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A vida bem-sucedida no Hinduismo
Lúcio Valera
Resumo
O presente artigo pretende discutir a questão de vida bem-sucedida no Hinduísmo etraçar dai um paralelo entre seus conceitos e os das sabedorias antigas e humanistasdo Ocidente. Há pontos em comum entre a Sabedoria dos antigos, em sua visão daharmonia e ordem cósmica, e o Humanismo, em seu conceito do homem-Deus, com avisão dos Puruṣārthas “objetivos da existência humana”, encontrada no Hinduísmo.
INTRODUÇÃO
A preocupação dos antigos com a “vida boa”, que se refletia na busca da
felicidade, e que, na modernidade, cedeu lugar ao que conhecemos por “vida bem
sucedida”, também podia ser encontrada na civilização hindu. As escolas filosóficas
ortodoxas da Índia, “os Darśanas1”, sempre tiveram como objetivo bem definido a
busca da felicidade.
Na cultura hindu a transcendência nunca perdeu o seu lugar2 e a felicidade
geralmente era buscada na plataforma da auto-realização. Portanto a meta última da
existência humana seria a realização do Brahman, do “Espírito”3, que se identificava
com o Ātman, o “si-mesmo” 4, ou seja, situa-se no plano do “ser” que é “consciente de
si-mesmo”. Mas o conceito do ātman não é unívoco; dependendo da consciência com
1 Os Darśanas ou “pontos de vistas” são as escolas filosóficas que se desenvolveram, a partir dos meadosdo século V a.C. , como uma reação ao Bramanismo ritualista e dogmático, que na época estava sendocontestados pelo Budismo, Jainismo e os Lokayatas (os materialistas hedonistas indianos). Foramresponsáveis, juntamente como as tradições místicas do jñāna (não-dualismo), do yoga (meditação) e debhakti (devoção), pelo renascimento que, a partir de então até os fins da Idade Média, iria gerar o atualHinduismo.
2 O renascimento hindu não se voltou na mesma direção do que gerou a modernidade ocidental. Seusinteresses mantiveram-se plurais e com uma cosmologia holística; ele foi uma retomada da razão, maslado a lado com a mística.
3 Athato brahma-jijñāsa, “Agora nesta vida é hora de indagar sobre o Espírito” (Brahma-sūtra, 1.1.1). Trad. do autor.
4 Em português o termo ātman é geralmente traduzido por “eu”. Mas seu sentido mais exato em sânscritoseria o do pronome pessoal reflexivo da primeira pessoa, que pode ser traduzido melhor em inglês comoself, ou seja, “si-mesmo”. Mas, em português, não há uma palavra única que lhe seja equivalente.
que se experimenta a realidade ele pode indicar o corpo, a mente ou o espírito5. Essa
confluência de opostos sempre caracterizou a compreensão hindu do papel do homem
no mundo. Portanto, no Hinduismo temos três características fundamentais que
norteiam a existência humana. São eles os três caminhos ou margas: 1) pravṛti-marga,
2) nivṛtti-marga e 3) upāsana-marga.
Sobre a denominação de pravṛtti indicam-se todas as crenças e práticas
relacionadas com a existência mundana, que incluiria as obrigações religiosas e sociais.
Nivṛtti seriam as atividades de negação ou superação da existência material temporária,
em proveito da realização da natureza eterna do ātman. Enquanto que upāsana seriam
as atividades de meditação e adoração da Divindade, no plano da vida mística.
VIDA BOA E VIDA BEM-SUCEDIDA
Entre os modernos o conceito de vida bem-sucedida estabeleceu-se na
plataforma do ter e do estar, mas na civilização hindu se buscava a felicidade e
perfeição existencial no plano do ser, do real, do permanente. Confundia-se, portanto, o
conceito de felicidade ou de vida boa como o de vida bem-sucedida.
