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GESTÃO SOCIAL E DIREITOS HUMANOS Regina Vargas 1 I - Direitos Humanos – conceitos e origem A expressão direitos humanos traduz um conceito construído e desenvolvido ao longo de um processo histórico, civilizatório, contínuo – ainda que não linear, pois que conhece retrocessos. É, por essa razão, um conceito em constante transformação, um processo social (ELIAS, 2006; 27- 33) mundial, não planejado, resultante da crescente interdependência entre as sociedades humanas. Embora a noção de direitos humanos seja muito antiga na história da humanidade, só mais recentemente passa a ser definida explicitamente e adquire reconhecimento mundial. São diversas as definições e denominações que têm sido utilizadas para referir direitos humanos: direitos fundamentais da pessoa, direitos naturais, direitos públicos subjetivos, garantias individuais, direitos do homem e do cidadão, liberdades fundamentais, entre várias outras. Os direitos humanos podem ser definidos como as condições que deve ter cada pessoa, desde o nascimento e sem distinção de qualquer espécie, para que possa desenvolver-se plena e livremente em todas as áreas de sua vida e que lhe permitam conviver em liberdade, igualdade e dignidade com outras pessoas. Neste sentido, são faculdades, prerrogativas e liberdades fundamentais inerentes à condição humana, isto é, que cada pessoa possui pelo simples fato de ser humana. A diversidade terminológica relativa aos direitos humanos produz e, ao mesmo tempo, é conseqüência de sua ambigüidade conceitual. Entre as causas que explicam esta diversidade terminológica e conceitual, pode-se apontar 2 : a progressiva ampliação histórica do uso e significado da expressão “direitos humanos”; a forte bagagem emotiva da expressão, dado seu caráter utópico; 1 Regina Vargas, é consultora em Projetos Sociais. [email protected] . O presente texto de sua autoria, foi elaborado para apresentação no Curso de Especialização em Projetos Sociais. PPGA/UFRGS. 2007 (Mimeo) 2 Ver “Curso Sistematico de Derechos Humanos” - http://www.iepala.es/curso_ddhh/

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Direitos Humanos e Cidadania como conjunto de direitos.

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GESTÃO SOCIAL E DIREITOS HUMANOS

Regina Vargas1

I - Direitos Humanos – conceitos e origem A expressão direitos humanos traduz um conceito construído e desenvolvido ao longo de um processo histórico, civilizatório, contínuo – ainda que não linear, pois que conhece retrocessos. É, por essa razão, um conceito em constante transformação, um processo social (ELIAS, 2006; 27-33) mundial, não planejado, resultante da crescente interdependência entre as sociedades humanas. Embora a noção de direitos humanos seja muito antiga na história da humanidade, só mais recentemente passa a ser definida explicitamente e adquire reconhecimento mundial. São diversas as definições e denominações que têm sido utilizadas para referir direitos humanos: direitos fundamentais da pessoa, direitos naturais, direitos públicos subjetivos, garantias individuais, direitos do homem e do cidadão, liberdades fundamentais, entre várias outras. Os direitos humanos podem ser definidos como as condições que deve ter cada pessoa, desde o nascimento e sem distinção de qualquer espécie, para que possa desenvolver-se plena e livremente em todas as áreas de sua vida e que lhe permitam conviver em liberdade, igualdade e dignidade com outras pessoas. Neste sentido, são faculdades, prerrogativas e liberdades fundamentais inerentes à condição humana, isto é, que cada pessoa possui pelo simples fato de ser humana. A diversidade terminológica relativa aos direitos humanos produz e, ao mesmo tempo, é conseqüência de sua ambigüidade conceitual. Entre as causas que explicam esta diversidade terminológica e conceitual, pode-se apontar2:

a progressiva ampliação histórica do uso e significado da expressão “direitos humanos”;

a forte bagagem emotiva da expressão, dado seu caráter utópico;

1 Regina Vargas, é consultora em Projetos Sociais. [email protected]. O presente texto de sua autoria, foi elaborado para apresentação no Curso de Especialização em Projetos Sociais. PPGA/UFRGS. 2007 (Mimeo) 2 Ver “Curso Sistematico de Derechos Humanos” - http://www.iepala.es/curso_ddhh/

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o fato de ter sua origem em premissas metafísicas abstratas, sem uma especificação histórica concreta.

Assim, a historicidade se constitui no traço essencial do conceito de direitos humanos, permitindo afirmar, como Lopez Calera, que:

"As bases teórico-práticas hoje atribuídas aos Direitos Humanos não se explicam por razões metafísicas e, sim, principalmente, por ser expressão de uma consciência de classe, de comunidade, que revela aquilo que em cada momento histórico se considera intangível e inalienável para uma convivência justa e pacífica. A historicidade dos Direitos Humanos se revela como uma característica especial das novas reivindicações ante a imutabilidade dogmática dos antigos iusnaturalismos".3

O Curso Sistemático de Direitos Humanos da Red EuroSur propõe uma definição que busca, entre outros objetivos:1) enfocar direitos humanos como um conceito histórico; 2) superar a concepção puramente jurídica; 3) superar também a clássica oposição jusnaturalismo-positivismo; e 4) resgatar a tríplice dimensão ético-jurídico-política dos direitos humanos. Nesta perspectiva, propõe a seguinte definição, reconhecendo no entanto que, como as anteriores, tem limitações:

“Direitos Humanos são aquelas demandas de poder social, cuja tomada de consciência pelos indivíduos e grupos sociais, em cada momento histórico, enquanto manifestação dos valores sociais fundamentais, supõe a pretensão de garanti-los, seja pela via institucional, seja através de meios extraordinários."

