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[T] A vocação de Samuel The vocation of Samuel [A] Tércio Machado Siqueira Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), professor da Faculdade de Teologia da mesma universidade, São Bernardo do Campo, SP - Brasil, e-mail: [email protected] Resumo O relato da vocação de Samuel é uma resposta ao desafio presente na sociedade is- raelita. A tradição profética entende que a ausência da Palavra no mundo é perigosa, pois, quando Javé não fala, o mal se prolifera. A ausência da dabar de Javé constitui a espinha dorsal deste relato. A partir do chamado de Samuel, a Palavra de Javé volta a agir com absoluta intensidade ante o povo. Tudo mudou depois que Samuel se dispôs a ouvi-la. Por fim, é seguro colocar o relato da vocação de Samuel entre o dos profetas. Sua caracterização como uma criança identifica-o com Jeremias, por meio do uso do termo hebraico na ‘ar. [P] Palavras-chave: Vocação. Chamado de Samuel. Tradição profética. Rev. Pistis Prax., Teol. Pastor., Curitiba, v. 5, n. 2, p. 365-379, jul/dez. 2013 ISSN 1984-3755 Licenciado sob uma Licença Creative Commons doi: 10.7213/revistapistispraxis.05.002.DS03

A vocação de Samuel

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Page 1: A vocação de Samuel

[T]

A vocação de Samuel

The vocation of Samuel[A]

Tércio Machado Siqueira

Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), professor

da Faculdade de Teologia da mesma universidade, São Bernardo do Campo, SP - Brasil, e-mail:

[email protected]

Resumo

O relato da vocação de Samuel é uma resposta ao desafio presente na sociedade is-raelita. A tradição profética entende que a ausência da Palavra no mundo é perigosa, pois, quando Javé não fala, o mal se prolifera. A ausência da dabar de Javé constitui a espinha dorsal deste relato. A partir do chamado de Samuel, a Palavra de Javé volta a agir com absoluta intensidade ante o povo. Tudo mudou depois que Samuel se dispôs a ouvi-la. Por fim, é seguro colocar o relato da vocação de Samuel entre o dos profetas. Sua caracterização como uma criança identifica-o com Jeremias, por meio do uso do termo hebraico na ‘ar.[P]Palavras-chave: Vocação. Chamado de Samuel. Tradição profética.

Rev. Pistis Prax., Teol. Pastor., Curitiba, v. 5, n. 2, p. 365-379, jul/dez. 2013

ISSN 1984-3755 Licenciado sob uma Licença Creative Commons

doi: 10.7213/revistapistispraxis.05.002.DS03

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Abstract

The narrative of the vocation of Samuel is a response to the present challenges in the society of Israel. The prophetic tradition understands that the lack of the word in the world is dangerous, since Jehovah does not speak, the worst is that it can be prolix. The absence of the presence of Yahweh constitutes the basis of this response. Based on the call of Samuel, the word of Jehovah returns to act with absolute intensity together with the people. Everyone after Samuel is ready to hear the word of Yahweh. Finally, it is safe to speak of the vocation of Samuel among the prophets. The characterization of Samuel as a child identifies itself with Jeremiah, via the use of the Hebrew term ‘ar.

[K]Keywords: Vocation. Call of Samuel. Prophetic tradition.

Introdução

O historiador deuteronomista procurou escrever a história de Israel desde a chegada do povo a Canaã até a destruição de Jerusalém e o fim da monarquia (587 a.C.). Depois de descrever o período tribal, ele empreende a segunda etapa de seu projeto: fazer um relato circunstanciado do período monárquico. A descrição dessa história encontra-se em quatro livros: 1 e 2 Samuel; 1 e 2 Reis.

Como nossa tarefa é analisar a vocação de Samuel, concentraremos a atenção sobre os primeiros três capítulos do livro de 1 Samuel. Um estudo so-bre a vocação de Samuel requer, primeiramente, uma análise sobre as circuns-tâncias desse importante acontecimento na história do povo bíblico. Com a intenção de lançar mais luzes sobre seu chamado, tentaremos compará-lo aos relatos de vocação de importantes figuras do Antigo Testamento.

