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A Voz Feminina Como Resistencia No Canto

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A voz feminina como resistência no canto

Prof. Dr. Pedro de Souza

Em seu show, Pássaro da Manhã, montado em 1977, em São Paulo,

Maria Bethânia introduz a interpretação de uma canção popularizada na

voz de Dalva de Oliveira, declarando confidencialmente:

Toda vez que eu faço um espetáculo de teatro, um show de teatro, eu tenho um repertório que eu obedeço desde a estréia até o último dia da temporada. E normalmente quando eu volto pra minha casa nos meus dias de folga, eu sempre me pego com o violão cantando músicas não incluídas no repertório de cena. Normalmente são músicas muito românticas, muito apaixonadas. Apenas ligadas ao coração. Essas músicas sempre me são lembradas através de gravações da extraordinária Dalva de Oliveira. A Dalva tinha a coragem, o jeito de cantar no palco o que até então eu só tinha coragem e jeito de cantar

dentro da minha casa. (Maria Bethânia. Espetáculo Pássaro da Manhã - 1977)

Eis aqui o ponto que, no confronto entre duas vozes colocadas sob a

mesma partitura melódica, traça uma linha que vai de uma cantora

contemporânea a uma cantora do rádio, ou seja, de Maria Bethânia a Dalva

de Oliveira ao som de Há um Deus, composição de Lupiscinio Rodrigues. Na

voz de Bethânia atualizada neste show de 1977, ecoa virtualmente a de Dalva; e

nesta, atualizada em discos e em centenas de espetáculos da rádio nacional,

virtualiza-se a voz de qualquer mulher. O alusivo encontro entre essas duas

vozes, colhidas em momentos diferidos, me faz pensar sempre no tempo

irredutível de cada uma: no canto uma única voz é sempre diferente de todas as

outras, à revelia das palavras que emitem. Esse fato remete ao problema que

deve colocar para si mesmo aquela que canta no exato momento em que abre

sua voz à passagem dos acordes de uma canção.

O problema – o mesmo que já levantei em outro trabalho para a

performance de Maysa como cantora e compositora no cenário da música

popular brasileira do final dos anos de 1950- não se encerra em fazer saber

quem sou eu que aqui lhes canto, mas quem devo deixar de ser quando

canto e enquanto durar o meu cantar. Dalva e Maysa, entre outras,

encontram-se entre as cantoras que puderam cantar, a partir de uma vida

intensamente apaixonada, em nome de outras vidas femininas quaisquer, as

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que buscaram nas vozes dessas cantantes a morada do grito libertador que de

fato valia.

A declaração de Maria Bethânia conduz então a pensar que a

singularidade do canto de Dalva de Oliveira reside na maneira com que esta

mulher usa a voz ultrapassando a expressão da subjetividade que a habita,

para mostrar-se como totalmente outra. Pela voz, Dalva soube interpor-se ao

dado subjetivo da mulher que padece dos próprios desencantos amorosos

narrados nas canções que interpretava.

Proponho então seguir na superfície do texto enunciado na voz de Maria

Bethânia, os vestígios da voz com o qual Dalva de Oliveira fazia corpo Adoto

então a perspectiva que permite interpretar os termos coragem e jeito,

encadeados teatralmente na enunciação de Bethânia, como palavras que

mostram e definem o ato de cantar sendo movimento explicito de enunciação

pelo qual a mulher que canta se afasta de si. Afastar-se de si, conforme

interpretação que quero sugerir, é o correlato da coragem e do jeito de cantar

fora de casa, o que outras só o fariam dentro de sua casa..

Pode parecer arriscar-se demais sustentar aqui uma interpretação

baseado no que tem de anedótico na biografia de Dalva de Oliveira. Não

importa Mais que um risco, trata-se de um ponto extraordinário de articulação

discursiva. Quando Bethânia distingue duas atitudes, a da voz colocada em

espaço público e da colocada em domínio privado, e diz ser preciso coragem

para cantar fora o que só se cantaria dentro de casa, remete ao já-dito sobre a

história da cantora a que se refere. A seqüência de desavenças conjugais e os

escândalos de seu conturbado casamento com Herivelto Martins é uma

produção discursiva trilhada sonoramente por um punhado de boleros e

sambas-canção que deram conta de dar existência á figura de mulher, ao mesmo

tempo vitima de uma violenta dominação masculina e detentora da voz que a

levaria para bem longe da identidade que lhe aplicavam os discursos que a

precediam, suplantando e surpreendendo o imaginário dos fãs extasiados diante

de seu talento vocal.

No mesmo momento em que manchetes encomendadas forjavam sua

infâmia em enunciados do tipo- Dalva de Oliveira: indigna de ser mãe”- .sua

voz, para além de lamentar todo amor acabado, propiciava-lhe o poder de

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renunciar a uma forma subjetiva de mulher para poder atingir outra, a que lhe

era dada ser na contingência do canto.

