22
79 NOVOS ESTUDOS n o 72 JULHO 2005 APRENDENDO A LIÇÃO 1 Uma etnografia das Varas Especiais da Infância e da Juventude Paula Miraglia RESUMO Este artigo propõe uma abordagem etnográfica das audiências com crianças e adolescentes realizadas nas Varas Especiais da Infância e da Juventude em São Paulo. Além do estudo de caso, o artigo discute as vicissitudes da relação entre o jovem e a justiça no Brasil, analisa as dificuldades de implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente e apresenta reflexões sobre as especificidades de uma etnografia quando o direito é o objeto. PALAVRAS-CHAVE: Estatuto da Criança e do Adolescente; justiça, Febem. SUMMARY This article proposes an ethnographical approach to the audiences with children and adolescents held in “Juvenile Courts" in São Paulo. It discusses problems involving the Brazilian legislation for children, analyses the difficulties of implementation of the Statute for the Child and the Adolescent and reflects about the particularities of working with ethnography when the Law is the object. KEYWORDS: Statute for the Child and the Adolescent; Justice; Febem. Nenhuma sociedade é perfeita. Por natureza, todas comportam uma impureza incompatível com as normas que proclamam, e que se traduz de modo concreto numa certa dose de injustiça, de insensibilidade, de crueldade. Como avaliar essa dose? A pesquisa etnográfica consegue. (Lévi-Strauss, em Tristes Trópicos) No bairro do Brás, na cidade de São Paulo, funcionam algumas das “Varas Especiais da Infância e da Juventude” (VEIJ). Para lá, são encaminhados jovens com menos de 18 anos que cometem o que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) chama de “ato infra- cional”. Por ato infracional, entende-se “a conduta descrita como crime ou contravenção penal” (ECA, cap. 1, art. 103). [1] Este artigo é uma adaptação de um capítulo da minha dissertação de mestrado, “Rituais da Violência - a Febem como espaço do Medo em São Paulo”, defendida no departa- mento de Antropologia Social da Universidade de São Paulo, em abril de 2002. A despeito da distância

a05n72

Embed Size (px)

DESCRIPTION

good pick

Citation preview

  • 79NOVOS ESTUDOS no 72 JULHO 2005

    APRENDENDO A LIO1

    Uma etnografia das Varas Especiais da Infncia e da Juventude

    Paula Miraglia

    RESUMO

    Este artigo prope uma abordagem etnogrfica das audincias com

    crianas e adolescentes realizadas nas Varas Especiais da Infncia e da Juventude em So Paulo. Alm do estudo de caso, o artigo discute

    as vicissitudes da relao entre o jovem e a justia no Brasil, analisa as dificuldades de implementao do Estatuto da Criana e do

    Adolescente e apresenta reflexes sobre as especificidades de uma etnografia quando o direito o objeto.

    PALAVRAS-CHAVE: Estatuto da Criana e do Adolescente; justia, Febem.

    SUMMARY

    This article proposes an ethnographical approach to the audiences

    with children and adolescents held in Juvenile Courts" in So Paulo. It discusses problems involving the Brazilian legislation for

    children, analyses the difficulties of implementation of the Statute for the Child and the Adolescent and reflects about the particularities

    of working with ethnography when the Law is the object.

    KEYWORDS: Statute for the Child and the Adolescent; Justice; Febem.

    Nenhuma sociedade perfeita. Por natureza, todas comportam uma impurezaincompatvel com as normas que proclamam, e que se traduz de modo concretonuma certa dose de injustia, de insensibilidade, de crueldade. Como avaliar essadose? A pesquisa etnogrfica consegue.(Lvi-Strauss, em Tristes Trpicos)

    No bairro do Brs, na cidade de So Paulo, funcionamalgumas das Varas Especiais da Infncia e da Juventude (VEIJ). Paral, so encaminhados jovens com menos de 18 anos que cometem o queo Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA) chama de ato infra-cional. Por ato infracional, entende-se a conduta descrita como crimeou contraveno penal (ECA, cap. 1, art. 103).

    [1] Este artigo uma adaptao de umcaptulo da minha dissertao demestrado, Rituais da Violncia - aFebem como espao do Medo emSo Paulo, defendida no departa-mento de Antropologia Social daUniversidade de So Paulo, em abrilde 2002. A despeito da distncia

  • 80 APRENDENDO A LIO Paula Miraglia

    entre a dissertao e a publicaodeste artigo, posso afirmar que opanorama das Varas Especiais da In-fncia e da Juventude mudou muitopouco desde ento. Por conta dotamanho e formato deste texto, fo-ram suprimidas discusses impor-tantes sobre a legislao mundialpara a infncia e juventude, sobre oEstatuto da Criana e do Adoles-cente, bem como reflexes sobre asespecificidades de uma etnografiaquando o direito o objeto.

    As VEIJ abrigam as audincias para apurar a culpabilidade ou nodo jovem e ento decidir qual medida scio-educativa lhe deve seraplicada. Tais audincias so palcos privilegiados de disputas pol-ticas que apresentam atores j tradicionais no cenrio dos conflitosenvolvendo direitos da infncia e da adolescncia. Configuram-secomo momento singular, onde temos reunidos, numa mesma cena,representantes da sociedade e do Estado juzes, promotores eprocuradores , os prprios jovens e, em alguns casos, suas famlias.

    Aproveitando o crdito dado por Lvi-Strauss pesquisaetnogrfica, na citao que abre este ensaio, pretendemos, a partir deuma etnografia dessas audincias, mostrar como o Poder Judiciriotem um papel fundamental na constituio da identidade de menorinfrator. Ainda que utilizando instrumentos legtimos como o Es-tatuto da Criana e do Adolescente, muitas vezes o Judicirio o faz demaneira enviesada. Uma anlise mais atenta das audincias mostracomo as relaes estabelecidas nessa etapa do processo so marcadaspela assimetria entre os atores, pela reafirmao constante das hierar-quias, por uma grande disputa e abuso de poder. O resultado maisevidente, em grande parte dos casos, a conduo de audincias deforma pouco convencional.

    A anlise ora apresentada fruto da observao de audincias deconhecimento, isto , audincias realizadas para apurar a culpa-bilidade ou no do acusado. Sesses dessa natureza, pautadas por umconjunto de regras e normas cujo objetivo formal a aplicao da lei,so o espao oficial para a resoluo de conflitos. Em outras palavras,numa audincia de conhecimento, o juiz apura, aps a leitura doprocesso na presena de um promotor pblico, um procurador daProcuradoria de Assistncia Judiciria gratuita, ou de um advogadoconstitudo, do prprio jovem acusado e em alguns casos seus pais oualgum parente prximo , se esse jovem cometeu ou no um atoinfracional. Se a culpa for verificada, o juiz aplica uma medida scio-educativa prevista pelo ECA.

    Esse espao, contudo, mostrou-se um campo rico em teatralidade edramaticidade, onde alm da ao legal do Estado, representado aquipelo Poder Judicirio, nos deparamos com todo um sistema simblicoespecfico que estabelece dilogos muito particulares com as noes demenoridade, punio, culpabilidade e a prpria idia de Estado.

    Essa percepo sugere, em primeiro lugar, que a pesquisa etno-grfica pode contribuir para ampliar a compreenso dos mecanismosde funcionamento das Varas Especiais da Infncia e da Juventude,colocando em perspectiva a tarefa primordial que seria a aplicao dalei e a resoluo de conflitos, para iluminar aspectos que envolvemdisputas de poder, posies polticas e afirmao de valores. Nessesentido, abandonamos aqui a idia de que um tribunal seria um espa-o neutro para a resoluo de conflitos, nos opondo ao que Bourdieuidentificou como a representao nativa que descreve o tribunal como

  • 81NOVOS ESTUDOS no 72 JULHO 2005

    um espao separado e delimitado em que o conflito se converte emdilogo de peritos e o processo, como um progresso ordenado comvista verdade.2 Propomos uma interpretao das cenas apresentadasem cada audincia como uma tentativa de l-las na sua chave maisdramtica: voltar o olhar para as tenses e intenes, os valores em jogoe as disputas de poder que nos chamam a ver, tambm nos termos deBourdieu, o efeito simblico do ato jurdico.