Então, temos os conceitos de 1) preyas (“aquilo que é priya – agradável”) e de 2)
śreyas (“aquilo que é śrī – essencialmente benéfico e auspicioso”), que são atividades
gerais, nas quais os seres humanos, em sua existência, se ocupam. Preyas são atividades
que trazem resultados benéficos imediatos, e çreyas são atividades que trazem
resultados benéficos finais.
Qual a diferença entre estes dois tipos de atividades? Preyas é o que é agradável
de imediato, e śreyas é o bem ultimo. Por exemplo, para uma criança é natural brincar;
se deixar, ela brinca dia e noite. Isso é preyas, ou seja, a busca imediata de prazer. Mas
os pais estão dizendo: “Meu filho, você deve que ir à escola, aprender a ler, estudar.” Os
pais estão interessados em śreyas, o bem último. Se não forem educadas na infância,
qual será futuro delas? Portanto, na perspectiva do futuro, na perspectiva do bem último,
temos çreyas. Mas quando se considera o aqui e agora temos preyas.
O sistema social hindu foi organizado originalmente para conduzir à meta final
de śreyas, boa fortuna, felicidade ou bem-aventurança final. Mas até que isso aconteça,
a pessoa terá de lidar com a questão de preyas. Somente então, tendo conseguir ocupar
tudo, incluindo sua vida, bens e palavras, não somente para si próprio, mas também para
5 PRABHUPADA, A. C. Bhaktivedanta Swami, O Bhagavad-gita como ele é. p. 250, 338.
os outros, conseguira fazer o derradeiro sacrifício do prazer temporário e imediato dos
sentidos (preyas) em proveito do bem permanente (śreyas). Mas isso só pode ser feito
por quem estiver inserido dentro do esquema do dharma. Dharma seria aquilo que
mantém, é aquilo que torna possível, pois constitui a base da própria existência. 6
O Dharma seria o primeiro passo, para a obtenção da felicidade ou Śreyas, que é
buscada nos três caminhos (mārgas) mencionados acima.
O Hinduísmo descreve que a maioria da humanidade seria composta de seres
humanos que ainda não realizam sua natureza espiritual e que, portanto, a vida segundo
o dharma seria fator de diferenciação entre vida humana e a vida meramente animal. Na
vida animal a busca de satisfação ou prazer (preyas) estaria relacionada apenas com os
instintos animais básicos, ou seja, com: 1) comer, 2) dormir, 3) defender-se e 4)
acasalar-se. 7 Mas os seres humanos teriam algo mais que os distinguiriam dos animais.
Eles podem aceitar conscientemente os princípios do dharma, os princípios da religião
definidos como dever. 8
Conforme o status de sua consciência – o que é determinado pelos seus atos
(karma) e pela influência das leis da natureza (os guṇas) – o homem está sujeito a
determinadas tendências que os levariam a estabelecer diversos objetivos existenciais.
Tais objetivos específicos seriam os puruṣārthas ou interesses (artha) dos seres
humanos (puruṣa).
Os puruṣārthas, portanto seriam quatro: 1) Dharma - religiosidade ou harmonia
com as leis da natureza; 2) Artha - desenvolvimento econômico ou segurança material;
3) Kāma - prazer ou gratificação dos Sentidos; e 4) Mokṣa - liberação ou emancipação
da matéria. Podemos considerar dharma como valor moral, artha como valor
6 A palavra dharma (da raiz verbal √ dhṛ “manter”) tem o sentido de “dever” ou de “aquilo quemantém”. Dhāraṇā-dharma ity āhur dharmo dhārayati prajāḥ “Aquilo que sustenta, aquilo que mantémjuntos as pessoas, isso é o dharma.”(Mahābhārata, Karṇa Parva, 69.59). Trad. do autor. Ele refere-se ànatureza ou ao caráter intrínseco de qualquer coisa ou substância (vastu). Dessa forma, podemos falar dodharma de objetos, plantas ou animais. O dharma do fogo, então, seria aquecer ou iluminar e o da águaseria solver, fluir. No seu sentido metafísico, o dharma eterno do ser humano, como parte integrante. doAbsoluto (o Brahman), seria eternidade (sat), consciência (cit) e bem-aventurança (ānanda).
