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Especial POR RODRIGO MARTINS O acesso à maloca é um buraco com pouco mais de 1 metro de diâmetro, escavado sob a terra. Para entrar, é preciso esgueirar- se entre as pedras e o barro. Dentro do vão do viaduto, lacrado por pa- redes de concreto, todos andam agacha- dos e, em determinados pontos, quase de joelhos no chão, para não bater a cabeça no teto. A qualquer hora do dia, o ambien- te é úmido. Escuro. Apenas a luz de velas orienta os passos de quem percorre o sub- terrâneo, onde vivem dez dos mais de 13 mil moradores de rua da capital paulista. Alemão é o chefe do espaço, “maloca” para quem nela habita. Ao perceber a apro- ximação da visita, esconde o cachimbo de crack embaixo de uma bancada de madei- ra. “Pode entrar sem grilo”, anuncia o anfi- trião, cujo nome de batismo é Valdenir de Souza. Ele tem 30 anos e, há oito meses, dorme num sofá estropiado, com a namo- rada Suzana Gonçalves, de 18 anos. Antes do buraco, Alemão passou um tem- po no albergue do Glicério e nas ruas do centro da cidade. Sente-se mais seguro de- baixo da terra. “O albergue tem muita en- cheção de saco e, nas ruas, não dá para dor- mir tranqüilo. É muito gambé (policial) dando esculacho, um monte de ladrãozi- nho à solta”, comenta o rapaz de olhos cla- ros, as pontas dos dedos amareladas. Apesar da aparente tranqüilidade do lu- gar, Alemão dorme com uma faca próxi- ma do corpo. “Todo maloqueiro tem um estilete, mas é para proteção”, justifica-se. Para alimentar a barriga e o vício do crack, carrega caixas de legumes e verduras no Mercado Municipal, das 8 da noite às 4 da manhã. Recebe 100 reais por semana de trabalho. A comida costuma ser farta nas “bocas de rango”, os locais que distri- buem refeições gratuitas para os desabri- gados. Nos dias escassos, acende um foga- reiro e improvisa algo. Impaciente com as perguntas sobre a vida pessoal, encurta a entrevista. “Acho que já está bom, não é? Agora você sabe como é morar no buraco. A gente vive igual bicho.” Mais receptivo, o camelô Francisco Hi- lário da Silva, de 49 anos, não se importa de falar sobre o passado. Chiquinho pas- sou uma temporada na cadeia por tráfico de drogas. Ao ganhar liberdade, há um ano, procurou abrigo no buraco. “Antes, eu vendia até 400 reais em pedra de crack por noite. Agora, tô limpeza. Só vendo ca- chaça na rua.” Os lucros do comércio am- bulante são bem mais modestos que a INVISÍVEIS Dez homens e mulheres que dormem sob o chão paulistano são um triste retrato da situação dos 13 mil moradores de rua que vivem na cidade A vida no subsolo 10 CARTACAPITAL 21 DE NOVEMBRO DE 2007 A FALA GUARDADA “Agora você sabe como é morar aqui. A gente vive feito bicho”, desabafa Alemão JESUS CARLOS/IMAGEMLATINA •C.C. Especial F- 471 14.11.07 20:49 Page 10

A vida no subsolo

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Especial

POR RODRIGO MARTINS

Oacesso à maloca é um buracocom pouco mais de 1 metro dediâmetro, escavado sob a terra.Para entrar, é preciso esgueirar-se entre as pedras e o barro.

Dentro do vão do viaduto, lacrado por pa-redes de concreto, todos andam agacha-dos e, em determinados pontos, quase dejoelhos no chão, para não bater a cabeçano teto. A qualquer hora do dia, o ambien-te é úmido. Escuro. Apenas a luz de velasorienta os passos de quem percorre o sub-terrâneo, onde vivem dez dos mais de 13mil moradores de rua da capital paulista.

Alemão é o chefe do espaço, “maloca”para quem nela habita. Ao perceber a apro-ximação da visita, esconde o cachimbo decrack embaixo de uma bancada de madei-ra. “Pode entrar sem grilo”, anuncia o anfi-trião, cujo nome de batismo é Valdenir deSouza. Ele tem 30 anos e, há oito meses,dorme num sofá estropiado, com a namo-rada Suzana Gonçalves, de 18 anos.

