32
Abrantes, o Naturalismo e o Teísmo [Abrantes, Naturalism and Theism] Agnaldo Portugal * Resumo: Este artigo pretende apresentar e discutir as principais teses de Paulo Abrantes acerca do naturalismo, um dos temas que ele mais desenvolveu em sua trajetória acadêmica. Percorrendo a maior parte de seus textos mais importantes sobre o assunto, o texto se debruça sobre a exposição que Abrantes faz sobre o naturalismo na epistemologia e filosofia da ciência, de um lado, e na filosofia da mente e metafísica, por outro lado. Seu trabalho mostra a grande diversidade de abordagens encontradas sob o título de "naturalista"nessas áreas da pesquisa filosófica. Abrantes aponta para uma distinção básica entre naturalismo metafísico e naturalismo metodológico. Embora aponte para a possibilidade de um naturalismo metodologicamente neutro, ele parece estar mais inclinado a admitir que mesmo o naturalismo metodológico tem de assumir compromissos ontológicos. Em vista do contraste com a metafísica teísta, que ajuda a entender melhor o que unifica os diferentes tipos de naturalismo, o artigo avalia os argumentos em favor do naturalismo metafísico mínimo admitido por Abrantes e propõe que, tanto para se entender o naturalismo em filosofia quanto em ciências naturais, a versão metodológica neutra é a mais recomendada. Palavras-chave: Paulo Abrantes; naturalismo; teísmo; filosofia da mente; epistemologia. Abstract: This article intends to expound and discuss Paulo Abrantes’ main theses about naturalism, one of the subjects he has dealt with most extensively in his academic career. Taking into account his most important works on the matter, this text analyses Abrantes’ exposition of naturalism in epistemology and philosophy of science, as well as in philosophy of mind and metaphysics. He shows the great diversity of proposals under the label of “naturalist” in those areas of philosophical enquiry. Abrantes points out to a basic distinction between metaphysical and methodological naturalism. Although he indicates the possibility of a methodologically neutral naturalism, he seems to be more inclined to admit that even the methodological version of it has to assume some ontological commitments. In view of the contrast with theistic metaphysics, which helps to unders- tand better what unifies the dierent varieties of naturalism, the article evaluates the arguments in favor of the minimal ontological naturalism admitted by Abrantes. As a result, it proposes that, in order to better understand naturalism both in philosophy and in natural sciences, the neutral methodological version is the most recommended. Keywords: Paulo Abrantes; naturalism; theism; philosophy of mind; epistemology. * Professor do Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília (UnB). E-mail: [email protected] Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 73-104 ISSN: 2317-9570 73

Abrantes, o Naturalismo e o Teísmo

  • Upload
    others

  • View
    2

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Abrantes, o Naturalismo e o Teísmo[Abrantes, Naturalism and Theism]

Agnaldo Portugal*

Resumo: Este artigo pretende apresentar e discutir as principais tesesde Paulo Abrantes acerca do naturalismo, um dos temas que ele maisdesenvolveu em sua trajetória acadêmica. Percorrendo a maior parte deseus textos mais importantes sobre o assunto, o texto se debruça sobre aexposição que Abrantes faz sobre o naturalismo na epistemologia e filosofiada ciência, de um lado, e na filosofia da mente e metafísica, por outro lado.Seu trabalho mostra a grande diversidade de abordagens encontradas sob otítulo de "naturalista"nessas áreas da pesquisa filosófica. Abrantes apontapara uma distinção básica entre naturalismo metafísico e naturalismometodológico. Embora aponte para a possibilidade de um naturalismometodologicamente neutro, ele parece estar mais inclinado a admitirque mesmo o naturalismo metodológico tem de assumir compromissosontológicos. Em vista do contraste com a metafísica teísta, que ajudaa entender melhor o que unifica os diferentes tipos de naturalismo, oartigo avalia os argumentos em favor do naturalismo metafísico mínimoadmitido por Abrantes e propõe que, tanto para se entender o naturalismoem filosofia quanto em ciências naturais, a versão metodológica neutra é amais recomendada.Palavras-chave: Paulo Abrantes; naturalismo; teísmo; filosofia da mente;epistemologia.

Abstract: This article intends to expound and discuss Paulo Abrantes’main theses about naturalism, one of the subjects he has dealt with mostextensively in his academic career. Taking into account his most importantworks on the matter, this text analyses Abrantes’ exposition of naturalismin epistemology and philosophy of science, as well as in philosophy ofmind and metaphysics. He shows the great diversity of proposals underthe label of “naturalist” in those areas of philosophical enquiry. Abrantespoints out to a basic distinction between metaphysical and methodologicalnaturalism. Although he indicates the possibility of a methodologicallyneutral naturalism, he seems to be more inclined to admit that even themethodological version of it has to assume some ontological commitments.In view of the contrast with theistic metaphysics, which helps to unders-tand better what unifies the different varieties of naturalism, the articleevaluates the arguments in favor of the minimal ontological naturalismadmitted by Abrantes. As a result, it proposes that, in order to betterunderstand naturalism both in philosophy and in natural sciences, theneutral methodological version is the most recommended.Keywords: Paulo Abrantes; naturalism; theism; philosophy of mind;epistemology.

*Professor do Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília (UnB). E-mail: [email protected]

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 73-104ISSN: 2317-9570

73

AGNALDO PORTUGAL

Introdução

Um dos temas mais constantesda contribuição filosófica de PauloAbrantes ao longo de sua carreiraacadêmica foi o naturalismo. Suaproposta foi antes de tudo escla-recer os diversos sentidos que esseconceito tem no debate atual emepistemologia, filosofia da ciên-cia, filosofia da mente e metafí-sica. Apesar do caráter predomi-nantemente expositivo e classifica-tório de sua abordagem, é possí-vel discernir com relativa clarezasuas próprias posições e argumen-tos acerca desse tema, decorrentesdo esforço de toda uma vida depesquisa voltada para aproximar areflexão filosófica da investigaçãoem ciências naturais. Neste artigo,pretendo apresentar aquelas queme parecem ser as principais tesesde Abrantes acerca do naturalismo,percorrendo seus textos mais im-portantes sobre o assunto e divi-dindo aquelas ideias em dois gru-pos: o naturalismo como tese emfilosofia da mente e metafísica, e onaturalismo como método em epis-temologia e filosofia da ciência.

A essa apresentação se segueuma avaliação dessas ideias emvista de uma tese metafísica quenão é especificamente objeto dediscussão obra de Abrantes, masque não está de todo ausente: oteísmo. Trata-se de uma das te-orias metafísicas mais duradourasda história da filosofia ocidental

e certamente uma das mais pre-sentes na concepção das pessoasalheias ao meio filosófico profissio-nal, embora aparentemente poucopopular nos ambientes acadêmi-cos atuais. Segundo o teísmo,a natureza é resultado da cria-ção de um Deus pessoal incorpó-reo que é onipotente, onisciente,onipresente, eterno e infinitamentebom. A realidade física, segundoo teísmo, é mantida pela ação deDeus, sendo ela, portanto, depen-dente deste que seria a realidadeprimeira.

Veremos que são diferentes aspossibilidades de compatibilizaçãocom o teísmo se considerarmos aversão metafísica e a metodoló-gica do naturalismo. O texto pre-tende avaliar essas possibilidadesde compatibilização levando emconta não apenas a filosofia da ci-ência e a filosofia da mente, mastambém a filosofia da religião e, es-pecialmente, a história da ciência,outra área na qual Abrantes deuuma valiosa contribuição intelec-tual.

Abrantes e os Naturalismos

Em “Naturalizando a Epistemo-logia” (1994), Abrantes pretendedescrever as diferentes propostasdentro da abordagem naturalistaem epistemologia e filosofia da ci-ência. O modo pelo qual isso éfeito é principalmente pelo con-

74 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 73-104ISSN: 2317-9570

ABRANTES, O NATURALISMO E O TEÍSMO

traste entre o naturalismo e a “filo-sofia ortodoxa” nessas duas áreas,ou seja, aquela que pensa a filo-sofia como uma atividade eminen-temente a priori. Apesar da di-versidade de propostas, o natura-lismo em epistemologia pode sercaracterizado como a tese de queessa área da filosofia “está com-prometida de modo necessário einexpurgável com questões empíri-cas”. As teses epistemológicas tam-bém devem se submeter aos mes-mos limites do método científico,distinguindo-se da ciência apenaspor seu grau de generalidade e abs-tração (Abrantes, 1994, p. 171).Para o naturalismo epistemológico,questões sobre como devemos co-nhecer e como de fato conhece-mos não são independentes e se-paradas, mas fortemente conecta-das. No jargão de filosofia da ci-ência, pode ser dito que o natu-ralismo não distingue questões docontexto de justificação das ques-tões do contexto de descoberta.

Outro ponto de unidade no na-turalismo epistemológico é o res-gate do projeto clássico de aper-feiçoamento da cognição humana,mas que abandona o fundacio-nismo infalibilista de Descartes eLocke. O conhecimento é vistocomo falível, podendo se modifi-car à medida que muda o saber ci-entífico (Abrantes, 1994, p. 174).Por outro lado, o naturalismo dámenos ênfase ou se desinteressa

por completo pelos ataques céticosà possibilidade de conhecimento.Em vista do sucesso das ciênciasnaturais, faz mais sentido se per-guntar quais são suas caracterís-ticas e como seus resultados po-dem ajudar a melhorar ainda maisnossa capacidade de compreensãodo mundo: “o progresso do pro-grama naturalista está essencial-mente ligado ao progresso cientí-fico: para o naturalismo, a Epis-temologia e as Ciências partici-pam, na verdade, de um único pro-grama” (Abrantes, 1994, p. 210).

Segundo Abrantes, a epistemo-logia naturalista se vale de diferen-tes estratégias, envolvendo méto-dos diferentes utilizados pelas ci-ências. Basicamente haveria abor-dagens tais como as dos estudos deneurociência e as analogias com ainteligência artificial acerca da re-lação entre hardware e software,chamadas de bottom-up. Por ou-tro lado, há também aquelas quese valem de modelos e idealiza-ções, frequentemente encontradasna Física e na Química, denomi-nadas top-down pelos naturalistas.“Bottom” e “top” parecem ser de-finidos em termos materialistas: oque é material (o cérebro, o hard-ware) é bottom (embaixo, no fun-damento), e o que é construçãoteórica é top (no alto). Abran-tes expressa uma preferência plu-ralista dentro do campo naturalistaao considerar que “a Epistemolo-

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 73-104ISSN: 2317-9570

75

AGNALDO PORTUGAL

gia e a Filosofia da Ciência ganha-rão certamente, para além de qual-quer ortodoxia, em considerar asabordagens top-down e bottom-upcomo complementares, e não comoantagônicas” (Abrantes, 1994, p.196).