    DA ANTROPOLOGIA E DO DIREITO (OU COMO DOMESTICAR SEU PENSAMENTO)

    Lanar mo da antropologia, no s dos seus mtodos de pesquisa,mas tambm de seu arsenal terico, para analisar o discurso do direito ede seu campo de atuao , na verdade, promover o encontro entre duasdisciplinas que se colocam em lados opostos no que se refere dimensosimblica do poder. Podemos dizer que o direito opera na chave darazo prtica. Numa lgica de causa e efeito, a aplicao da lei baseia-se numa correspondncia direta entre dado, fato, prova e a imagem dejustia. Para a antropologia, contudo, a idia de realidade dos fatos,pura e simplesmente no cabe, ou pelo menos no vem a ser umapreocupao exclusiva. Como aponta Clifford Geertz, h uma espcie depreconceito advindo da idia de que o simblico se ope ao real comoo extravagante ao sbrio, o figurativo ao literal, o obscuro ao simples, odecorativo ao substancial. Ainda nas palavras do autor, a dramaturgiado poder no exterior ao seu funcionamento. O real, segundo ele, toimaginado como o imaginrio.3 Para falar do poder, a antropologiabusca elementos que constroem sua simbologia dramtica.

    A despeito da diferena de idade entre as duas, no de hoje que aantropologia e o direito tm encontrado espaos comuns de debate.Esses encontros, contudo, tm se dado de maneiras muito diferentes.Nesse sentido, propomos uma pequena reflexo acerca da trajetriadas aproximaes e estranhamentos entre as duas disciplinas.

    ***

    Para os juristas4, h uma relao imediata entre direito e sociedade.Na verdade, mais do que isso, no h sociedade sem direito. Pois, paraque o homem viva em sociedade, imprescindvel que os diversosinteresses manifestos na vida social, bem como os conflitos advindosdesses interesses, sejam orquestrados e resolvidos. Logo, o direito teriaprimordialmente a funo de ordenao social, sendo o Estado o meiopara garantir essa ordenao. A existncia do Leviat assegura, pelaviolncia ou, mais especificamente, pelo monoplio dela, que os ho-mens no vivam na condio de guerra de todos contra todos.

    Isso posto, poderamos, de forma generalizante, assumir as pre-missas de que sob a tica jurdica no h sociedade sem Estado e de

    [2] Bourdieu, Pierre. O poder sim-blico. Lisboa, Difel, 1989, p.228.

    [3] Geertz, Cliford. O saber local. 3ed., Petrpolis, Editora Vozes,2000, p.170.

    [4] Definem-se como juristas aspessoas versadas nas cincias jur-dicas, como o professor de direito, ojurisconsulto, o juiz, o membro doMinistrio Pblico, o advogado.Cintra, Antonio Carlos de Arajo,Grinover, Ada Pellegrini & Dina-marco, Cndido Rangel. Teoria geraldo processo. 16 ed., So Paulo,Editora Melhoramentos, 2000, p.219. Como em todas as profisses,diferentes profissionais relacio-nam-se de maneiras diversas com odireito, alguns se dedicando mais sua aplicao prtica, enquanto ou-tros a reflexes mais filosficassobre a disciplina.

  • 82 APRENDENDO A LIO Paula Miraglia

    que o direito, na sua forma de cultura legal, por conseqncia, umvalor universal. Ainda que explorssemos as nuanas dos debates maisrecentes sobre a universalidade do direito e dos modos de organizaosocial sob essa perspectiva, tentando com isso relativizar a posio dascincias jurdicas, certo que do ponto de vista formal da disciplinapoderamos confirmar essas duas premissas5. No se trata de dizer queh por parte do direito uma preocupao em universalizar o modelo,estendendo-o a sociedades que no a ocidental. Mas sim apontar umaperspectiva de certa maneira ainda evolucionista e exclusiva por parteda disciplina, uma vez que esta no d conta de sociedades que notm uma organizao social baseada num modelo que compreenda afigura do Estado.

    Desse modo, no precisamos ir muito longe para perceber por queo iderio do direito despertaria o interesse da antropologia. Se o pri-meiro parte de um modelo universal para pensar a organizao social,a segunda percorre o trajeto inverso ao encontrar nesses modelos par-ticularidades que pem em xeque a sua prpria generalizao.

    Se, para o advogado, a lei interessa na medida em que separa o certodo errado, o lcito do ilcito, para o antroplogo a lei ou a legislaorepresentam apenas o aspecto formal do controle social, mais uma mani-festao desse conjunto de valores que poderamos chamar de cultura(ainda que a definio desse termo seja um desafio constituinte para aantropologia). No se trata aqui de menosprezar a importncia da lei,mas apenas apontar que a ela somam-se outros mecanismos de efetivaode autoridade e imposio da regra. Em outras palavras, podemos dizerque o controle se d pela via legal, mas tambm por uma srie de outrosreguladores sociais que atuam em esferas de poder alternativas quelasgerenciadas pelo Estado, ligados, por exemplo, a noes como valor,tradio, hierarquia, legitimidade e obedincia.

    O interesse da antropologia pelo universo das leis e sua aplicaona resoluo de conflitos no recente. Junto com os subcampos dadisciplina que aparecem aps a Segunda Guerra Mundial como, porexemplo, a antropologia poltica e a antropologia da religio , est aantropologia do direito.6 Assim como para o restante da disciplina, osprimeiros objetos de estudo da antropologia jurdica foram as socie-dades tradicionais ou ditas primitivas. As publicaes de Crime andcustom in sauvage society, de Bronislaw Malinowski, em 1926, e pos-teriormente de The Cheyenne Way: conflict and law in a primitivejurisprudence, de Llewellyn & Hoebel, em 1941, marcam o incio doschamados estudos de antropologia jurdica7 para as escolas britnica eamericana, respectivamente. De maneira geral, nesses estudos, encon-tramos uma anlise das normas legais que regem as sociedades e decomo so aplicadas na resoluo de conflitos ou disputas. Ao estudaras chamadas sociedades sem Estado sem instituies formais comoo Poder Judicirio, na maioria das vezes de tradio oral, onde as leisno esto documentadas , o antroplogo se v obrigado a identific-

    [5] Os livros utilizados atualmentenos cursos de direito so, talvez, amelhor ilustrao. Segundo Cintra,Grinover e Dinamarco, nas fases pri-mitivas da civilizao dos povos,inexistia um Estado suficientementeforte para superar os mpetosindividualistas dos homens e imporo direito acima da vontade dosparticulares: por isso, no inexistiaum rgo estatal que, com soberania eautoridade, garantisse o cumprimen-to do direito, como no havia sequeras leis (normas gerais e abstratas im-postas pelo Estado aos particulares).Assim, quem pretendesse algumacoisa que outrem o impedisse deobter haveria de, com sua prpriafora e na medida dela, tratar deconseguir por si mesmo a satisfaode sua pretenso. [...] A esse regimechama-se autotutela (ou autodefesa)e hoje, encarando-a do ponto de vistada cultura do sculo XX, fcil vercomo era precria e aleatria, pois nogarantia a justia, mas a vitria domais forte, mais astuto ou mais ou-sado sobre o mais fraco ou maistmido. (Op. cit., p.21).

    [6] Nader, Laura (ed.). Law in cultureand society. 1 ed. [1969], Berkeley/Los Angeles, University of Cali-fornia Press, 1997.

    [7] Gulliver cita, entre outras, asmonografias de Barton (1919), IfugaoLaw, Rattray (1929), Ashanti Lawand Constitution e Hogbin (1934),Law and Order in Polynesia.(Gulliver, P. H. Case studies of Lawin non-Western societies: intro-duction. In: Nader, Laura (ed.). Lawin culture and society. 1 ed. [1969],Berkeley/Los Angeles, University ofCalifornia Press, 1997).