I. 1 – Fundamentos dos Direitos Humanos A noção de direitos humanos assenta-se sobre princípios que se caracterizam, de um lado, pela estabilidade e permanência e, de outro, pela historicidade. Diz-se, portanto, que é um sistema de princípios com uma estrutura formal permanente, mas de conteúdo variável, posto que no curso da história vai adquirindo sentido e significado de acordo com cada época. Sua base formal, universalmente aceita, é a da dignidade inerente da pessoa humana cujos contornos – significado e conteúdo – variam conforme as culturas e as épocas em que são considerados. As conquistas para a dignidade da pessoa humana em cada época transformam-se no mínimo imprescindível para épocas futuras. Além disso, os princípios que formam a base para os direitos humanos implicam/produzem um conjunto de deveres básicos correlatos juridicamente estabelecidos. Os princípios fundamentais de direitos humanos podem ser classificados conforme sua natureza ético-jurídica e política em:

Fundamentação ético-jurídica ou jus-filosófica, cujo estudo corresponde à Filosofia do Direito;

Fundamentação jurídico-positiva, cujo estudo corresponde à Ciência Jurídica;

Fundamentação jurídico- política, cujo estudo corresponde à Filosofia Política;

Fundamentação ético-religiosa, cujo estudo corresponde às diversas religiões. No pensamento cristão, à Teologia Moral.

3 LOPEZ CALERA, N.M.: Derecho natural (citado em Curso Sistemático de Derechos Humanos).

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Consideraremos aqui apenas a fundamentação jurídico-positiva. Para uma explanação sobre as demais classes, recomendo acessar o sítio da IEPALA – Instituto de Estudios Políticos para América Latina y África, Curso Sistematico de Derechos Humanos4. A fundamentação jurídico-positiva dos direitos humanos reside nos valores e princípios expressos e reconhecidos, ainda que apenas implicitamente, nas constituições e/ou nos tratados e convênios internacionais de proteção dos direitos humanos. Tais instrumentos se constituem em garantias dos direitos humanos e dizem respeito à pessoa humana entendida como sujeito de direitos e portadora da dignidade inerente à condição humana. Neste sentido, os direitos humanos portam a exigência intrínseca do respeito aos mesmos.

O Estado não só tem o dever de reconhecê-los, mas também de respeitá-los e defendê-los; de moldar sua atuação aos limites apontados pela lei, a qual lhe impõe, em certos casos, a obrigação da não ação ou da ação voltada a garantir aos indivíduos a vigência de suas liberdades e direitos consagrados na Constituição.

I. 2 – Breve histórico A idéia da proteção da dignidade humana é antiga e muito anterior ao surgimento do conceito jurídico internacional de “direitos humanos”. Já o código de Hammurabi (1700 a.C. aproximadamente) mencionava leis de proteção dos mais fracos e de freio para a autoridade. Na civilização egípcia, o poder dos faraós era concebido como serviço. Os profetas judeus vinculavam o exercício do poder a deveres fundados em princípios religiosos que inspiravam uma ética baseada na responsabilidade de todos os homens pelos seus atos. Buda, Confúcio e Zoroastro pregavam a supremacia do direito e da justiça, o ensino da fraternidade e da generosidade, visando a plena realização da natureza humana e a formação de uma sociedade pacífica e justa. Na Grécia do século V a.C., os cidadãos já controlavam as ações do Estado (polis); o limite do poder era dado pelo direito que exercem os cidadãos ao participar dos assuntos públicos. A positivação dos direitos humanos no ocidente tem como marcos fundadores mais expressivos:

a Carta Magna da Inglaterra, de 1215, documento imposto ao Rei João Sem-Terra pelo Papa e pelos Barões ingleses que o forçava a renunciar a certos direitos, a respeitar determinados procedimentos legais e a aceitar que a vontade do rei seja limitada pela lei;

a Carta Inglesa de Direitos (Bill of Rights), de 1689, que estabeleceu o direito de cidadão de peticionar o Monarca, bem como certos requisitos constitucionais, pelos quais as ações da Coroa demandavam o consentimento dos governados através de sua representação no Parlamento;

a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, votada em agosto de 1789 pela Assembléia Nacional Constituinte Francesa;

a Carta Americana de Direitos, de 1791, que estabelecia as primeiras 10 emendas à Constituição Norte-Americana que limitam explicitamente os poderes do Governo Federal impedindo o Congresso de restringir as liberdades de expressão, de imprensa, de associação, de consciência, entre outras;

4 Disponível em: http://www.iepala.es/curso_ddhh/

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a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, aprovada em abril de 1948, através da Resolução XXX da IX Conferência Internacional Americana, em Bogotá.

a Declaração Universal de Direitos Humanos das Nações Unidas, aprovada em 10 de dezembro de 1948, resposta às atrocidades e à tragédia humana ocorridas com a II Grande Guerra.

I. 3 – A tipologia dos direitos humanos Diversos critérios têm sido utilizados para classificar os direitos humanos, ao quais têm por objetivo esclarecer seus diferentes aspectos sem, contudo, tentar estabelecer qualquer hierarquia entre eles. Todos os direitos humanos têm igual importância e devem ser igualmente respeitados e garantidos. O primeiro critério que se pode utilizar é o que se denomina “em razão do sujeito”, isto é, atendendo quem exerce ou exige o cumprimento de determinados direitos. Segundo este critério, os direitos humanos podem ser classificados em direitos individuais e direitos sociais.

a) Os direitos individuais se referem a interesses particulares ou individuais do ser humano e são exercidos por cada pessoa em seu próprio interesse. Por exemplo, o direito à vida, à liberdade de opinião, à liberdade de ir e vir, e de consciência.

b) Os direitos sociais se referem a interesses coletivos ou de grupos sociais. São exercidos pelas pessoas em favor de várias outras e, também, por grupos de pessoas, como os sindicatos, em favor de seus associados e associadas. Exemplos destes direitos são o direito à educação, à saúde, à moradia, à liberdade de reunião e a um meio-ambiente saudável.