Antes do buraco, Alemão passou um tem-po no albergue do Glicério e nas ruas docentro da cidade. Sente-se mais seguro de-baixo da terra. “O albergue tem muita en-cheção de saco e, nas ruas, não dá para dor-mir tranqüilo. É muito gambé (policial)dando esculacho, um monte de ladrãozi-nho à solta”, comenta o rapaz de olhos cla-ros, as pontas dos dedos amareladas.

Apesar da aparente tranqüilidade do lu-gar, Alemão dorme com uma faca próxi-

ma do corpo. “Todo maloqueiro tem umestilete, mas é para proteção”, justifica-se.Para alimentar a barriga e o vício do crack,carrega caixas de legumes e verduras noMercado Municipal, das 8 da noite às 4da manhã. Recebe 100 reais por semanade trabalho. A comida costuma ser fartanas “bocas de rango”, os locais que distri-buem refeições gratuitas para os desabri-gados. Nos dias escassos, acende um foga-reiro e improvisa algo. Impaciente com asperguntas sobre a vida pessoal, encurta aentrevista. “Acho que já está bom, não é?Agora você sabe como é morar no buraco.A gente vive igual bicho.”

Mais receptivo, o camelô Francisco Hi-lário da Silva, de 49 anos, não se importade falar sobre o passado. Chiquinho pas-sou uma temporada na cadeia por tráficode drogas. Ao ganhar liberdade, há umano, procurou abrigo no buraco. “Antes,eu vendia até 400 reais em pedra de crackpor noite. Agora, tô limpeza. Só vendo ca-chaça na rua.” Os lucros do comércio am-bulante são bem mais modestos que a

INVISÍVEIS Dezhomens e mulheresque dormem sob o chão paulistano sãoum triste retrato dasituação dos 13 milmoradores de ruaque vivem na cidade

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A FALA GUARDADA “Agora você sabe como é moraraqui. A gente vive feito bicho”, desabafa Alemão JES

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A CAMA POSSÍVEL.O sofá estropiado no subterrâneo é o lar da jovem Suzana

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venda de drogas, em média 20 reais pordia. Mas os gastos do vendedor tambémsão baixos. Três reais por refeição no bote-quim e, às vezes, um pouco mais em pesti-cidas, para impedir a proliferação de ratose baratas no local. Um balde de água ga-rante o banho matinal. “Como a vida é mo-desta, dá para guardar um trocado. Mas,sempre que tento me reerguer, dá algumazebra. O rapa (serviço de fiscalização da pre-feitura) confiscou meu carrinho seis vezes.”

O professor de capoeira Wellington dosSantos, de 41 anos, foi o responsável pelaaproximação do repórter com os morado-res do buraco. Atualmente, ele passa asnoites num albergue da região central. Umano atrás, dormia no subterrâneo de Ale-mão. Capoeira, como é conhecido, eracabo do Exército no município de Xique-Xique (BA). Migrou para São Paulo e mon-tou uma academia de luta. Abandonou oestabelecimento quando um grupo de tra-ficantes transformou o local em boca-de-fumo. Ele próprio viciado em drogas, viu,rápido, a vida desandar. “Não demoroupara eu parar nos buracos da cidade.”

Capoeira diz que havia dezenas de gale-rias subterrâneas na capital habitadas pormoradores de rua. Com as reformas doprojeto de revitalização do Centro, a pre-feitura fechou a entrada da maioria dos bu-racos. “Ainda tem muitas malocas debaixoda terra. Eu é que deixei de freqüentá-las.”E não por um motivo qualquer. Quer ficarafastado do crack, que abandonou há oitomeses. “Agora, só tomo uma cervejinha.”

Boa parte das malocas subterrâneas édominada por dependentes químicos, querealizam pequenos furtos para financiar ovício. Também há mendigos e trabalhado-res informais que dividem o espaço comos viciados. Podem, eventualmente, ser al-vo da ira de quem está alterado pelas dro-gas. Ainda assim, consideram-se mais pro-tegidos do frio, da chuva e da violência dasruas. Quem descreve o cenário é FabianoLima, de 40 anos, que vive debaixo de mar-quises paulistanas desde a infância. Até al-gumas semanas atrás, dormia num dutosubterrâneo. Parou quando soube da mor-te de um conhecido na entrada do buraco.“Enfiaram a faca na barriga dele.”

