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Abordagens Da Cultura Popular Carioca

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Dias & Riedweg,molde para confecçãode ex-voto dainstalação Devotionália ,

MAM, Rio de Janeiro,1996Fonte: Premiere Publications d’artistes de Suisse , Suíça: ProHelvetia, 1997

Hélio OiticicaEstou possuído , Nildoda Mangueira vesteP17 Parangolé Capa13, 1967Fonte: Aspiro ao grande labirinto . Rio de Janeiro: Rocco,1986

Paula Trope,

colaboração de Júlio, Jeferson e Ivo,Domingo, 18h,Ipanema, Rio de

Janeiro, setembro de1994díptico da série OsMeninos, Rio de

Janeiro, 1993/1994158,5 x 101,5cmFonte: Folder da exposiçãoContos de passagem , EspaçoCultural Sergio Porto, 2003/2004

Rosana Palazyan, dasérie retratos, 2000Fonte: O lugar do sonho , SãoPaulo: CCBB, 2004. Foto deVicente de Mello

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Identidade nacional

A partir do século 20, intelectuais brasilei-ros se empenham na construção de umaidentidade nacional, uma identidade que irádiferenciar o país do exterior. As bases des-sa identidade serão erguidas a partir da cul- tura popular, pois a cultura hegemônica, namaioria de suas manifestações, buscavamimetizar a européia. Gilberto Freyre, comCasa-Grande & Senzala , em 1933, dará um

passo decisivo, ao abandonar as teorias ra-ciais de origem européia e transformar anegatividade do mestiço em positividade. Omaior problema que Renato Ortiz apontana abordagem de Freyre é não incluir osconflitos que sempre fizeram parte do con- tato entre essas culturas.1

Na semana de fevereiro de 1922, realizadaem São Paulo, muitas pinturas parecem ter contribuído para a formação da idéia desincretismo cultural, posteriormente teo-rizada por Freyre. A idéia de cultura nacio-

nal, porém, logo será transformada em ideo-logia política pelo Estado Novo, quandoela atende às necessidades nacionalistas.

Beatriz Pimenta Velloso

Confrontando a produção de artistas da Semana de 1922 e da década de 1990, o artigo trata das mudanças que ocorreram na relação obra/espectador: de um sujei- to genérico, que é transformado em objeto de contemplação, ao sujeito como

participante da obra, identificado como criador no procedimento de fazer arte em colaboração com o outro.

Estética, etnografia urbana, cultura brasileira, exclusão social.

Abordagens da cultura popular carioca:Hélio Oiticica, Dias & Riedweg,Paula Trope e Rosana Palazyan

Tarsila do Amaral é paulista, filha dedicional família de fazendeiros de cafévida na fazenda representa bem o dualiexistente entre a casa-grande e a senz tendo contato com a paisagem e os tralhadores rurais (na maioria ex-escravconvivia simultaneamente com a culturacesa dentro da casa-grande. A pinturaTarsila representa uma paisagem brasiesquemática conjugando elementos pcubistas a elementos populares. Di Cava

é carioca, filho de família intelectulibertária, e será o único dos modernistassumir posição política contrária à orvigente. Sua pintura é uma adaptação do cubismo francês, de Picasso principal te, à paisagem das favelas e a cenas comà vida boêmia. A abordagem do poppelos pintores modernistas é idealizadformalista, e não revela nenhum consocial.2

Na década de 1960, o trabalho de Oiticio de Lygia Clark iniciam nova vertent

arte contemporânea: a de que a obra de asó poderia acontecer no tempo, à medque fosse experimentada pelo público.

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pecialmente Oiticica interessa-se pela cultu-ra popular: osParangolés e os Bólides têmforte influência de sua convivência com in- tegrantes da comunidade do Morro da Man-gueira. Diferente dos modernistas, essasobras além de revelar o prazer e o interesseno contágio entre culturas, também vãoapontar fortes conflitos.