Conforme sua natureza, os direitos humanos também podem ser classificados em: direitos civis e políticos, direitos econômicos, sociais e culturais, e direitos dos povos ou de solidariedade. Esta classificação foi proposta pelo jurista francês Karel Vasak e inspira-se nos ideais da Revolução Francesa: “Liberté, Egalité, Fraternité”.

a) Direitos civis e políticos – Surgem com a Revolução Francesa como revolta contra o absolutismo do monarca. Refletindo o individualismo liberal-burguês emergente dos séculos XVII e XVIII, estes direitos tendem a impor ao Estado obrigações negativas, ou seja, abstenções, ao invés de intervenções, e estão associados à noção de liberdade. São direitos de titularidade individual, embora alguns sejam exercidos em conjuntos de indivíduos. Impõem ao Estado o dever de respeitar os direitos fundamentais do ser humano:

• à vida • à integridade física e moral • à liberdade • à segurança pessoal • à igualdade perante a lei • ao devido processo legal • à liberdade de pensamento, de consciência e de religião • à liberdade de expressão e de opinião • de resistência e de inviolabilidade do domicílio • à liberdade de movimento ou de livre trânsito • à justiça

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• a uma nacionalidade • a solicitar e receber asilo político • a participar no governo e na direção de assuntos políticos • a eleger e a ser eleito a cargos públicos • a formar um partido ou afiliar-se a um • a participar em eleições democráticas • à propriedade privada

b) Direitos econômicos, sociais e culturais – São constituídos por direitos coletivos que surgem como resultado da Revolução Industrial, das revoltas operárias dos séculos XIX e XX e das teorias socialistas. Protegem o direito de desfrutar de condições de vida dignas, contemplando as necessidades econômicas, sociais e culturais das pessoas. Enquanto os direitos civis e políticos visam proteger o indivíduo contra o poder do Estado, estes direitos demandam uma certa intervenção do Estado para garantir o acesso aos bens sociais básicos. Estão associados à noção de igualdade e incluem os direitos:

• à educação • à saúde • à moradia • à alimentação • à seguridade social • ao trabalho e à proteção contra o desemprego • a um salário igual por igual trabalho • ao descanso e a jornadas de trabalho razoáveis • a um salário justo que assegure à pessoa e a sua família uma vida digna • a usufruir os benefícios da ciência • a participar da vida cultural e econômica da comunidade e do país

c) Direitos de solidariedade ou direitos dos povos – Surgem em nosso tempo e devem ser compreendidos à luz do processo de ascensão e declínio do Estado-Nação ao longo da segunda metade do século XX. Referem-se à proteção das nações ou dos povos, como unidades culturais que habitam um determinado território, contra as diferentes “poluições” que os ameaçam como conseqüência das novas tecnologias e das perversidades do sistema econômico. Estão associados à noção de fraternidade e de solidariedade. Incluem os direitos:

• à paz • à autodeterminação • a um ambiente saudável e sem contaminação • ao desenvolvimento sustentável • à informação.

São também chamados direitos difusos. Considerados direitos coletivos por excelência, sua concretização depende do esforço coordenado em âmbito mundial ainda por ser realizado. Esta mesma classificação é também denominada classificação por gerações, sendo os direitos civis e políticos ditos de primeira geração, os econômicos, sociais e culturais, de segunda geração, e os direitos de solidariedade, de terceira geração. A denominação decorre tão somente da ordem cronológica em que os direitos humanos foram sendo reconhecidos e não deve, de modo algum, ser entendida como alguma forma de hierarquia ou de “evolução” desses direitos, no

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sentido de que o surgimento de uma nova geração anulasse ou tornasse obsoleta a anterior. A indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos vêm sendo reiteradamente afirmadas pela Assembléia Geral das Nações Unidas. Esta classificação não é isenta de críticas. Nas palavras do Prof. Cançado Trindade:

“Nunca é demais ressaltar a importância de uma visão integral dos direitos humanos. As tentativas de categorização de direitos, os projetos que tentaram - e ainda tentam - privilegiar certos direitos às expensas dos demais, a indemonstrável fantasia das “gerações de direitos”, têm prestado um desserviço à causa da proteção internacional dos direitos humanos. Indivisíveis são todos os direitos humanos, tomados em conjunto, como indivisível é o próprio ser humano, titular desses direitos.” (TRINDADE, A. A. 1998: 120)

I. 4 – Algumas características dos direitos humanos

• São inerentes ou inatos a todo ser humano, porque derivam da própria natureza humana e da dignidade intrínseca a esta natureza.

• São universais – estendem-se a todo o gênero humano independentemente de sua

condição histórica, geográfica, étnica, sexual, etária, ou social.

• São inalienáveis, irrenunciáveis e imprescritíveis – são parte consubstancial da própria natureza humana; não podem ser transferidos e nenhuma pessoa pode voluntária ou involuntariamente privar-se nem ser privada deles.

• Constituem um corpo integral, único e indivisível – nenhum direito humano pode ser

sacrificado com o pretexto de defender outro. As pessoas devem gozar de todos seus direitos humanos para realizarem-se plenamente e viver com dignidade.