7 Āhāra-nidrā-bhaya-maithunaṁ ca sāmānyam etat paśubhir narāṇām “Comer, dormir, defender-se e fazer sexo, isto é comum entre os homens e os animais” (Hitopadeśa )
8 Dharmo hi temam adhiko viśeṣo dharmeṇa hīnāḥ paśubhiḥ samānāḥ, “é a prerrogativa dos seres humanos aceitarem os princípios da religião (dharma); do contrário não seriam diferentes dos animais” (Hitopadeśa ). Trad. do autor.
econômico, kāma como valor psicológico e mokṣa como valor espiritual. Todos eles são
considerados vitais e integrados em um esquema de valores.
Quem observa o dharma, levaria uma vida segundo os rituais e deveres
religiosos, em harmonia com o Cosmos e suas leis. Nesse ponto a ética hinduísta seria a
dos sacrifícios, pois eles garantiriam e se identificavam com a harmonia cósmica;
assemelhando de alguma forma com a ética cósmica encontrada no Epicurismo. Essa
vida, entretanto, seria “proativa” no dharma e se distinguiria da vida meramente
“reativa” no karma. Ela possibilitaria a obtenção de artha, desenvolvimento econômico.
Consequentemente, quem obtém artha pode ir buscar kāma a satisfação de seus desejos.
Os três primeiros puruṣārthas (dharma, artha e kāma) não são finais ou
permanentes, pois tratam principalmente da religião material, do desenvolvimento
econômico, da satisfação dos sentidos e não podem satisfazer as necessidades perenes
da alma. Portanto, quem progressivamente passa por eles e realiza que seus frutos são
transitórios, chega a um estado de esgotamento material e sede de transcendência.
O desgosto e frustração pela mediocridade da existência material levariam então à
busca de liberação ou emancipação espiritual. A busca da superação da existência
material temporária chama-se mokṣa. Seria o quarto puruṣārtha, que é eterno e final.
Isso é corroborado por Patañjali Muni, o famoso expoente do sistema de yoga, que
declarou e seus Yoga-sūtras:
A liberação ocorre quando se cumpre as metas da vida humana (puruṣārthas) etranscende-se a influência dos guṇas (os modos da natureza); os guṇas retornam àsua fonte e a consciência situa-se em sua própria natureza. 9
Mokṣa, também significaria união mística com a Divindade. Essa união seria de
dois tipos: 1) Kaivalya - a absorção da alma individual, com perda da sua
individualidade, na unidade ontológica do Ser, que é a “mística do ser”; e 2) Prema - a
comunhão da alma individual, com retenção da sua individualidade, com Deus, que é a
“mística do amor”.
9 Puruṣārtha-śūnyānāṁ guṇānāṁ pratiprasavaḥ kaivalyaṁ svarūpa-pratiṣṭhāyā citi-śaktir iti (Yoga-sūtras. 4.34). Trad. do autor.
A HARMONIA COM O COSMO (PRAVṚTTI-MĀRGA)
A marca característica do Hinduismo, a doutrina do Brahman10 ou Realidade
Única, baseia-se na idéia de que a natureza de todas as entidades vivas não só está
intrinsecamente “unida à totalidade da natureza”, mas possui também a “potencialidade
de transcender a ordem natural”. O ātman (o si-mesmo, o eu) dentro de cada um, vive
esquecido de sua posição constitucional como parte integrante do Brahman, e deve ser
guiado em uma existência que o ajude a avançar no caminho da recordação, em direção
à felicidade de sua natureza essencial. Esse seria o bem último, śreyas ou niḥśreyasāya,
a meta última da existência.