Hélio Oiticica revisto

Merleau Ponty,3 que teve grande influênciana obra de Oiticica, distingue, emFeno- menologia da percepção , conceitos atravésdas palavras lugar e espaço. Os lugares sãoas zonas urbanizadas das cidades construídaspara dar identidade, memória e história aoscidadãos. Diferente dos lugares, a “existên-cia é espacial”, não possui identidade ou re-ferência fixa, é um processo em andamentoe não uma história terminada. Na imuta-bilidade de um lugar, “existem tantos es-paços quantas experiências espaciais dis- tintas”. A infinidade de perspectivas, de pon- tos de vista de um lugar é determinada por uma “fenomenologia” do existir no mundo.Merleau-Ponty é um fio condutor da obrade Hélio Oiticica, quando a vemos sair dasformas geométricas doGrande Núcleo paraas que se moldavam a cada experiência vivi-

da, como osBólides e osParangolés .Michel Certeau, ampliando a teoria de espa-ço e lugar de Ponty, aponta que as práticascotidianas dos consumidores, como “habi- tar, circular, falar, ler, ir às compras ou cozi-nhar”, são táticas de desvios do uso conven-cional dos objetos industrializados. Essesdesvios são “gestos hábeis do ‘fraco’, na or-dem estabelecida pelo ‘forte’”.4 SegundoCerteau, a primeira transformação já estáimplícita no uso do verbo, ou seja, na açãode fazer uso dos objetos. “O espaço é um

lugar praticado”. “Assim a rua geometrica-mente definida por um projeto urbanísticoé transformada em espaço pelos pedestres.”

A palavra tropicália junta trópico e Brasília.“Braília vem de Brasil, das coisas do Brasil”,no entanto, a capital é um sólido avião geo-métrico, atualmente lugar de globalizados edesterritorializados. A favela resgata o tró-pico, a necessidade de habitar e conviver com a adversidade. As certezas da geome- tria de Brasília contrastam com a instabilida-de das favelas. Oiticica, em 1967, já não seidentifica com os modernistas e mostra adistância do ideal da capital para o modode vida nas comunidades.5 Tropicália deOiticica, como a favela, é um espaçomaleável, condição que Marc Augé vai cha-mar de não-lugar, um espaço que se formae se transforma de acordo com as práticasde quem está lá. A favela para Oiticica foi o

modelo de uma arquitetura que se compôsa partir do espaço existencial.

Arte política

Em 1966, enquanto muitos intelectuais bra-sileiros estavam a favor da luta armada con- tra a ditadura militar, Oiticica preferiu pres- tar homenagem a Cara de Cavalo, que paraele era um amigo, e não um bandidosangüinário e terrível: “Eu quis homenagear o que penso que seja a revolta individualsocial: a dos chamados marginais”.6 Dois anos

depois, em carta enviada a Lygia Clark, eleacrescenta: “hoje, sou marginal ao marginal,não marginal aspirando à pequena burgue-sia ou ao conformismo”. A identificação deOiticica com o marginal é uma “atitude anár-quica contra todos os tipos de forças arma-das”,7 e também uma posição sua em rela-ção à luta armada organizada em sua época,principalmente pela classe média.

Oiticica no mundo da arte aspirava a apre-sentar idéias inovadoras num plano que im-bricasse arte, cultura e sociedade. OBólide-

Caixa 18 e o Estandarte Seja marginal, seja herói foram imagens da desigualdade socialno Brasil, imagens que anteciparam a exis-

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tência dos atuais conflitos armados entre fac-ções do tráfico e a polícia. Em outra passa-gem desse mesmo texto, ele identifica suabusca na arte com a busca do marginal: “Mui- tas vezes, em geral, o crime é uma buscadesesperada de felicidade.”8

O auto-exorcismo das décadas de1990/2000

Marc Augé, nos anos 90, refere-se a umasupermodernidade causada por “modifica-ções físicas: concentrações urbanas, transfe-rências de população e multiplicação de não-lugares, por oposição à noção sociológica delugar associada por Mauss e por toda uma tradição etnológica àquela de cultura locali-zada no tempo e no espaço”.9

Hoje, quando olhamos fotos de inglesesdeitados na instalação de Oiticica em 1968,época do movimentoflower and power ,Guerra do Vietnã, manifestações e revolu-ções políticas, vemos como o sentido dessaparticipação pode variar conforme a época,a cultura e a subjetividade de cada especta-dor. Essa diferença será fundamental para osartistas que vou comentar a seguir. A ver- tente participativa da arte contemporâneabrasileira, seguindo o caminho aberto por Clark e Oiticica, vai transformar os registrosdessas participações em projetos. Investigan-do os territórios flutuantes produzidos nasupermodernidade, eles vão fazer dos parti-cipantes colaboradores, co-autores de suasobras. Na década de 1990, tema recorrentena produção desses artistas é o nomadismode seus personagens, os não-lugares por onde circulam, suas vidas nas ruas e nas insti- tuições que os abrigam temporariamente.