O velho deveria ser substituído pelo novo

O historiador deuteronomista viu o chamado de Javé dirigido a Samuel como resposta a um desafio presente na sociedade israelita. Israel precisava

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renovar-se diante das constantes infidelidades a Javé e, naquele momento, Eli e seus filhos representavam o passado que o historiador não desejava que pre-valecesse na história do povo, uma vez que a história dessa família retratava a infidelidade, a negligência e a desobediência. Se o passado era mal, algo de bom deveria acontecer. Esta é a intenção da vocação de Samuel.

O surgimento do movimento profético em Israel surgiu de modo in-tenso e progressivo. Ele não surgiu para ser mais uma instituição cercada de privilégios na comunidade e viciada nos pecados, mas, especialmente, para apontar o erro e projetar uma sociedade diferenciada pela obediência a Javé e pela vivência ética. Por outro lado, a mudança pretendida por Javé não era uma simples troca na liderança político-religiosa do povo. A mudança também exigia uma severa punição sobre a antiga liderança, conhecida na tradição bí-blica como karet, um autêntico corte ou eliminação daquilo que promovia o mal dentro da comunidade.

Essa eliminação da família de Eli com a instituição sacerdotal acon-teceria de modo duro, tal como descrito em 1Sm 2,33: em aflição e morte. Trata-se de uma prática jurídica que tinha relações com o âmbito religioso (1Sm 2,31-34), dando esse rompimento de relações margem à busca de me-lhores caminhos para alcançar uma comunidade mais justa. Dessa demissão da desonrada família de Eli, surgiu uma nova esperança de uma comunidade de paz (HASEL, 1995).

O nascimento de Samuel e sua consagração em Silo (1Sm 1,1-2,26)

O historiador deuteronomista sinaliza que o povo de Israel enfrentava uma crise política e religiosa no primeiro século após a chegada a Canaã. O livro de Juízes descreve essa situação por meio do uso insistente da fórmula literária: “E os israelitas fizeram o que era mal aos olhos de Javé [...]” (Jz 2,11; 3,7-9.12-15; 4,1-2; 6,10; 10,6-7 etc.). Havia necessidade de uma reforma radi-cal na liderança do povo bíblico. O nascimento de Samuel era seu prenúncio, pois ele nasceu de Ana, cujo nome hebraico, hanah, significa graça. Portanto, o historiador deuteronomista vê o nascimento de Samuel como o prenúncio da graciosa presença de Javé sobre Israel.

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O chamado de Samuel (1Sm 2,12-4,1a)

Em todos os relatos acerca do chamado profético, o Antigo Testamento é bastante formal. Em torno de cada narrativa que descreve o chamado divino, os relatos mostram detalhes próprios, porém seguem um padrão literário e teológico bastante esquematizado (SOUSA, 2003). Todavia, a narrativa do chamado de Samuel apresenta detalhes mais com-plexos. Diante dessa realidade literária e teológica, somos levados a concluir que essa padronização é fruto da tradição profética.

O texto de 1Sm 3,19-4,1 mostra que Samuel não se tornou um sacer-dote, mas profeta de Javé (1Sm 3,20), apesar da afirmação em 1Sm 2,35. Sua vida e seus feitos dão testemunho de seu ministério profético. Esse argumento tem sua razão de ser na definição da segunda parte do cânon hebraico: os livros Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel e 1 e 2 Reis são considerados proféticos.

O contraste entre os filhos de Eli e Samuel (1Sm 2,12-36)

Após o nascimento e a consagração de Samuel, o historiador deutero-nomista preocupou-se com as atitudes de Eli e de seus filhos Hofni e Finéias, em vista do tipo de liderança política e religiosa de Israel que eles exerciam. Assim, dedica os três primeiros capítulos do livro de Samuel para argumentar contra a continuidade dessa família na liderança do povo.

Ele expõe sua opinião sobre a continuidade da ascendência da família de Eli sobre o povo por meio do método de comparação com a figura do jo-vem Samuel, filho de Ana. O perícope de 1Sm 2,12-26 mostra as diferentes condutas e apresenta duas avaliações: para os filhos de Eli, o historiador diz: “O pecado daqueles moços foi grande perante Javé, pois os homens despreza-ram a oferenda feita a Javé” (1Sm 2,17); todavia, a avaliação teológica que ele faz de Samuel é diferente: “o jovem Samuel ia crescendo em estatura [gadel] e em bem-estar [tob] diante de Javé e diante dos homens” (1Sm 2,21-26; 3,19). Não somente isso: o historiador descreve, por três vezes, que o menino Samuel servia (xarat) a Javé. Essa avaliação é marcante e intencional (1Sm 2,12-26).