Pouco menos de dez anos de-pois, Abrantes publica com HilanBensusan um texto que revela bemmais de suas ideias próprias, umavez que já pressupõe a exposiçãoanterior dos tipos de naturalismo1.Em “Conhecimento, ciência e na-tureza: cartas sobre o naturalismo”(doravante referido como Cartas),os dois professores da Universi-dade de Brasília debatem sobre onaturalismo epistemológico e emfilosofia da ciência. No entanto,como ficará claro na exposição a se-guir, a discussão acaba inevitavel-mente tocando também em temasmetafísicos. Dado o foco deste ar-tigo, vou me concentrar nas tesesapresentadas por Abrantes.

Logo na Missiva P1 Abrantes co-necta naturalismo epistemológicoe ontológico. Embora admita quetalvez seja um equívoco pensar queo naturalista deva ter compromis-sos ontológicos particulares, eleafirma:

De minha parte, eu tendo aconcordar com Kornblith esustentar que o naturalista

tem compromissos ontológi-cos, desde que sejam compa-tíveis com as melhores teo-rias científicas contemporâ-neas ou mesmo derivados.Eu considero, por exemplo,que é inescapável, para umhomem contemporâneo (oci-dental, educado, etc.) ad-mitir elementos de uma ima-gem de natureza apoiada noconhecimento científico dis-ponível. Um deles é que asmentes surgiram a partir deprocessos puramente físicos.Colocando em outros termos,as mentes são, na história douniverso, coisas bastante tar-dias (como a vida, por si-nal). (Abrantes & Bensusan,2003, p. 293)

Em notas na mesma página,Abrantes admite que o natura-lismo é cientificista em algumamedida e que a tese sobre o cará-ter tardio das mentes pressupõeum tipo forte de realismo cientí-fico. Em outras palavras, o natu-ralismo ontológico que é pano defundo do naturalismo epistemo-lógico toma as ciências empíricascomo exprimindo uma forma deconhecimento mais bem justificadaacerca da realidade. É interessantetambém a menção ao “homem con-temporâneo” como aquele que fun-

1 Feita também em Abrantes 1998.

76 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 73-104ISSN: 2317-9570

ABRANTES, O NATURALISMO E O TEÍSMO

damenta sua visão de mundo na ci-ência.

Dessas ideias acima, Abrantesconclui que, uma vez que as men-tes são um produto tardio na na-tureza, o espaço de razões – o con-texto no qual as ideias são justi-ficadas – teve também um surgi-mento tardio. Contar a históriadesse surgimento, bem como desua articulação com o espaço deleis e causas, segundo ele, “nãopode pressupor a existência de umespaço de razões antes que este te-nha surgido (embora qualquer his-tória que contemos deverá ser ra-cionalmente legitimada – afinal,as hipóteses e teorias científicassão expressões de um conjunto decrenças justificadas e, esperamos,verdadeiras).” (Abrantes & Ben-susan, 2003, p. 293). O que estáentre parêntesis na última citaçãomostra o quanto são problemáticasas noções de justificação e raciona-lidade em uma concepção natura-lista. Uma coisa é a realidade fí-sica a partir da qual surgiram seresracionais, outra é a racionalidadeque se exige na justificação de teo-rias acerca dessa realidade física esua história – é esse o “espaço derazões” que Bensusan reivindicacomo necessário para a discussãofilosófica e que o naturalismo nãotem como fundamentar nas leis na-turais. Afinal, as teorias – científi-cas ou filosóficas – não são parteda realidade física, assim como o

naturalismo não é parte do con-junto das teses científicas. Vere-mos que essa é uma crítica que seráfeita também por filósofos teístasem suas análises acerca do natura-lismo.

Abrantes considera quiméricoum projeto que tente falar de umasegunda natureza, que incluísseum espaço de razões ao lado de umespaço de leis naturais, tal comopropõe John McDowell. Perguntaele a esse respeito: “Que recursosespeciais disporia a filosofia, quaisas suas credenciais para pretender,ainda hoje, articular uma concep-ção de natureza ignorando ou colo-cando de lado os métodos e os co-nhecimentos científicos aceitos (arespeito da natureza, do homem eda sociedade)?” (Abrantes & Ben-susan, 2003, p. 304). E defendeque os métodos da filosofia não sãoessencialmente distintos dos dasciências, mas sim contínuos. Ouseja, recursos como análise de con-ceitos e argumentos, explicitaçãode pressupostos e consequências,e imaginação especulativa não sãoespecificamente filosóficos, poistambém são utilizados por cientis-tas.

Segundo Abrantes,

Uma história da “emergên-cia” de um espaço de ra-zões só satisfará ao natura-lista se ela estabelecer umagradação contínua – sem in-

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 73-104ISSN: 2317-9570

77

AGNALDO PORTUGAL

troduzir saltos ou apelos so-brenaturalistas (o que Den-nett chamou de skyhooks) –entre as propriedades típicasda linguagem e do espaço derazões (e seu enraizamentonos processos e proprieda-des mentais) e propriedadesmais “primitivas” (no sen-tido evolucionista), cada vezmais próximas das proprie-dades e processos fundamen-tais (físicos, computacionais,etc.) (Abrantes & Bensusan,2003, p. 314)

O que se observa aqui é a tese deque a epistemologia deve adotarum procedimento parecido com odas ciências naturais ou das ciên-cias da computação na sua tenta-tiva de explicar o conhecimento. Amenção negativa ao sobrenatura-lismo e a ideia de uma gradaçãocontínua a partir de propriedadesmínimas ou primitivas do pontode vista físico fazem parte de ummesmo argumento em favor do na-turalismo ontológico.

Para Abrantes, a discussão nasCartas acabou se orientando de-mais para questões de ontologia,pois foi esse o viés dado ao debateinicialmente por Bensusan. Abran-tes entende, porém, que não sedeve limitar a discussão do pro-grama naturalista a questões deontologia, pois há naturalistas quese limitam a defender posições em

metodologia. Em todo caso, se-gundo ele, a ontologia naturalistadepende da imagem de naturezaformulada pelas ciências naturaise a tese naturalista é que

É a investigação científicaque nos leva a modificarnossas imagens de natureza,os filósofos tendo pouco ounada a contribuir nesse sen-tido, sobretudo aqueles quese mantêm isolados do tra-balho científico e que acre-ditam possuir métodos pró-prios e distintos dos méto-dos utilizados nas ciências,arvorando-se a ditar algo apriori a respeito do que deveser a natureza (Abrantes &Bensusan, 2003, p. 327).

Ou seja, embora as técnicas deabordagem da filosofia e das ciên-cias empíricas sejam comuns ou aomenos contínuas, estas últimas de-vem ter prioridade na constituiçãode nossa “imagem de natureza”,um conceito importante na filoso-fia da ciência de Abrantes, especi-almente ao tratar da história dasciências naturais e que explorare-mos mais adiante.

Apesar de voltar ao tom maisexpositivo que o argumentativoo observado nas Cartas, Abrantesapresenta vários elementos novosde sua defesa do naturalismo em

78 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 73-104ISSN: 2317-9570

ABRANTES, O NATURALISMO E O TEÍSMO

epistemologia no texto “El pro-grama de una epistemología evolu-cionista”, publicado em espanhol,fruto de trabalho com o filósofo co-lombiano Alejandro Rosas, um deseus vários colaboradores interna-cionais. Aqui Abrantes apresentaum das propostas naturalistas maisimportantes em teoria do conheci-mento: o programa evolucionista.A proposta desse programa é usara abordagem do darwinismo emBiologia como modelo para a expli-cação filosófica do conhecimento.Segundo ele, uma das característi-cas mais marcantes dessa aborda-gem é não se apelar para nenhumtipo de providencialismo, ou seja,não se fazer nenhum recurso a uma“intervenção milagrosa de uma in-teligência desenhadora” (Abrantes,2007, p. 121-2).

Além disso, a epistemologia evo-lucionista pretende seguir o darwi-nismo ao evitar cometer petição deprincípio, que consiste em assumiraquilo que se pretende explicar.Segundo Abrantes, uma variantedessa falácia seria pressupor naexplicação um sistema com igualou maior complexidade adaptativaque o que vai ser explicado. Outravariante seria a de invocar algumconhecimento prévio cuja origemnão seja elucidada para explicar asadaptações biológicas (Abrantes,2007, p. 126). Esse argumento emfavor dessa abordagem epistemo-lógica é ilustrado com o exemplo

da Psicologia Cognitiva, na qualo padrão explicativo darwinista setraduz na ideia, entre outras, deque a aprendizagem é um pro-cesso no qual os padrões de com-portamento exibidos por um in-divíduo se tornam gradualmentemais adaptados às condições deseu meio. A noção de gradação éfundamental, como já vimos ante-riormente. Com base nessa ideia,temos a explicação de Dennett daaprendizagem como a interação dedois processos independentes: ge-rar e testar. Essa geração, “para nãose cair em petição de princípio”,segundo Abrantes, deve atuar demodo “arbitrário”, “fortuito”, “ale-atório”, sem conhecimento prévio,injustificado, não intencional. Aideia é que cheguemos a geradoresque são meros autômatos, o quedenotaria uma simplicidade onto-lógica suficiente que justifique to-mar a tese como ponto de partidasem petição de princípio. O queesses geradores produzem é postoà prova por um processo separadodo de geração (Abrantes, 2007, p.130).

O argumento da simplicidadeontológica em favor do natura-lismo fora apresentando antes porAbrantes nas Cartas em respostaa Bensusan: “A minha posição éque ampliar a ontologia, como pre-tendem McDowell, Sellars e você,deve ser um último recurso. Asimplicidade ontológica parece-me

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 73-104ISSN: 2317-9570

79

AGNALDO PORTUGAL

um valor fundamental e rendeufrutos no passado” (Abrantes &Bensusan, 2003, p. 313). Temosaqui, mais uma vez, a importânciade determinado critério na históriada ciência como argumento parasua adoção em metafísica. Quantomenos entidades forem postula-das, melhor: é a preferência pe-las “paisagens desérticas”, famosa-mente expressa por Quine (1948),outro importante autor naturalista.