Apesar do incidente, uma rixa entremoradores de rua, Fabiano diz serem ra-

ras as brigas. “O dono da maloca põe or-dem na casa. Não deixa ninguém pegar na-da do outro. O que eles fazem para bancaro vício não é problema meu.” Para contera invasão da polícia, os moradores mon-taram um esquema de guerra. “Tem atépneu para fazer barricada. Se os maloquei-ros quiserem, podem cortar os cabos detelefonia que passam pelo duto.”

Se nos subterrâneos existe uma ordemparalela estabelecida, nas ruas a situaçãonão é diferente. Os moradores de rua pro-curam dormir em grupos, até para se pro-teger de roubos, de desafetos e, segundorelatos recorrentes, das agressões de poli-ciais e funcionários da prefeitura. Cada

maloca, como são chamadas as linhas ima-ginárias que determinam os pontos de re-pouso nas calçadas, tem um “chefe”. Elesnão cobram aluguel, mas determinam asregras de convivência. Geralmente, vicia-dos e trombadinhas não se misturam commoradores comuns, que vivem de esmo-las, da coleta de material reciclável, do co-mércio ambulante ou de bicos variados.

Blusa rasgada, calça suja de tinta, barbarala, apresento-me como um migrante de-sabrigado para um grupo de moradores derua que vive no entorno do Pateo do Col-legio, cartão-postal da cidade, próximo àPraça da Sé. Estou acompanhado de Fabia-no, o único que, naquele momento, sabia

que eu era repórter. Passa das 7 da noite ea temperatura começa a cair. “Trouxe umcobertor?” Esqueci desse detalhe. O di-nheiro que carrego no bolso é insuficientepara pagar os 29 reais cobrados por umaloja em troca de uma manta de solteiro.

Também desprotegido, Fabiano não seabala. Toma o rumo da Igreja de São Fran-cisco de Assis e procura pelo frei MarcosMelo. O religioso traz dois cobertores eum saco de pães. Fabiano agradece e co-menta: “Sensacional. O frei deu um poo-dle, e não um lulu”. Demoro a entender ocomentário. Ele explica que, geralmente,os beneméritos doam cobertores de feltro,que soltam fiapos na blusa durante o sono.É o lulu. O poodle é uma manta rala. Pro-tege do frio das noites mais amenas e nãosolta pêlo. Há ainda o rotweiller. “São oscobertores mais grossos. Esses são raros.”

De volta à rua Anchieta, uma pequena viaque liga a rua 15 de Novembro ao Pateodo Collegio, sentamos para bater papocom Maranhão, um sujeito de barba e ca-belos fartos, e Urso, um homem negro ede fala mansa. Como quase todos os quevivem na rua, têm apelidos. Não nomes.Eles aguardam a hora da quentinha che-gar. Maranhão nos oferece um pouco depinga, gentileza retribuída com cigarros.

Enquanto especula-se sobre o que virána marmita, pergunto se é tranqüilo dor-mir por ali. “Agora está, mas há uns doismeses o pessoal do rapa veio aqui com aGuarda Civil Metropolitana. Acordeicom chutes. Tomaram as coisas de todomundo. Levaram cobertores e até a saco-la de roupas de um senhorzinho”, diz Ur-so. Na mesma noite, ele fez um boletimde ocorrência na polícia. “Vamos ver quebicho vai dar”, comenta, incrédulo. Aconversa é interrompida com a chegadada refeição, oferta de um grupo de evan-gélicos. Arroz, salsicha, batata e cenoura.

