ABRIGO - COMUNIDADE DE ACOLHIDA E SOCIOEDUCAÇÃO

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ABRIGOcomunidade de acolhida e socioeducao

comunidade de acolhida e socioeducao

ABRIGO

Coordenao: Edio: Projeto grfico: Reviso: Diagramao: Fotos:

Myrian Veras Baptista Ana Paula Cardoso Flix Reiners Christina Binato Flix Reiners Eduardo Simes

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Abrigo : comunidade de acolhida e socioeducao / [coordenao Myrian Veras Baptista]. -- So Paulo : Instituto Camargo Corra, 2006. -- (Coletnea abrigar ; 1) Vrios autores. Bibliografia. 1. Abrigos 2. Abrigos - Aspectos morais e ticos 3. Abrigos - Aspectos sociais 4. Adolescentes - Cuidados institucionais 5. Crianas - Cuidados institucionais 6. Crianas e adolescentes - Direitos 7. Sociologia educacional I. Baptista, Myrian Veras. II. Srie. 06-1373 CDD-362.732 ndices para catlogo sistemtico: 1. Abrigos ; Comunidades de acolhida e socioeducao : Crianas e adolescentes : Bem-estar social 362.732 2. Crianas e adolescentes : Abrigos : Cuidados institucionais : Bem-estar social 362.732

O Instituto Camargo Corra, titular dos direitos autorais patrimoniais desta publicao, autoriza reprodues que contribuam para os fins aqui estabelecidos, desde que seja citada a fonte e no tenham fins lucrativos.

Colaboraram na edio desta publicao: Helena Veras, Maria Luiza Favret, Alessandra Coelho, Evangelista, Sylmara Beletti e Immaculada Lopez

Realizao Programa Abrigar Equipe Abrigar Assessoria tcnica: Isa Maria Ferreira Rosa Guar

Iniciativa

Instituto Camargo CorraCoordenao do Instituto Presidente do Conselho: Rosana Camargo de Arruda Botelho Diretor presidente: Raphael Antonio Nogueira de Freitas Diretor executivo: Jos Augusto Muller de Oliveira Gomes Superintendente: Melissa Porto Pimentel Coordenadora: Juliana Di Thomazo R. Funchal, 160 bloco 11. Vila Olmpia So Paulo/SP. CEP: 04551-903 Telefone: (11) 3848 8561 E-mail: [email protected] www.institutocamargo.org.br

Coordenao de formao: Maria Lcia Carr Ribeiro Gulassa Apoio: Eleonora Sofia Shelard Junqueira Franco Alessandra Coelho Evangelista E-mail: [email protected]

Neca Associao de Pesquisadores dos Ncleos de Estudos e Pesquisas sobre a Criana e o Adolescente Diretoria Presidente: Myrian Veras Baptista 1o vice-presidente: Odria Battini 2o vice-presidente administrativo-financeiro: Maria Emlia Accioli Nobre Bretan 3o vice-presidente de relaes institucionais nacionais e internacionais: Slvia Losacco R. Wanderley, 1736. Perdizes So Paulo/SP CEP: 05011-002 Telefone: (11) 3673 4971 E-mail: [email protected] www.neca.org.br

Acolhimento: a arte de interagir, construir algo em comum, descobrir nossa humanidade mais profunda na relao com os outros e com o mundo natural. E deixar que os outros descubram em ns sua humanidade e o mundo nos mostre a sua amplitude. Humberto Mariotti

Sumrio

Apresentao Jos Augusto Muller de Oliveira Gomes O Programa Abrigar Melissa Porto Pimentel As pessoas que a gente no v Terezinha Azerdo Rios Um olhar para a histria Myrian Veras Baptista A histria comea a ser revelada: panorama atual do abrigamento no Brasil 39 Rita de Cssia Oliveira A fala dos abrigos Maria Lucia Carr Ribeiro Gulassa Abrigo comunidade de acolhida e socioeducao Isa Maria F. R. Guar Famlias: pontos de reflexo Maria Amalia Faller Vitale