A epistemologia darwinista ouselecionista tem como dois princi-pais concorrentes o que Abranteschama de explicações “providen-cialistas” e “instrucionistas”. Oexemplo de explicação providen-cialista não é o teísmo e a dou-trina da imago Dei (a ideia de queos seres humanos foram criados àimagem de Deus e, por isso, têm apossibilidade de conhecer), mas ateoria platônica da anamese, des-crita no Mênon. Segundo ele, “Enel providencialismo, simplementese postula que el agente (o sistemacognitivo) tiene conocimiento, quetiene creencias que son verdaderasy que son justificadas”2 (Abrantes,2007, p. 136). O instrucionismo,por sua vez, é criticado por assu-mir a confiabilidade dos órgãos dos

sentidos e a validade das informa-ções que eles transmitem, mas nãoexplicam por que há essas proprie-dades. Diferentemente desses dois,porém, o selecionismo não pres-supõe o que tem de ser explicado,nem toma o conhecimento comoalgo gerado de fora para dentroem um único processo. O seleci-onismo propõe dois processos: oagente emite variações cognitivas eo meio ambiente as seleciona. As-sim, teorias seriam adaptadas aoserem selecionadas pelo ambientee por “adaptadas” quer dizer algocomo “confirmadas” e “verdadei-ras” (Abrantes, 2007, p. 139). Em-bora esse não seja o sentido comumde “verdade”, é o comumente ado-tado pelas epistemologias selecio-nistas, dada a centralidade desseconceito no darwinismo e a simpli-cidade de se evitarem discussõesmetafísicas sobre o que é essen-cial à realidade e que corresponde-ria à verdade. Em nota de rodapénesta mesma página, Abrantes es-clarece que uma variante é “cega”no sentido de que, quando é emi-tida, nada garante que seja adap-tativa para o sistema, pois não háuma intenção que a guie. E tam-bém admite que adaptação não ga-

2 É difícil entender por que essa crítica se aplicaria à teoria platônica da reminiscência. Esta não postula que oagente tenha conhecimento, mas que ele pode tê-lo se lembrar-se da verdade com a qual um dia já teve contato.Dentro dessa teoria, posso perfeitamente ter crenças falsas frequentemente por minha incapacidade de me recor-dar da verdade a que minha alma um dia já teve acesso quando ainda não estava ligada a um corpo. Assim, possoser altamente desprovido de conhecimento dentro dessa teoria. Mas ela explica como passamos dessa ignorânciapara o conhecimento – se seguirmos um método eficiente de recordação, que nos livre da ignorância gerada peladeficiência da percepção sensorial – e não se trata de algo que esteja fora do alcance do indivíduo.

80 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 73-104ISSN: 2317-9570

ABRANTES, O NATURALISMO E O TEÍSMO

rante a verdade. (Abrantes, 2007,p. 139, n. 27) E como toda adap-tação é relativa a um ambiente emum determinado tempo, todo co-nhecimento será considerado falí-vel pela abordagem selecionista.

Um dos exemplos de aborda-gem selecionista em epistemolo-gia é a de Daniel Dennett, um au-tor particularmente influente nasideias de Abrantes em epistemolo-gia e filosofia da mente. Desta vez,Dennett defende essa epistemolo-gia por usar um conceito bottom-up ao invés de top-down. Isso por-que as abordagens top-down falamde “ganchos pendurados no céu”(skyhooks) que influem no processode seleção natural, mas que nãose sabe de onde vêm. Dennett seocupa principalmente da seleçãode teorias, mas é possível distin-guir outro programa na epistemo-logia evolucionista além deste, ouseja, o que fala de seleção dos me-canismos ou aparatos cognitivos.Nessa linha talvez mais próximados estudos darwinistas originais,a questão não é sobre o que per-mite considerar uma teoria verda-deira, mas acerca dos meios pelosquais são geradas essas crenças eo que nos permitiria confiar nelas:porque os aparatos corresponden-tes foram selecionados pelo meioambiente (Abrantes, 2007, p. 154)

Abrantes aponta como uma crí-tica feita ao programa evolucio-nista em epistemologia a tese de

que o caráter local de toda adap-tação parece implicar uma posi-ção não realista em epistemologia.Dessa maneira fica comprometidaa ideia de verdade ou mesmo desua aproximação, que foi tão culti-vada na história da epistemologia.(Abrantes, 2007, p. 171). Isso podeser uma razão para rejeitar um pro-grama ou para modificar intuiçõesarraigadas, promovendo uma mu-dança nos próprios objetivos da te-oria do conhecimento. Para ele, es-ses problemas do programa podemindicar um sinal de vitalidade, aoinvés de um defeito incontornável.

Como vimos, o tema do natu-ralismo em epistemologia acaboutrazendo questões metafísicas li-gadas a uma concepção de mundoque se pretende derivada do co-nhecimento científico. Essa mesmavinculação se manifesta nos textosde Abrantes acerca da abordagemnaturalista em filosofia da mente.Isso certamente não é de se estra-nhar, uma vez que a discussão so-bre a natureza da mente é uma dasprincipais áreas da ontologia atu-almente. Abrantes se dedicou in-tensamente à pesquisa nesse tema,sendo também um dos principaisdivulgadores no Brasil dos debatesmais importantes nessa área.

Por conta desse trabalho de di-vulgação e esclarecimento, ele pu-blica “Naturalismo em filosofiada mente” em 2004. Para variar,há várias posições diferentes que

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 73-104ISSN: 2317-9570

81

AGNALDO PORTUGAL

se identificam como naturalistasnesse campo. De um lado, há asconcepções fisicalistas, que Abran-tes distingue entre redutivas e nãoredutivas. Ambas rejeitam o dua-lismo de substância de tipo cartesi-ano (e isso seria devido às “evidên-cias empíricas de que não há cova-riância entre o mental e o físico”)e defendem uma dependência domental em relação ao físico. Alémdisso, como outro argumento emseu favor, o fisicalismo defende ofechamento causal do mundo, ouseja, que eventos físicos são cau-sados apenas por eventos físicos,uma vez que esse é um princípiobásico do método científico. Issoimplica rejeitar a noção de “cau-sação descendente” do mental emrelação ao físico e a existência deseres mentais sem um substrato fí-sico.

Por outro lado, o fisicalismo nãoredutivo afirma a dependência domental em relação ao físico semque isso implique uma redução doprimeiro ao segundo. Essa ver-são não redutiva se apresenta emvárias formas, como as de Searle(1997) e Davidson (1991). Umadas formas de fisicalismo não re-dutivo é a que afirma uma relaçãode superveniência entre mente ecorpo, ou seja, de que um eventomental sempre acompanha ou so-brevém a um evento físico, pre-servando o físico como substân-cia única e considerando o men-

tal como propriedade. Para Abran-tes, além de não ser uma posiçãounívoca, o fisicalismo não redutivotem grandes dificuldades para seafirmar como uma posição natu-ralista consistente em filosofia damente (Abrantes, 2004a, p. 20).

Mais complicado ainda é o du-alismo de David Chalmers, querejeita o fisicalismo, mas aindase pretende naturalista porque sepretende compatível com o qua-dro traçado pela ciência contem-porânea e sem invocar as “forçasobscurantismo”. Abrantes observaque há uma ampliação do conceitode natureza nessa proposta e umaconsequente ambiguidade na no-ção de naturalismo. Além disso,normalmente os que adotam posi-ções contrárias ao fisicalismo aca-bam também adotando métodosdiferentes dos científicos em filoso-fia da mente. Em outras palavras,a oposição ao naturalismo ontoló-gico é também uma oposição ao na-turalismo metodológico nessa áreada filosofia (Abrantes, 2004a, p.28). Abrantes critica também tesesantinaturalistas como a de McGinn(1999), segundo as quais há limitesnão acessíveis à nossa compreen-são da relação entre mente e corpo.Para ele, não há como saber se es-ses limites são insuperáveis ou sesão dificuldades que exigem maisesforço de investigação ou mudan-ças conceituais radicais: “Posiçõesmisteristas (...) parecem-me obs-

82 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 73-104ISSN: 2317-9570

ABRANTES, O NATURALISMO E O TEÍSMO

curantistas, por nos fazerem pa-rar prematuramente, se é que al-gum pressuposto epistemológicoou ontológico deva nos fazer pa-rar...” (Abrantes, 2004a, p. 31).

No mesmo ano de “Naturalismoem filosofia da mente”, Abrantespublicava o texto “Metafísica e ci-ência: o caso da filosofia da mente”(2004b), que contém várias ideiasdo anterior, mas parece dar maisênfase ao naturalismo metodoló-gico, ao invés do ontológico, ape-sar do texto se propor a tratar es-pecificamente da relação entre me-tafísica e ciência. Antes de entrarpropriamente no caso da filosofiada mente, o trabalho faz um brevehistórico do modo como aquilo queera tido como metafísica era rejei-tado por correntes filosóficas queviam as ciências empíricas comum papel central na construção denossa compreensão da realidade.No início do século XX, era o empi-rismo lógico que defendia essa po-sição. Contra os empiristas lógicos,Popper defendeu um papel posi-tivo para as crenças metafísicas nahistória da ciência. Abrantes con-corda com essa tese e afirma:

A história da ciência for-nece, de fato, evidênciasde que, em qualquer pe-ríodo, os cientistas admiti-ram, consciente ou inconsci-entemente, explícita ou im-plicitamente, determinadas

“imagens de natureza” quenão podiam ser submetidasdiretamente ao crivo da ex-periência. Tais “imagens” –que eventualmente são suge-ridas pela Metafísica filosó-fica ou originam-se de outrasfontes – funcionam como on-tologias, em geral assistemá-ticas e tácitas, fixando osconstituintes que são consi-derados últimos ou essenci-ais da realidade, suas mo-dalidades de interação, bemcomo os processos fndamen-tais dos quais participam.Essas imagens de naturezafornecem a matéria primapara modelos e metáforas,que são geratizes e elementosconstitutivos das teorias ci-entíficas. As imagens de na-tureza influenciam, por ou-tro lado, as decisões a res-peito da aceitabilidade deexplicações e o desenvolvi-mento de métodos conside-rados adequados à investi-gação, restringindo e orien-tando a atividade científica(Abrantes, 2004b, p. 216)

Trata-se de uma ideia tão impor-tante em sua concepção acerca doassunto, que ela aparece, com ter-mos bastante parecidos em obraspublicadas por volta de uma dé-cada depois (Abrantes 2013, p. 130e Abrantes 2014, p. 9) e que

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 73-104ISSN: 2317-9570

83

AGNALDO PORTUGAL

já estava também presente na pri-meira edição de Imagens de Na-tureza, Imagens de Ciência (2014),publicada em 1988. Trata-se deum rico intercâmbio entre a ativi-dade científica e vários outros mo-dos de gerar concepções sobre omundo e o próprio conhecimento(as “imagens”), que influenciam esão influenciadas pelos resultadosda pesquisa científica. É nesse de-bate que pode ser inserida a pro-posta naturalista para a epistemo-logia que, como já vimos, rejeitao status a priori tradicionalmentedado a essa disciplina, advogandouma continuidade entre a episte-mologia e as ciências naturais.