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O propósito do historiador deuteronomista era mostrar os contrastes entre a família de Eli e a de Samuel, com o fim de justificar a escolha deste como a autoridade ideal para Israel. Isso fica mais claro quando os textos são expostos: “E o menino estava na presença de Eli, o sacerdote, servindo a Javé” (1Sm 2,11b); “Samuel era um menino, cingido do ’efod de linho, servindo na presença de Javé” (1Sm 2,18); “E o menino Samuel servia Javé diante de Javé” (1Sm 3,1). As três frases apresentam a mesma afirmação: o sujeito é o menino Samuel, um na’ar. A ação, em todos os casos, é servir a Javé. Isso nos leva à compreensão de que Samuel era uma pessoa que fazia parte do corpo de fun-cionários do santuário de Silo, uma vez que o verbo empregado é xarat, servir no templo, apesar de ele ser muito jovem.

A segunda questão é saber a idade de Samuel. O termo hebraico usa-do é na’ar, cujo significado é uma pessoa de pouca idade. Esse termo é usa-do em Ex 2,6 para referir-se a Moisés como uma criança recém-nascida. Em Gn 43,8; 44,22; 30-34, Judá chama seu irmão caçula de na’ar, mas no texto de Gn 44,20, Benjamim é chamado yeled (criança). Esses exemplos do uso do termo hebraico na’ar lançam luzes sobre a identificação da ida-de de Samuel ao ser chamado por Javé. Pelo contexto de sua história, em 1Sm 1-3, poderíamos tratá-lo como um adolescente, como sugere o texto de Jr 1,5. Quanto ao verbo hebraico xarat (servir), ele é usado para denominar o serviço no santuário, de modo específico.

Outras três frases revelam a tendência do historiador deuterono-mista a favor da escolha de Samuel: “E o menino Samuel crescia com Javé” (1Sm 2,21b); “E o menino Samuel continuava crescer em estatura e be-leza diante de Javé e diante dos homens” (1Sm 2,26); “E crescia Samuel. E Javé estava com ele” (1Sm 3,19). Ele continua substanciando seu argumen-to contra os filhos de Eli, Hofni e Finéias, apresentando três razões para rejeitá-los como futuros líderes do povo, sucessores de Eli; o primeiro moti-vo caracteriza os filhos de Eli como bene beliya’al (1Sm 2,12). Nesse contex-to, a expressão hebraica é empregada em conexão com a prática de abusos “cúlticos”, uma vez que eles são definidos como pessoas que não conhe-ciam (yada’) Javé. A segunda razão é pronunciada por uma pessoa anô-nima, descrita apenas como homem de Deus (2Sm 2,27). Esse suposto profeta anônimo critica Eli por ser um mal servidor do altar de Javé e por privilegiar os filhos nos serviços do culto (1Sm 2,27-36). Finalmente, a razão

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definitiva vem da proximidade de Samuel com Javé: “Samuel crescia com Javé [...] e diante de Javé, [...] Javé estava com ele”. Essas observações fazem parte do perfil de Samuel, sendo oferecidas pelo historiador deuteronomista.

O chamado de Samuel

O relato da vocação de Samuel encontra-se em 1Sm 3,1-18. Após a rejeição da família de Eli (1Sm 2,27-36), agora, o menino Samuel tem sua experiência pessoal com Javé (1Sm 3,1-18). Um estudo sobre sua vocação re-quer, primeiramente, uma análise de acordo com a forma do texto.

Os versos 1 a 3 descrevem a situação em que Samuel experimentou, pela primeira vez, a Palavra de Deus. Ele estava a serviço no santuário de Silo, com Eli. Ao descrever essa situação, o historiador deuteronomista faz uma in-teressante observação: “a palavra de Javé era rara naqueles dias, e não havia visão que se manifestasse” (1Sm 3,1b). Inicialmente, observamos que todos os relatos de vocação no Antigo Testamento têm sua origem na Palavra de Javé. No relato da vocação de Samuel, isso fica claro: “a palavra de Javé era rara na-queles dias” (1Sm 3,1). A associação entre dabar (palavra) e yaqar (raro) nessa frase é significativa, pois a raridade da Palavra de Deus era consequência da infidelidade de Eli e seus filhos.