Após a distribuição da comida, os reli-giosos fazem uma oração. Abandono ogrupo ao ver, na praça, dois homens daCentral de Atendimento Permanente(Cape). São os agentes de proteção so-cial que, segundo a cartilha da prefeitura,deveriam abordar os moradores de rua etentar convencê-los a dormir num alber-gue. Ou, então, encaminhá-los para algumserviço de assistência especializado,

REGRAS DO JOGO Os desabrigados dormem em grupos para se proteger.As linhas imaginárias que delimitam as “casas”de uns e de outros são as malocas

PERTENCES. Fabiano mostra o “guarda-volumes”

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SONO INSEGURO. Urso registrou queixa contra os guardas municipais que o acordaram com chutesdurante a madrugada. Para o catador de materialreciclável Valdemar de Carvalho (à dir.), o maiortemor é ser vítima de grupos de extermínio

ESPERANÇA.O casal Eurípedese Jane sonha em transformarluminárias feitascom bagaço de cana emalternativa de renda para o povo da rua

REPRESSÃO.Cristiano

participou de manifestação

para lembrar achacina de

amigos e foiagredido por

policiais

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como uma casa de cuidados de saúde.Não foi o que aconteceu naquela oca-

sião. Em vez de abordar os desvalidos, es-ses é que cercaram os agentes da prefeitu-ra, por volta das 9 e meia da noite, à caçade cobertores e pernoites em albergue. Nomeio do bando, pergunto se há vagas. “Asúltimas cinco foram preenchidas no Gli-cério, com o pessoal que tem mais de 40anos. Outra viatura deve passar aqui maistarde. Talvez tenha alguma coisa.”

Até a meia-noite, os funcionários nãodão as caras. Ainda acompanhado de Fa-biano, acordamos Maranhão e pedimospara passar a noite em sua maloca, a cal-çada do Primeiro Tribunal de Alçada Civildo Estado de São Paulo. “Só não encostanos meus pés que eu me assusto fácil”, aler-ta, com um porrete de madeira na mão.

Fabiano cai no sono rápido. Eu perma-neço acordado por mais tempo.Ao que parece, Maranhão tam-bém. Ao perceber a aproximaçãode um maltrapilho, por volta da 1da manhã, ele esbraveja. “Vou dara letra que é para não ter confu-são. Pode dormir aí. Mas vai mi-jar na esquina porque tem genteque deita nesse canto.” Insone, eleliga o rádio e sintoniza a Tupi FM.A dupla sertaneja Bruno e Marro-ne embala a noite.

As versões sobre os motivos quelevam um cidadão para a rua são va-riadas. Fabiano brigou com a famí-lia. Urso perdeu o emprego de au-xiliar de limpeza. Já o catador de lixo Val-demar de Carvalho, de 42 anos, considera-se uma vítima de Fernando Collor. No iní-cio da década de 90, ele trabalhava numametalúrgica e acumulou pequenas reser-vas no banco. Perdeu o emprego e foi des-pejado da pensão onde morava. Falta de pa-gamento. “Eu tinha uns três meses de alu-guel na poupança, mas o presidente con-fiscou.” Até hoje, ele não viu a cor do di-nheiro. “Já estou acostumado às ruas. Sótenho medo dos grupos de extermínio”,diz, antes de guardar uma sacola de roupasnum bueiro, o seu “guarda-volumes”.

O temor o persegue desde agosto de2004, quando soube da morte de sete mo-radores de rua a golpes de cacetete no Cen-tro. Após as investigações da Polícia Civil,

o Ministério Público do Estado de SãoPaulo denunciou cinco policiais militarespela chacina. “Tudo leva a crer que um dospoliciais era traficante e decidiu matarquem lhe devia dinheiro. Também matougente que só estava no lugar errado”, expli-ca o promotor Maurício Ribeiro Lopes.Até agora, só o PM Francisco Eduardo daSilva foi condenado a 19 anos de prisão pe-lo assassinato de uma testemunha. Os de-mais aguardam julgamento.

Todos os anos, a Pastoral do Povo da Ruaorganiza uma vigília na escadaria da Cate-dral da Sé para lembrar o massacre. Cris-tiano Leandro Braz, de 20 anos, é mora-dor de rua e participou do último ato, em19 de agosto. No mesmo dia recebeuameaças de um PM. “Estava descendouma ladeira e ele disse: ‘É melhor vocêsirem morar no Brás. Tô avisando’.” Sem dar

atenção ao recado, dormiu debaixo dopontilhão da avenida 23 de Maio. Estavaacompanhado de dois amigos. Por volta da1 e meia da manhã, dois policiais chega-ram e os agrediram com golpes de cacete-te. “Engatilharam a arma e mandaram agente correr. Cada um foi para um canto.”