Mas no programa metodológiconaturalista há também quem pro-ponha uma naturalização da me-tafísica. O já mencionado H.Kornblith, por exemplo, propõeuma metafísica naturalista quetem como tarefa extrair da ciênciacontemporânea implicações meta-físicas de modo que não deixe es-paço para outras vias de elaboraçãodessas concepções gerais acerca domundo. Apesar dessa propostadentro do naturalismo, Abrantesconclui em outro sentido: “Pode-sesustentar, entretanto, que o natu-ralismo é ontologicamente neutro,comprometendo-se somente comuma particular metodologia, a das

Ciências. Ou seja, o naturalismopressuporia, nessa leitura, um mo-nismo metodológico e não um mo-nismo ontológico (como o fisica-lismo)” (Abrantes, 2004b, p. 221).

O monismo metodológico é umatese bem mais modesta que o on-tológico, mas ele ainda traz paraa filosofia da mente a questão desaber se haveria espaço para umapesquisa nessa área da metafísicacontemporânea que seja relativa-mente independente das ciênciasnaturais e, em vista disso, como fi-caria a interação entre metafísicae ciência nesse campo da filosofia.De um lado, no âmbito naturalista,há os que propõem um reducio-nismo do mental ao físico – teseque já vimos sob o título de “re-ducionismo fisicalista”. Os pres-supostos dessa tese são aceitáveispara a maioria dos naturalistas: 1)não há propriedades mentais a nãoser como instâncias de proprieda-des físicas; 2) o mundo físico écausalmente fechado; 3) um estadofísico não pode ser causado pormais de um tipo de estado (físicoe mental, por exemplo), além datese de que só existe o que tem po-der causal. O reducionismo fisi-calista tem, porém, consequênciasdrásticas: além de implicações sé-rias para a epistemologia e a ética,não haveria bases para a Psicologia

3 Na introdução que fez à tradução do famoso artigo de Thomas Nagel (What’s like to be a bat?), Abrantes (2005)aponta outros limites do reducionismo fisicalista em filosofia da mente, especialmente a dificuldade de se explicar

84 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 73-104ISSN: 2317-9570

ABRANTES, O NATURALISMO E O TEÍSMO

como ciência teórica, dada a rejei-ção de causação mental3 (Abrantes,2004b, p. 225).

Por outro lado, a metafísica na-turalista se vê como continuidadedo trabalho científico, apenas comum grau mais elevado de abstra-ção. Um problema para essa me-tafísica é a diversidade de compre-ensão entre os metafísicos natura-listas acerca de quais são os objetosda especulação metafísica em vistada pesquisa científica. SegundoAbrantes, isso mostra uma relativaautonomia dessa metafísica em re-lação às ciências naturais, mas nãoa ponto de usar “as velhas cate-gorias aristotélicas ou tomistas!”(Abrantes, 2004b, p. 227). Essaafirmação remete a uma nota naqual Abrantes esclarece sua rejei-ção a esse tipo de trabalho. Aocomentar a tese (Artigas & San-guineti, 1984) de que a filosofiada natureza se distingue das ciên-cias experimentais porque estas fa-lam das causas próximas dos even-tos naturais, enquanto a filosofiatrata das causas primeiras, Abran-tes pergunta: “O que este autornão aborda é a questão da legitimi-dade dessa última investigação: deque métodos a ‘Filosofia da Natu-reza’ lançaria mão para descobrir(ou postular) tais ‘causas primei-ras’?” (Abrantes, 2004b, p. 239).

A pergunta sobre a legitimidade

ou mesmo a existência de métodosfilosóficos independentes dos cien-tíficos já havia sido feita em outrostextos de Abrantes, tal a importân-cia dessa tese para o naturalismo.Conforme já vimos, o naturalismometodológico entende haver umacontinuidade entre a filosofia e asciências naturais em termos de mé-todos empregados, pois métodosespeculativos ocorrem também nasciências empíricas e métodos em-píricos podem ser usados na pes-quisa filosófica. Por outro lado,ele parece reconhecer que, ape-sar da possibilidade de converterteses metafísicas em regras meto-dológicas, isso não elimina a ne-cessidade de adotar compromissosmetafísicos por parte dos filóso-fos naturalistas (Abrantes, 2004b,p. 231). Um exemplo particular-mente importante da história daciência mostra a vinculação forteentre metodologia e conhecimentosubstantivo: o surgimento da novaimagem mecanicista de natureza,que se consolidou a partir do sé-culo XVII. Ao eliminar as causas fi-nais e a distinção entre causa in-terna e externa, o mecanicismo foium requisito para a importânciadada à experimentação no novométodo científico (Abrantes, 2013,p. 138).

A referência à história da ciên-cia é muito importante nas ideias

a consciência considerando-se as restrições da metafísica fisicalista.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 73-104ISSN: 2317-9570

85

AGNALDO PORTUGAL

de Abrantes acerca do naturalismometodológico e seus pressupostosontológicos. Ela terá um papel im-portante na análise que será feitaa seguir, levando-se em conta nãoapenas a bibliografia em filosofiada mente, epistemologia e filoso-fia da mente, mas também algo deum tema que não se fez claramentepresente em seu trabalho, mas queo rondou de algum modo: a filoso-fia da religião.

Naturalismo, ciências naturais eteísmo

Em vista do exposto acima, po-demos resumir do seguinte modoas teses acerca do naturalismo ex-postas por Abrantes:

1. A filosofia atual deve levar emconta em suas teorias conheci-mentos empíricos das ciências;

2. A filosofia não dispõe de méto-dos especiais, que se distingamessencialmente dos científicos;

3. Os filósofos podem contribuirpouco ou nada com nossasimagens de natureza;

4. A aplicação de um método ti-picamente científico como o deDarwin na Biologia pode sertrazida para a epistemologia ea metafísica;

5. Além disso, o naturalismoepistemológico darwinista vairejeitar explicações de tipo

providencialista, pois estas co-metem petição de princípio ecomplexificam a ontologia, oque é algo a ser evitado, comomostram a história da ciência eda filosofia;

6. O naturalismo ontológico res-tringe a realidade ao que podeser estudado cientificamente;

7. A natureza não é guiada poruma mente incorpórea inten-cional, pois esse é um pressu-posto científico adotado na Bi-ologia e porque não se obser-vam mentes independentes decérebros;

8. Em vista dos problemas ge-rados pelo fisicalismo redu-tivo em filosofia da mente, épossível que uma boa alterna-tiva seja a de se pensar que onaturalismo é ontologicamenteneutro.

Vou comentar essas teses le-vando em conta algumas relaçõesinternas entre as ideias apresenta-das, o debate em filosofia da re-ligião e elementos da história dopensamento filosófico e científico.

O uso de conhecimento cientí-fico em questões filosóficas não énenhuma novidade na filosofia. É oque fazem, por exemplo, Tomás deAquino, no século XIII, nas cincovias para a existência de Deus eWilliam Paley, no início do séculoXIX, no seu argumento teleológico

86 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 73-104ISSN: 2317-9570

ABRANTES, O NATURALISMO E O TEÍSMO

em favor do teísmo, com respeitoao respectivo conhecimento cientí-fico de suas épocas. Nesse sentido,ambos os autores eram naturalistasdo ponto de vista metodológico. Adiferença é que o que eles conside-ravam ciência em seu tempo já nãoé mais reconhecido como tal nosdias de hoje. Ocorre, porém, queesse é um problema permanentena metodologia naturalista. Maisdo que um problema, trata-se an-tes de um desafio para a filosofia,o de se colocar em sintonia com oconhecimento científico que se atu-aliza sempre.

Outra coisa, porém, é dizer queos únicos métodos que se justifi-cam são os das ciências empíri-cas. Trata-se de uma tese que nãotem como ser testada empirica-mente, que não é científica nessesentido. Como se vai justificar ci-entificamente o método científico?Essa justificação é normalmentefeita com base em critérios a prioriacerca daquilo que é desejável noconhecimento, o que é tipicamenteuma questão filosófica e não cien-tífica. Ao defender o uso de mé-todos científicos em filosofia e nãoaceitar outros, o naturalismo usao sucesso empiricamente consta-tável das ciências na previsão, en-tendimento e controle do mundonatural. Mas pode-se esperar que

a filosofia vá ter esses mesmos re-sultados? Não há várias atividadesdiferentes acontecendo no empre-endimento chamado “ciências na-turais”? Para essas atividades to-das haveria só um método? E essasatividades todas podem ser reali-zadas na filosofia? Por uma razãoempírica (a constatação histórica,no caso), a resposta mais corretapara essas questões é negativa. Afilosofia não tem os mesmos resul-tados da tecnociência, porque seutrabalho é de outra natureza. Asciências são um conjunto de ativi-dades de observação, elaboração eexecução de experimentos, desen-volvimento e calibração de equipa-mentos, cálculo, modelagem ma-temática, entre outras4. Esse con-junto é certamente bem diferentedo que se tem em filosofia e issoque se tem em filosofia se deve aofato de que é também diferente oque se faz nela em relação ao quese faz em ciências empíricas.

Dizer que os métodos emprega-dos na Filosofia são também em-pregados nas ciências empíricastampouco parece argumento paradizer que a filosofia não tem ummétodo próprio que a distingue.A Filosofia dispõe dos bons e ve-lhos recursos de análise conceituale especulação racional, que devemrespeitar critérios como consistên-

4 Para uma descrição da multiplicidade de atividades desenvolvidas no que chamamos de ciências empíricas euma defesa da relativa autonomia técnica e metodológica dessas diferentes atividades, ver Hacking (1983).