• São juridicamente exigíveis - Mesmo pertencendo naturalmente a todas as pessoas, para

que se possa exigir dos Estados seu respeito e cumprimento, devem estar reconhecidos nas constituições nacionais e nas leis de um país.

II – O Sistema Internacional de proteção dos direitos humanos A proteção internacional dos direitos humanos é garantida pelo sistema normativo global, composto de instrumentos de alcance geral e especial, e pelo sistema regional, este último integrado pelos sistemas americano (no qual o Brasil está inserido), o europeu e o africano. A legislação internacional sobre direitos humanos impõe obrigações aos Estados, no sentido de assegurar o efetivo gozo dos direitos humanos a todos os cidadãos e cidadãs sob a jurisdição daqueles. Tais compromissos implicam não só regular a conduta dos agentes estatais, como também atuar no sentido de evitar que as ações de indivíduos e instituições particulares violem os direitos humanos de outras pessoas. Neste sentido, a cultura e a conduta social de um povo são também determinantes para o respeito aos direitos humanos. Estes constituem um referencial para as regras de conduta individual. Quando falamos de “direitos”, nos referimos a expectativas de comportamentos por parte de outros, que, em última instância, devem ser assegurados pelo poder público.

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Assim, o contexto político e social em que nascem e se aplicam as normas de direitos humanos tem grande importância para o êxito do propósito visado por elas, que não é outro senão o respeito por parte de todos da dignidade humana de cada um. As atrocidades e o genocídio praticados durante a Segunda Guerra Mundial evidenciaram a necessidade de se criar um sistema – em âmbito internacional – que garantisse a proteção das pessoas contra os abusos praticados por seus governantes, e que prevenisse a ocorrência de violações graves como as que se produziram no transcurso daquele conflito. Para ser efetivo, um tal sistema deveria ter por pressuposto o caráter universal dos direitos humanos. Além disso, deveria elencar estes direitos, impor aos Estados obrigações em relação aos direitos listados e estabelecer mecanismos de controle a cargo de órgãos internacionais que seriam responsáveis por fiscalizar o respeito aos mesmos direitos. II. 1 – A Organização das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos Humanos

O nascimento de um sistema mundial de proteção dos direitos humanos, representado pela Organização das Nações Unidas (ONU) e pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), decorreu mais do espanto que restava em relação ao grau e à extensão de crueldade evidenciados pela guerra, do que de um contexto político e social favorável.

Um planeta politicamente polarizado e marcado pela desigualdade econômica e social entre países – países desenvolvidos, países devastados pela guerra que retomavam seu processo de desenvolvimento, países subdesenvolvidos e outros que emergiam de antigas colônias – não reunia condições para o alcance dos propósitos expressos na Carta das Nações Unidas (26 de junho de 1945): “a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade entre homens e mulheres e entre as grandes e pequenas nações.” Tampouco, para a adoção de um tratado de direitos humanos que fosse juridicamente vinculante.

O único consenso alcançado foi o de adoção pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948, da Declaração Universal dos Direitos Humanos – “um ideal comum pelo qual todos os povos e nações devem esforçar-se”. Embora a DUDH não visasse um desdobramento jurídico e o caráter de obrigatoriedade para os Estados Parte, ela representou um passo importantíssimo no sentido de trazer o tema dos direitos humanos à agenda internacional.

Após sua adoção, o mundo esperou ainda 20 anos para que os primeiros pactos gerais, obrigatórios, pudessem ser adotados, e outros 10 para que estes passassem a vigorar. O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e seu Protocolo Opcional e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) foram adotados pela Assembléia Geral da ONU em 16 de dezembro de 1966. O PIDCP e seu Protocolo passaram a vigorar a partir de 23 de março de 1976; o PIDESC, em 3 de janeiro de 1976.

Estes três instrumentos – a DUDH, o PIDCP e o PIDESC – compõem o que se denomina a Carta Internacional de Direitos Humanos (International Bill of Human Rights).

II. 2 – O avanço progressivo

A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi o ponto de partida para uma série de pactos, tratados e outros mecanismos de proteção dos direitos humanos, cuja progressão, conforme Giuseppe Tosi, segue três tendências:

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• Universalização – de 48 países que aderiram à Declaração Universal da ONU, em 1948, hoje são quase a totalidade das nações do mundo – 184 dos 191 países membros da comunidade internacional.

• Multiplicação – progressivamente outros direitos vêm sendo incorporados aos mecanismos internacionais de proteção dos direitos humanos: a natureza e o meio ambiente, a identidade cultural dos povos e das minorias, o direito à comunicação e a imagem;

• Diversificação – as Nações Unidas também definiram melhor quais eram os sujeitos titulares dos direitos. A pessoa humana não foi mais considerada de maneira abstrata e genérica, mas na sua especificidade e nas suas diferentes maneiras de ser: como mulher, criança, idoso, doente, homossexual, etc...

II. 3 – Outros instrumentos importantes para a proteção dos direitos humanos

Entre os diversos instrumentos da ONU que se seguiram à Declaração Universal, é importante destacar aqueles que possuem um órgão de monitoramento vinculado, na forma de um Comitê. São eles:

A Convenção Relativa ao Status de Refugiado e seu Protocolo, 1951 e 1967 – cujo órgão de monitoramento é o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR)

A Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (CERD), 1965

A Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), 1979

A Convenção contra a Tortura (CAT), 1984

A Convenção sobre os Direitos da Criança (CRC), 1989

É importante ressaltar, neste ponto, que a proteção dos direitos humanos compete primeiramente aos governos nacionais. A proteção internacional é subsidiária e possui, assim como os Estados, além da responsabilidade de proteger, a de promover e difundir os direitos humanos no sentido de garantir que sejam acessados universalmente.