Apesar dos problemas com policiais mi-litares, muitos moradores de rua concor-dam num ponto: os maus-tratos infligidospor funcionários da prefeitura e de agen-tes da Guarda Civil Metropolitana sãomais recorrentes. Dias depois de dormirna maloca de Maranhão, volto ao local.Como jornalista. Ao revelar a identidade,um dos moradores esbraveja e exige ano-nimato. Maranhão olha com indiferença ese fecha em copas. Urso resolve falar. Seu

nome é Wesley Francisco da Silva. Tem 41anos e já morou no albergue Arsenal da Es-perança, onde lutava contra os percevejosque se alastravam pela cama.

Há cinco anos, vive nas ruas. E garanteque nunca passou por uma situação seme-lhante à da noite em que teve a cobertaconfiscada. “O pessoal fica meio cabreirocom repórter porque o bicho sempre pe-ga pro nosso lado. Uma semana depoisque a gente deu uma entrevista para umjornal, o pessoal da prefeitura passou a la-var a calçada às 3 da manhã. Demorou umtempo para tudo voltar ao normal.”

De acordo com o inspetor Dalmo LuizCoelho Álamo, comandante operacional daGuarda Civil Metropolitana no centro deSão Paulo, existem dez denúncias contraagentes da GCM na corregedoria. “A maio-

ria dos conflitos acontece quandoos funcionários da prefeitura ten-tam remover sofás, barracos impro-visados ou objetos que impedem apassagem das vias públicas”, diz,com linguagem fardada. “Às vezes,a remoção tem de ser feita à força.”No relatório de atividades da Se-cretaria Municipal de Assistênciae Desenvolvimento Social (S-mads) de agosto, há o relato deum conflito entre guardas muni-cipais e um agente de proteção so-cial, contrariado com a aborda-gem dos policiais a um grupo demoradores de rua. O servidor bra-dou quando guardas e funcioná-

rios de limpeza pública confiscaram ob-jetos dos desabrigados. Acabou detido.

Na Ouvidoria da Prefeitura, boa partedas queixas registradas pela população derua está relacionada a maus-tratos e pre-cárias condições de higiene e infra-estru-tura nos albergues. Essas denúncias cor-respondem a 30% das 281 reclamaçõesprotocoladas contra os serviços de assis-tência social do município em 2007. A fal-ta de vagas na região central também éuma reclamação constante.

Em dois dias diferentes, procurei auxí-lio dos agentes de proteção social, mas nãohavia vagas disponíveis para jovens. Emoutra ocasião, após 40 minutos de esperana porta do albergue Cirineu, região cen-tral de São Paulo, também fui dispensado,

SERVIÇO PÚBLICO Um agente social da própria prefeitura acabou detido ao seinsurgir contra a abordagem truculenta de guardas e funcionários municipais

OUVIDORIA. Muitas queixas contra os serviços de proteção social

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com outros 30 desabrigados. Para garantiruma vaga no albergue Arsenal da Esperan-ça, mantido pelo governo do Estado, foipreciso passar por uma longa triagem, das6 da manhã às 2 da tarde.

Para muitos, o esforço vale a pena. Ébom contar com um prato de comida,uma cama estofada e até mesmo área delazer, com direito a tevê e biblioteca. Masnem tudo são flores. A temperatura do ba-nho oscila entre o frio cortante e o mornoredentor. A área do chuveiro é dominadapor uma espessa camada de sujeira.Quanto aos percevejos sobre os quais Ur-

so tanto me alertou, não os vi. Masa recomendação de um colega dequarto me faz crer na veracidade dorelato: “Olha o lençol antes de dor-mir. Vira e mexe isso aqui fica infestadode muquiranas. Coça igual a peste”.

O professor de capoeira Wellington dizpassar por problemas piores no Cirineu.“É tudo uma imundície. Às vezes, chega atransbordar cocô do vaso sanitário. Os mo-nitores são estúpidos. Tratam todo mundofeito bicho. Evito entrar em choque comeles porque a minha mulher está grávida etemo que a gente possa ser expulso.”