As imagens que representaram sincretismocultural sem conflitos tornaram-se distantescom a crescente violência nas metrópoles

nos anos 90. O samba, símbolo máximo dosincretismo, já não predomina nas comuni-dades; concorrem com ele, o Funk e o

Rapper, ritmos de origem híbrida com lmoralmente agressivas ou de denúnciabre a exclusão social. De uma forma ououtra, parece que a violência necessitaexorcizada para suportarmos a vida metrópoles.Roberto Da Matta observa que, para rezar pesquisas etnográficas, é preciso “tformar o exótico no familiar e/ou transmar o familiar em exótico”. Como movi tos fundamentais da prática antropolóo primeiro é mais comum à antropoloclássica, quando os etnólogos buscamcampos remotos enigmas sociais situadouniversos de significação incompreendpelos meios sociais de seu tempo; o segdo é quando a disciplina se volta para n

própria sociedade, em movimento semel te a um auto-exorcismo de nossas instções, de nossa prática política e religio10

Assim, no primeiro movimento existe gde necessidade de identificação, de tração de uma cultura e uma língua compmente diferentes das do pesquisador; jásegundo há entendimento dessa difereidentificação das demandas desse outrrecusa em aceitar ideologias simplistas tipificam seu modo de vida.

A dificuldade para estranhar o familiar tro de nossa própria sociedade está na cção de estereótipos, naquilo que não ndeixa ver diferenças em paisagens quesão familiares por definições preconcebPor exemplo, assistimos a relatos de fafictícios ou não, por meio do cinema, dlevisão e dos jornais, sobre o que se pnas favelas, nas instituições penais, nasocupadas por moradores de rua, mas nparticipamos do cotidiano desses espaçraramente conversamos com seus integ tes, o que decerto poderia mudar de moradical nossa opinião de telespectador

observador a distância. As obras dos a tas aqui abordados fazem esse esforçodeslocamento.

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Rosana Palazyan

A artista parece tratar do auto-exorcismoque Da Matta aponta quando investiga osonho de crianças e adolescentes interna-dos em instituição penal. No contato diretocom essa realidade, Palazyan se afasta doestereótipo das matérias jornalísticas, insti-gando-nos a ver mais de perto espaços quecostumam ser mapeados para que não se- jam atravessados ou visitados. Sobre o tem-po de convívio com os menores da colônia,ela conta que recebe declarações de afeto eque se comove com as histórias que regis- tra. Entender os motivos que levam alguéma ser violento parece ter sido imprescindívelpara Palazyan transformar o que é distantede nossa realidade em familiar e transfor-

mar as regras do mundo social em que vive-mos em algo exótico.

Nas frases recolhidas dos relatos dos jovens,em ...uma história que você nunca mais es- queceu?, revelam-se diferentes maneiras dereagir à adversidade. Quando pensamos nadiferença entre as condições sociais dessesmeninos e as nossas podemos imaginar umabismo intransponível; porém, lendo as fra-ses dos meninos, nos damos conta de queelas também podem nos ser familiares, sejapor coincidir com nossos próprios sonhos

infantis, seja porque nos identificamos comoutras histórias de outros meninos em con-dições parecidas. O grande diferencial da

presença dessas histórias na obra de Palazyané a poética com que ela nos apresenta esseoutro. Essa poética, desenvolvida em parce-ria com os meninos, compõe histórias lúdicasque diferem dos fatos dos jornais; querecodificam o mundo em que vivemos.

Na série Retratos, os meninos desenharammáscaras em um molde-padrão e, usando-as, deram depoimentos que foram gravadosem vídeo. Desses vídeos foram retiradas asfrases e as fotografias de still , e a partir des-sas fotos a artista desenhou os retratos. Nosdesenhos, através das máscaras vemos par-cialmente rostos que nos são interditados,pois não é permitido publicar o rosto demenores infratores. Não se trata aqui deretratos que identificam indivíduos, como os

feitos pela polícia, mas de retratos com ex-pressões profundamente tristes. Olhar comatenção esses retratos mascarados é comorecuperar aquele desejo sempre reprimidoque sentimos de observar os habitantes des-ses espaços da cidade, muitas vezes por nósmesmos interditados ao olhar.