Os mecanismos de monitoramento do cumprimento das obrigações pelos Estados Partes podem tanto estar estabelecidos nos tratados, como através de resoluções dos organismos respectivos, como por exemplo o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (ECOSOC) estabelecido por uma resolução do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas.

II. 4 - O Sistema Interamericano de Direitos Humanos Em 1948, 21 nações do Hemisfério assinaram a Carta da OEA, expressando o compromisso com seus objetivos comuns e o respeito pela soberania nacional. Adotaram, também, a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, a primeira declaração internacional do gênero.

A idéia da cooperação interamericana, contudo, é bem mais antiga. Na década de 1820, Simón Bolívar vislumbrou uma região “unida pelo coração”. Em 1890, os países da região constituíram o Escritório Comercial das Repúblicas Americanas, que deu origem à União Pan-Americana e, mais tarde, à OEA. Desde 1948, a Organização dos Estados Americanos vem crescendo com a

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incorporação dos países anglófonos do Caribe e o Canadá, o que lhe proporcionou uma perspectiva mais ampla, de abrangência hemisférica.

Com quatro idiomas oficiais – espanhol, francês, inglês e português –, a OEA reflete a grande diversidade de povos e culturas das Américas. Conta com 35 Estados membros, os países independentes das Américas do Norte, Central e do Sul e do Caribe. (O governo de um Estado membro, Cuba, foi afastado da OEA em 1962). Países do mundo inteiro são observadores permanentes e acompanham de perto as questões que são críticas para as Américas, emprestando, com freqüência, importante apoio financeiro aos programas da OEA.

Os Estados membros estabelecem as principais políticas e metas por meio da Assembléia Geral que reúne anualmente os ministros das relações exteriores do Hemisfério. O Conselho Permanente, constituído de embaixadores designados pelos Estados membros, reúne-se periodicamente na sede da OEA, na cidade de Washington, com vistas a orientar as políticas e as ações em andamento. De três em três meses alterna-se a presidência do Conselho Permanente, segundo a ordem alfabética dos países. Todos os Estados membros têm o mesmo direito à palavra, e as decisões são adotadas quase sempre por consenso.

O sistema interamericano tem importância fundamental para a defesa dos direitos humanos na América Latina. Divide-se em dois subsistemas, um que se aplica aos Estados membros da OEA que não são parte da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose, Costa Rica, 1969) e outro que se aplica aos Estados que aderiram ou ratificaram esta Convenção.

A Convenção Americana de Direitos Humanos resulta do progressivo desenvolvimento do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e está estruturada em duas partes. A primeira, substantiva, trata dos direitos e liberdades fundamentais, das obrigações dos Estados-parte e dos deveres dos titulares de direitos face à Convenção; a segunda, estabelece os órgãos responsáveis pela proteção e promoção dos direitos consagrados no mesmo documento – a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, bem como os mecanismos de controle.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), além de ser um órgão da Convenção Americana de DH, o é também da Carta da OEA, de modo que possui atribuições tanto em relação aos Estados partes da Convenção, quanto aos Estados membros da OEA. Está composta por 7 membros, todos “pessoas de elevada autoridade moral e reconhecida experiência em matéria de direitos humanos”, eleitos pela Assembléia Geral da OEA a partir de uma lista de candidatos apresentados pelos Estados membros. Suas atribuições incluem desde a promoção dos direitos humanos e apoio aos Estados membros até a investigação de situações de violações e de denúncias recebidas.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos tem por atribuições julgar casos de supostas violações à Convenção Americana de Direitos Humanos por um Estado parte e, também, emitir pareceres. Está composta por sete juízes oriundos dos Estados membros da OEA, embora não necessariamente dos Estados partes da Convenção. Os Estados partes apresentam como candidatos e elegem juristas “de elevada autoridade moral, de reconhecida competência em matéria de direitos humanos e que reúnam condições para o exercício das mais altas funções judiciais de acordo com a lei do seu país ou do Estado que os apresente”. O mandato é de seis anos e não pode haver dois juízes de uma mesma nacionalidade.

II.5 – Caracterização dos instrumentos internacionais de direitos humanos

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Declaração – série de normas e princípios que os Estados criam e se comprometem a

cumprir internamente em seus países, mas não estão obrigados a fazê-lo. Em caso de descumprimento, recebem apenas uma “sanção moral” pela comunidade internacional.

Convenção – série de acordos que os Estados estabelecem e ratificam, ficando obrigados a garantir seu cumprimento.

Pacto – um adendo a uma Convenção, com novas disposições legais.

Os pactos e convenções passam a vigorar a partir do momento que um país os ratifica, ou seja, firma um contrato pelo qual se compromete a cumprir com as provisões estabelecidas no instrumento que o originou e, com isso, confere à comunidade internacional (os demais países que firmaram a convenção ou o pacto) o direito de exigir o cumprimento.

III – A proteção nacional dos direitos humanos

Cada país expressa em sua Constituição a proteção dos direitos humanos, bem como na regulamentação daquela através das leis, códigos e outras normas nacionais.

Além disso, os direitos humanos são salvaguardados nacionalmente pelos convênios, tratados e pactos internacionais firmados e ratificados pelo Estado nacional. Uma vez ratificados, estes instrumentos passam a fazer parte da legislação nacional e, portanto, os governos estão obrigados a cumpri-los. Em outras palavras, eles são juridicamente exigíveis.

A Constituição Brasileira de 1988 reconhece, como tendo status constitucional, os direitos e garantias contidos nos tratados internacionais ratificados pelo Brasil, que não tenham sido incluídos no artigo 5º da Constituição.