  • 83NOVOS ESTUDOS no 72 JULHO 2005

    las em ao: seria na mediao e resoluo de conflitos que os meca-nismos de conteno e de ordenao social se revelariam. Por isso, nocaso especfico da antropologia jurdica, o foco principal o estudode processos, e em particular os processos de acordo de disputas8.

    A idia de observar a lei em ao sublinha o valor da pesquisaetnogrfica na promoo de uma anlise antropolgica de um fatojurdico. como se precisssemos assistir aplicao da lei para inter-pretar seu funcionamento. Logo, se os juristas naturalizam o direito, otrabalho do antroplogo mostr-lo como uma construo pautada eorientada por um conjunto especfico de valores: o direito seria maiscanal de compreenso de uma determinada cultura ou de um aspectocultural especfico. Para tanto, coloca em xeque tais valores que seapresentam sob a forma de leis, desvendando a simbologia de podermanifesta nas relaes entre partes conflitantes. Para os advogados, h,na dinmica dos processos judiciais, espao para a interpretao dalei. A antropologia sugere que a ao de interpretar deve ser ampliada;tal perspectiva nos prope uma reflexo sobre a interpretao das aesjurdicas, dos seus discursos, sobre as variaes na aplicao da lei e,no limite, sobre a prpria idia de justia.

    Formalmente, a atuao da pesquisa antropolgica no campo dodireito pode ser classificada em trs categorias: a chamada antro-pologia legal, o campo de atuao mais antigo e tradicional daantropologia no direito, que compreenderia os estudos do direito emsociedades simples. Os trabalhos citados acima poderiam ser classi-ficados de tal maneira. A definio antropologia jurdica refere-seaos estudos que fazem uso das tcnicas de pesquisa da antropologia eseu repertrio terico para estudar as instituies do Poder Judicirioe do universo do direito como a polcia, as prises ou as cortes.Finalmente, o direito comparado constitui tambm um campo deatuao para o antroplogo, na medida em que exige justamente oexerccio do relativismo cultural prprio da disciplina9.

    Partindo dessa definio, poderamos tomar a anlise aqui propostacomo um trabalho de antropologia jurdica. Entretanto, interessammenos os limites que tal rtulo pode colocar e mais as possibilidades quese abrem quando interpretamos o discurso jurdico que se apresenta nasaudincias. Na verdade, nos valemos do que Clifford Geertz chama desaber local, isto , uma tentativa de explicar fenmenos sociaiscolocando-os em estruturas locais de saber10, ou do que PierreBourdieu chama de sistema simblico particular, para ento apreendero universo social especifico (no qual o direito) se produz e se exerce11.

    A CRIANA E A LEI, O DESENVOLVIMENTO DA LEGISLAO

    O Brasil conta hoje com o Estatuto da Criana e do Adolescente(ECA), instrumento legal criado pela Constituio Federal brasileira de1988, Lei 8.069, em vigor desde 13 de julho de 1990. A criao dessa lei

    [8] Idem, p. 13.

    [9] Shirley, Robert Weaver. Antro-pologia jurdica. So Paulo, EditoraSaraiva, 1987.

    [10] Geertz, Clifford, op. cit, p.13.

    [11] Bourdieu, Pierre, op. cit., p.211.

  • 84 APRENDENDO A LIO Paula Miraglia

    veio determinar tratamento especfico s crianas (at 12 anos de ida-de) e adolescentes (at 18 anos de idade) e teve grande impacto naspolticas de atendimento ao jovem, no tratamento que este passou areceber da justia e nas garantias dos seus direitos fundamentais. Nodevemos, no entanto, ter a percepo da criao do ECA como ummovimento brasileiro isolado, e sim como parte de um processo mun-dial de consolidao dos direitos dos jovens. A reviso da legislaobrasileira est diretamente ligada a um movimento mundial de aten-o, ampliao e valorizao dos direitos infantis, pautados por umanova concepo de direito e cidadania, que tem seu desenrolar ao longodo sculo XX, vinculado a uma nova percepo da criana como serhumano em fase de desenvolvimento, com particularidades, necessi-dades especiais e que conseqentemente deve ter direitos especiais, quevo ao encontro das necessidades dessa fase de desenvolvimento.Nesse contexto, a criana e o adolescente adquirem status de cidadosplenos, com direitos que devem ser respeitados e protegidos, e passama ser encarados como prioridade absoluta da sociedade poltica e civil-mente organizada.

    Como aponta Marques, h um consenso entre os autores que tra-tam do tema sobre a caracterizao da Constituio Federal de 1988, edo ECA em 1990, como marcos histricos na criao de uma novaidia de cidadania de crianas e adolescentes12.

    A criao e decreto do estatuto acarreta no s uma srie de mu-danas na prtica da lei, mas supostamente tambm na relao de res-ponsabilidade entre crianas e jovens, Estado e sociedade civil. O ECAapresenta uma nova forma de tratamento e de nomeao. Numatentativa de desfazer esteretipos criados a partir da associao entremenor, crime e delinqncia, fala-se agora em ato infracional em vez decrime, adolescente ou pessoa em desenvolvimento em contraposio ex-presso menor ou delinqente juvenil. A mudana na conceituao e essaconotao transitria que a infrao adquire revelam tambm aperspectiva de ressocializao presente na nova lei. Esta sempre foiuma aposta do ECA.

    O estatuto prope, alm disso, uma reestruturao dos ins-trumentos de justia, estabelecendo a criao de Varas Especiais daInfncia e da Juventude, em oposio justia comum. Os menores de18 anos, alm de inimputveis penalmente, devem agora ser julgados deacordo com as infraes previstas no Cdigo Penal, mas num frum dejustia especial.

    Uma vez constatada a infrao, o juiz pode aplicar ao adolescentealguma das seguintes medidas scio-educativas: advertncia; obriga-o de reparar o dano; prestao de servios comunidade; liberdadeassistida; insero; regime de semiliberdade; internao em estabele-cimento educacional13.

    Foi estabelecido pelo ECA que deve haver uma correspondnciaentre a medida aplicada e a gravidade do ato infracional cometido.

    [12] A autora faz ainda uma rica revi-so bibliogrfica sobre o assunto.

    [13] As trs primeiras medidas sodeterminadas no caso de infraespouco graves. J a liberdade assistida(LA) implica o comparecimento dojovem nessa condio a um posto deassistncia social, determinado pelojuiz, pelo menos uma vez por ms,por um perodo mnimo de seis me-ses. O regime de semiliberdade umameia internao: o juiz determinaa internao numa instituio edu-cacional, mas esse interno temliberdade para, durante o dia, estarfora da instituio (estudando outrabalhando preferencialmente), ten-do a obrigao de retornar e passar anoite na instituio. A internao,por sua vez, acarreta a supresso daliberdade e deve ser aplicada comoltimo recurso; como resposta a atosinfracionais graves. Mesmo nessecaso, s permitida para adoles-centes (de 12 a 18 anos) e nunca paracrianas com menos de 12 anos.

  • 85NOVOS ESTUDOS no 72 JULHO 2005

    Alm do qu, devem-se priorizar medidas que possam ser cumpridasem meio aberto, isto , que no impliquem a internao e a privao daliberdade14.

    Vamos nos deter aqui em dois aspectos sociais que considero mar-cas fortes do estatuto e que so bons para pensar o sistema de justia:o primeiro a substituio do carter punitivo das medidas por umapostura scio-educativa. Vimos que a maior parte das medidas pre-vistas no ECA no se configura como supresso da liberdade. Mesmoa internao pensada como uma medida scio-educativa, poistraduz a inteno do Estado em se responsabilizar pelo adolescente.O segundo a consolidao da idia da criana como sujeito dedireitos em condio peculiar de desenvolvimento, em contraposio idia de adolescentes em situao irregular, possveis objetos detutela do Estado. Em ambos os casos, podemos observar o efeito queessa mudanas provocam no aparato judicial. Como veremos adiante,as medidas scio-educativas no garantem o desaparecimento puro esimples da idia de punio, mas ela transferida para outra esfera deao; continua vindo pela mo dos juzes, mas de uma maneira quepoderamos classificar de criativa, se no fosse perversa.

