais no anonimato, no desinteresse ou no alívio com os quais haviam

acontecidos antes de 1914 em Servola, mas em meio a uma multidão de parentes e

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69. Arquivo do Estado de Trieste, Governo Marítimo, b.876, f.IV.

70. A. Ancona, S. Bom (editado por), Trieste la porta di Sion. Storia dell'emigrazioe

ebraica verso la terra di Israele (1921-1940), Alinari, Firenze, 1998, p.29.

71. M. Bercich, Il comitato di assistenza agli emigranti ebrei di Trieste (1920-1940):

flussi migratori e normative, in “Qualstoria”, N. 2, dezembro 2006, p.23.

72. Op. Cit., p.50.

Amigos que estavam no atracadouro a dizer adeus, chorar, acenando com lenços.

Agora, era a vez dos triestinos e istrianos partirem, prevalentemente para a Austrália,

mas também para os Estados Unidos e o Canadá. E era a primeira vez. Eis como

Giani Stuparich contou uma destas partidas nas colunas do “Il lavoratore”:

“Tudo o coração da cidade era lá, naqueles despedidas, naquelas recomendações,

naqueles adeus: todo o temperamento do povo triestino se exprimia naquelas

manifestações de um povo que sabe ser espirituoso também entre lágrimas, vivaz na

desgraça. 'I và, i và e noi restemo … sempre alegri e mai passion'(Eles vão, vão e nós

ficamos … sempre alegres e nunca tristes)', dizia um jovem operário com os olhos

lúcidos e a boca amarga. 'Andé fioi, feghe onor a Trieste! (Vão garotos, façam

honra a Trieste!' , recomendava um outro velho operário. E uma velha senhorinha!

Era lá, escorada pelos parentes, e continuamente perguntava se Rico era a bordo, e

onde estava, e se tinha o seu cachecol vermelho no pescoço, se se despedia, se sorria,

e se a travessia até lá embaixo seria boa; não quis se mover de lá nem quando o

navio partiu e se distanciou ao mar aberto; a gente começou a se dispersar entre

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comentários e lamentos; 'nonina, la se movi! (senhorinha, mova-se!)' mas a velha non

se decidia e , com o rosto em lágrimas, continuava a repetir: 'Cossa che me toca

veder! (Que coisa devo ver!)' 73.

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73. Giani Stuparich, Trieste emigra, “il Lavoratore”, 1 de agosto 1955.