A presença pulsante desta cantora no rádio e nos grandes shows era

contemporânea à exposição da memória recente de sua vida construída e

propagada em manchetes do tipo Dalva, rainha do despudor; Boa cantora,

péssima esposa, Não é mãe: teve filhos, Ouvir Dalva de Oliveira, em meio a

essas advertências morais poderia equivaler à exposição ao canto tentador da

sereia. Mas o enredo que tece a atuação vocal desta cantora conduz a uma

outra narrativa cujo protagonismo da voz feminina, como diria Gilles Deleuze1 a

respeito do ato de contar histórias, não tem a ver com que foi visto, mas com o

que foi ouvido. Por minha conta, acrescento aqui que o ato de contar cantando

tem ainda mais a ver, não com o que foi, mas com a voz que narra o que foi

ouvido.

A que se deve a capacidade que tinha essa cantante de preservar o

próprio da voz sem se deixar confundir com os ruídos e rumores sobre sua

escandalosa vida conjugal? Por certo, Dalva de Oliveira conseguia fazer de seu

canto o acontecimento que fazia surgir em sua garganta um espaço vocal de

subjetivação absolutamente exterior à política de difamação envolvendo seu

nome de artista. No momento em que passava por um processo tumultuado e

doloroso de separação, Dalva não hesitou em cantar uma fileira de canções

compondo musical e romanescamente a seriação de um litígio amoroso: Tudo

acabado entre nós, Segredo, Errei sim, Que será, etc. Mas sua disposição para

cantar em público fatos que só competiam ser ditos em domínio privado

certamente foi bem além do desabafo e da confissão. Esta cantora poderia ser

criticada por ter cantado demais a própria vida e em seus detalhes mais íntimos,

como se isso tivesse bastado para chegar ao estrelato.

Há um mistério, neste fenômeno, que pode ser explorado se

considerarmos, não o conteúdo das canções que corajosamente cantava, mas

voz que ecoava por sobre.as palavras e seu sentido. O que se exibia assim

como corpo audível nos palcos e nos discos era um gesto vocal a invalidar

qualquer discurso moral ameaçando a resistência libertada e libertadora de uma

voz feminina. A figura visível em cena de uma mulher esvaindo-se em queixas e

lamentos parece, ao contrário, muito secundária, no processo de constituição de

1 Cf. Mil platôs, Capitalismo e Esquizofrenia, Rio de janeiro. 34 letras.

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uma cantora efetivado na esteira mesmo do escândalo que lhe custou, por certo

período, a perda da guarda dos próprios filhos. , Lembremos o que diz seu

filho Pery Ribeiro, na memória que lhe dedicou: “o mundo feminino estava a

favor dela, numa projeção de seus próprios dramas pessoais (p. 141)”.

Mas a verdade é que a escuta de Dalva de Oliveira nos conduz a produção

de uma figura feminina absoluta e unicamente redutível à sua voz. Por mais que

a letra de Tudo acabado, seu primeiro grande êxito musical, logo que se

separou do marido, a levasse o público a identificar a cantora com sua vivencia,

a força da verdade de Dalva não podia se reduzir ao sentido das palavras

cantadas. Foi preciso aguardar o fim da tempestuosa avalanche de canções

pelas quais melodramaticamente o casal se retrucava a céu aberto, para que a

força viva da mulher que canta viesse apenas do poder acústico de sua

presença, isso a despeito de tematizar sempre a própria miséria amorosa nas

canções que interpretava. Para além de toda empatia com o público, o que

permanecia mesmo era o eco de uma série de enunciações cujos efeitos vinham

da partilha de uma voz em toda sua musicalidade. É para o valor da voz como

realidade fônica destituída de sentido que quero chamar atenção. Em conto

chamado Um rei á escuta, Ítalo Calvino constrói a personagem de um soberano

que é colocado imóvel em seu trono e destinado a se relacionar com seu reino

apenas pelos que vinham de todo ambiente em torno dele. Ele não podia ver

nada, nem ninguém. Apenas ouvir sons, ruídos. Todo o problema daquele rei

era saber quem era a favor ou contra ele. O sentido que Calvino dá á sua história

tem a ver com a possibilidade de alguém conhecer todos que povoavam seu

reino apenas pelas vozes em seus timbres e tons chegando a seus ouvidos.

Assim é que o soberano podia descobrir em quem poderia confiar.

No cotidiano de sua escuta, imóvel em seu trono, um dia o rei escuta, em

meio ruídos e muitas outras vozes, uma voz muito diferente de todas as outras.