Na instalação, a artista pede ao espectador “gestos simbólicos de solidariedade e deslo-camento para a perspectiva do outro”: re-fletir-se no espelho ao lado do desenho deum menino com sua máscara.11 É estranho

vermos a reversão dos símbolos máximosda sociedade de consumo, Nike,12 Redley,Ciclone, nos desenhos toscos de uma más-

“meu amigo morreu nomeu lugar, nessa vida

tenho que ser sozinho.Andou comigo, mesmoque não for bandido, támorto...”Rosana Palazyan, da série...uma história que vocênunca mais esqueceu?2001Fonte: O lugar do sonho , SãoPaulo: CCBB, 2004. Foto deMauro Restiffe

“... nunca gostei dedepender da minhafamília, eu gosto muito demaconha e roupa demarca...”Rosana Palazyan, da série

retratos, 2000Fonte: O lugar do sonho , SãoPaulo: CCBB, 2004. Foto deVicente de Mello

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cara triste. Encontrar esses símbolos no con- texto desses desenhos é estranhar o familiar e, ao mesmo tempo, familiarizar-se com aestranheza do menino: o poder, a beleza e afelicidade prometidos pelas propagandas das

griffes , são revelados nesses retratos comoimpotência, precariedade e tristeza.

Paula Trope

Nos anos 90, a artista começa a fazer umasérie de fotografias com câmeras de orifício,uma câmera sem lente que revela diretamen- te sobre o filme fotográfico imagens difusas.Através de seu olhar essa falta de definiçãovai-se transformar em valor estético.

Trope, que fez cinema e trabalhou com

câmeras super-oito, afirma que a exposiçãoprolongada das fotos feitas com câmeras deorifício acrescenta duração às imagens e quea falta de visor nessas câmeras captura umespaço que está sendo visto de fora por to-dos os que participam da cena, e não ape-nas por um fotógrafo através de um visor.Para a realização dos retratos, os meninos sãoconvidados a posar para suas fotografias, apensar como gostariam de se fazer fotogra-

far e, depois, eles próprios fazem fotogrA longa exposição exigida pelas câmeraorifício, junto com o processo de elabção de fotografias, incentiva os meninconstrução de autoconsciência.13 Nessemomento há reversão de espaços no sendo existencial que sugere Ponty: o que snas fotografias não se trata mais dos mdores do bairro que passam rapidamentnão se deixam registrar, mas os meninossuas poses.

Em 1993, a série de fotografias de mende rua não constitui tema inédito. Outfotógrafos já haviam escolhido a exclusãcial no Brasil como tema. Essas fotogentão já tradicionais, nunca revelaram

rém, o verdadeiro olhar do espectador cdiano dessas cenas – apenas o olhar efêmde um fotógrafo em trânsito. Retratos dos, feitos em lugares distantes e com fide alta definição, como os de Sebastiãogado, costumam proporcionar reações drentes das fotos de Trope. Em Os Menia proximidade geográfica, logo ali na ena, parece ter contribuído para que se relassem outras faces desse tema.

Paula Trope com acolaboração de Jeferson eNem

Jeferson e Nem e S/título(a águia), 1994Díptico da série OsMeninos, Rio de Janeiro,1993/1994

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Nas décadas de 1980/90, lembro-me espe-cialmente dos meninos que viviam pelas ruasde Ipanema. Em minha visão, o efeito dasimagens produzidas pelas câmeras de orifí-cio parece também revelar como os mora-dores daquela época viam as famílias que emnúmero bem menor do que hoje começa-vam a habitar as ruas do bairro. Vistas derelance pelos passantes as faces dessas pes-soas não chegavam a ser memorizadas; eramcomo sombras de um futuro incerto.