08 10 15 25 Temas do Cotidiano Fazendo minha histria Cludia Vidigal A leitura e um ambiente acolhedor Amanda Leal de Oliveira, Mrcia Wada, Renata Gentile Sucesso na escola: rede de aprendizagem Maria Elizabeth Machado 53 Falando sobre sexualidade Yara Sayo Em busca de um projeto de vida Raquel Barros Fortalecer as famlias Maria ngela Maricondi 88 90 93 96 99 101

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ApresentaoA publicao de Abrigo - comunidade de acolhida e socioeducao um passo importante para a consolidao das idias e aes realizadas pelo Instituto Camargo Corra, em sua misso de apoiar tcnica e financeiramente entidades que promovam o desenvolvimento pessoal e social de crianas e adolescentes de famlias de baixa renda. No entanto, nosso desejo ainda maior: pretendemos com essa obra fornecer a educadores e demais colaboradores que atuam em abrigos um instrumento para aprofundar o debate sobre o escopo dessas instituies e fornecer subsdios para o trabalho cotidiano de proteo e educao de uma parcela dos cidados que est entre as mais vulnerveis da sociedade brasileira. O Instituto, criado em 2000 e mantido pelos acionistas do grupo Camargo Corra, uma Organizao Social Civil de Interesse Pblico (Oscip) que fornece apoio a iniciativas voltadas s reas de sade, educao e cultura que ajudem crianas e adolescentes na conquista de seus direitos fundamentais. Essas aes visam reforar o processo de construo de sua cidadania. At o final de 2005, os cinco programas e muitos projetos ajudaram a quase 20 mil crianas e jovens. Parte desse investimento foi destinado capacitao de gestores e outros profissionais ou voluntrios. Uma das frentes de atuao do instituto o Programa Abrigar, criado em 2003. Com o objetivo de contribuir para um atendimento de qualidade em abrigos, o programa foca a capacitao de profissionais, o apoio financeiro a projetos e a mobilizao com o intuito de dar destaque ao tema e incentivar a troca de experincias. Entre as responsabilidades do programa est a realizao de ciclos de formao para organizaes de acolhimento, quando elas passam a fazer parte da Rede Abrigar. O trabalho no fcil. H hoje milhares de crianas vivendo em abrigos no Brasil. Essas organizaes em geral sobrevivem graas a iniciativas da prpria sociedade, por intermdio de doaes e campanhas de arrecadao de fundos. Em muitos casos essa situao as leva a funcionar em desacordo com o Estatuto da Criana e do Adolescente, que recomenda unidades pequenas e com nmero reduzido de crianas e adolescentes, boas condies de acomodao, profissionais especializados e aes de incluso social. A coletnea uma grande contribuio para o debate sobre questes como poltica de abrigamento e qualidade no atendimento nos abrigos e busca disseminar o conhecimento produzido pelo Programa Abrigar at agora. Alm disso, cumpre o papel de fornecer subsdios para a formao dos profissionais que cuidam dessas crianas e desses adolescentes nos abrigos, e ajuda a refletir sobre as responsabilidades do poder pblico e a relao dos abrigos com a comunidade, os conselhos tutelares e o Judicirio.