    Fica claro ento porque o ECA to importante. Alm de conhecera legislao e seu contexto de criao, preciso compreender seu valorsimblico, tendo em vista os atores em questo e, mais do que isso,compreender os conflitos operacionais que ele causa e explicita. Trata-se de analisar o uso dessa legislao e o campo de relaes que elamobiliza.

    Em 2005, o Estatuto da Criana e do Adolescente completouquinze anos e segue alvo de um debate controverso. No h dvida deque se trata de uma legislao moderna. Contudo, mesmo aps essesanos, ele est longe de ser aplicado na sua plenitude.

    As causas e conseqncias dessa lacuna entre o principio e suaefetivao so de natureza variada. Aqui, nos ocuparemos em tratardaquelas relacionadas aos itens que o prprio documento definecomo da prtica do ato infracional e do acesso justia, isto ,situaes que envolvem o jovem em conflito com a lei e sua relaocom o sistema de justia. Mais especificamente, o que importa aqui a apropriao do ECA, bem como sua aplicao por parte dosatores do sistema de justia.

    Remontar s audincias uma oportunidade de ver o ECA em aoou talvez melhor: assistir ao ECA em cena.

    AS VARAS ESPECIAIS DA INFNCIA E DA JUVENTUDE

    Ainda do lado de fora do prdio, mes, pais, irmos e amigosaguardam, aglomerados na porta ou sentados na calada, o horrio dasaudincias que vieram acompanhar, ou pelo menos quando no soautorizados a entrar no frum o resultado dessas audincias.

    [14] fundamental ressaltar que ainternao aparece como a ltimaopo e [...] constitui medida priva-tiva da liberdade, sujeita aos prin-cpios de brevidade, excepciona-lidade e respeito condio peculiarde pessoa em desenvolvimento(ECA, art. 121). O que significa queela deveria ser o ltimo recurso uti-lizado no julgamento de menores de18 anos. O nmero de internaes e aeficcia desta medida em seu carterscio-educativo so talvez algunsdos maiores motivos de conflitosentre o Ministrio Pblico e a PAJ.

  • 86 APRENDENDO A LIO Paula Miraglia

    Logo na entrada, h um detector de metais. Mediante a apre-sentao da minha carteirinha da universidade, tenho minha bolsarevistada e sou autorizada a subir. O que encontro no andar de cima um espao confuso e denso. De um lado, uma espcie de grande sala deespera, com cadeiras fixadas ao cho, dispostas como numa sala decinema, ocupadas pelos parentes dos jovens que esto ali para seremjulgados. Mais frente esto outras salas, de onde no param de entrare sair pessoas em busca de informaes. A sala maior abriga a Pro-curadoria de Assistncia Judiciria (PAJ), uma outra menor, quasesempre vazia, a sala da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

    De maneira geral, a tenso que marca esse ambiente diferentedaquela que caracteriza o espao institucional. O medo na sala deespera das VEIJ no era de uma rebelio ou de algum tipo de atitudeviolenta por parte dos jovens que aguardavam a audincia. A tensoestava muito mais ligada ao medo de ser internado ou voltar para aFebem; de ter seu filho, irmo ou parente internado. Soma-se a isso asensao de no poder fazer nada a respeito, de, na maioria dos casos,depender totalmente da assistncia judiciria gratuita e da sua poucadisponibilidade em funo do nmero de casos que atende.

    Seja pela disposio do espao fsico ou pela distncia que a din-mica do frum guarda da vida cotidiana, a apreenso que se cria naespera deixa claro o quo intimidante o protocolo da justia.

    A confuso que marca esse primeiro ambiente tem fim quandoentramos no corredor que abriga as VEIJ. Esse corredor separado poruma porta sempre fechada, controlada por um vigia. Nesse ambiente, osilncio predomina. No se ouvem as conversas que se ouviam dooutro lado da porta, nem se v a mesma circulao de pessoas. Alm dasVEIJ, do outro lado da porta est a sala onde os jovens acusadosesperam pelas audincias.

    Uma vez na sala de audincia, encontramos um cenrio onde ospersonagens/atores se mantm fixos caso a caso. Em volta de umamesa sentam-se acusao, defesa, ru e juiz. A tarefa de acusao desempenhada pela figura do promotor de justia. Representantes doMinistrio Pblico, os promotores so fiscais da lei que representamos interesses da sociedade (vale lembrar que a categoria sociedadeinclui, pelo menos a princpio, os jovens em julgamento).

    Em alguns casos, do mesmo lado da mesa esto as vtimas oueventuais testemunhas. Do outro lado, est o adolescente acusado(ru) a quem o direito chama de parte interessada (embora ele noparea ser a nica).

    Como veremos, no drama das audincias os jovens entram em cenaapenas como coadjuvantes. A seu lado est o advogado de defesa e, namaioria dos casos, algum parente. Em funo da baixa renda dos jovense de suas famlias, o advogado de defesa , na maioria das vezes, daProcuradoria de Assistncia Judiciria do Estado de So Paulo. A PAJexerce o papel da defensoria pblica, ou seja, fornece advogado para a

  • 87NOVOS ESTUDOS no 72 JULHO 2005

    populao que no tem condio de custear um advogado particular(tambm chamado de advogado constitudo). No processo, sua funo mesma de um advogado particular: fazer a defesa do adolescente.

    Na poca da pesquisa, a PAJ contava com o trabalho de 12procuradores, mais alguns estagirios, que respondiam por cerca de85% a 90% da demanda de defesa no referido frum. Apenas o restantedos casos era atendido por um advogado constitudo. A assistnciajudiciria gratuita prevista no ECA e na Constituio Federal.O grupo de procuradores da PAJ, nas VEIJ, composto por pessoasjovens, comprometidas com uma causa, que, diferentemente damaioria dos advogados constitudos, conhecem perfeitamente o ECA.Como veremos a seguir, tm uma postura clara em relao ao estatuto e atuao dos juzes e promotores.

    De frente para ambos os lados e num nvel acima encontra-se amesa do juiz. Logo a seu lado, est o escrivo, que registra toda aaudincia numa ata a ser assinada ao final por todos os presentes. Ojuiz o que se chama de sujeito imparcial do processo j que aqualidade de terceiro estranho ao conflito em causa essencial con-dio de juiz15. Como sujeito imparcial, o juiz representa o interessecoletivo, orientado para a justa resoluo do litgio. A magistratura oconjunto de juzes que integram o Poder Judicirio. No caso dos juzesdas VEIJ, eles j esto na magistratura h muito tempo, atuaram emoutras cidades paulistas ou at de outras varas judiciais. Cada juiz temseu estilo na conduo das audincias. Grosso modo, mantm-se fiela ele em todos os casos, sem atentar s diferenas entre um adolescentee outro, entre uma audincia e outra.

    Uma vez apresentados os atores, vale a pena refletir sobre seu espa-o de atuao. A melhor forma de faz-lo recorrer s cenas. Apre-sentamos aqui uma srie de oito casos que reconstroem audinciasacompanhadas em diferentes VEIJ. A escolha desses casos, entre outrosobservados, no foi aleatria; alm de ilustrativos no que diz respeito apresentao dos atores, da cena e da prpria dinmica dasaudincias, so especialmente emblemticos, uma vez que expemvrios dos aspectos que queremos explorar neste ensaio.

    As rpidas informaes sobre o acusado que introduzem cada casoforam obtidas no incio da audincia, durante a leitura que o juiz fazdo processo. Por essa razo, variam em termos de preciso e extenso.

    CASO 1

    Dois meninos entram na sala. O primeiro, com 15 anos, est naquinta srie, seus pais so separados, vive com a me. O segundo tem13 anos, os pais tambm so separados, vive com o pai, mas visita ame toda semana. Ambos so acusados de assalto qualificado juntocom um outro rapaz, maior de idade.