Esta voz é a de uma cantora.Calvino narra precisamente o que se passa com o

rei o momento da escuta desta voz;

“E quando no escuro uma voz de mulher se entrega ao canto, invisível no parapeito de uma janela apagada, eis que de improviso voltam-lhe pensamentos vitais, seus desejos tornam a encontrar um objeto: qual? Não aquela canção que deve ter ouvido tantas vezes, não aquela mulher que você viu, sente-se atraído pela voz enquanto voz, como se oferece ao cantar.

Aquela voz certamente vem de uma pessoa única, inimitável como qualquer pessoa, porém uma voz não é uma pessoa, é algo de suspenso no ar destacado da solidez das coisas.(p.78)

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Trata-se então de optar pela escuta da voz, mais do que enfatizar, á

revelia de seu cantar, o perfil da mulher que canta. De tal modo que a verdade

de si em Dalva não advém da relação entre as palavras que emitem o discurso de

sua história de vida, mas da singularidade que se retira da voz dirigindo-se a

outros no instante em que canta. É assim que se explica como Dalva de Oliveira

não foi levada a calar sua voz, malgrado a campanha de difamação moral que

Herivelto Martins e David Nasser empreenderam nas páginas do Diário da

noite, Rio de Janeiro. Para um público cativo da rígida moral familiar do

período dos anos de 1950, seria lógico desligar o rádio toda vez que tocassem

um disco de Dalva. Tendo sua imagem associada a uma mulher do mais baixo

nível, sua voz soaria tão perigosa como as das sereias da Odisséia, de Homero.

A que mundo de perdição não poderia ela atrair suas ouvintes quando dizia

cantando confessava “errei sim, manchei o teu nome”.

Aparece aqui duas séries enunciativas em oposição; relativamente á

desmoralização da imagem da artista em alta evidencia , reparte-se, de um lado

a fala dos homens e, de outro, a voz feminina . É preciso aqui recorrer ao que diz

Adriana Cavarero para registrar com mais força e clareza esta idéia.:

Destinada a substancializar a si mesma na semântica, a voz dos homens tende a desaparecer no mudo trabalho da mente, ou do pensamento. Modulando a si mesma no canto, por outro lado, as vozes das mulheres vêm mostrar sua autentica substancia – notadamente, o ritmo apaixonado do corpo a partir do qual a voz flui. Neste sentido, a mulher que canta é sempre uma sereia, ou uma criatura de prazer estranho á ordem doméstica da filha e da esposa A voz feminina cantante não pode ser domesticada;”( Cavarero, 2005, p. 118)

É como se o corpo visível da cantora no momento do canto abrisse para a

região em que atua sendo voz. Quando em cena, ao cantar, o corpo de Dalva

enfrenta os dizeres que a difamam, simplesmente expõe a invisível potencia

alocada na voz como sopro, garganta, respiração.. Um dos fatores que faz com

que a cantora ao cantar transforme-se em outra, descolada do sujeito que

padece das dores de que fala a canção, consiste nisso, ou seja, no fato de

exaltar menos a canção e mais a voz que entoa.. Assim é que a platéia que

partilha a região mais exposta da biografia da cantora , não se dá conta, , mas

muito ais do que testemunhar o desabafo da cantora, deixa-se inebriar pelo

efeito puramente acústico de sua performance. A certo ponto já não importa o

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que a voz quer dizer quando emite “destruímos hoje o que podia ser depois”. O

enunciado melodramático que coincide o vivido no palco com o vivido fora dele

encontra seu potencial maior, não no sentido das palavras, mas na voz que se

descola da enunciação cantada traçando sozinha uma linha de fuga aberta para

a singularização do sujeito cantante relativamente á série de discursos que o

violentam

A cantora de rádio aponta para uma forma de ser sujeito em um campo

em que discursivamente o oficio de cantar tinha nas mulheres uma especial

representação política, quer naquilo em que era convertida pelos regimes de

poder dominante, quer para o que significa como lugar de enunciação que ecoa

a voz feminina anulada no cenário público e privado de dominação masculina.

Quero aqui mostrar como Dalva de Oliveira tornou-se a cantora que foi

graças à modulação de uma voz que cantava as incursões de toda uma

violência imposta à mulher de seu tempo, sem, porém, cair no fait-divers

patético. A questão é saber como Dalva podia cantar tornando-se bem

outra que a mulher das mazelas amorosas com seu par Ao modo do ensaio

analítico, neste trabalho, concentro-me apenas em Dalva de Oliveira, pinçada

entre outras que, na história da musica popular brasileira, compõem o arquivo

das cantoras do rádio. O propósito é traçar o processo enunciativo da diferença

entre sujeitar-se ou resistir no interior da ordem do discurso de referência para

a consideração da performance vocal da mulher que canta.