O Brasil é signatário dos mais importantes tratados internacionais de direitos humanos tanto na esfera da Organização das Nações Unidas (ONU) como da Organização dos Estados Americanos (OEA), entre os quais o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP); o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC); a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes; e a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos. O país não faz reservas em relação a qualquer desses instrumentos jurídicos.

Principais Instrumentos internacionais de direitos humanos de que o Brasil é parte

Promulgação Título Data

Decreto no Data

Declaração Universal dos Direitos Humanos 10/12/1948

Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial 07/03/1966 65810 08/12/1969

Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos 19/12/1966 592 06/07/1992

Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais 19/12/1966 591 06/07/1992

Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados 31/01/1967 70946 07/08/1972

Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José) 22/11/1969 678 06/11/1992

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Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres 18/12/1979 4377(*) 13/09/2002

Convenção Contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes 10/12/1984 40 15/02/1991

Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura 09/12/1985 98386 09/11/1989

Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador)

17/11/1988 3321 30/12/1999

Convenção sobre os Direitos da Criança 20/11/1989 99710 21/11/1990

Protocolo à Convenção Americana sobre Direitos Humanos Relativo à Abolição da Pena de Morte 08/06/1990 2754 27/08/1998

Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher 09/06/1994 1973 01/08/1996

Protocolo Facultativo à Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres

06/10/1999 4316 30/07/2002

Declaração de Reconhecimento da Competência Obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos

4463 08/11/2002

Declaração Facultativa à Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial

4738 12/06/2003

Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança referente à venda de crianças, à prostituição infantil e à pornografia infantil

25/05/2000 5007 08/03/2004

III. 1 – Plano Nacional de Direitos Humanos O Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), lançado pelo Brasil em 13 de maio de 1996, fez deste um dos primeiros países do mundo a cumprir recomendação da Conferência Mundial de Direitos Humanos (Viena, 1993), atribuindo aos direitos humanos o status de política pública governamental. O programa original conferia maior ênfase à garantia de proteção dos direitos civis. O processo de revisão do PNDH, impulsionado pela sociedade civil através da IV Conferência Nacional de Direitos Humanos, ocorrida em maio de 1999, eleva os direitos econômicos, sociais e culturais ao mesmo patamar de importância dos direitos civis e políticos. Segundo o documento de apresentação do governo federal, “O PNDH II incorpora ações específicas no campo da garantia do direito à educação, à saúde, à previdência e assistência social, ao trabalho, à moradia, a um meio ambiente saudável, à alimentação, à cultura e ao lazer, assim como propostas voltadas para a educação e sensibilização de toda a sociedade brasileira com vistas à construção e consolidação de uma cultura de respeito aos direitos humanos. Atendendo a anseios da sociedade civil, foram estabelecidas novas formas de acompanhamento e monitoramento das ações contempladas no Programa Nacional, baseadas na relação estratégica entre a implementação do programa e a elaboração dos orçamentos em nível federal, estadual e municipal.”

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IV – Direitos Humanos e Desenvolvimento A afirmação da integralidade e da indivisibilidade dos direitos humanos estabelece um novo paradigma para o desenvolvimento das nações. A Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1986 estabelece expressamente que “a pessoa humana é o sujeito central do desenvolvimento”. Após várias décadas de políticas de desenvolvimento apoiadas tão somente no crescimento econômico, nas medidas do PIB e da renda per capita das nações, o mundo finalmente percebeu que este crescimento não é suficiente e tampouco tem vinculação direta como o desenvolvimento humano. A partir de estudos sobre desenvolvimento realizados por dois economistas, o paquistanês Mahbub ul Haq, e o indiano Amartya Sen, um novo enfoque ao conceito de desenvolvimento humano é introduzido, o qual parte do pressuposto de que o avanço de uma população não pode ser aferido somente pela dimensão econômica, devendo incluir também outros fatores sociais, culturais e políticos que influenciam a qualidade da vida humana. Com base neste pressuposto, Mahbub ul Haq idealizou o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e o Relatório de Desenvolvimento Humano que vem sendo publicado anualmente pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). IV. 1 – O IDH - Índice de Desenvolvimento Humano

O propósito de Mahbub ul Haq ao elaborar o Índice de Desenvolvimento Humano, com a colaboração de Amartya Sen, foi o de oferecer um contraponto a outro indicador muito utilizado, o Produto Interno Bruto (PIB) per capita, que considera apenas a dimensão econômica do desenvolvimento. O IDH pretende-se uma medida geral, sintética, do desenvolvimento humano. Não abrange todos os aspectos de desenvolvimento, nem pretende ser um indicador de “felicidade” das pessoas ou do “melhor lugar no mundo para se viver".

O IDH consiste em um índice composto, que mede o alcance médio em três dimensões básicas do desenvolvimento humano: uma vida longa e saudável, o acesso ao conhecimento e um padrão de vida decente. Assim, além de computar o PIB per capita, corrigido pelo poder de compra da moeda de cada país, o IDH leva em conta ainda dois outros componentes: a longevidade e a educação. Para aferir a longevidade, o indicador utiliza números de expectativa de vida ao nascer. O item educação é avaliado pelo índice de analfabetismo e pela taxa de matrícula em todos os níveis de ensino. A renda é mensurada pelo PIB per capita, em dólar PPC (paridade do poder de compra, que elimina as diferenças de custo de vida entre os países). Essas três dimensões têm a mesma importância no índice, que varia de zero a um.