    Juiz Vocs participaram desse assalto?

    [15] Cintra et alli, op. cit., p. 293.

  • 88 APRENDENDO A LIO Paula Miraglia

    Menino 1 Meu amigo me convidou pra ir com ele, o de maior fez tudo.Juiz a primeira vez que eles aparecem aqui...Promotor Eles alegam que o outro fez tudo, mas o que eles estavam fazendo

    l? Tem que dar internao.Meninos comeam a chorar.Juiz Pai, o que voc garante?Pai Vamos ficar em cima.Juiz Eu vou dar uma LA (liberdade assistida).Juiz se levanta e em voz alta ameaa os meninos e seus pais:Juiz Vocs se livraram dessa vez, mas da prxima no vai ter jeito. Pai, voc

    tem que grudar igual carrapato. Me, voc tem que ser igual a uma galinha, temque por embaixo do brao. Entendido? Guardem seus filhos ou vocs vo perd-los.Fica uma LA ento.

    Me Jesus tava aqui.Me pede pra fazer um auto que tinha prometido para Jesus,

    ajoelha e reza na sala de audincia, levanta e abraa o filho.Todos se levantam, assinam papis e saem da sala.Juiz O prximo j t a?

    CASO 2

    Menino de 17 anos, no estuda desde 1994, tem um irmo, moracom a me, o pai morreu. Trabalha como marceneiro.

    Juiz Seu processo diz que no dia 8 de janeiro de 1999 voc entrou num bararmado e roubou um mao de cigarros, algum dinheiro e um relgio. verdadeisso?

    Menino verdade.Juiz E por que voc fez isso?Menino Mataram meu pai e eu quero matar o homem que matou meu pai.

    Os policias fizeram um acordo com ele porque ele traficante. Queria matar edeixar um dinheiro para minha me.

    Juiz O caminho tem que ser o da justia e no o da vingana. Procure umadvogado e coloque esse homem na cadeia. Mesmo que no funcione, a lei. Almdisso, tem a justia l de cima.

    Todas as partes lem o que diz o relatrio sobre o menino no mo-mento da priso, e do perodo em que esteve internado na Unidade daFebem Imigrantes, enquanto aguardava o julgamento. Juiz oferece paraas partes:

    Juiz LA com obrigao de estudar, t bom?

    CASO 3

    Menino de 17 anos, quinta srie, trabalha como mecnico. Pais soseparados, vive com a me, mas quem veio para a audincia foi a irm.Foi julgado por receptao de peas de automveis roubadas e por issocumpria uma LA.

  • 89NOVOS ESTUDOS no 72 JULHO 2005

    Juiz Aqui diz que voc foi pego indo para um show com uma espingarda eestava cumprindo LA. verdade?

    Menino .Promotor O cara t em LA e vai procurar confuso?Juiz no ouve nem consulta advogado de acusao, nem de defesa.Juiz Eu vou dar mais um ano de LA, obrigao de trabalhar numa escola

    sete horas por semana e obrigao de estudar.Juiz levanta, anda at o menino e em voz alta diz:Juiz Se voc aparecer aqui de novo... voc est proibido de sair de casa, voc

    t me entendendo?Irm comea a chorar.Juiz Olha pra sua irm, o que voc est vendo? Eu vejo uma irm sofrendo,

    uma irm envergonhada por ter um irmo nessa vida, isso que voc quer para asua famlia? Voc quer ver sua famlia sofrer, ter vergonha de voc?

    Menino comea a chorar tambm.Juiz Ficamos assim ento.Depois de assinar os papis menino e irm saem da sala.Juiz Vocs acham que eu me excedi?

    CASO 4

    Menino de 16 anos, no estuda, tem sete irmos, mora com a av,av a me, l a juza. A me morreu, no conhece o pai.

    Juza descreve de maneira informal o acontecido:

    Juiz Voc e um outro menino estavam andando num veculo roubado eforam parados pela polcia?

    Menino .Juiz Por que voc estava num carro roubado?Menino Fui eu e o de maior, a gente no sabia que o carro era roubado.Juiz Voc no sabia que o carro era roubado? Como ento vocs

    conseguiram o carro?Menino ...Juiz Voc sabe que roubar crime?Menino Sei.Juiz Voc mora com quem?Menino Com a minha me.Juiz (Fala para os dois advogados) Ele fala que no sabia que o carro

    era roubado, no d n? Ele tem famlia, ento entrega para a me (fala alto).

    Me chora. Nesse mesmo momento juza atende o celular, conversaum pouco e, ao desligar, olha para o menino e determina que ele fiqueem regime de semiliberdade, sem consultar nenhum dos dois advo-gados presentes.

    CASO 5

    Menino, 17 anos, mora em Santos com a me.

  • 90 APRENDENDO A LIO Paula Miraglia

    Juiz Eu te recomendo falar a verdade, pois se voc falar a verdade vai sermelhor pra voc. Se voc mentir, voc pode se prejudicar.

    Juiz Aqui diz que voc roubou uma fita, picols e um carrinho. Isso verdade?Menino Sim senhor.Juiz Era um arrasto?Menino Sim senhor.Juiz Voc j foi interno da Febem, no verdade?Menino Peguei artigo 12 (trfico de drogas).Juiz Voc usa drogas?Menino Usei crack, mas parei.Juiz Desde quando voc usa?Menino Usei dos 10 at os 16.Juiz Parou e t numa boa? Voc trabalha?Menino Sim.Juiz Bom, seu caso ser julgado por Santos.

    CASO 6

    Menino, 15 anos, acompanhado do pai.

    Juiz Eu te aconselho a falar a verdade. Se voc falar a verdade voc pode sebeneficiar, se voc mentir, voc pode se prejudicar. Estou lendo aqui que voc estsendo acusado pelo roubo de uma moto, isso aconteceu?

    Menino No. Eu tenho uma moto igual a da menina que foi roubada, eladeve ter se confundido, mas eu no roubei a moto dela.

    Juiz Voc estava em LA (liberdade assistida). Por qu?Menino Porque eu roubei um cd player. Eu t fazendo a coisa certa, acordo

    todo dia s 7h da manh para fazer curso, depois vou para escola. O que o senhor acha?Juiz Quem tem que achar voc e pelo visto ainda no caiu sua ficha.

    Nesse momento, a advogada da PAJ que defendia o menino naaudincia diz ao juiz que vem acompanhando a liberdade assistida dessejovem, que ele tem feito os cursos propostos pelo agente da LA e que temido escola regularmente. Ela pode garantir que ele est se esforando.Finalmente, pede se o juiz no pode desintern-lo naquele mesmo dia.

    O juiz diz que no. Decide manter o menino interno na Unidade deAcolhimento Inicial, aguardando a prxima audincia.

    CASO 7

    Menino, 16 anos, veio acompanhado da me. Advogadaconstituda.

    Juiz Eu estou lendo aqui que voc tentou furtar um carro e depois atirou emduas vtimas. Isso de fato ocorreu?

    Menino Ocorreu, mas eu s atirei porque eles tentaram me segurar e mebateram, foi a que eu atirei.

    Juiz Ah, voc acha que eles foram injustos com voc?

  • 91NOVOS ESTUDOS no 72 JULHO 2005

    Menino No.Juiz Por que no?Menino Porque eu tava furtando o carro deles.Juiz A arma era sua?Menino Era.Juiz Voc j terminou uma LA. O que eles te ensinaram na LA?Menino Eles me ensinaram tudo de bom, mas eu tava precisando do

    dinheiro porque bati o carro do meu colega.

    Me comea a chorar e advogada de defesa pede ao juiz que per-gunte ao menino se ele tinha conscincia do que estava fazendo.

    Juiz Isso no um tribunal do jri, quem vai julgar sou eu, a doutora noprecisa fazer esse tipo de pergunta.

    Juiz Voc vai ser internado e quando sair na rua de novo, no se meta emencrenca, no esse tipo de comportamento que uma pessoa de bem deve ter.