Como, nesse período, não havia textos escritos do Antigo Testamento, a Palavra acontecia por meio da oralidade. Com isso, entendemos que a negli-gência do sacerdote Eli acontecia também na ausência do interesse de ouvir e de ensinar a Torá, isto é, a história salvífica, incluindo as instruções legais. Dessa forma, o chamado de Samuel teve a função de resgatar a vontade de ouvir e ensinar a prática da Palavra de Javé no santuário de Silo. A vocação de Samuel viria a recuperar, com isso, o convívio saudável com a Palavra de Deus nas celebrações.

O severo julgamento do historiador, conforme 1Sm 2,12, tem sua razão de ser no uso do termo bene bely’al (filhos de belial), referindo-se aos filhos de Eli. Esse termo hebraico conduz a um sentido extremamente negativo, indi-cando pessoas confusas, com práticas de extrema maldade. No contexto de 1Sm 3,1, parece que essa expressão está em conexão com os abusos cometidos no culto, sob a liderança de Eli e sua família. Como a vida “cúltica” também

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pertencia à ordem social, a presença dos bene bely’al representava perigosa ameaça para a comunidade. Na verdade, o fundamento da vocação de Samuel era o resgate da prática de ouvir, estudar e proclamar a Palavra de Deus, rara naqueles dias. O historiador deuteronomista, assim, acrescenta mais uma ra-zão para demitir Eli e chamar Samuel para assumir a autoridade sobre a comu-nidade israelita.

Os versos 2 e 3 sugerem a ocasião em que ocorreu o chamado de Samuel. Provavelmente, o evento aconteceu numa manhã quando Eli ain-da estava deitado, no santuário de Silo. A narrativa sugere isso: “a lâmpa-da de Eloim não se tinha ainda apagado”. Em se tratando do santuário de Silo, essa referência à expressão hebraica ner ‘elohim (lâmpada de Eloim) é interessante, porque sugere que havia, nessa comunidade do norte, um centro de culto gozando de certas formalidades litúrgicas. O verso 3 indica que a lâmpada do altar permanecia acesa durante toda a noite (Ex 27,21; Lv 24,3). Provavelmente, essa lâmpada seria a menoráh, o candelabro do tem-plo de Jerusalém, mas o texto não menciona esse termo.

A experiência do menino Samuel com Javé (1Sm 3,4-9)

Inicialmente, a experiência de Samuel com Javé é descrita em dois estágios. Nos versos 4 a 7, somente a identidade de Javé é revelada. O que deveria ser um diálogo transforma-se num monólogo, com uma estrutura muito padronizada: Javé chamou duas vezes; por duas vezes, Samuel en-ganou-se com a origem da voz e, repetidamente, foi buscar a ajuda de Eli. Ambos ficaram confusos. A sequência do diálogo é a mesma: Javé chamou e Samuel não reconheceu de quem era a voz. O verso 7 interrompe a sequên-cia para justificar a falha de Samuel. É uma forma de acusar Eli de incompe-tência. Eis como o historiador descreve o início desse evento:

Primeiro chamado de Deus (versos 4 e 5):

a) o não reconhecimento por Samuel: “Javé chamou: ‘Samuel! Samuel’. Ele respondeu: ‘Eis-me aqui!’, e correu para onde estava Eli, e disse: ‘Eis-me aqui!’, porque me chamaste” (1Sm 3,4-5a);

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b) o não reconhecimento por Eli: “‘Não te chamei’, disse Eli; ‘volta e vai deitar-te’. Ele foi deitar-se” (1Sm 3,5b).

Segundo chamado de Deus (versos 6 e 7):

a) o não reconhecimento por Samuel: “Javé chamou novamente: ‘Samuel! Samuel!’. Ele se levantou e foi ter com Eli, dizendo: ‘Tu me chamaste; aqui estou’” (1Sm 3,6a);

b) o não reconhecimento por Eli: “‘Eu não te chamei, filho meu’, disse Eli; ‘vai deitar-te’” (1Sm 3,6b);

c) a inexperiência de Samuel por reconhecer a Palavra de Deus (1Sm 3,7).