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Sabemos que a rea empresarial no substituir jamais o Estado em suas obrigaes legais no cuidado de crianas e adolescentes em situao de risco social, que vivem a dura realidade de ter seus laos familiares rompidos por vrios motivos. No entanto, sabemos tambm que possvel ampliar o impacto de nossas aes se conseguirmos contribuir para a formulao de polticas pblicas nesse campo. Nesse sentido, a produo de uma publicao sobre o tema do abrigo e sua importncia na vida e na formao de milhares de cidados uma maneira de multiplicar efeitos prticos do investimento social corporativo. No ano em que o ECA completa 16 anos, esta publicao vem se somar a outra iniciativa promovida pelo Instituto Camargo Corra. No final de 2004, foi realizado um seminrio cujo nome intitula o livro que agora vem a pblico. Durante trs dias, tcnicos e gestores de entidades, representantes do governo e da sociedade civil, conselheiros tutelares e de direito e operadores do sistema de Justia reuniram-se em torno da temtica. Muitas das discusses de ento sobre as dificuldades dos educadores em seu trabalho e sobre os problemas enfrentados pelos abrigos para cumprir o seu papel social inspiraram os artigos que fazem parte desta obra. Abrigo - comunidade de acolhida e socioeducao dividido em duas partes. A primeira composta de artigos que, no conjunto, fornecem um panorama da realidade dessas instituies no Brasil atravs dos tempos. A segunda, sob o ttulo de Temas do cotidiano, apresenta textos e indicaes de trabalho para o dia-a-dia do educador. Acompanha a obra um livreto com sugestes de atividades que visam apreenso do contedo e discusso dos temas expostos. o mais sincero desejo do Instituto Camargo Corra que a obra possa ser til para todos aqueles que se dedicam ao trabalho de superar os desafios que enfrentam, dentro do tema, em seu dia-a-dia. Jos Augusto Muller de Oliveira Gomes Diretor executivo do Instituto Camargo Corra

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O Programa AbrigarCriado em 2003 pelo Instituto Camargo Corra, o Programa Abrigar nasceu com o objetivo de trabalhar em trs vertentes bsicas: capacitao, apoio a projetos e mobilizao. Hoje, a estrutura comporta vrias atividades, mas antes de tratar da situao contempornea importante resgatar a histria do programa. O primeiro passo foi a realizao de uma pesquisa pelo Instituto Avisa L. Com base nela, pudemos entender as implicaes de trabalhar com abrigos, conhecer as leis existentes sobre o tema e ajudar a estabelecer frentes de aes. Esse levantamento foi essencial para o estabelecimento dessas trs vertentes como as principais linhas de trabalho do programa. Na poca, o Instituto Camargo Corra no tinha a conformao de hoje. A equipe, por exemplo, era composta de apenas duas pessoas. Com relao situao dos abrigos, havia muito pouca informao disponvel. No sabamos quantas eram as crianas abrigadas, o nmero de abrigos, o perfil dos profissionais que trabalhavam na rea. A prpria poltica pblica no era clara. E havia como ainda h o problema da quase inexistncia de recursos financeiros destinados a esse servio. Outro ponto identificado pela pesquisa foi a falta de investimento na formao dos profissionais que prestam atendimento nessas instituies. Com esse perfil geral, foi possvel estabelecer estratgias de ao: o eixo de apoio financeiro a projetos, o de formao profissional e o de mobilizao para colocar a temtica na agenda de polticas pblicas. As frentes de ao atual O Programa Abrigar tem alocado recursos financeiros e tcnicos para o desenvolvimento de aes que possam conduzir a mudanas na atuao social e educativa dos abrigos. Alm disso, busca agregar parceiros locais e estimular a expanso da rede de servios. As linhas atuais do programa so: formao, apoio a projetos, articulao em rede e disseminao de conhecimentos. No mbito da formao, so desenvolvidos mdulos didticos e de reflexo sobre a realidade dos abrigos. So os mdulos de formao bsica. Essa linha de atuao tem permitido levantar necessidades e dilemas enfrentados nessas instituies. Da constatao da necessidade de manter a continuidade dos ciclos de formao surgiu a Rede Abrigar hoje composta de 47 abrigos , que coordena uma programao de encontros entre todos os participantes ao longo do ano. A elaborao de projetos pelos participantes uma oportunidade para pensarem sobre a prtica diria e proporem melhorias para sua organizao. Esses projetos so avaliados por equipes de representantes dos parceiros institucionais, as quais definem os que devem receber apoio financeiro. O processo de elaborao de projetos e tambm de sua execuo abre espao para avaliar a situao dos abrigos, agregando experincias de seus diversos agentes e fortalecendo vnculos com a comunidade. A preocupao com a mobilizao da sociedade e do Estado para a questo das crianas e dos adolescentes em situao de vulnerabilidade e seu direito proteo integral continua norteando aes do programa. Permanece tambm o compromisso de contribuir com a iniciativa pblica para a definio de padres e indicadores de qualidade dos servios prestados pelas organizaes.