    Menino Quanto tempo eu vou ficar internado?Juiz O Estatuto da Criana e do Adolescente prev que a medida de

    internao seja reavaliada a cada seis meses. O perodo mximo de internao de trs anos.

    Menino Eu vou ser internado?Juiz Vai.

    CASO 8

    Dois meninos. O primeiro, de 16 anos, vem acompanhado do paie da me. O outro, tambm de 16, est acompanhado s da me.

    Juiz Estou lendo aqui que vocs roubaram 16 reais de um casal que andavana rua. Isso verdade?

    Menino 1 verdade. A gente tava bbado e queria dinheiro pra ir nofliperama.

    Pai Se o senhor me d licena, a gente d mesada pra ele, ele tem tudo o queprecisa, foi uma besteira isso o que eles fizeram, uma bobagem.

    Juiz Quem o dono da sua liberdade? Cada um o dono da prprialiberdade. Hoje em dia no faz diferena se voc rico ou pobre, veja, por exemplo,o caso do juiz Lalau. Eu sou livre porque sou honesto.

    Juiz Vocs estavam na UAI (Unidade de Atendimento Inicial). O que essaexperincia trouxe pra vocs?

    Menino 1 Esses quatro dias na Febem foram muito bons pra eu refletir.Juiz Vocs usam drogas?Menino 2 Eu usava maconha, mas parei de fumar porque minha me

    ficava triste.Juiz Espero que vocs tenham aprendido a lio, vocs no tm aparncia

    alguma de serem violentos, deve ter sido besteira tpica de adolescentes, mas nofaam mais isso.

    Meninos so liberados e vo embora com os respectivos pais.

  • 92 APRENDENDO A LIO Paula Miraglia

    Antes de partirmos para anlise, necessrio que sejam feitas duasressalvas. A primeira diz respeito particularidade das VEIJ onde foi feitaa pesquisa: vrios informantes classificaram-nas de casos particulares,seja pela dureza do Ministrio Pblico, seja pela maneira peculiar comose d o andamento dos processos legais. A segunda ressalva refere-se aosjuzes. Alm dos valores em jogo, a atuao do juiz no transcorrer dasaudincias pode ser descrita como indissocivel de aspectos da suapersonalidade. Alguns falam alto, outros gritam, alguns se levantam damesa, outros mantm o mesmo tom de voz durante toda a audincia.Alguns so mais secos, outros tm jarges que repetem em todaaudincia, independente do caso que se apresenta. Enfim, ao longo dapesquisa encontrei juzes diferentes e personalidades diferentes. Taisparticularidades no puderam ser contempladas neste trabalho, tivemosque deix-las de lado pra privilegiar as recorrncias16.

    Grosso modo, podemos descrever as audincias observadas da se-guinte maneira: o caso apresentado, o jovem questionado quanto veracidade das acusaes que lhe so feitas, sendo a resposta, namaioria das vezes, afirmativa. Uma vez admitido o ato infracional porparte do acusado, o juiz determina a medida scio-educativa que oadolescente vai receber. Teoricamente, acusao e defesa poderiamapresentar argumentos contra ou em favor do acusado, alm de rei-vindicar uma medida mais leve ou mais dura. Na prtica, no entanto, aapurao da culpabilidade em si parece uma mera formalidade. A so-luo para o conflito apresentado na audincia resultado da decisoquase que exclusiva do juiz.

    Na verdade, essa dinmica no se fazia completamente clara naobservao das primeiras audincias, especialmente porque se tratavado incio da pesquisa. Fui aprend-la de fato somente aps ouvir aexplicao que um juiz dava a um advogado constitudo durante umaaudincia. O adolescente representado pelo advogado era acusado deter cometido um seqestro relmpago e de ter ameaado a vtima comuma arma de fogo. O juiz determinou que o adolescente fosse in-ternado na Febem, afinal tinha cometido um ato infracional grave.O advogado ento pediu a palavra e tentou defender seu cliente, afir-mando que ele nunca tinha feito nada parecido e que por isso mereceriauma medida mais leve. Antes mesmo que o advogado pudesse terminarseu argumento, o juiz o interrompeu para explicar:

    Imagino que essa seja a primeira vez que o doutor vem aqui. Aqui as coisas soum pouco diferentes, o doutor no precisa defender seu cliente dessa forma,aqui ns sempre buscamos um acordo. Se o doutor no quiser fazer parte desseacordo, pode at vir a prejudicar seu cliente.

    A explicao era perfeita. De fato, era assim que as audincias eramconduzidas. No entanto, o que o juiz chamava de acordo, era, naverdade, sua supremacia na tomada de deciso.

    [16] Falo em recorrncias, pois julgosignificativo o nmero de audinciasque acompanhei. Ao longo dos qua-tro meses em que pesquisei noFrum do Brs, pude assistir a umamdia de 80 audincias.

  • 93NOVOS ESTUDOS no 72 JULHO 2005

    Esse papel principal ocupado pelo juiz no processo de decisono exclusividade das VEIJ. Outros estudos apontam o lugar pri-mordial e determinante do magistrado17.

    No caso das VEIJ, esse tipo de conduta no s se repete, mas potencializada, praticamente anulando a participao de qualquer ou-tro ator no desenvolvimento da audincia que no seja a do prpriojuiz. Isso, no entanto, no significa que as outras partes estejam menosenvolvidas com o processo, mas o poder de atuao naquele espaoespecfico desigual aquele o espao do juiz.

    Nos termos jurdicos, o processo um instrumento para a reso-luo imparcial de conflitos que se verificam na vida social18. A idiade aplicao da lei como desfecho desses processos oculta os inte-resses, as disputas e as presses que esto em jogo. Na verdade, o quetemos nas audincias uma disputa poltica sobre a questo, mais doque uma contenda por esse ou aquele caso. O confronto que resulta naaplicao de uma medida scio-educativa coloca de um lado pro-motores e juzes e de outro a procuradoria.

    Gregori aponta que, no que se refere s audincias, o problemamaior parece ser a incapacidade dos adolescentes e dos seus acom-panhantes familiares e educadores de fazer frente manipulaodo ritual pelos protagonistas juiz, promotor e advogado , quetransformam sistematicamente o menino no em sujeito, mas emobjeto de intervenes19.

    Diagnosticar esse lugar de objeto de disputa e de interveno reser-vado para os jovens de fato importante uma vez que essa trans-figurao em objeto se ope idia do adolescente como sujeito dedireitos, grande mudana conquistada pelo Estatuto da Criana e doAdolescente. No entanto, preciso fazer uma distino entre as dife-rentes motivaes envolvidas nessa disputa, bem como verificar de quemaneira essas motivaes se traduzem em estilos diferentes de in-terveno.

    HORA DA LIO

    Um bom ponto de partida para essa reflexo seria a informalidadecom a qual so conduzidas as audincias. Alm de saltar ao olhar nofamiliarizado, essa informalidade ope, de sada, juzes e procura-dores. O que estamos chamando de informalidade inclui atender aocelular no meio da audincia, falar alto com a me do adolescente, tecercomentrios com o escrivo, a breve durao (normalmente, as au-dincias duram cerca de 20 minutos), mas tambm a pouca preocupa-o com as garantias processuais. O conjunto dessas garantias foi umadas conquistas do ECA. O estatuto prev a igualdade do adolescentena relao processual (cap. III, art. 111), isto , alm do direito a serrepresentado por um advogado, o jovem pode confrontar-se com v-timas e testemunhas e produzir todas as provas necessrias sua

    [17] Ver Adorno, Srgio. Discri-minao racial e justia criminal emSo Paulo. Novos Estudos Cebrap,So Paulo, n.43, p.45-63, nov. 1995, eSchritzmeyer, Ana Lcia Pastore.Controlando o poder de matar: umaleitura antropolgica do tribunal dojri ritual ldico e teatralizado.Tese de Doutorado apresentada FFLCH-USP. So Paulo, 2001.