Contos de passagem compõe-se de uma sé-rie de vídeos em que Trope grava históriascontadas por meninos que vivem e traba-lham nas ruas do Rio de Janeiro. A gravaçãoabrange um ano, de dezembro de 2000 adezembro de 2001, quando ela se propõe a traçar uma “geografia da cidade na passa-gem dos séculos”. Os meninos e meninasentrevistados contam como vivem nas ruas,como sobrevivem em grupos constituídospor outros jovens na mesma situação.14

Posto que oficialmente eles não poderiamviver nas ruas, não se fixam por muito tem-po nos lugares; sempre em movimento, elesconfiguram espaços que são não-lugares. Paragravar esses vídeos, Trope substituiu as len- tes da câmera de vídeo por um orifício. Esse

artifício já conhecido em sua obra, como asmáscaras e desenhos de Palazyan, impede

que o público identifique os menores. Masno áudio, de melhor definição, os adoles-centes falam claramente sobre suas vidas, daviolência em família e do afeto que existeentre eles, como fazem sexo e usam drogas,da experiência em instituições. Nesses de-poimentos, a crueza do vocabulário dosmeninos e meninas relata o cotidiano de umgrupo social que não tem registro de identi-dade e memória. No contexto das artes, asimagens de Trope vão além da documenta-ção direta de ruas ou favelas, o que, aliás,não querem ser. Elas retratam a tensão queexiste entre os diversos grupos que transi- tam pelos mesmos lugares da cidade. Suasimagens feitas de perto não são oriundas deum mundo distante; nesse sentido, não são

absolutamente românticas.Maurício Dias e Walter Riedweg

Após a queda do muro em Berlim, os pro-cessos de abertura ao livre mercado deslo-cam pelo mundo mensagens audiovisuaiscada vez mais variadas, fábricas multinacionaissão implantadas em regiões de mão-de-obramais barata, pessoas se deslocam para paí-ses mais ricos à procura de trabalho. Comoresultado desse processo, no final da déca-da de 1980, muitos brasileiros foram viver

nos Estados Unidos ou em países da Europaque, nessa época, para baratear os custos

O processo de confecçãoe exibição das Bandeirasde Devotionália na Lapa,Rio de Janeiro, 1997Fontes: Dias & Riedweg ,

Barcelona: MACBA, 2004 ePremiere Publications d’artistes de Suisse , Suíça: Pro Helvetia, 1997

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internos de produção que enfrentavam mer-cado transnacional cada vez mais competiti-vo, estavam aceitando como mão-de-obrapessoas sem documentos. Esses movimen- tos migratórios em curto espaço de tempovão aumentar o desemprego nos países maisricos e remediar precariamente o desem-prego naqueles de mão-de-obra mais bara- ta. No final dos anos 90, o resultado desas- troso para os dois lados produz o movimen- to de fechamento das fronteiras dos paísesricos. A entrada de novos imigrantes dimi-nui, mas não se consegue impedir definitiva-mente esse fluxo.15 A situação dessas pes-soas em trânsito, sem lugar no mundoglobalizado, será tema recorrente no traba-lho de Dias & Riedweg. Maurício Dias é bra-

sileiro, estudou gravura na EBA e, comomuitos de sua geração, foi viver na Europanos anos 80. Walter Riedweg é suíço, estu-dou teatro e música, e, ao conhecer Maurí-cio, aproximou-se da cultura brasileira.

Em 1994, Dias & Riedweg trabalham commeninos de rua no Rio de Janeiro, comoTrope e Palazyan. Os depoimentos em vídeoconstituem parte fundamental da obra de todos esses artistas, mesmo quando não in-cluídos nas instalações, como é o caso de

Palazyan. Nesses depoimentos, meninos emeninas derrubam com espontaneidade e

criatividade o mito de que só um artista dons especiais é capaz de produzir arte

Devotionalia é o primeiro trabalho produzdo por livre iniciativa da dupla Dia

Riedweg, e seu impacto na sociedade gdiversos desdobramentos dentro e fora instituições de arte. O projeto começou ca criação de um ateliê na Lapa voltado crianças e adolescentes moradores de No ateliê, a proposta inicial era que osvens moldassem suas mãos e seus pés argila, para depois, com fôrmas de gessrar os moldes em cera. Essa atividade fovadas em vídeos que registraram seus poimentos, conversas e brincadeiras.16

A partir desse material foi montada uma

talação no Museu de Arte Moderna do de Janeiro. Sobre um tapete de asfaltoram expostos os moldes de cera que, coex-votos, expressavam desejos reveladosdepoimentos exibidos em tevês. No Rio Janeiro, a instalação foi visitada por habitantes de comunidades, depois circpor três cidades da Suíça, na Holanda eConferência Internacional de Arte-Educorganizada pela Unesco e realizada na manha. Em cada uma dessas exposiçõeartistas faziam novas oficinas e organizdebates com os jovens europeus, que er

convidados a responder aos depoimendos brasileiros.