Esses versos descrevem duas vezes seguidas a mesma cena: primeira-

mente, Javé chama Samuel pelo nome e ele atende, dirigindo-se a Eli; este, não entendendo o ocorrido, ordena-lhe que volte a seu leito (1Sm 3,4). Essa mesma cena é repetida (1Sm 3,6) sem que nenhum dos dois tenha percebi-do a origem e a intenção do chamado.

A sequência do diálogo deveria ser, tão somente, entre Javé e Samuel. Todavia, o historiador registra uma sequência alternativa: Javé fala a Samuel, este se dirige a Eli, que responde a Samuel. A razão pela qual o diálogo entre Javé e Samuel é interrompido deve-se à inexperiência deste, conforme o verso 7: “Samuel não conhecia ainda Javé, e a palavra de Javé não lhe tinha sido ainda revelada”. Na verdade, quem deveria reconhecer a voz de Javé era Eli, mas ele demonstrou mais uma suas incapacidades para a importante tarefa que ocupava. Com isso, o historiador deuteronomista continua desenvolvendo sua palavra de juízo contra a casa de Eli.

Pela terceira vez, Javé chama Samuel, sem que o menino reconheça a origem da voz, porém, desta vez, Eli a percebe como a Palavra de Deus (1Sm 3,8).

Terceiro chamado de Deus (versos 8 e 9):

a) Javé chama Samuel: “Javé voltou a chamar Samuel pela terceira vez” (1Sm 3,8a);

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b) Samuel não reconhece a origem da voz e dirige-se a Eli: “Ele se levantou, aproximou-se de Eli e disse: ‘Aqui estou, porque me chamaste’” (1Sm 3,8b);

c) Eli reconhece que é a voz de Deus: “Então Eli compreendeu que era Javé que chamava o menino” (1Sm 3,8c);

d) as instruções de Eli para Samuel: “E disse Samuel: ‘Vai deitar-te e, se te chamar de novo, dirás: Fala, Javé, pois o teu servo ouve’, e Samuel foi se deitar no seu lugar” (1Sm 3,9).

Os versos 4 a 6 revelam uma evidente frustração. Javé não consegue complementar sua intenção, devendo-se o impedimento à inexperiência de Samuel e, especialmente, à incompetência de Eli. Somente no terceiro chamado (versos 8 e 9), Eli percebeu a origem da voz que chamava Samuel. Com a percepção de que a voz era de Javé, ele instrui Samuel sobre como proceder caso fosse chamado novamente. Os versos 4 a 9 narram o primei-ro estágio da experiência de Samuel; neles, Javé se identifica como o autor do chamado de Samuel.

A mensagem de Javé é comunicada a Samuel (1Sm 3,10-14)

Os versos 10 a 14 constituem o ápice do perícope que narra o chamado de Samuel, pois, agora, ele reconhece a voz de Javé.

O quarto chamado de Javé e a resposta de Samuel: “Veio Javé e ficou ali presente. Chamou, como das outras vezes: ‘Samuel! Samuel!’, e Samuel respondeu: ‘Fala, pois o teu servo ouve’’” (1Sm 3,10). O início do diálogo é o mesmo, porém a reação de Samuel é de certeza e confiança: “Fala, pois teu servo ouve” (1Sm 3,10b). Como o verbo hebraico xama’ (ouvir) encontra-se no particípio, devemos entender que a intenção de Samuel é dizer: “Fala, pois teu servo está pronto para ouvir”. Essa sua disponibilidade é significativa para entender sua história, especialmente profética (1Sm 4-8).

A narrativa do chamado de Samuel mostra uma interessante equação: por três vezes Javé chama; três vezes Samuel pede o apoio de Eli para enten-der a origem da voz; e somente na terceira vez ele percebe que é a voz de Javé. Somente no quarto chamado, após a resposta apropriada de Samuel, Javé

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manifesta sua intenção. A equação 3 + 1 = 4 não é uma linguagem acidental. Trata-se de uma sequência proverbial encontrada em Pr 30,15b.18.21-29.O provérbio numérico é um artifício didático, porém, no âmbito profético, foi usado para mostrar o volume de ofensas do povo contra Javé (1,3-2,8). Essa equação, em 1Sm 3,1-14, visa a apontar a infidelidade da casa de Eli e mostrar a insistência divina pela busca frenética de um mundo onde os critérios de valor estão baseados no exemplo de sinceridade de uma criança.