    [18] Cintra, op. cit., p. 292

    [19] Gregori, Maria Filomena. Meni-nos nas ruas: a experincia da vira-o. Tese de doutoramento apre-sentada FFLCH-USP, So Paulo,1997, p. 248.

  • 94 APRENDENDO A LIO Paula Miraglia

    defesa. Contudo, a presena de testemunhas nas audincias era fatorarssimo (quando apareciam eram sempre de acusao) e, sobretudo,parecia no haver tempo, espao ou interesse na produo de provas ounas eventuais testemunhas de defesa.

    Nesse sentido, o maior objetivo das audincias parece ser o de daruma lio. Essa talvez seja a palavra-chave para compreend-las. Tu-do o que aconteceu at ento parece ter importncia menor; a liodada pelo juiz o grande saldo da audincia. Para isso, ele repassa atrajetria de vida do jovem, cita dados biogrficos como a morte dopai, a batalha da me para mant-lo no bom caminho, passagensanteriores pela Febem, o futuro que o espera, recorre nobreza quereside em falar a verdade, altera o tom de voz e enfatiza o gestual, numatentativa de imprimir dramaticidade ao momento. Em diversas oca-sies, o juiz acaba fazendo parentes e meninos chorarem, pelavergonha de ter um filho criminoso. Pode-se dizer que, como numapea de teatro, quanto mais elementos em cena, melhor a qualidadede encenao20 e, conseqentemente, mais real torna-se a histria.O processo parece catrtico: todos choram, joga-se com as emoes,cria-se um cenrio onde s o bem pode triunfar.

    A atuao do juiz no s ofusca a participao dos advogados dedefesa e de acusao, mas tambm estabelece condutas informais quese tornam um padro na resoluo dos casos.

    A informalidade nas cortes juvenis um fenmeno apontado porprocuradores, promotores e juzes. Contudo, percebida de maneiradiferente por cada uma dessa partes. Os juzes, por exemplo, no asso-ciam informalidade ao tema das garantias processuais. Nas palavras deum juiz, o que tratamos como informalidade na conduo das au-dincias, na verdade tem um outro sentido:

    No bem a informalidade, os critrios so diferentes, ficar chamando aateno do jovem, recompor uma srie de padres pra ele, voc me viu falarde verdade, quem o dono da sua liberdade, isso que voc quer da suavida? Pra ns uma funo obrigatria, porque aqui ns estamosrecompondo, tentando refazer condutas, limites posturas, diferente daesfera penal. Na esfera penal, o sujeito praticou um crime ele vai receberuma pena, no importa o que ocorra, ou o que deixe de acontecer, porquepara cada crime, uma pena. Aqui no, aqui ns vamos aplicar uma medida.Se ento ressocializao, ento ns temos uma funo pedaggica,diferentemente da esfera penal. Por isso que aqui ns somos um pouquinhoprofessores, orientadores, uma srie de outras coisas diferentes de um juizcriminal21.

    Para a PAJ, no entanto, a informalidade est associada rapidezcom que cada audincia conduzida e conseqentemente o fatorresponsvel pela supresso das garantias processuais. De acordo comum procurador:

    [20] Geertz, Clifford. A inter-pretao das culturas. Rio deJaneiro, Editora LTC, 1989.

    [21] As entrevistas com juzes e pro-curadores apresentadas nesse tra-balho foram todas realizadas emjunho de 2001. Na poca, no discuticom os entrevistados se poderiaidentific-los. Logo, ainda que corrao risco de enfraquecer o argumentodo trabalho, em nome de uma certaetiqueta de pesquisa, optei por nofaz-lo sem a devida autorizao. Pelomesmo motivo, achei prefervel noeditar os depoimentos.

  • 95NOVOS ESTUDOS no 72 JULHO 2005

    Se voc analisar o respeito que os juzes tm s garantias processuais, de defesados adultos que respondem processo criminal e est sujeita a uma pena, ela muito maior do que o respeito que os juzes tm das garantias do adolescente.Parte dessa idia equivocada que a medida de internao no teria uma cargapunitiva, que eu particularmente entendo que ela tenha, embora o objetivo delaseja scio-educativo, inegvel que ela tem uma carga de constrangimento. Elesno percebendo isso, acabam sendo muito menos rigorosos na apurao dos fatos[e] na observncia das formalidades legais do que deveriam ser.

    Retomando os casos apresentados, conseguimos entender por queos juzes se considerariam um pouco professores, ou orientadores. Emse tratando de lio, no h melhor caracterizao. No importa o casoque se apresente, a conduta sempre a mesma. Somos levados a pensarque, para os juzes, a suspeita de estar em conflito com a lei por si s jestabelece uma identidade sob a qual so classificados todos os jovensque passam pelas VEIJ. Culpados ou no, reincidentes ou primrios, osjovens esto ali e s por isso merecem desconfiana, um susto e, acimade tudo, uma lio.

    Vimos, por exemplo, que em um dos casos apresentados a infraono seria julgada pela vara em So Paulo (isso sabido pelo juiz desdeo incio da audincia). No entanto, mesmo assim, o jovem levado adar detalhes do acontecimento e do seu eventual envolvimento com asdrogas. As drogas, alis, so assunto obrigatrio em qualquer au-dincia. Mesmo que o ato infracional pelo qual o jovem acusado notenha nenhuma ligao com o consumo de drogas, o juiz sempre osquestiona, bem como retoma o assunto ao final da audincia, na horada lio. Ao fazer isso, os juzes expem ainda mais os jovens. Elesesto l para ser julgados por um ato infracional especfico, mas aca-bam sendo julgados moralmente mesmo quando tm sua inocnciacomprovada por outros aspectos da sua vida. O que est em ques-to no s o ato, mas sua conduta como um todo. No limite, esse odesvio que se tenta corrigir.

    A idia de falar a verdade um ponto importante na relao entrejuiz e ru. Mesmo quando no h necessidade, os jovens acabam reve-lando fatos que podem lhes prejudicar no andamento do processocomo, por exemplo, confessar infraes cometidas anteriormente. Taisrevelaes podem servir de indicativo para o juiz de que aquele jovem jest no caminho do crime, o que pode acarretar numa medida scio-educativa mais dura para o adolescente.

    A presso colocada sobre a idia de verdade no est s no am-biente das VEIJ; ela perpassa todo o universo judicirio, incluindo operodo de internao provisria.

    De acordo com um procurador,

    existe uma cultura arraigada entre os adolescentes no sentido de que tm queconfessar, ao contrrio do que acontece na justia de maiores difcil explicar

  • 96 APRENDENDO A LIO Paula Miraglia

    por qu; existe uma presso por parte do juiz, voc assistiu audincia da 1a

    Vara onde o juiz fala se voc confessar eu te ajudo e s essa fala do juiz valemuito mais do que o advogado conversando horas com o cliente dele, agoradesde que o menino entra na Unidade de Internao da Febem existe essaperspectiva um pouco moralizante olha voc tem sempre que dizer a verdade,assim voc vai se beneficiar e a prpria cultura institucional tem um pesomuito grande, ou seja, o menino que vem pra audincia j passou algum tempoobservando essa cultura de confirmao mesmo.

    Alguns juzes, no entanto, enxergam o falar a verdade como umprocesso de auto-conscientizao. Todavia, esse processo, da maneiracomo apresentado, traz necessariamente a figura do juiz como me-diador. O adolescente participa falando a verdade e o juiz entra coma auto-conscientizao, uma vez que ele quem interpreta a verdade etem o poder de utiliz-la da maneira que bem entender.

    Como contrapartida informalidade, assistimos cristalizao decertas atitudes que acabam por constituir uma maneira pessoal, par-ticular e no menos estigmatizante de interpretao e aplicao do ECA.

    O problema no a lio em si isso, em algum grau, parece fazerparte do ofcio da magistratura , mas o lugar privilegiado que elaocupa na conduo do processo. Dar uma lio um gesto obvia-mente associado punio, mas parece, na verdade, uma espcie decompensao pelo fato de o ru ter cometido um ato infracional e,ainda assim, livrar-se da internao.