Mas, considera-se o caminho do karma, ou das ações meritórias (punya) neste
mundo, como o primeiro passo para essa recordação. Seria o que já foi descrito como o
caminho de pravṛtti-mārga. É o caminho que busca não a liberação ou emancipação
espiritual, mas sim, uma existência progressiva através de uma forma de misticismo
sacrifical que, em harmonia com os princípios do dharma, buscaria o acúmulo de
karma pleno de méritos.
Esse caminho se caracteriza pela crença no poder dos sacrifícios védicos de
produzir efeitos nesta vida e em outra vida, e na existência de uma lei inalterável e
eterna envolvida nesses sacrifícios. 11 Seria uma vida cuja meta seria bhoga, o prazer ou
desfrute material nessa vida e depois no Paraíso.
Prakṛti, a natureza material, seria uma potência divina12 e o solo material da
criação. Ela existiria primordialmente de forma imanifesta em um estado caótico de
equilíbrio perfeito que seria perturbado como que pelo olhar criativo do Puruṣa, o
Espírito supremo. Esse é o processo de evolução, onde Jagat, a “ordem cósmica” seria
vista como um desdobramento evolutivo do estado primordial, de quietude, onde todas
as tensões são mantidas em perfeito equilíbrio, para estruturas complexas.
Os gunas (modalidades ou qualidades da matéria), que são ao mesmo tempo
partes inerentes e qualidades constitutivas da Prakṛti, são três: 1) rajas (do verbo rañj
“mover”) movimento, dinamismo, excitação, prazer, ansiedade, paixão etc.; 2) tamas
(do verbo tam “sufocar”) restrição, resistência, inércia, massa, peso, preguiça,
10 Ekaṁ sad viprā bahudhāvadanti “Os sábios descrevem a Realidade única de muitas formas.” (Ṛg-veda, 10. 164. 46). Trad. do autor.
11 DASGUPTA, S. N. Hindu Mysticism, p. 17-18.
12 Daivī hy ema guṇa-mayī mama māyā duratyayā “Esta Minha energia divina, que consiste dos três modos da natureza é difícil de superar.” (Bhagavad-gītā, 7.14). PRABHUPADA, Bhaktivedanta Swami. O Bhagavad-gita como ele é. São Paulo: Bhaktivedanta, 1986.
opacidade, ignorância etc.; 3) sattva (do verbo as “existir”) luz, iluminação, harmonia,
equilíbrio, claridade, alegria, leveza, bondade etc. Eles teriam como equivalentes os
conceitos platônicos de Logistikon (o elemento racional, que corresponderia a sattva),
Thumos (o elemento da paixão, que corresponderia a rajas), e Epitmumia (o desejo
cego, que corresponderia a tamas).13
Devemos compreender os guṇas ao mesmo tempo fisicamente (macrocosmo) e
psiquicamente (microcosmo), pois englobam ao mesmo tempo os fenômenos e a
percepção desses fenômenos no homem, isto é, o mundo psíquico ou sutil e o mundo
físico ou grosseiro. Consciência (sattva), energia (rajas) e massa (tamas), portanto, são
todos estados da prakṛti e, por extensão, de cada corpo humano, animal, vegetal ou
mineral. Tudo, em última instância, dependeria de sua combinação e interação. Nas
coisas concretas e densas – como as pedras – temos mais tamas. Já nas coisas sutis e
leves – como a luz – teríamos mais sattva.
Assim, todo tipo de impulsos para a ação ou para abster-se de ação brota da
mistura dos guṇas, e constitui a estrutura da natureza humana. A importância desta
análise está na idéia de que o padrão de ações e comportamento afeta, por sua vez, o
nível ou a composição das qualidades. Esta é a chave para o mistério da lei do karma.
Os seres humanos nascem de acordo com as propensões e predileções (saṁskāra) dos
padrões passados de karma, mas são livres para se livrar deles.
A desigualdade que reina no nascimento pode ser mudada pela ação honesta e
correta durante a vida. O nascimento, portanto, não é questão de acidente ou
circunstâncias fortuitas. É o resultado de ações passadas e uma plataforma para ações
futuras. Todas as criaturas movem-se automaticamente em direção à fonte de seu ser.