A própria mensagem

Os versos 11 a 14 conduzem o conteúdo da mensagem de Javé a Samuel: inicialmente, Javé anuncia o julgamento contra a casa de Eli (1Sm 3,11-13), incluindo a dura decisão de eliminá-la do cenário político-reli-gioso de Israel. Este é o julgamento de Javé:

Javé disse a Samuel: ‘Vou fazer uma coisa em Israel que fará tinir ambos os ouvidos de

todos os que ouvirem. Naquele dia, farei cumprir-se contra Eli tudo o que disse acerca

da sua casa, do começo até o fim. Eu lhe anunciei que julgaria sua casa para sempre, por-

que ele sabia que os seus filhos ofendiam a Deus e não os repreendeu’ (1Sm 3,11-13).

O registro do verso 1 – “A palavra de Javé era rara [...]” – faz da dabar a espinha dorsal de todo o relato da vocação de Samuel. A Palavra de Javé era rara, porque Eli não reconhecia a voz divina (1Sm 3,5-7), não possuía o discernimento próprio de um profeta (1Sm 1,13-14), nem sabia educar seus filhos. A partir de Samuel, a Palavra de Javé volta a agir com absoluta intensidade ante o povo. Os versos 9 e 10 registram a expressão verbal (“fala, Javé!”) e os versos 18, 19 e 21, além de 1Sm 4,1, mencionam sua forma substantivada. Da constatação de que a Palavra era rara antes do chamado de Samuel, agora ela se tornou presente e frequente. Tudo mudou depois que Samuel se dispôs a ouvir a Palavra de Javé.

Na narrativa do chamado de Samuel (1Sm 3,1-21), a Palavra de Javé é o centro. Na língua hebraica, o termo dabar tem significado, aparente-mente, divergente: palavra e coisa. No verso 17, observamos o uso de dabar com os dois sentidos. A Palavra de Deus é coisa, matéria, porque é algo con-creto. Ela nunca carrega o sentido abstrato ou sobrenatural e desligado da

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realidade. A Palavra de Javé é algo concreto e faz parte da vida (Is 9,7). Ademais, a tradição profética entende que a ausência da Palavra no mundo é perigo-sa, pois, quando Javé não fala, o mal prolifera. O historiador deuterono-mista aponta a desobediência e a infidelidade da família de Eli como o moti-vo do silêncio de Deus. Diante dessa realidade, vem o inevitável: nenhuma reconciliação com a casa de Eli – “E por isso – eu o juro à casa de Eli – que nem sacrifício nem oferenda jamais expiarão a iniquidade da casa de Eli” (1Sm 3,14).

A linguagem da narrativa do chamado de Samuel está carregada da ti-pologia literária do profetismo. Desde o uso das fórmulas proféticas, relativas à Palavra de Javé, até a forma de condenação dos cultos sacrificiais (1Sm 3,14; Is 1,10-20; Mq 6,6-8; Sl 50), não é difícil concluir que a tradição profética está por trás dessa narrativa.

A possível relação entre os relatos de vocação no Antigo Testamento

Os principais relatos bíblicos sobre o chamado divino mostram três de-talhes salientes e fundamentais para compreender o conceito bíblico de voca-ção, sendo que o primeiro apresenta-se na forma literária. Sabemos que todo escritor, necessariamente, se serve de um gênero literário para se comunicar (SOUSA, 2003). Embora, supostamente, os livros Êxodo, Juízes, 1 Samuel, Isaías, Jeremias e Ezequiel tenham tido diferentes autores, a forma literária dos relatos de vocação mostra-se surpreendente semelhança. Eis algumas dessas proximidades literárias e teológicas.

As circunstâncias do chamado

1) Gerala. Moisés: o povo escravizado no Egito (Ex 1,8-14; 2,23-25; 3,7);b. Gedeão: assentamento em Canaã (Jz 6,1-18);c. Samuel: ameaça dos filisteus e conflito com a família de Eli

(1Sm 2,12);

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d. Isaías: morte do rei Uzias, guerra siro-efraimita (Is 6,1-13; 7,1-9);e. Jeremias: invasão da Babilônia (Jr 1,4-10).