    Normalmente, leva-se uma lio quando se est recebendo umamedida scio-educativa que no implique a supresso da liberdade.De fato, podemos dizer que, para os juzes, apenas a internao seapresenta como um mecanismo efetivo de punio; as outras medidasno tm esse carter, podem dar a impresso ao jovem de que ele noser punido pela infrao. Por isso, toda medida que no seja a inter-nao acaba vindo acompanhada de uma lio.

    Voltemos fala do procurador. Alm da lio, o aspecto formal daconduo de uma audincia tambm um problema. A maneira comoso conduzidos os processos acaba por pressionar a procuradoria.Esta trabalha basicamente com duas possibilidades: o ru fala a ver-dade e continua internado na unidade de atendimento inicial, aguar-dando a continuidade do processo; ou assume um ato infracional (emalguns casos que no cometeu) e consegue a desinternao no mesmodia, saindo das VEIJ com uma liberdade assistida. Tal impasse expli-caria a suposta recomendao que os jovens recebem para admitir o atoinfracional na frente do juiz. Os procuradores afirmam que apenasexpem as opes:

    se voc admitir a infrao hoje, voc j sai daqui com uma liberdade assistida,se voc negar, voc vai ficar internado mais 30 dias chegando l nessa 2a

    audincia, vindo os policiais, o juiz vai te dar a mesma LA que voc poderiaestar recendo hoje.

  • 97NOVOS ESTUDOS no 72 JULHO 2005

    CRITRIOS

    Primeiro, ns analisamos a ocorrncia do ato infracional, provada a autoria,a passa-se anlise do auto para que a medida seja aplicada. A gente leva emconta alguns requisitos: a gravidade do ato infracional, o envolvimento doadolescente no mundo infracional, se ele j est inserido nesse mundoinfracional ou se ele est de passagem. Se o ato que ocorreu foi um atomomentneo ou se ele j est nesse sistema infracional h algum tempo. Agente leva em conta o respaldo familiar, se a famlia tem condies de tirar ojovem dessa criminalidade ou se efetivamente o Estado precisa tomar as vezesda famlia pra ajudar a famlia a reformular a postura, carter, limites, umasrie de coisas. Ento, ns levamos em conta vrios aspectos, sempre nosbaseando tambm em matria subjetiva que a conceituao que um jovemtem a respeito das coisas. Muitas vezes, voc chamar a ateno verbalmentede algum, muito mais srio para aquele ser humano do que voc pegar eprender a pessoa ....

    A fala reproduzida acima diz respeito aos critrios utilizados paradeterminao de uma medida scio-educativa. Sabemos que os juzesno utilizam o ECA de forma homognea, tampouco objetiva. As vari-veis que condicionam a medida a ser aplicada esto, de fato, ligadas aotipo de infrao cometida, tal como recomenda o estatuto. Como vimosna declarao acima, a presena na audincia dos pais do adolescenteconta como ponto positivo; o vnculo com a escola e a relao srie/idadeso levados em considerao. Esses critrios podem ser interpretadoscomo uma preocupao do Poder Judicirio com a estrutura familiar dojovem, a disposio e condio da famlia em se responsabilizar peloacompanhamento e educao do filho. Entretanto, a determinao deuma medida ou de outra, principalmente em se tratando das infraesmais leves, tambm fruto de uma interpretao, ou de um diagnsticoimediato da situao: o que o nosso nativo chamou de conceituaoque um jovem tem das coisas. Essa conceituao pode ser interpretadacomo sentimento de culpa: o juiz procura, ao longo da audincia,verificar o arrependimento do jovem, o impacto do acontecido sobre ele.Com efeito, o garoto mostrar arrependimento, chorar e ter vergonha,tambm conta pontos, podendo amenizar a medida a ser aplicada. Noscasos em que as medidas so efetivamente brandas, esse parece ser vistocomo um desfecho de sucesso, sinal de que a lio foi bem assimilada.Logo, o objetivo menos a punio e mais o teatro bem feito e a lio bemdada. Na tica dos juzes, essa dinmica parece mais eficaz do que asmedidas previstas na lei.

    SENTIMENTO DE JUSTIA

    Geertz alerta que, para falar apropriadamente sobre as bases cul-turais do direito, preciso levar em considerao o sentimento de

  • 98 APRENDENDO A LIO Paula Miraglia

    Recebido para publicaoem 28 de fevereiro de 2005.

    NOVOS ESTUDOSCEBRAP

    no 72, julho 2005pp. 79-98

    justia22 local. O antroplogo no se refere apenas ao contexto, masao que significa fazer justia nesse contexto. No caso tratado aqui, possvel traar um caminho do mais amplo ao mais particular que leve a uma definio mais precisa do que seria esse sentimento dejustia. Comeamos pelo modelo ocidental de direito e de justia e arelao que o Brasil estabelece com as leis em geral23; prosseguimos coma distribuio desigual da renda no pas, o que j seria suficiente paraquestionar se esse meio ambiente social permitiria a ao igualitria dodireito. Alm disso, temos o sentimento de insegurana advindo daviolncia das metrpoles, as polmicas que envolvem o Estatuto daCriana e do Adolescente, as rebelies na Febem e, finalmente, a figurado menor infrator como protagonista de aes criminosas. A com-binao desses elementos forma o que poderamos chamar de senti-mento de justia em relao aos jovens em conflito com a lei. Tal sen-timento tem o poder de influenciar desde a postura do MinistrioPblico at as decises dos juzes; se transveste de um sentimento deimpunidade, cobrana social e clamor por justia.

    As dificuldades de efetivao do Estatuto da Criana e do Ado-lescente tanto da sua aplicao por parte do Judicirio, quanto nasua concretizao enquanto instrumento reabilitador provocamuma percepo equivocada sobre o seu papel na reeducao e rein-sero social dos jovens em conflito com a lei. Hoje, o ECA associado inimputabilidade. A medida scio-educativa idealizada para no seruma punio penal vista como punio alguma. Com efeito, essademanda punitiva se configura em valores sociais que penetram o am-biente das audincias e, por conseguinte, o universo dos juzes.Disputando espao com a tecnicidade da aplicao da lei, criam umrito discriminatrio que atende a esteretipos e preconceitos.

    A atitude dos juzes, no entanto, no pode ser interpretada apenasna chave da punio. Vimos que o aparato pblico de efetivao dasmedidas prevista no ECA insuficiente e ineficaz. A PAJ atende maiscasos do que a sua estrutura permite, os postos de liberdade assistida,em sua maioria, no conseguem levar a cabo os projetos educativos e aFebem, no , em nenhum sentido, uma instituio de educao e rea-bilitao. A percepo dessa realidade parece guiar a ao dos juzesque apelam para o recurso da lio como forma de compensar essaincapacidade, tentando condensar o processo de educao e resso-cializao nos possveis efeitos do seu discurso. claro que tal posturad margem a atitudes que no so exatamente a interpretao da lei,mas a manifestao dos valores pessoais de cada juiz e o direcio-namento poltico do prprio Ministrio Pblico, traduzidas numaconduta responsvel por constrangimentos que podem ser to intran-sigentes quanto a aplicao de uma medida scio-educativa severa.

    Paula Miraglia mestre em Antropologia pelo departamento de Antropologia Socialda Universidade de So Paulo e doutoranda no mesmo departamento.

    [22] Geertz, Cliford. O saber local. 3ed., Petrpolis, Editora Vozes, 2000.

    [23] Roberto DaMatta mostra como,no Brasil, o sistema legal tem signi-ficado diverso para os diferentessetores da sociedade. O autor obser-va uma vertente individualizantepresente no aparato legal aos indi-vduos, lei, s pessoas, tudo.DaMatta, Roberto. Carnavais, ma-landros e heris. Rio de Janeiro,Editora Rocco, 1997.

  • 99NOVOS ESTUDOS no 72 JULHO 2005

    ENSAIO

    99

  • ENSAIO

    100