Esse anseio por uma “volta ao lar”, por assim dizer, é um processo subconsciente no ser
humano quando está com sua força mínima, e um anseio plenamente autoconsciente
numa pessoa consciente da altíssima missão que lhe foi confiada enquanto protagonista
moral do mundo. O “grau de realização” do seu verdadeiro status como criatura, capaz
de trabalhar para a iluminação, é o fundamento da divisão num sistema de castas. 14
13 AZEVEDO, Murillo Nunes de, O pensamento do extremo oriente: o olho do furacão, São Paulo: Pensamento, ?, p. 5.
14 MUKERJI, Bithika. Ética das grandes religiões e direitos humanos, p. 86.
AUTOCONHECIMENTO E LIBERAÇÃO (NIVṚTTI-MARGA)
O caminho de jñāna (do conhecimento) ou nivṛtti (da negação) surge como uma
contestação do caminho religioso ritualista, mas isto não se apresenta da mesma forma
que ocorre na filosofia moderna, que se apresenta como “uma tentativa de assumir as
questões religiosas de um modo não religioso e até mesmo anti-religioso.” 15
Ficou claro que o caminho de karma (da ação) ou pravṛtti (da aceitação) parte
do pressuposto de que ações meritórias, sacrifícios ou rituais religiosos podem
aprimorar o karma do indivíduo e criar condições para a obtenção da felicidade ou bem
último (śreyas), nesta vida, ou em outros nascimentos. O caminho do conhecimento,
entretanto, apesar de não negar a validade conjectural do caminho da ação, questiona o
status de seu conceito de çreyas, o bem último, por ele ser temporário. Ou seja, se com a
extinção do mérito cármico a pessoa tem que voltar a este mundo temporário, como
poderia haver um bem último?
As diferentes escolas do pensamento hindu (darśanas), bem como seus mestres
(ācāryas ou gurus), sempre estiveram de comum acordo que o propósito da filosofia16
seria a extinção da dor e do sofrimento e a conseqüente obtenção da bem-aventurança
final (śreyas). O primeiro passo nessa direção trataria da aquisição de conhecimento
(jñāna) sobre a verdadeira natureza das coisas. Isso libertaria o homem do cativeiro da
ignorância, que é a causa do sofrimento. 17
A preocupação em preparar as pessoas para exclusivamente discernir sobre
verdades metafísicas, nunca foi a preocupação da filosofia hindu. Nela encontramos
sistematizada uma gama de metodologias que possibilitam a obtenção de uma
compreensão racional da realidade, juntamente – não em oposição – com o cultivo de
introspecção e autoconhecimento, que levaria à realização da Verdade Absoluta.
Os sábios ou videntes hindus (os ṛṣis) tinham discernimento para observar as
coisas com seu sentido interno, com sua visão intuitiva. Porque conheciam os limites da
razão, não se preocupavam unicamente em ter uma atitude racional crítica, mas sim
cultivar gradual e progressivamente as potencialidades humanas internas. E sempre
dentro do molde prático de uma disciplina. Assim a filosofia no Oriente sempre foi
acompanhada da prática de métodos de yoga, ascese, meditação, mantras (cantos ou
15 FERRY, Luc. O que é uma vida bem sucedida? p. 170.
16 A palavra em sânscrito utilizada na Índia para designar “filosofia” é “darśana”, que vem da raiz verbaldŗś “ver” ou “observar”, e significa literalmente “ponto de vista”.
17 BERNARD, Theos. Hindu Philosophy. P. 2.
preces) ou ritual. O conceito hindu de razão era o de uma razão superior, que se
igualava à Razão divina. Daí a necessidade de sempre correlacionar e autenticar o
insight filosófico individual com o insight místico ou a revelação universal, muito bem
ilustrado nas escrituras védicas e na vida dos grandes sábios e santos. Essa é a
característica dos dārśanas hindus ortodoxos.