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Sabemos que formao de pessoas uma atividade a longo prazo e para ser eficiente precisa ter continuidade. Por isso, alm das estratgias descritas acima, outras foram incorporadas pelo programa. So elas as visitas de acompanhamento tcnico, os encontros preparatrios aos seminrios e o seminrio bianual. As prprias organizaes apoiadas tambm incluem aes de formao, utilizando os recursos que recebem. Daqui para a frente, os desafios so ainda maiores, pois o mapeamento da situao dos abrigos e das condies das crianas e dos adolescentes atendidos revela que ainda h muito que fazer. Por isso, trabalhamos para aumentar os impactos do Programa Abrigar. Um dos passos nesse caminho a criao de uma coletnea de publicaes para registrar o conhecimento adquirido nesses anos e buscar caminhos de atuao para melhorar o panorama do abrigamento no Brasil. O primeiro volume, Abrigo comunidade de acolhida e socioeducao, agora lanado. O ttulo retoma o seminrio realizado no final de 2004 pelo Instituto Camargo Corra iniciativa pioneira de fomento ao debate sobre a temtica do abrigo, que reuniu gestores de entidades, educadores, representantes do governo, da sociedade civil e do sistema de Justia. Muitas das reflexes levadas adiante no encontro originaram artigos que fazem parte deste livro. O primeiro de muitos O volume Abrigo comunidade de acolhida e socioeducao focado no tema do cuidado e da ateno a crianas e adolescentes vulnerabilizados, que demandam proteo especial. Nosso desejo que os artigos e textos selecionados possam servir como recurso nos processos de formao e de discusso das equipes. Essa preocupao norteou o planejamento editorial do livro, que traz, alm de artigos de especialistas, textos baseados em atividades prticas e um livreto com sugestes para trabalhar o contedo do volume. Todos os artigos vm acompanhados de um resumo, denominado Para refletir, cujo objetivo facilitar a disseminao das idias expostas. Outro recurso que visa a facilitar o emprego da obra por educadores e formadores a insero de outros textos, depoimentos, excertos crticos e fotografias, que dialogam com os artigos propriamente ditos e favorecem o debate. Esse conjunto foi chamado Material de apoio. A obra est dividida em duas partes. A primeira compe-se de seis artigos. Terezinha Azerdo Rios, no texto de abertura, As pessoas que a gente no v, analisa, entre outros, o princpio tico do respeito ao outro nas relaes sociais. Para respeitar, necessrio reconhecer a presena do outro como igual, em sua humanidade, escreve a autora logo no incio de sua anlise. A perspectiva histrica norteia o segundo e o terceiro textos. Myrian Veras Baptista, em Um olhar para a histria, convida o leitor para uma viagem atravs dos tempos da Colnia dcada de 1980, quando iniciou-se a mobilizao pelo Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA). J em A histria comea a ser revelada: panorama atual do abrigamento no Brasil, o objetivo de Rita de Cssia Oliveira analisar o presente. Para isso, parte justamente do momento de promulgao do ECA, em 1990. Maria Lucia Carr Ribeiro Gulassa, em A fala dos abrigos, instaura outra abordagem, ao apresentar um artigo originado de um processo de formao de profissionais de abrigos, realizado na cidade de So Paulo em 2003 e 2004. A autora expe uma realidade cruel vivida hoje: As falas