O secretário municipal de AssistênciaSocial, Floriano Pesaro, diz-se surpresocom a dificuldade de encontrar vagas emalbergues. “Temos 8 mil camas disponí-veis e cerca de 200 permanecem ociosastodas as noites, exceto nas madrugadas defrio intenso.” Em 2003, a Fundação Insti-

tuto de Pesquisas Econômicas (Fipe) rea-lizou um censo na capital paulista e iden-tificou mais de 10,7 mil moradores de rua.Hoje, segundo estimativas oficiais, o nú-mero é superior a 13 mil. Mesmo quandoos albergues estão lotados, cerca de 5 milhabitantes de São Paulo continuam a dor-mir debaixo de viadutos e marquises.

A promotora de Justiça Fernanda Leão,que coordenou o Grupo de Atuação Espe-cial em Inclusão Social, do Ministério Pú-blico paulista, até setembro deste ano, dizter alertado a prefeitura sobre o problema.“Encaminhamos proposições para o Exe-cutivo municipal ampliar as vagas nos al-bergues e apurar as condições de higienee infra-estrutura.” De acordo com ela, a LeiMunicipal nº 12.316/97 assegura uma sé-rie de direitos aos moradores de rua, in-cluindo um regime de progressão que

obriga a prefeitura a oferecer vagas em al-bergues, moradias provisórias e alternati-vas de habitação e trabalho. “O problemaé que o percurso de reinserção social é in-terrompido no meio do caminho, com afalta de residências provisórias e soluçõesde moradia para quem tem baixa renda.”

Mas o secretário Pesaro diz que a expan-são das vagas em albergues não modifica-rá a situação. “Hoje, cerca de 30% das ca-mas são ocupadas por quem nunca morounas ruas. Ainda há muita resistência dosdesabrigados em aceitar ajuda. O gastocom o aparato de proteção social é de 4,5milhões de reais por mês.” Na avaliaçãodele, o problema também é uma questãode saúde pública, já que 70% da popula-ção de rua, segundo estudos da prefeitura,

tem transtornos psiquiátricos ou depen-dência de álcool e drogas. “Se perguntar aeles qual é a razão de estarem nas ruas, di-rão que é falta de emprego. É mentira. Em2005, abrimos 1,5 mil vagas em frentes detrabalho e apenas 300 funcionários per-maneceram no batente até o fim.”

O coordenador do Movimento Nacionalda População de Rua, Anderson Miran-da, contesta o argumento. “As frentes detrabalho duram pouco e o salário é bai-xo, muitas vezes não passa de 210 reais.Depois de alguns meses, o funcionáriovolta ao desemprego. Catar latinha podeser mais vantajoso.” Integrante de umgrupo de trabalho interministerial emBrasília, ele luta para a criação de políti-cas públicas para os desabrigados.

Enquanto a sobrevivência dos mora-dores de rua continua atre-lada a trabalhos temporáriose informais, eles própriostentam se organizar paraconquistar uma vida maisdigna. Além das cooperati-vas de coleta de lixo, háquem se aventure a montarempresas solidárias. Essa foia opção do casal Jane Ribei-ro e Eurípedes da Silva. Elesdesenvolveram uma técnicapara fabricar lumináriascom bagaço da cana-de-açú-car. Ex-moradores de rua,agora abrigados num prédioocupado pelos sem-teto no

centro da cidade, pretendem montar umaoficina-escola voltada aos desabrigados. “Aidéia é que cada aluno domine a técnica epossa abrir a própria empresa em outra co-munidade”, explica Jane.

Os percalços para a efetivação do pro-jeto já aparecem. Eles têm 65 modelos fa-bricados e não encontram um lugar paraexpor e vender as luminárias. “Mas tenhofé de que vamos conseguir. Quem sabenão montamos uma rede nacional de em-presas solidárias para exportar nossos pro-dutos. Já imaginou um francês compraruma luminária feita por um maloqueirodas ruas de São Paulo?”, empolga-se a em-preendedora. “O curioso é que sempre fo-mos tratados como lixo e parece ser o lixoo caminho da nossa emancipação.” ■

EQUAÇÃO DIFÍCIL O secretário Pesaro critica a falta de adesão às frentes de trabalho. Muitos moradores de rua dizem que catar latinha é mais vantajoso

A FICÇÃO. Na cartilha da prefeitura,os desabrigados é que rejeitam ajuda

A REALIDADE. Nem todos encontram vagas nos albergues da cidade

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