Luc Ferry fala sobre os três fios condutores ou tarefas da filosofia: 1) theoría – a
contemplação das coisas divinas, 2) prâxis – os exercícios da sabedoria e 3)
soteorologia – a idéia da salvação.18 Podemos encontrar esses mesmos conceitos
gnosiológicos dentro do pensamento hindu, pois quando se utiliza a palavra jñāna
“conhecimento” tem se em vista sempre os três aspectos dele: 1) sambandha – o
“relacionamento”, 2) abhidheya – o “sentido”, e 3) prayojana – a “meta ou propósito”.
Em sambandha-jñāna há o conhecimento que permite compreender a relação
que leva ao conhecimento do “Ser” (Brahman), do “Si-mesmo” (Ātman) e de “Deus”
(Bhagavān). Após sambandha-jñāna, pode-se chegar ao estágio de abhidheya-jñāna,
que seria o conhecimento de como agir nessa relação. Por fim teríamos prayojana-
jñāna o conhecimento que conduz à meta final da existência. Todo relacionamento e
toda ação tem sempre em vista uma meta prayojana.
Diferentemente da modernidade ocidental, onde a é filosofia se apresenta como
uma superação do pensamento mítico-religioso, a filosofia indiana tem laços mais
estreitos com a religião do que o pensamento crítico e secularizado do Ocidente
moderno. Ela
(...) está mais próxima dos filósofos antigos como Pitágoras, Empédocles, Platão,os estóicos, Epicuro e seus seguidores, Plotino e os pensadores neoplatônicos.Encontramos, novamente, este ponto de vista em Agostinho, nos místicosmedievais como Mestre Eckhart e nos místicos posteriores como Jacob Boehme deSilésia; nos filósofos românticos reaparece em Schopenhauer. 19
Nessa luz, a filosofia apresenta-se como uma arte de viver plenamente e não
como uma teoria sobre o universo. Sua principal finalidade seria, portanto, desvendar e
integrar na consciência o que as forças da vida recusaram e ocultaram. A suprema e
característica façanha da mentalidade bramânica (e isto foi decisivo, não apenas pára o
desenvolvimento da filosofia indiana, mas também para a história de sua civilização) foi
a descoberta do Eu (ātman) como entidade imperecível e independente, alicerce da
18 FERRY, Luc. O que é uma vida bem sucedida? p. 44-47.
19 ZIMMER, Heinrich. Filosofias da Índia, p. 18
personalidade consciente e da estrutura corporal. Tudo o que normalmente conhecemos
e expressamos de nós mesmos pertence à esfera da impermanência, na imanência do
tempo e espaço, mas este Eu (ātman) é imutável por todo o sempre, além do tempo,
além do espaço e da obnubiladora malha da causalidade, além de qualquer medida, além
do domínio da visão. As atitudes entre o mestre hindu e o discípulo iniciado aos seus
pés estão determinadas pelas exigências de uma suprema tarefa de transformação e
superação dos limites da consciência.
A história do pensamento indiano, durante o período que precede o nascimento e
a missão de Buda (aprox. 563-483 a.C.), revela uma gradual intensificação na
importância dada aos problemas da redescoberta e assimilação do Eu. Os diálogos
filosóficos das Upaniṣad indicam que durante o oitavo século a.C. houve uma mudança
de orientação dos valores, deslocando o foco de atenção do universo exterior e limites
tangíveis do corpo para o universo interior e intangível, levando às suas últimas
conclusões lógicas as perigosas implicações desta nova direção. Ocorria um processo de
retirada do mundo normalmente conhecido. As potências do macrocosmo e as
faculdades correspondentes do microcosmo eram, em geral, desvalorizadas e relegadas
com tal ousadia que todo o sistema religioso do período anterior corria o risco de ruir.