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 73-104ISSN: 2317-9570

87

AGNALDO PORTUGAL

cia lógica, coerência, simplicidadee inteligibilidade. O conhecimentocientífico entra com parte dos con-ceitos a ser analisados e que ser-vem para analisar outros concei-tos, mas há outras fontes tão legí-timas quanto o conhecimento ci-entífico, como a própria históriada filosofia (que Abrantes empregaamplamente) ou mesmo a históriade outros elementos da cultura hu-mana, como a religião. Por quepensar que só os métodos em ci-ências naturais podem conferir ga-nho cognitivo? A Matemática, queé pura análise conceitual, não é umexemplo contrário a isso? A Fi-losofia não consegue demonstrarsuas teses com a exatidão e neces-sidade da Matemática, nem dispõedo teste empírico para avaliar suasteses, pois as próprias noções deexperiência e de teste podem serpostas em discussão pela Filoso-fia. Afirmar que há elementos naatividade científica que estão pre-sentes na atividade filosófica nãoé dizer que elas têm o mesmo mé-todo, ou que o modo de fazer fi-losofia deva ser o das ciências na-turais. Uma vez que estas surgi-ram muito depois da Filosofia, nãoé de se estranhar que tenham ad-quirido elementos do modo destatrabalhar, mas isso não significaque elas sejam um substituto da Fi-losofia, pois há coisas que esta fazque as ciências não fazem e coisasque estas fazem que a Filosofia não

faz. As ciências podem bem usarrecursos metodológicos emprega-dos na Filosofia, mas uma teorianão vai ser considerada científicase não for testável empiricamente eisso não se exige de uma teoria filo-sófica. Por outro lado, a atividadecientífica pressupõe conceitos e va-lores que não são dados pela pró-pria ciência, pois ela precisa delespara começar a funcionar. Que de-pois esses conceitos e valores vãosendo aperfeiçoados pelo própriotrabalho científico é apenas partedo diálogo entre Filosofia e ciên-cias naturais, tal como se dá en-tre Matemática e ciências naturais,mas não significa que a Filosofiaseja uma ciência natural, tal comonão o é a Matemática. As ciênciaspodem bem usar os métodos da fi-losofia, mas ela não os discute, nãoreflete sobre eles, pois nesse casoo cientista está deixando de fazerciência.

O exemplo da epistemologia se-lecionista como modelo de traba-lho em filosofia naturalista indicavários elementos. Em primeiro lu-gar, do ponto de vista das pergun-tas que são feitas e do modo detentar respondê-las não há nada decriticável, afinal, as questões filosó-ficas são tão difíceis e multifaceta-das que toda ajuda é bem-vinda. Aepistemologia selecionista mostravários aspectos do conhecimentoque talvez outras abordagens nãosejam capaz de fazê-lo. No en-

88 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 73-104ISSN: 2317-9570

ABRANTES, O NATURALISMO E O TEÍSMO

tanto, os argumentos apresentadoscontra os outros dois tipos de epis-temologia (providencialista e ins-trucionista) parecem muito proble-máticos, ou seja, a de que cometempetição de princípio ou que recor-rem a uma ontologia mais com-plexa, com um maior número deentidades e propriedades que serianecessário postular.

Como vimos na seção anterior,Abrantes fala de duas variantesda falácia de petição de princípio:pressupor na explicação um sis-tema com igual ou maior comple-xidade adaptativa que o que vai serexplicado e invocar algum conheci-mento prévio cuja origem não sejaelucidada para explicar as adap-tações biológicas. Não me pareceque nenhuma das duas variantesseja petição de princípio a rigor. Aprimeira de fato parece defeituosa,pois o explanans deve ser mais in-teligível que o explanandum e umelemento característico da inteli-gibilidade é a simplicidade. Note,porém, que o princípio fala de “sis-tema com maior ou igual comple-xidade adaptativa”, o que se referea um organismo biológico. Isso nãoinclui aquilo que não é biológicoou natural. Em outras palavras,se a explicação não invoca um or-ganismo biológico, não há qual-quer termo de comparação parase avaliar a simplicidade relativa.Além disso, quando se explica –de modo inteiramente legítimo – a

ocorrência de fumaça pela existên-cia de fogo, não parece fazer sen-tido avaliar explanans e explanan-dum comparativamente quanto àsimplicidade. Por que razão o fogoseria mais simples que a fumaçaem termos explicativos ? Em todocaso, não há no caso da explicaçãosobrenaturalista nenhuma petiçãode princípio, pois a mente pressu-posta para se explicar a existênciade uma ordem fundamental quevai dar em organismos com men-tes não é ela mesma um organismofísico. A segunda variante, que nãoaceita uma explicação que não sejaexplicada, tampouco parece ser umcaso de petição de princípio. Alémdisso, ela comete a falácia comple-tista, pois o fato de x explicar y nãotem de pressupor que se tenha ex-plicação para x, ou uma explicaçãocompleta para toda a série de ex-plicações. Se fosse assim, nada oupelo menos muito pouca coisa seriaexplicado. É suficiente dizer que oque explica a fumaça naquela cir-cunstância é a presença de fogo,e isso não requer que eu expliquepor que há fogo naquela situação.

A ideia de evitar petição de prin-cípio no exemplo da explicação daaprendizagem com base em gera-dores que são meros autômatos éa de evitar que o explanans seja in-tencional ou inteligente para se ex-plicar algo dotado de intenção einteligência. Como se explica a in-teligência e a intenção? Por algo

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 73-104ISSN: 2317-9570

89

AGNALDO PORTUGAL

que não é intencional nem inteli-gente. Essa, sem dúvida, é umamaneira de se evitar a petição deprincípio. Mas há outras. O quese requer para evitar essa faláciaé que a conclusão não esteja in-cluída na premissa. Não há issona explicação da inteligência hu-mana como sendo imagem da inte-ligência divina, sendo criada pormeio dos mecanismos materiaisda seleção natural, pois o que sepressupõe na premissa (Deus e suaação) não está conclusão – a inte-ligência humana. É claro que sepode criticar essa explicação poroutras razões – por exemplo, Deusé mais complexo que o ser humanoe, portanto, o explanans é menossimples que o explanandum –, masnão se trata de um caso de peti-ção de princípio. De fato, não hápetição de princípio na explica-ção darwinista do conhecimento,mas isso não é o que a distingueda explicação teísta. O que a dis-tingue é que ela se dá dentro doslimites do método científico, po-dendo ser testada empiricamente eé capaz de unificar várias áreas depesquisa em ciências naturais (em-briologia, paleontologia, botânica,zoologia), enquanto a explicaçãoteísta seria apenas um princípiometafísico de segunda ordem, quetem a ver com problemas como aexistência mesma de um universofísico, o fato de que esse universoé cognoscível e a confiabilidade do

aparato cognitivo humano. Con-tudo, a comparação não é entre ateoria científica da evolução bio-lógica por seleção natural com oteísmo, mas entre este e o natura-lismo e aqui chegamos a um pontoimportante deste artigo, para o quepasso a utilizar uma bibliografiamais ligada à filosofia da religião.

O exemplo do método empre-gado na epistemologia selecionistacomo forma de naturalismo meto-dológico mostra um elemento fre-quentemente apontado pelo traba-lho de Abrantes: a vinculação entreo método naturalista e seus pressu-postos ontológicos. O naturalismoontológico restringe a realidade aoque pode ser estudado cientifica-mente. No entanto, como afirmaMichael Rea (2002), o naturalismonão pode ser formulado como umatese, pois cai em um dilema nessecaso:

So those who want to for-mulate naturalism as a the-sis face a dilemma. On theone hand, if they formulateit as a thesis that cannot beoverturned by scientific in-vestigation, then naturalismturns out to be precisely thesort of thesis that natura-lists are unwilling to accept.In the worst cases such for-mulations are either vacu-ous or self-defeating. On theother hand, if they formulate

90 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 73-104ISSN: 2317-9570

ABRANTES, O NATURALISMO E O TEÍSMO

it as a thesis that could beoverturned by scientific in-vestigation, then (obviouslyenough) naturalism standsat the mercy of science (Rea,2002, 52-3).

Em outras palavras, ou o natu-ralismo como tese metafísica nãopode ser derrubado pela ciência(e assim se torna anticientífico, ocontrário do que ele pretende ser)ou ele fica dependendo da ciên-cia e assim não tem como assumirnenhuma tese substantiva sobre oque é a realidade, uma vez que apesquisa científica pode vir a mu-dar suas ideias a respeito. Isso valeinclusive para o que é “sobrenatu-ral”. Por essa razão, Rea sugere quea melhor maneira de entender onaturalismo é como um programade pesquisa, ou seja, um conjuntode disposições acerca de como con-duzir uma pesquisa (Rea, 2002, p.67). Embora também nesse sentidoo naturalismo fique à mercê da ci-ência, podemos dizer que, dentrodo que se vem constituindo comociências naturais desde o séculoXVI, o programa de pesquisa na-turalista se distingue do sobrena-turalismo e ao intuicionismo, porexemplo, pois rejeita tanto a ex-periência religiosa (e as tradiçõesde pensamento teológico que seformaram a partir dela) quanto aintuição como fontes de informa-ção. Assim, podemos dizer que, ao

menos contemporaneamente, o na-turalismo pode ser definido comoum programa de pesquisa que re-jeita fontes de conhecimento quenão a pesquisa científica. Isso ex-plica bem a profusão de entendi-mentos de naturalismo expressano trabalho de Abrantes que, nãoà toa, também usou a expressão“programa de pesquisa” para fa-lar do naturalismo.

Conforme indicado acima, po-rém, o naturalismo tem como umde seus princípios metafísicos emetodológicos unificadores a ideiade não recorrer à experiência reli-giosa ou à teologia como fonte deinformação sobre o que há e, por-tanto, não aceitar a existência deentidades como as que postula ametafísca teísta e, especialmente,o próprio conceito de Deus comoparte de uma explicação filosó-fica. Nem mesmo a rejeição dodualismo mente-corpo seria umamarca clara do naturalismo, poishá propostas nesse sentido que sedizem naturalistas, como a de Le-vine (2016). Os dualistas enten-dem que a mente é um ingredientebásico do mundo e que não podeser construído a partir do não men-tal, tal como também propõe Tho-mas Nagel, autor do artigo para oqual Abrantes escreveu uma intro-dução (2005). Os teístas tendem aser dualistas, mas nem todo dua-lista é teísta. Para o dualista natu-ralista, segundo Levine, a forte cor-

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 73-104ISSN: 2317-9570

91

AGNALDO PORTUGAL

relação entre estados físicos e esta-dos mentais é um fato bruto na-tural, devido a alguma lei psicofí-sica que ainda não foi devidamenteenunciada. Não se trata de algoque possa ser explicado em termosde um nível mais básico de análise(Levine, 2016, p. 217). O teísmodefende que há um nível mais bá-sico de explicação das leis naturais,que seria o da ação intencional deDeus. Naturalistas e teístas dis-cordam nesse sentido fundamentalquanto à explicação do mental. Osnaturalistas param na natureza eos teístas, em Deus. Em outras pa-lavras, se há um modo mais claroe unificador de entender o natu-ralismo metafísico é em contrastecom o teísmo.