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dos profissionais (...) revelaram a complexidade presente na instituio abrigo, cuja principal tarefa incluir e possibilitar o pertencimento, mas que acaba por se perceber como lugar de excluso e abandono, repetindo assim a caracterstica da populao a que atende. No texto de Isa Maria F. R. Guar, que d nome obra, Abrigo comunidade de acolhida e socioeducao, notamos um exame profundo das dificuldades por que passam os abrigos na sociedade. Segundo a autora, a procura por uma identidade positiva condio bsica para ajudar essas instituies a enfrentarem a ausncia de legitimidade e a ambivalncia de expectativas sociais em relao a elas. A finalizao da primeira parte do volume se d com o artigo de Maria Amalia Faller Vitale, Famlias: pontos de reflexo. Nele, Vitale direciona a discusso para a problemtica que envolve a famlia da criana ou do adolescente abrigados. Tema de difcil discusso, ele nos desperta questionamentos, sentimentos e aes. Diante das histrias familiares, podemos desenvolver uma atitude ora compreensiva, ora de rechao, ou mesmo de indiferena, explica. Na segunda parte da obra, intitulada Temas do cotidiano, o leitor encontrar outros seis textos cuja finalidade auxiliar gestores e educadores a enfrentar os dilemas de sua tarefa diria. So diversos os assuntos tratados, mas a tnica geral a busca da prtica, do dado concreto. Em Fazendo minha histria, Cludia Vidigal relata a experincia do projeto Fazendo Histria, cujo objetivo valorizar e preservar as histrias de vida de crianas e adolescentes abrigadas. Amanda Leal de Oliveira, Mrcia Wada e Renata Gentile, em A leitura e um ambiente acolhedor, tratam da funo da leitura e dos livros de literatura nos abrigos. O texto seguinte, Sucesso na escola: rede de aprendizagem, de Maria Elizabeth Machado, aborda estratgias e oferece dicas para crianas e adolescentes que vivem em abrigos serem bem-sucedidos no ambiente escolar. A sexualidade, sua definio e importncia e sugestes de como lidar com o tema so o foco de Yara Sayo em Falando sobre sexualidade. Outro ponto essencial para quem vive a situao de abrigamento ter um projeto de vida. sobre meios de identificar as capacidades de cada um, valorizando seus sonhos e suas habilidades e transformando-os em talentos que escreve Raquel Barros, em Em busca de um projeto de vida. A autora destaca aes fundamentais para que o jovem possa desenvolver e concretizar planos para o futuro e seguir a vida fora do abrigo. Maria ngela Maricondi, em Fortalecer as famlias, encerra o volume com um texto acerca da importncia de apoiar as famlias de crianas abrigadas, para garantir um direito fundamental da criana: o direito convivncia familiar e comunitria. Com esse conjunto de artigos e relatos de experincias, pretendemos contribuir para a elaborao de uma nova identidade para os abrigos, disseminar prticas de sucesso no caminho da superao de dificuldades cotidianas de educadores e agentes pblicos e reiterar a importncia de construir um projeto socioeducativo nesses ambientes de acolhimento. Melissa Porto Pimentel Superintendente do Instituto Camargo Corra

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As pessoas que a gente no vTerezinha Azerdo Rios*

Se podes olhar, v. Quando falamos em abrigar, acolher, somos remeprocuramos a da filosofia , a paisagem pode ser diferente, E se podes ver, repara. tidos ao princpio tico do respeito ao outro nas relaes at porque s vezes apenas olhamos, mas no vemos. Jos Saramago sociais. Para respeitar, necessrio reconhecer a presena Quando fao o convite filosofia, sei que muitas do outro como igual, em sua humanidade. Esse o grande idias podem ocorrer a meus interlocutores. Alguns diro: desafio que historicamente tem sido apresentado para as sociedades. Hoje, L vem a filosofia, aquela coisa distante do real, aquilo com o qual e sem o no Brasil, temos de nos dispor a enfrent-lo criticamente, enxergando alm qual a gente fica tal e qual. Ou: O filsofo um indivduo que pensa daquilo que o olhar imediato e ideolgico nos mostra. para essa questo muito, mas no faz nada. Entretanto, quem sabe, outros diro: Que que se volta o presente trabalho, recorrendo filosofia como instru- bom, ento vamos filosofar!. mento para pens-la criticamente. As idias sobre a filosofia so mltiplas. Na verdade, ela tem a Quero convid-los a pensar comigo sobre as relaes e as aes cara de cada um, conforme encontrada em aulas de filosofia, livros, que acontecem em nossa sociedade. O convite para que nos aproximemos palestras. A filosofia de que vou falar, e o ponto de vista pelo qual os da janela da filosofia para olharmos essas relaes. Haver aqueles que diro convido refletir comigo, reveste-se da feio chamada tica, que a que a janela no muda a paisagem, e isso verdade. No muda mesmo, mas, forma de olhar criticamente os valores presentes em nossas aes e dependendo da janela na qual nos debruamos e, quem sabe, ainda no relaes e de buscar a consistncia e o fundamento desses valores.