Os reis dos deuses, Indra e Varuṇa, já não mais recebiam suas cotas de pereces e
sacrifícios. Ao invés de direcionar a mente a estes simbólicos guardiões e modelos da
ordem natural e social, sustentando-os e mantendo-os vigentes através de uma contínua
seqüência de ritos e meditações, o homem voltava sua atenção para o íntimo,
esforçando-se por conseguir manter-se num estado de crescente autoconsciência através
da reflexão profunda, da autoanalise sistemática, do controle respiratório e das severas
disciplinas psicológicas do yoga. 20
A filosofia indiana sempre permaneceu tradicional, sempre auxiliada e renovada
pelas vivências interiores do yoga, preservou as crenças herdadas e as interpretou,
sendo, por sua vez, interpretada e corrigida pelas forças da religião. Na Índia, a filosofia
e a religião diferem em alguns pontos, mas nunca houve um ataque total e dissolvente
por parte do criticismo puro contra o baluarte imemorial do sentimento religioso
popular. 21
20 ibidem, p. 21.
21 ibidem, p. 35.
A MÍSTICA DO AMOR (UPĀSANA-MĀRGA)
Dento de uma da perspectiva sincrética do nivṛtti-marga e do pravṛtti-marga,
teríamos o caminho da adoração upāsana-mārga ou bhakti-mārga, que procurou
reconciliar o materialismo do karma com a visão de renúncia do jñāna. O caminho de
bhakti situar-se-ia na emergência histórica da religiosidade monoteísta hindu22, que, em
contraste com as aristocracias do ritualismo brâmane do karma (no caminho pravåtti) e
do gnosticismo do jñāna (no caminho nivṛtti), surgiria como uma inovação teológica.
Nele a ideia “messiânica” do avatāra que se identifica Vishnu com o Ser supremo e a
realidade última, surgiria com energia e vigor.23
Esta grande síntese espiritual do Hinduísmo estabeleceu a paridade das
caminhos (mārga) de salvação, representadas pela atividade ritual (karma) e o
conhecimento metafísico-místico (jñāna). Houve uma valorização da historicidade da
vida humana e proclama a superioridade da “via” soteriológica de bhakti: a devoção a
um Deus pessoal (Vishnu ou Krishna).24 Há também um grande empenho em justificar
os atos humanos e profanos, que seriam santificados pela renúncia do gozo dos “frutos”
da ação. “O homem transforma os seus atos em sacrifícios, isto é em dinamismos trans-
pessoais que contribuem pra manter a ordem cósmica.”25
Da mesma forma que no Cristianismo, a escola devocional bhakti do Hinduísmo
considera que a graça salvadora da Divindade propiciaria um quinto puruṣārtha. Ele
estaria além de mokṣa (a salvação feita pelo esforço individual) e seria a busca de
prema (amor espiritual) como o bem último (śreyas), que estaria bem além da elevação
ao Paraíso – através do karma –, bem como da salvação em mokṣa – através do jñāna
–, onde a alma individual se fundiria na existência impessoal da Divindade.
Conseqüentemente, acima dos quarto puruṣārthas o amor místico de Deus situar-se-ia
supremo, como o parama-puruṣārtha (a meta suprema da vida).
No caminho do conhecimento, a única realidade é o Ser, impessoal, informe, não-
qualificado e sem atributos; toda a diversidade e variedade (viśeṣa), por ser produto de
22 O movimento Bhakti, que teve sua emergência a partir dos ensinamentos de Krishna na Bhagavad-gītāe no Bhāgavata Purāṇa, se desenvolveu a partir da Idade Média em vários movimentos que culminaram nos ensinamentos de Caitanya (1485-1533 E.C.).
23 Na Bhagavad-gītā (6. 12 s.), Krishna revela-se a Arjuna como encarnação de Vishnu. ELIADE, História das crenças e das idéias religiosas, Tomo II, Vol. 1, p. 256.