O depoimento de Sen revela a significância da criação deste índice para a mudança de paradigma para o desenvolvimento:

"Devo reconhecer que não via, no início, muito mérito no IDH em si, embora tivesse tido o privilégio de ajudar a idealizá-lo. A princípio, demonstrei bastante ceticismo ao criador do Relatório de Desenvolvimento Humano, Mahbub ul Haq, sobre a tentativa de focalizar, em um índice bruto deste tipo - apenas um número - a realidade complexa do desenvolvimento e da privação humanos. (...) Mas, após a primeira hesitação, Mahbub convenceu-se de que

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a hegemonia do PIB (índice demasiadamente utilizado e valorizado que ele queria suplantar) não seria quebrada por nenhum conjunto de tabelas. As pessoas olhariam para elas com respeito, disse ele, mas quando chegasse a hora de utilizar uma medida sucinta de desenvolvimento, recorreriam ao pouco atraente PIB, pois apesar de bruto era conveniente. (...) Devo admitir que Mahbub entendeu isso muito bem. E estou muito contente por não termos conseguido desviá-lo de sua busca por uma medida crua. Mediante a utilização habilidosa do poder de atração do IDH, Mahbub conseguiu que os leitores se interessassem pela grande categoria de tabelas sistemáticas e pelas análises críticas detalhadas que fazem parte do Relatório de Desenvolvimento Humano."

Amartya Sen, Prêmio Nobel da Economia em 1998, no prefácio do RDH de 1999. IV. 2 – O Brasil e o IDH

Entre 2003 e 2004, o Brasil apresentou alguma melhora no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), embora tenha recuado uma posição no ranking mundial: da 68ª, caiu para a 69ª posição num rol de 177 países e territórios, conforme aponta o Relatório de Desenvolvimento Humano de 2006, do PNUD.

Os índices do referido relatório não permitem comparação com os relatórios anteriores, pois os indicadores e metodologias utilizados passaram por revisão e aperfeiçoamento. No entanto, para não prejudicar a análise das tendências históricas de desenvolvimento humano, o RDH 2006 procedeu também ao recálculo do IDH de 2003 e de seis anos referência anteriores (1975, 1980, 1985, 1990, 1995 e 2000) utilizando as novas séries estatísticas.

Apesar da mudança, o IDH brasileiro apresentou crescimento, de 0,788, em 2003, para 0,792, em 2004, permanecendo assim entre as 83 nações de médio desenvolvimento humano (IDH entre 0,500 e 0,799). Já o grupo de 63 nações que apresentam desenvolvimento humano elevado é encabeçado, pelo sexto ano consecutivo, pela Noruega (IDH de 0,965).

No ranking, o Brasil está colocado logo abaixo de Dominica (Caribe) (0,793) e logo acima da Colômbia (0,790). Na América Latina e Caribe, 13 países apresentam desempenho superior ao brasileiro, entre eles México (53º no ranking, IDH de 0,821), Cuba (50º no ranking, IDH de 0,826), Uruguai (43º no ranking, IDH de 0,851), Chile (38º no ranking, IDH de 0,859) e Argentina (36º no ranking, IDH de 0,863).

Referência de desigualdade em relatórios anteriores, o Brasil é apresentado no RDH 2006 como exemplo de melhoria na distribuição de renda. Ainda assim, é a 10ª nação mais desigual numa relação de 126 países e territórios, estando à frente de Colômbia, Bolívia, Haiti e cinco países da África Subsaariana. Os avanços também tiraram o Brasil da penúltima posição no ranking de distribuição de renda da América Latina — no relatório anterior, apenas a Guatemala estava em situação pior. Apesar de os progressos terem permitido que o indicador brasileiro superasse o colombiano, duas colocações foram ganhas graças à intensa ampliação do fosso de renda entre pobres e ricos na Bolívia e à entrada do Haiti no ranking.

O desempenho brasileiro é avaliado no relatório principalmente com base no índice de Gini — indicador de desigualdade de renda que varia de 0 a 1, onde 0 representa uma situação em que toda a população possuísse uma renda equivalente, e 1 o caso em que uma única pessoa detivesse toda a riqueza do país. No relatório, o índice do Brasil é 0,580, menor que o da Colômbia (0,586, nona no ranking dos piores) e pouco maior que os de África do Sul e Paraguai (0,578, empatadas na 11ª colocação).

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A leve melhora neste índice não foi suficiente para mudar a situação do Brasil como o país mais desigual entre aqueles com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) superior ao seu — o que mais se aproxima é o Chile, com um índice de Gini de 0,571.

Além disso, em apenas oito países os 10% mais ricos da população se apropriam de uma fatia da renda nacional maior que a dos ricos brasileiros. No Brasil, os mais ricos detêm 45,8% da renda, menos que no Chile (47%), Colômbia (46,9), Haiti (47,7), Lesoto (48,3%), Botsuana (56,6%), Suazilândia (50,2%), Namíbia (64,5%) e República Centro-Africana (47,7%).

No outro extremo, só em sete países a parcela da riqueza apropriada pelos 10% mais pobres é menor que no Brasil. Os pobres brasileiros detêm apenas 0,8% da renda, fatia superior à dos pobres de Colômbia, El Salvador e Botsuana (0,7%), Paraguai (0,6%), e Namíbia, Serra Leoa e Lesoto (0,5%). A comparação entre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres mostra que, no Brasil, a fatia da renda obtida pelo quinto mais rico da população (62,1%) é quase 24 vezes maior do que a fatia de renda do quinto mais pobre (2,6%).