Há vários problemas na hipó-tese metafísica teísta. Justificar acrença na existência de Deus é umdeles, outro problema é argumen-tar por que é mais adequado pa-rar em Deus (e não na natureza fí-sica) a cadeia explicativa sobre oque há. Uma vez que este artigoé sobre o naturalismo, não pre-tendo falar sobre os problemas datese com a qual ele se contrasta,mas a breve lista acima parece sersuficiente para rejeitar a tese deque a metafísica teísta seja uma“resposta fácil”. No restante destetexto pretendo apresentar um ar-gumento importante contra o na-turalismo metafísico na filosofia dareligião atual e defender que o me-

lhor do naturalismo estaria na pos-sibilidade levantada por Abrantesde um naturalismo metodológiconeutro, usando a história da ciên-cia como um dos argumentos.

A filosofia analítica da religiãoé um movimento filosófico rela-tivamente recente, tendo surgidonos meios acadêmicos de língua in-glesa por volta dos anos 1950/60,como reação à tese do empirismológico de que a linguagem religi-osa não tem significado. Um dosexpoentes desse movimento é o fi-lósofo norte-americano Alvin Plan-tinga, que deu também significati-vas contribuições em epistemolo-gia, lógica modal e filosofia da ló-gica. No capítulo final de um deseus livros de epistemologia (War-rant and Proper Function – 1993),Plantinga apresenta a primeira ver-são do que ficou conhecido como oargumento evolutivo contra o na-turalismo metafísico. Um longodebate se seguiu até que ele apre-sentasse aquela que parece ser aversão mais acabada em Where theConflict Really Lies – Science Reli-gion and Naturalism (2011). É nestaversão que me baseio na exposiçãoque se segue.

Sua crítica se baseia, entre ou-tros aspectos, no que ele chama de“dúvida de Darwin”, expressa poreste em uma carta:

With me the horrid doubtalways arises whether the

92 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 73-104ISSN: 2317-9570

ABRANTES, O NATURALISMO E O TEÍSMO

convictions of man’s mind,which has been developedfrom the mind of the loweranimals, are of any value orare all trustworthy. Wouldany one trust in the convic-tions of a monkey’s mind,if there are any convictionsin such a mind? (CharlesDarwin, 1887, pp. 315-16)

O argumento de Plantinga contrao naturalismo se concentra nas fa-culdades mentais humanas e suaconfiabilidade quanto a produzirconhecimento. Essa confiabilidadeé pressuposta pelo próprio natu-ralismo como tese metafísica, poisse nossa percepção e nossa capaci-dade de fazer inferências indutivase dedutivas não fossem confiáveis,o próprio naturalismo como expli-cação teórica ficaria inviabilizadoe a crença nela seria irracional. Adúvida de Darwin expressa exata-mente esta questão: se há apenasaquilo que as ciências naturais atu-ais dizem que existe, então por queconfiar que nossas faculdades nosdão conhecimento confiável?

A questão acima fica mais clara,se levarmos em conta outro textomuito citado por Plantinga:

Boiled down to essentials,a nervous system enablesthe organism to succeed inthe four F’s: feeding, flee-ting, fighting and reprodu-

cing. The principle choreof nervous systems is to getthe body parts where theyshould be in order that theorganism may survive... Im-provements in sensorimotorcontrol confer an evolutio-nary advantage: a fancierstyle of representing is ad-vantageous so long as it isgeared to the organism’s wayof life and enhances the or-ganism’s chances of survival.Truth, whatever that is, de-finitely takes the hindmost.(Patricia Churchland, 1987,p. 548).

Essa citação ilustra a explica-ção darwinista para o surgimentoe desenvolvimento do aparatocognitivo dos animais em geral,incluindo-se os seres humanos ob-viamente. Do ponto de vista es-tritamente biológico, nossas facul-dades mentais se desenvolvem demodo que a espécie possa se adap-tar ao meio na luta por sobrevi-ver e deixar descendentes. Nesseprocesso, o mais importante é atin-gir esses fins práticos e não o obje-tivo de conhecer a verdade que, “oque quer que seja, fica em últimoplano”. Com base nessa interpreta-ção da explicação darwinista parao funcionamento de nossos apara-tos cognitivos, podemos dizer queestes podem até nos permitir obtera verdade sobre o mundo, mas isso

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 73-104ISSN: 2317-9570

93

AGNALDO PORTUGAL

pode ser mero acaso, algo como umsubproduto não proposital, poisnão há uma força intencional gui-ando o processo evolutivo, afirmao naturalismo metafísico. E o pro-blema está exatamente em poderser mera casualidade o fato de quepodemos conhecer a verdade pormeio de nosso aparato cognitivo.

Plantinga não nega que a adap-tação vai ser mais provável se tiver-mos acesso à verdade sobre o meioambiente em um sentido corres-pondentista e realista, mas a ques-tão não é essa. A questão é que onaturalismo metafísico nos deixasem nenhuma razão para avaliarse é realmente provável que nossasfaculdades cognitivas vão mesmoser confiáveis em nos dar a ver-dade como um dos resultados desua vantagem adaptativa. Se te-nho uma doença grave e creio quevou me curar, pois isso me dá maisconforto, não me importando emsaber o que as informações cientí-ficas disponíveis indiquem sobre omeu caso, minha crença pode atéser verdadeira, mas isso será mera-mente casual e, portanto, não estousendo epistemologicamente racio-nal em aceitá-la. É por essa razãoque ele afirma que a probabilidadede que nossas faculdades cogniti-vas sejam confiáveis (R) é baixa emvista da conjunção entre o natura-lismo e a teoria científica da evo-lução (N&E), ou seja, P(R/N&E) ébaixa (Plantinga, 2011, p. 317).

Essa primeira premissa é funda-mental no argumento de Plantingae é importante considerar que elanão se refere apenas à explicaçãodarwinista do surgimento e evolu-ção do aparato cognitivo humano(E), mas à conjunção desta como naturalismo metafísico (N), queafirma que não há nada além doque as ciências naturais afirmamsobre o mundo, especialmente umDeus que age intencionalmente nomundo por meio de processos aserem descritos pelas ciências na-turais, tal como postulado peloteísmo. Plantinga não vê nada deerrado na explicação científica pro-posta por Darwin e depois comple-tada pela genética de Mendel (ummonge agostiniano) quanto à he-reditariedade de características. Oproblema para Plantinga está nonaturalismo metafísico não acres-centar nada à explicação darwi-nista, deixando-nos sem razão paraconfiar nos resultados do aparatocognitivo.

Se isso é de fato assim, então aconfiabilidade de nossas faculda-des cognitivas fica sem respaldo.Se não podemos confiar em nossasfaculdades cognitivas, então nãopodemos pensar que qualquer teo-ria que elas elaborem, incluindo odarwinismo, seja verdadeira. Piorainda, o naturalista não tem comofundamentar nem sua crença deque o naturalismo metafísico é ver-dadeiro, tirando, por assim dizer, o

94 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 73-104ISSN: 2317-9570

ABRANTES, O NATURALISMO E O TEÍSMO

chão debaixo de seus próprios pés.E isso, segundo Plantinga, tornairremediavelmente irracional acei-tar a conjunção da teoria cientí-fica darwinista da evolução com onaturalismo metafísico (Plantinga,2011, p. 344-45). Plantinga de-fende, então, que há um conflitoprofundo entre o naturalismo me-tafísico nesse sentido excludente eas ciências naturais, apesar do pri-meiro se pretender uma continua-ção destas.

Como vimos, dizer que é óbvioque crenças verdadeiras são prova-velmente muito mais adaptativasque crenças falsas não é uma ob-jeção contra seu argumento, dizPlantinga (2011, p. 335 ss.). Aquestão não é acerca da confiabi-lidade de nossas faculdades cog-nitivas em vista de como as coisassão, mas de como seriam se fosseverdadeira a conjunção N&E. Emtodo caso, Thomas Crisp propõeuma versão enfraquecida do argu-mento de Plantinga para proporque, embora o naturalismo e teo-ria evolutiva ainda possam servirpara explicar a cognição humanaem atividades práticas imediatasda vida cotidiana, ele não conse-gue sustentar a confiabilidade douso dessas faculdades para assun-tos abstratos e distantes da utili-dade prática, como os que o natu-ralismo metafísico pretende lidar.Desse modo, teríamos o mesmoresultado do argumento de Plan-

tinga: o curso mais racional a sertomado pelo naturalista metafísicoé o de dúvida sistemática em re-lação ao resultado de seu própriotrabalho (Crisp, 2016, p. 73). As-sim, parece haver boas razões paradeixarmos de lado o naturalismometafísico e ficarmos só com o na-turalismo metodológico, no sen-tido apontado por Abrantes de serneutro em relação a qualquer pres-suposto ontológico, inclusive um“fisicalismo mínimo” que excluíssea existência de Deus.

A questão da ligação entre o na-turalismo metodológico e o meta-físico aparece novamente no textode Abrantes que mais explicita-mente trata da relação entre reli-gião e ciência, que está por trás darelação entre as teorias filosóficasdo teísmo e do naturalismo metafí-sico: “Criacionismo e Darwinismoconfrontam-se nos tribunais ... darazão e do direito” (2006), escritoem coautoria com Fábio Almeida.O artigo fala do problema judicialnos Estados Unidos que foi geradoem torno do ensino da evoluçãopor seleção natural darwinista nas-cido da contestação por parte degrupos fundamentalistas cristãos,que reivindicavam que o criacio-nismo ou o design inteligente fosseensinado nas aulas de ciência. Oproblema foi objeto de decisõesnos tribunais, apoiadas em pare-ceres de filósofos da ciência acercada diferença entre o darwinismo

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 73-104ISSN: 2317-9570

95

AGNALDO PORTUGAL

e o criacionismo. Corretamente,Michael Ruse, importante filósofoda biologia canadense, defendeuque, enquanto o darwinismo é umateoria científica, o criacionismo éuma doutrina de origem religiosa.Ruse defende um naturalismo ape-nas metodológico, neutro em ter-mos metafísicos. Para ele, é pos-sível distinguir entre naturalismometodológico e naturalismo onto-lógico. O primeiro põe ênfase nabusca de compreensão dos fatosna ciência por meio de leis natu-rais, mas não nega a possibilidadeque haja alguma realidade alémdaquela acessível ao estudo cien-tífico (Ruse, 2000, p. 99).