2) Particulara. Moisés: pastoreava ovelhas (Ex 3,1-6);b. Gedeão: malhava trigo debaixo da árvore (Jz 6,11-13);c. Samuel: durante a madrugada, deitado no santuário (1Sm 3,3);d. Isaías: meditava no Templo de Jerusalém (Is 6,1-3);e. Jeremias: envolvido com afazeres de um adolescente (Jr 1,4-5).

Perplexidade e objeção

a. Moisés: “Quem sou eu?” (Ex 3,11); “Eu não sei falar: (Ex 6,30);b. Gedeão: “A minha família é a mais pobre [...]” (Jz 6,15);c. Samuel: por ser criança, não reconheceu a voz de Javé (1Sm 3,7);d. Isaías: “Eu sou um homem de lábios impuros [...]” (Is 6,5);e. Jeremias: “Ah! [...] eis que não sei falar, porque sou ainda uma

criança” (Jr 1,6).

Missão

a. Moisés: libertar os hebreus da escravidão no Egito (Ex 3,8-10);b. Gedeão: libertar Israel das mãos dos midianitas (Jz 6,14);c. Samuel: substituir Eli na liderança do povo (1Sm 3,11-14);d. Isaías: resgatar a confiança em Javé (Is 7,1-9);e. Jeremias: “Eu te constituo [...] para destruir [...] e para cons-

truir” (Jr 1,10).

Tentaremos analisar o chamado de Samuel à luz dos relatos de vocação de Moisés, Gedeão, Isaías e Jeremias, começando pelas circunstâncias político--sociais e religiosas em que ele foi interpelado por Javé. Elas vão iluminar deta-lhes que estão encobertos no relato do chamado.

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A forma com que esses eventos foram narrados nos textos bíblicos adver-te-nos para algo especial. Moisés, Gedeão, Samuel, Isaías e Jeremias viveram em diferentes épocas e os redatores desses livros, provavelmente, tiveram diferentes origens. Todavia, as narrativas vocacionais seguem uma forma literária bastante padronizada. Não somente isso! As diferentes circunstâncias em que cada voca-cionado se encontrava, bem como as objeções ao chamado divino, valorizam o empreendimento da missão divina. Portanto, nesses quatro relatos, percebemos algo em comum e isso é extremamente significativo para a nossa pesquisa.

Em segundo lugar, observamos que todos esses relatos de voca-ção têm sua origem na Palavra de Javé. No relato da vocação de Samuel, isso fica claro: “a palavra de Javé era rara naqueles dias” (1Sm 3,1). Com isso, entendemos que a negligência do sacerdote Eli e de seus filhos acon-tecia também na ausência da leitura e do ensino. Dessa forma, o chamado de Samuel tem a função de resgatar a leitura, o ensino e a prática da Palavra de Javé no santuário de Silo, de modo que sua vocação viria a recuperar o convívio saudável com a Palavra de Deus nas celebrações. De acordo com o Antigo Testamento, vocação é o que Javé quer. É interessante observar que o livro de Jonas narra o mesmo chamado para cumprir determinada missão, porém o profeta interrompeu a lógica da forma do chamado, fugindo da missão. A partir daí, Jonas passa a ser uma figura antiprofética.

Em terceiro lugar, todos os relatos do chamado divino possuem uma motivação. O chamado de Deus tem a ver com a realidade concreta da vida e os relatos bíblicos comprovam isso. Moisés foi vocacionado para libertar o povo no Egito (Ex 3,9-12), Gedeão foi chamado para livrar o povo das razias midianitas (Jz 6,11-18) e Samuel, para liderar o povo diante da ameaça dos filisteus (1Sm 4,1b). Os relatos de chamados proféticos fornecem diferentes motivações, mas o de Samuel tem muito a ver com a Palavra de Javé. Assim aconteceu com os profetas Isaías (Is 6,1-13), Jeremias (Jr 1,4-10) e Ezequiel (Ez 1-3). De todos esses profetas, Jeremias foi aquele que reagiu por meio de palavras, com seu sentimento sobre as consequências de um chamado divino. Suas palavras são significativas: “Meu coração está quebrado dentro de mim, estremeceram todos os meus ossos. Sou como um bêbado, como homem que o vinho dominou por causa de Javé e por causa de suas santas palavras” (Jr 23,9). Quer experimentada ou não, a vocação é determinada por Javé, que

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fala e chama, e não por alguém que tem uma experiência no nível emocional. A experiência emocional não determina a vocação.