IV. 3 – Desenvolvimento e o enfoque das capacidades O novo enfoque das capacidades na análise do desenvolvimento das nações tem origem nos estudos sobre a teoria da escolha social e da economia do bem-estar desenvolvidos por Amartya Kumar Sen – áreas em que ele se tornou autoridade mundial. Uma de suas primeiras publicações sobre o tema surgiu em 1981: Poverty and Famines: An Essay on Entitlement and Deprivation (Pobreza e Fomes: um ensaio sobre direitos e privações) (SEN,1999). Neste livro, ele demonstra que a ocorrência das crises de fome não são provocadas unicamente pela escassez de alimentos, mas pelas desigualdades que se constroem nos mecanismos de distribuição deste. Sen prestou uma contribuição revolucionária ao desenvolvimento das ciências econômicas e à construção de indicadores sociais com o conceito de “capacidades” apresentado em seu artigo Equality of What (Igualdade de quê?) apresentado em maio de 1979, na Stanford University, para Tanner Lectures for Human Values5, que o publicou em 1980, e que integra seu livro Desigualdade Reexaminada (SEN, 2001). A abordagem das capacidades trabalha sobre a questão das “liberdades substantivas” como fatores essenciais para o desenvolvimento. Sen entende por liberdades substantivas as “capacidades” ou oportunidades disponíveis às pessoas para ser ou fazer algo, para levar o tipo de vida que elas têm motivos para valorizar. Nesta perspectiva, a pobreza é vista, antes, como privação das capacidades básicas, do que meramente como o baixo nível de renda, critério tradicional de mensuração da pobreza. (SEN, 2000). O que as pessoas podem efetivamente realizar é afetado tanto pelas oportunidades econômicas, quanto pelas liberdades políticas e sociais e pelo acesso a boas condições de saúde e de educação básica, entre outras. Sob este enfoque, a igualdade é tratada por Sen de modo mais complexo, não se resumindo a uma questão de redistribuição de renda e sim na construção de um conjunto de mecanismos que possibilitem a eliminação das assimetrias estruturais que obstaculizam as escolhas pessoais autênticas. Nas palavras de Sen “[...] rendas iguais podem ainda deixar bastante desigual nosso potencial de fazer o que podemos valorizar

5 The Tanner Lectures on Human Values (Conferências Tanner sobre Valores Humanos) – instituição sem fins lucrativos vinculada à Universidade de Utah (EUA), que promove anualmente uma série de palestras e seminários posteriormente reunidos e publicados em um volume anual subsidiado pelos curadores da instituição. Acesso às publicações das conferências no sítio da instituição: http://www.tannerlectures.utah.edu/

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fazer. Uma pessoa incapacitada não pode realizar funcionamentos do modo que uma pessoa com o “corpo hábil” pode, ainda que ambas tenham exatamente a mesma renda (Sen, 2001). BIBLIOGRAFIA SUGERIDA BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992 ELIAS, Norbert. Escritos & Ensaios, 1: Estado, processo, opinião pública. (org.) Federico Neiburg e Leopoldo Waizbort. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006 MARTINS, Paulo Haus. A lei das OSCIPS. In.: ESPÍRITO SANTO. Ministério Público. Procuradoria- Geral de Justiça. Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional. Terceiro Setor: Fundações e entidades de interesse social. Vitória: CEAF, 2004. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo: Max Limonad, 2002. RODRÍGUEZ-PINZÓN, D., MARTIN, Claudia. A Proibição de Tortura e Maus-tratos pelo Sistema Interamericano : um manual para vítimas e seus defensores. Tradução: Regina Vargas. Genebra: OMCT – Organisation Mondiale contre la Torture, 2006. SEN, Amartya K. Equality of what? In: S. McMurrin (org.). Tanner lectures on human values. Cambridge: Cambridge University Press, 1980. ______ . Pobreza e Fomes: um ensaio sobre direitos e privações. Lisboa: Terramar, 1999. ______ . Desigualdade reexaminada. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2001. TORO, José B., WERNECK, Nísia M.D. Mobilização Social: um modo de construir a democracia e a participação. Brasília: Ministério da Justiça, 1997. ______. A Construção do Público: Cidadania, Democracia e Participação. Rio de Janeiro: SENAC – X Brasil, 2005. TRINDADE, Antônio A.C. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, vol. I, Porto Alegre: Fabris Ed., 1997. ______ . A Consolidação da Capacidade Processual dos Indivíduos na Evolução da Proteção Internacional dos Direitos Humanos: Quadro Atual e Perspectivas na Passagem do Século.(Artigo). Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais – Fundação Alexandre de Gusmão. Disponível em: http://www2.mre.gov.br/ipri/SDIREITOSHUMANOS.html . Acessado em 29 de março de 2007. VARGAS, Regina. Networking for Women’s Access to Justice in Brazil. In: MOKATE, Karen (Ed.) – Women’s Participation in Social Development: Experiences from Ásia, Latin America and the Caribbean. Washington: IADB – Inter-American Development Bank, 2004.

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Links Úteis: ABONG – Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais: http://www.abong.org.br/ BID - Banco Interamericano de Desenvolvimento: http://www.iadb.org/ CEJIL – Centro pela Justiça e o Direito Internacional: http://www.cejil.org/ CEPAL – Comisión Económica para América Latina y el Caribe: http://www.eclac.org/ Comissão Interamericana de Direitos Humanos: http://www.cidh.org/Default.htm IIDH - Instituto Interamericano de Direitos Humanos: http://www.iidh.ed.cr/ INDES - Inter-American Institute for Social Development: http://indes.iadb.org/main.asp?lg=EN OMCT – Organização Mundial contra a Tortura: http://www.omct.org/ Organização das Nações Unidas: http://www.un.org/ Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD - Brasil):

http://www.pnud.org.br/home/ RITS – Rede de Informações para o Terceiro Setor: http://www.rits.org.br/ THEMIS- Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero: http://www.themis.org.br/