Abrantes e Almeida discordamda posição de Ruse:

De toda forma, essa estraté-gia de se refugiar na meto-dologia não agrada aos rea-listas científicos, que preten-dem tomar as teorias cien-tíficas como uma base parase construir uma imagemampla de natureza. Alémdisso, nós, autores deste ar-tigo, acreditamos que umateoria sofisticada da racio-nalidade científica não deveisolar as questões de método,pois essas relacionam-se demodo complexo com questõesaxiológicas e com questõessubstantivas (factuais, teóri-cas e metafísicas). (Abrantes

& Almeida, 2006, p. 389)

Além dessas questões meta-metodológicas, dois outros argu-mentos são apresentados contra asaída de separar naturalismo me-todológico e metafísico: o apelo acausas sobrenaturais tende a desis-timular a atividade científica e a re-jeição a petições de princípio, queestá embutida na negação desseapelo sobrenaturalista (Abrantes &Almeida, 2006, p. 390). O que afir-mei acima acerca de uma supostapetição de princípio em explica-ções metafísicas sobrenaturalistasme parece suficiente para rejeitaro argumento da necessidade de seacrescentar o naturalismo metafí-sico ao metodológico. Além disso,o fato de que questões de métodosão realmente muito relacionadasa questões metafísicas não significaque o naturalismo metafísico seja amelhor teoria filosófica para apoiara atividade em ciências naturaisem termos últimos. Levar em contaos resultados da ciência na filoso-fia não quer dizer considerar ape-nas esses resultados, pois isso seriarestringir demais a atividade filo-sófica, que pode e deve levar emconta pelo menos o que outros fi-lósofos afirmam – como exempli-fica a própria obra de Abrantes.Além disso, por que a filosofia de-veria se submeter aos mesmos li-mites das ciências naturais se elanão é uma ciência natural? Por ou-

96 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 73-104ISSN: 2317-9570

ABRANTES, O NATURALISMO E O TEÍSMO

tro lado, a vacuidade conceitual donaturalismo metafísico e o fato deque ele não acrescenta nada à teo-ria científica do darwinismo levama problemas para essa concepçãoque são muito fortes. Isso, sem fa-lar das enormes dificuldades queo naturalismo metafísico de tipofisicalista (supondo que ele tenhaalgum conteúdo) tem para expli-car o fenômeno da consciência e osvalores morais.

Penso, portanto, que não sãoboas as razões para rejeitar a tesede um naturalismo metodológicoapenas, sem ligá-lo a um compo-nente metafísico excludente. Nestaparte final, proponho-me falar umpouco mais sobre essa ideia e o quea credencia como a melhor opçãoem vista da contribuição de Abran-tes para a Filosofia.

Em Defesa do Naturalismo Meto-dológico Neutro

O naturalismo metodológico, talcomo eu o entendo aqui, tem di-retivas diferentes para o trabalhoem Filosofia e em ciências naturais.No caso da Filosofia, é a propostade se levarem em conta os conhe-cimentos obtidos nas ciências, masnão apenas estes. No caso das ci-ências, trata-se de desenvolver essaatividade dentro dos limites do que

pode ser explicado em termos deleis naturais ou de modelos uni-ficadores, frequentemente formaisou matemáticos. Por um lado,essa compreensão do naturalismometodológico não exclui o teísmocomo tese metafísica, pois levarem conta os conhecimentos obti-dos nas ciências não implica ex-cluir outras fontes de crença. Obvi-amente, como toda tese filosófica,o teísmo será submetido aos rigo-res da argumentação nessa área,mas isso não é próprio apenas dele.Filósofos teístas como os já cita-dos Tomás de Aquino e WilliamPaley usaram o naturalismo meto-dológico nesse sentido não exclu-dente, assim como o fazem atual-mente Alvin Plantinga e RichardSwinburne, entre tantos outros. Ofato de defenderem o teísmo comotese metafísica não os exclui dalista de pessoas bem informadas eatualizadas5. O fato do teísmo tersurgido bem antes das ciências na-turais modernas não o torna umatese obsoleta e medieval. Talvez,como propõe Plantinga (2011), ocontrário seja o mais provável fi-losoficamente: que o melhor fun-damento metafísico para as ciên-cias naturais atuais seja o teísmo enão o naturalismo metafísico, masnão precisamos entrar nesta ques-

5 Esta famosa citação de Thomas Nagel vai até mais longe, falando não só do teísmo filosófico, mas da crençareligiosa que o inspira: “I want atheism to be true and am made uneasy by the fact that some of the most intelligentand well-informed people I know are religious believers” (Nagel, 1997, pp. 130-1).

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 73-104ISSN: 2317-9570

97

AGNALDO PORTUGAL

tão aqui. Em outras palavras, o quejustificaria a rejeição da propostade Artigas & Sanguineti (1984), doponto de vista do naturalismo me-todológico, não seria o fato de usarformas de argumentação ou tesesaristotélico-tomistas, mas, se essefosse o caso, de estar desatualizadaem relação ao conhecimento cien-tífico atual acerca da natureza.

Por outro lado, o naturalismometodológico exige que se faça ci-ência sobre a realidade física den-tro dos limites do que pode ser ex-plicado em termos de leis naturais.Isso também não exclui o teísmocomo tese metafísica de fundo, ouseja, não há nada que impeça umcientista de ser teísta em termosmetafísicos. Na verdade, há vá-rios importantes exemplos na his-tória de cientistas de primeira li-nha que eram também teístas: Co-pérnico, Galileu, Kepler, Newton(ou seja, todos os grandes nomesda revolução científica moderna),sem falar de Mendel, Faraday eMaxwell. E mesmo Darwin, queteria se declarado agnóstico pormotivos pessoais, não parecia verincompatibilidade entre a explica-ção científica que ele propunha ea tese metafísica de origem reli-giosa do teísmo6. Não nego quehouve oposição de muitos no meio

eclesiástico contra a teoria da evo-lução darwinista, e muito menosque houve episódios lamentáveisde intolerância religiosa contra ci-entistas e filósofos, como os casosde Giordano Bruno e Galileu. Es-tou falando apenas que o natura-lismo metodológico em ciência nãoexige a negação do teísmo, tendoem vista não só os enormes pro-blemas do naturalismo metafísico,mas também a própria história daciência.

Historicamente, aliás, como noslembra Hans Halvorson (2016) onaturalismo metodológico na ciên-cia surgiu dentro de um contextoteísta na revolução científica dosséculos XVI e XVII. Os fundado-res das ciências naturais modernaseram teístas e queriam encontrarna natureza o plano do seu Cria-dor. É por isso que se concentra-ram somente na natureza em suaspesquisas: porque a criação já erasuposta como pano de fundo, oCriador não precisava ser parte dateoria. Uma explicação científicabusca descrever fenômenos em ter-mos de leis naturais. Um teístadeve ser um naturalista metodoló-gico porque ele propõe que Deusnão está submetido às leis natu-rais e que estas não são metafisica-mente necessárias, ou seja, elas po-

6 A esse respeito, é eloquente a frase final do último parágrafo de A Origem das Espécies em sua segundaedição: “I should infer from analogy that probably all the organic beings which have ever lived on this earth havedescended from some one primordial form, into which life was first breathed by the Creator” (Darwin, 1860, p.428).

98 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 73-104ISSN: 2317-9570

ABRANTES, O NATURALISMO E O TEÍSMO

dem mudar, dependendo da von-tade divina e essa é mais uma razãopara se investigar empiricamentecom rigor e atenção a natureza. SeDeus não está conectado por meiode leis naturais a outros fatores nasexplicações, então não há por quemencioná-Lo em uma boa teoria ci-entífica. E essa é uma razão para oteísta ser um naturalista metodoló-gico. Uma outra maneira de enten-der as ciências naturais é como ati-vidade que visa construir modelosmatemáticos para representar seusobjetos de estudo. Para o teísta, ofato de que é possível representara realidade física por meio de mo-delos matemáticos se deve a que ouniverso é criação de uma menteincorpórea, ou seja, Deus o criousegundo um plano e é por ser umproduto de uma mente inteligenteque o universo físico cabe em es-truturas matemáticas. Por outrolado, não cabe colocar Deus em ummodelo matemático para o teísmo,pois Ele está para além do que amatemática pode representar. As-sim, nessa concepção de ciência,o teísta também tem uma razãopara ser um naturalista metodoló-gico: Deus não deve aparecer emsua teorização e Ele oferece umarazão para fazer modelos matemá-ticos do universo físico (Halvorson,2016, p. 142-44).

Assim, se formos levar a sérioa história da ciência na compreen-são do que é o método científico e

dos pressupostos que seus princi-pais cientistas levam em conta emsua atividade, não há por que ex-cluir o teísmo. Mesmo que Deusnão seja mencionado nas explica-ções e modelos científicos, essa au-sência não é uma razão em favor donaturalismo metafísico, mas se ex-plica a partir de dentro do próprioteísmo, como propõe Halvorson.As ciências naturais em sua histó-ria não levam em conta em suasimagens de natureza apenas os re-sultados delas mesmas, mas tam-bém de outras fontes, como bemmostra Abrantes (2014) e a concep-ção metafísica teísta é uma dessasfontes. O fato de que, especial-mente na França, a partir do séculoXVIII, vários cientistas importan-tes adotaram o ateísmo não signi-fica que seja preciso ser ateu paraser um bom cientista, nem tam-pouco um bom filósofo que leva asério as ciências.

Conclusão

Neste artigo foi feito um apa-nhado das principais teses deAbrantes acerca do naturalismo. Acaracterística mais importante des-tas é a de dar valor, na atividadefilosófica, ao conhecimento acercado mundo obtido pelas ciências na-turais. Em epistemologia e filosofiada ciência, o naturalismo significaconsiderar o que dizem as disci-plinas acerca da cognição, como as

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 73-104ISSN: 2317-9570

99

AGNALDO PORTUGAL

neurociências, a Ciência da Com-putação e a Psicologia. Em filoso-fia da mente e metafísica, o natu-ralismo implica considerar o quedizem as ciências naturais para sepensar acerca dos constituintes úl-timos do mundo. A grande diversi-dade abrangida pela noção de na-turalismo levou Abrantes a fazerum minucioso trabalho de classifi-cação, que divide essa abordagemem basicamente dois ramos: o me-tafísico e o metodológico.