No centro Devotionáliaexposta no CongressoNacional em Brasília, naslaterais videoconferencia

realizada entre o Rio de Janeiro e Brasília, 1997

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rou interferências que surgiram de todos oslados. Em especial,Devotionalia não teveplanejamento – foi acontecendo exatamen- te a partir dessas interferências.18

Com as devidas diferenças, Oiticica, Dias &Riedweg, Trope e Palazyan promovem re-versão do negativo para o positivo, pois to-dos eles tratam de cultura e estética pelo queé considerado ser o avesso dessas idéias. Aolongo da história, se pensarmos que muitasobras de arte, antes de transformar, come-çaram contrariando estéticas intimamenteligadas à imobilidade de regimes políticos,podemos pensar que a estética desses artis- tas faz duvidar da eficácia do neoliberalismo,o que mostra outros caminhos além dos vis-lumbrados pela economia de livre mercado.

Beatriz Pimenta Velloso é artista plástica e mestre emLinguagens Visuais pela EBA/UFRJ. Foi professora con-

trat ada do Insti tuto de Artes da Uerj , pesquisadora-visi- tant e no Laboratór io de Tecnologi as em Educação daEPSJV/Fiocruz, e atualmente faz doutorado em Imageme Cultura na EBA/UFRJ.

Notas

1 Ortiz, Renato.Cultura brasileira e identidade nacional , SãoPaulo: Brasiliense, 1985: 41.

2 Zilio, Carlos.A querela do Brasil: a questão da identi-

dade da arte brasileira. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1997: 54.

3 Merleau-Ponty, Maurice.Fenomenologia da percepção .Trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo:Martins Fontes, 1994.

4 Certau, Michel.A invenção do cotidiano: artes do fa- zer . Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vo-zes, 1994: 104.

5 Oiticica, in Figueiredo, Luciano.Hélio Oiticica: obra e es- tratégia . Catálogo da Mostra RioArte Contemporânea,MAM-Rio. Rio de Janeiro: RioArte, 2002: 46.

6 Oiticica, Hélio.Aspiro ao grande labirinto . Rio de Janeiro:Rocco, 1986.

7 Clark, Lygia.Lygia Clark – Hélio Oiticica: Cartas, 1964-74 .Org. Luciano Figueiredo. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998.

8 Oiticica, 1986, op. cit.

9 Augé, Marc.Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade . Tradução de Lúcia Pereira. Cam-pinas: Papirus, 1994: 36.

10 Da Matta, Roberto. In Nunes, Edson de Oliveira.A aven- tura sociológica: objetividade, paixão, improviso e mé

todo na pesquisa social . O ofício do etnólogo, ou como ter “anthropological blues”. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

11 Herkenhoff, Paulo in Palazyan, Rosana (org.).O lugar do sonho . Livro da exposição no CCBB, São Paulo: CCBB2004.

12 Milton Santos, no filme de Silvio Tendler, declara que empresa Nike é uma das que mais se espalha por paísescuja mão-de-obra é desvalorizada e explora menores.Aumentando o problema do desemprego nos EstadosUnidos e distribuindo migalhas para os países pobres, aNike é um paradigma do neoliberalismo.

13 Trope, Paula.Traslados. Dissertação de mestrado da Es-cola de Comunicações e Artes da Universidade de SãoPaulo, 1999.

14 Trope, Paula. Folder da exposiçãoContos de passagem no Espaço Cultural Sergio Porto, 2003/2004.

15 Canclini, Nestor García.Diferentes, desiguais e desconectados: mapas da interculturalidade.Trad.Luiz Sergio Henriques, 2

a

ed., Rio de Janeiro: UFRJ,2007: 19 e 20.

16 Wohlthat, Martina. López, Sebastián.Premières publications d’arti stes de Suisse , Collection Cahiersd’Artistes, Suíça: Pro Helvetia, 1997.

17 Wohlthat, op. cit.

18 Dias, Maurício e Riedweg, Walter.Dias & Riedweg , Bar-celona: MACBA, 2004: 228.

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