Diante dessa exposição, estamos em condições de agregar a esta análise o relato do chamado de Samuel.

Considerações finais

Primeiramente, não podemos desdenhar a história da família de Samuel. Ana, sua mãe, carregava no nome um forte significado ― seu nome, em hebraico, corresponde a hen (graça) ― , enquanto sua parceira no casamento com Elcana chamava-se Penina ou Fenena, cujo significado era mulher com ricos cabelos, enfim, bonitos. Apesar de possuir a graça, a história de Ana mostrava facetas de uma pessoa malsucedida na vida: era estéril, era zombada pela bela Penina ou Fenena, chorava constantemente (1Sm 1,1-8). Todavia, ela era portadora da graça em sua trajetória de vida; isso porque, na Bíblia, o nome carrega a realidade profunda do ser e Ana é detentora do favor de Deus.

Em segundo lugar, o chamado de Samuel está relacionado com a rejeição da família sacerdotal de Eli. Os motivos dessa rejeição não são políticos nem ide-ológicos, mas éticos. O sacerdote Eli foi incompetente no atendimento pastoral à sofrida e oprimida Ana. Sua incompetência como sacerdote ficou demonstrada quando viu Ana em oração e não reconheceu o sentido de sua dor e a sinceridade de sua fé. Para ele, Ana estava bêbada. Em razão disso, Eli lhe atribuiu o nome filha de belial (bat bely’al) (1Sm 1,16). Essa insensata constatação provocou medo em Ana, pois tal avaliação, por parte de um sacerdote, era considerada uma dura condenação. Ao ser assim avaliada, Ana se sentia uma pessoa inútil (Dt 13,14). Esse erro mostrou que Eli não possuía as qualidades básicas de um sacerdote de Javé.

Em terceiro lugar, o relato de 1Sm 2,27-36 diz que um homem de Deus, anônimo, condenou a casa de Eli por sua conduta falha na supervisão do santu-ário de Silo e na educação de seus filhos. Eli não soube educar seus filhos Hofni e Finéias para exercer com dignidade a função sacerdotal (1Sm 2,12). O historia-dor deuteronomista avalia que eles conheciam Javé (1Sm 2,12). O redator des-se texto sabia que a vida “cúltica” tratava diretamente da ordem social. O livro de Provérbios compara o homem de belial com o homem ‘awen (da maldade).

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Assim, entendia-se que a ordem social poderia ser ameaçada pela ação do bely’al, isto é, pela inútil ação da família de Eli.

Por fim, é seguro colocar o relato da vocação de Samuel entre o dos profe-tas mencionados, pois a narrativa segue as principais formas: circunstâncias do chamado, perplexidade e missão. A perplexidade de Samuel, diante do chamado divino, é uma reação bem tratada no relato. Sua falta de objeção é justificada: Samuel não conhecia ainda Javé e a Palavra de Javé não lhe tinha sido ainda revelada (1Sm 3,7). Também fica muito claro que o historiador deutero-nomista deu destaque ao sujeito do chamado: Javé (1Sm 3,4.6.8.10). De certa forma, a caracterização de Samuel como uma criança identifica-o com Jeremias (Jr 1,5), a partir do uso do termo hebraico na’ar.

O que fica destacado nesse relato é que Eli exercia uma tarefa formal na instituição sacerdotal. Por sua vez, Javé queria mais do que o cumprimento das obrigações oficiais e protocolares dentro da comunidade; Ele queria que Samuel fosse além e exercesse o dom do amor em favor de toda a comunidade. Assim ocorreu com Moisés, Gedeão, Isaías, Jeremias e Ezequiel; somente Jonas relu-tou em exercer o dom do amor para com a comunidade estrangeira e pagã de Nínive.

Referências

HASEL, G. F. karat. In: BOTTERWEK, G. J.; RINGGREN, H.; FABRY, H-J. (Org.). Theological dictionary of the Old Testament. Grand Rapids: W. B. Eerdmans Publishing, 1995. v. 7. p. 339-352.

SOUSA, A. B. Vocação e espiritualidade no Antigo Testamento. Rio de Janeiro: JUERP, 2003.

Recebido: 04/10/2012Received: 10/04/2012

Aprovado: 06/11/2012Approved: 11/06/2012

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