Apesar de o naturalismo meto-dológico ter menos compromissosontológicos que o metafísico, elenão deixa de assumir teses acercado mundo, o que Abrantes cha-mou de “fisicalismo mínimo”. Osargumentos em favor desse fisica-lismo mínimo seriam: 1) a filo-sofia não tem um método espe-cial, ela deve seguir o das ciênciasnaturais, pois os filósofos lançammão de teses empíricas e os cien-tistas usam argumentos a priori;2) ao assumir um mesmo métodoque o das ciências naturais, a fi-losofia deveria assumir também asrestrições que se impõem às ciên-cias; 3) uma das restrições funda-mentais ao trabalho científico é o“fechamento causal do mundo”, ouseja, de que não se devem postularelementos externos ao mundo fí-sico para que este seja explicado; 4)quanto menos teses ontológicas seassumem, melhores os resultados,como mostra a história do pensa-

mento filosófico-científico; 5) o fi-sicalismo mínimo evita petição deprincípio na explicação em episte-mologia e metafísica, ao não postu-lar nas premissas uma mente quese quer explicar na conclusão; 6)o fisicalismo é a melhor expres-são das ciências naturais, pois aa imagem de natureza que maisbem se adéqua à história da ciên-cia moderna, sendo a compreen-são de mundo que se pode espe-rar de pessoas bem informadas nomundo de hoje. Abrantes reco-nhece os limites do fisicalismo, es-pecialmente em filosofia da mente,admite a possibilidade de um na-turalismo metodológico neutro emtermos metafísicos, mas não é claroem defendê-lo como a melhor op-ção para a abordagem naturalista.

O artigo propôs que a melhoropção para o naturalismo é a daversão metodológica neutra em ter-mos metafísicos. Além disso,a enorme diversidade do natura-lismo fica mais bem entendida nocontraste com o teísmo, a tesede que o mundo físico dependefundamentalmente de uma inte-ligência criadora incorpórea oni-potente e infinitamente boa, talcomo se pode concluir como tesede fundo unificadora das grandesreligiões monoteístas (judaísmo,cristianismo e islamismo). Fo-ram apresentados argumentos con-tra cada um dos pontos elencadosacima em favor do fisicalismo mí-

100 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 73-104ISSN: 2317-9570

ABRANTES, O NATURALISMO E O TEÍSMO

nimo. 1’) mesmo tendo elemen-tos metodológicos comuns, filoso-fia e ciências naturais são áreas doconhecimento claramente distintas– o fato de que haja continuidadeentre o dia e a noite não significaque não se possa distingui-los comnitidez; 2’) o fato de que filosofiae ciências naturais são diferentesimplica em dizer que a primeiranão tem por que assumir todos oscompromissos assumidos pela ati-vidade científica; 3’) a filosofia nãotem por que assumir o fechamentocausal do mundo como restriçãoao pensamento acerca da realidadeem geral, o fisicalismo não é umateoria científica, mas uma tese fi-losófica e assim como o sucesso daciência não tem como ser transfe-rido para a filosofia (qualquer queseja ela), esta não precisa assumirsuas restrições metodológicas; 4’) ahistória do pensamento filosófico-científico mostra o quão complexaé a noção de simplicidade e queesta está submetida ao poder expli-cativo como critério epistêmico, ouseja, é preferível uma teoria maisrica ontologicamente, mas que sejamais explicativa; 5’) não há peti-ção de princípio na tese teísta, poisa mente que é postulada na expli-cação não depende de aparato fí-sico, como a mente a ser explicada– talvez seja o inverso: o fisicalismopostula a matéria física no expla-nans para explicar o explanandumem termos da mesma ideia; 6’) o

fato das ciências naturais não in-cluírem Deus em suas explicaçõesnão significa que este não possa es-tar no pano de fundo metafísico daatividade científica. O fisicalismonão tem problemas significativosapenas em filosofia da mente, mastambém em epistemologia (o pro-blema da confiabilidade do aparatocognitivo) e em metafísica em ge-ral, pois tem de assumir o mundofísico como um fato bruto inex-plicável. Sua simplicidade onto-lógica, ao invés de ser uma vir-tude, acaba limitando-o de formaa torná-lo altamente problemático.O naturalismo metodológico neu-tro preserva a evidente diferençaentre filosofia e ciências naturaisao mesmo tempo que dá lugar re-levante ao seu diálogo. Além disso,faz justiça também à história da ci-ência, que mostra um número alta-mente significativo de grandes ci-entistas (e de filósofos que levavama sério a ciência de seu tempo) queeram também teístas, tanto no pas-sado quanto hoje.

Eu tive o privilégio de acom-panhar o trabalho filosófico deAbrantes desde o começo de suacarreira acadêmica, tendo sido seualuno ainda na graduação e depoisvindo a ser seu colega. Agradeçomuito a ele o interesse que tenhopela história e a filosofia da ciência,e a percepção do quanto essas áreassão importantes para a formaçãode um filósofo hoje. Apesar de se-

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 73-104ISSN: 2317-9570

101

AGNALDO PORTUGAL

guir seu trabalho sempre de muitoperto, lamento só agora ter tidoa oportunidade de ler seus textoscom mais atenção. Ele sempre in-

centivou seus alunos a pensar porsi mesmos, como deve ser um bomfilósofo, naturalista ou não.

102 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 73-104ISSN: 2317-9570

ABRANTES, O NATURALISMO E O TEÍSMO

Bibliografia

ABRANTES, Paulo & ALMEIDA, Fábio. P. L. “Criacionismo e Darwi-nismo confrontam-se nos tribunais ... da razão e do direito”. Epis-teme (Porto Alegre), v. 24, 2006, pp. 357-401.

ABRANTES, Paulo & BENSUSAN, Hilan. “Conhecimento, ciência e na-tureza: cartas sobre o naturalismo”. In: SIMON, Samuel (org.)Filosofia e Conhecimento: Das formas platônicas ao naturalismo. Bra-sília: EdUnB, 2003, pp. 273-333.

ABRANTES, Paulo. “Naturalizando a epistemologia”. In: ABRANTES,Paulo (org.) Epistemologia e Cognição. Brasília: Editora UnB, 1994,pp. 171-218.

ABRANTES, Paulo. “Naturalismo epistemológico: apresentação”. Ca-dernos de História e Filosofia da Ciência (UNICAMP), Campinas, v.8, n.2, 1998, pp. 7-26.

ABRANTES, Paulo. “Naturalismo em Filosofia da Mente”. In: FER-REIRA, A et alii (Org.) Encontro com as Ciências Cognitivas. SãoPaulo: Cultura Acadêmica, 2004a. V. 4, p. 5-37.

ABRANTES, Paulo. “Metafísica e Ciência: o Caso da Filosofia da Mente”.In: CHEDIAK, Karla; VIDEIRA, Antonio Augusto Passos (Org.).Temas de Filosofia da Natureza. Rio de Janeiro: UERJ, 2004b, pp.210-239.

ABRANTES, Paulo. T. “Nagel e os Limites de um Reducionismo Fisica-lista (Uma introdução ao artigo ‘What is it like to be a bat?”’. Cader-nos de História e Filosofia da Ciência. Campinas, Série 3, v. 15, n. 1,2005, pp. 223-244.

ABRANTES, Paulo. “El programa de una epistemología evolucionista”.In: ROSAS, Alejandro (ed.). Filosofía, Darwinismo y Evolución. Bo-gotá: Universidad Nacional de Colombia, 2007, pp. 121-179.

ABRANTES, Paulo. Método e Ciência – Uma Abordagem Filosófica. BeloHorizonte: Fino Traço, 2013.

ABRANTES, Paulo. Imagens de natureza, Imagens de Ciência. 2. ed. –revista e ampliada. Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 2014.

ARTIGAS, M.; SANGUINETI, J. Filosofía de la Natureza. Pamplona: Edi-ciones Universidad de Navarra, 1984.

CRISP, Thomas. “On Naturalistic Metaphysics”. In: CLARK, Kelly (ed.)The Blackwell Companion to Naturalism. Oxford: Blackwell, 2016,pp. 61-74.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 73-104ISSN: 2317-9570

103

AGNALDO PORTUGAL

CHURCHLAND, Patricia. “Epistemology in the age of neuroscience”.Journal of Philosophy LXXXIV, October 1987, pp. 544-552.

DARWIN, Charles. “Letter to William Graham, Down, 3rd of July, 1881”.In DARWIN, Francis (ed.) The Life and Letters of Charles Darwin in-cluding an Autobiographical Chapter. London: John Murray, Vol. 1,1887, pp. 315-16.

DARWIN, Charles. On the Origin of Species by Means of Natural Selection,or the Preservation of Favoured Races in the Struggle for Life. 2nd

edition, London: John Murray, 1860.DAVIDSON, Donald. “Mental events”. In: ROSENTHAL D. (ed.) The

Nature of Mind. New York: Oxford University Press, 1991, p. 247-56.

HACKING, Ian. Representing and Intervening – Introductory Topics in thePhilosophy of Natural Sciences. Cambridge: Cambridge UniversityPress, 1983.

HALVORSON, Hans. “Why Methodological Naturalism?”. In CLARK,Kelly (ed.) The Blackwell Companion to Naturalism. Oxford: Blackwell,2016, pp. 136-149.

LEVINE, Joseph. “Naturalism and Dualism”. In: CLARK, Kelly (ed.)The Blackwell Companion to Naturalism. Oxford: Blackwell, 2016,pp. 209-219.

McGINN, C. The Problem of Consciousness. Oxford: Blackwell, 1993.NAGEL, Thomas. The Last Word. Oxford: Oxford University Press,

1997.PLANTINGA, Alvin. Warrant and Proper Function. New York/Oxford:

Oxford University Press, 1993.PLANTINGA, Alvin. Where The Conflict Really Lies – Science Religion

and Naturalism. New York/Oxford: Oxford University Press, 2011.QUINE, Willard V. “On What There is”. The Review of Metaphysics, Vol.

2, No. 5 (Sep., 1948), pp. 21-38.REA, Michael. World Without Design – The Ontological Consequences of

Naturalism. Oxford: Oxford University Press, 2002.RUSE, Michael Can a Darwinian Be a Christian? The Relationship between

Science and Religion. Cambridge: Cambridge University Press,2000.

SEARLE, John. The Mistery of Consciousness. New York: The New YorkReview of Books, 1997.

104 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 73-104ISSN: 2317-9570