24 Idibem , p. 258.
25 Idibem, p. 261.
Māyā, são ilusões. Mas para os seguidores de bhakti, somente a variedade material é
ilusória, por ser temporária e baseada na dualidade. A variedade material é um reflexo
ou sombra da variedade encontrada na energia espiritual. Na energia espiritual, pelo
contrário, a vida é governada pela lei da unidade, pela lei da harmonia. O amor é a lei
da harmonia na sua forma mais elevada.
O amor espiritual, que é eterno, não se confunde com a paixão transitória e
ilusória do mundo material, mas identifica-se com bhakti, a devoção amorosa, ou amor
a Deus. Rupa Gosvami (1489-1564 d.C.) define a forma mais elevada de bhakti como
sendo a busca desinteressada e ininterrupta de Deus, sem nenhum interesse no
conhecimento ou em atividades morais. 26 Essa devoção tem muitas nuanças, que
recebem o nome de rasa, ou bhakti-rasa.
Rasa significa “suco” ou “gosto”. Ele representa o que é essencial em qualquer
coisa que possamos experimentar, o sentimento que extraímos de qualquer coisa ou de
qualquer relacionamento. Na teologia vaishnava ele se refere à experiência estética
última na transcendência – o relacionamento amoroso com a Divindade, a plenitude ou
satisfação emocional da alma.27 O conceito de rasa, portanto é muito amplo, indo além
da questão “ontológica” do Ser, – no Brahman – e mais além ainda da questão “moral”
da consciência ou conhecimento, – no Ātman. Ele é um princípio eterno, relacionado
com a questão “estética”, no relacionamento espiritual da alma com Deus. As
Upaniṣads descrevem Deus (Bhagavān) como a personificação ou oceano de rasa. A
Rasa dá-nos um insight sobre quem verdadeiramente somos, sobre o que somos no
mundo espiritual. Na Taittiriya Upaniṣad afirma-se que: A realidade última é rasa, ou
seja, doçura ou experiência espiritual estética; unicamente ela pode dar a bem-
aventurança.28
26 SIMHA, Jadunath. Indian Psychology. Vol. 2. Deli: Motilal Banarsidass, 1985.
27 TRIPURARI, Swami B. V. Rasa – Love Relationship in Transcendence. Oregon, USA: Gaudiya Vaisnava Society, 1993, p. 105.
28 Raso vai saḥ. rasaṁ hy evāyaṁ. Labdhvānandī bhavati ... eṣa hy evānandayāti (Taittiriya Upaniṣad, 2.7.1).
CONCLUSÃO
Luc Ferry analisou como os modernos perderam o sentido de uma “boa vida” e
substituíram-na pela “vida bem-sucedida”, e também como esses conceitos se
apresentavam entre os Estóicos, cristãos medievais, modernos e Nietzsche.
Mas no Hinduísmo não há um conceito único de “vida boa” ou “vida bem
sucedida”. Nele se considera que os seres humanos, segundo o seu nível de consciência
e condicionamento (nos guṇas), estão situados em condições diferentes. Portanto esta
questão se apresenta de uma forma plural, mas sempre em harmonia com a condição
humana. Não importando se seu ideal seja teológico ou materialista, imanentista ou
transcendentalista.
Isso explicaria porque a questão do conflito causado pela pluralidade das
respostas para essa pergunta sempre emergente, não se lhes apresenta. A tolerância e o
respeito pela diferença sempre foi uma característica do Hinduísmo, desde suas origens.
Assim o seu caráter holístico sempre possibilitou a opção de se escolher o melhor
momento para se viver, seja ele teológico, utópico e até mesmo materialista.
Um estudo bem feito do conceito de “vida bem sucedida” no Hinduísmo poderia
se apresentar como um contribuição para se possa recuperar, nas palavras de Mircea
Eliade, “a concepção arcaica da realidade total imaginada como a alternância de
princípios opostos mas complementares”.29
Portanto, apresenta-se como muito relevante a proposta de Nietzsche da vida ser
vivida intensa e conscientemente. Somente assim será possível compreender as
singularidades que cercam nossa existência.
29 Idibem, p. 267, n. 15.