* Doutora em Educao. Professora do Departamento de Teologia e Cincias da Religio da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP) e do programa de mestrado em Educao do Centro Universitrio Nove de Julho (Uninove-SP).

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A filosofia de que vou falar (...) reveste-se da feio chamada tica, que a forma de olhar criticamente os valores presentes em nossas aes e relaes e de buscar a consistncia e o fundamento desses valores

A tica um assunto sobre o qual temos ouvido falar freqentemente: falam de tica os que denunciam a corrupo, assim como enchem a boca, para falar de tica, os corruptos; falam de tica os que denunciam as aes violentas e os que produzem a violncia. Ento, somos levados a perguntar: a que tica estamos nos referindo? Sou leitora assdua de romances policiais e quero compartilhar com vocs algo que encontrei no romance de um psicanalista carioca que agora se dedica tambm literatura policial, Luiz Alfredo GarciaRoza. Em Uma janela em Copacabana, o autor faz referncia a um treinamento de policiais, realizado por uma psicloga, e conta: a moa usava a palavra psicologia como usava batom s para enfeitar a boca. Penso que se pode fazer uma certa analogia: os homens e as mulheres de nosso pas tm, por vezes, usado a palavra tica com esse sentido cosmtico s para enfeitar a boca ou, como dizia minha me, da boca para fora. preciso, portanto, buscar o significado real da tica. Entender como ela pode ser um instrumento importante para avaliarmos a realidade e perguntarmos sobre os valores que esto presentes em nossas aes, de modo que possamos orient-las na direo do objetivo a que nos propomos, que acredito ser o de tornar a vida mais digna e mais feliz. O professor espanhol de filosofia Fernando Savater, cujo trabalho recomendo especialmente tica para meu filho , afirma que toda tica digna deste nome parte da vida e se prope a refor-la, a tornla mais rica. Portanto, quando falamos em tica, estamos necessariamente falando da vida, no de uma vida qualquer, e sim de uma vida boa, de uma vida rica, de uma vida digna. E nesse sentido, usando a tica como instrumento e olhando a filosofia nessa perspectiva, que quero pensar, com vocs, leitores, nesse programa que se chama Abrigar.ABRIGO comunidade de acolhida e socioeducao

A palavra tica vem do grego ethos e significa costume, jeito de ser. A tica est muito prxima de algo que parente dela, mas que com ela no se identifica, embora tambm tenha o sentido de costume: a moral. A origem de moral est no termo mores, que vem do latim. Outro significado de ethos, na Grcia, morada. O ethos a morada do homem, seu abrigo, seu lugar de proteo. J se pode perceber, ento, a importncia da tica no contexto de um programa que se chama Abrigar, que lida com abrigos. Que abrigo o ethos? De que maneira podemos refletir sobre o gesto de abrigar? Insisto agora na idia de pensar moda da filosofia. E quero lhes trazer o sentido originrio do exerccio de filosofar. Quando falamos em filosofia, temos que nos reportar ao sculo VI a.C., na Grcia, poca em que um pensador, Pitgoras, uniu dois vocbulos philia = amizade, e sophia = sabedoria , para compor um termo novo: philosophia, que significa amizade sabedoria, desejo de sabedoria. No basta, entretanto, saber que filosofia amor sabedoria; preciso saber que sentido os gregos davam sophia (sabedoria) naquele momento. Sabedoria, para eles, significava saber total, saber de todas as coisas, e era um atributo exclusivo dos deuses. S os deuses eram considerados sbios na Grcia daqueles tempos. Ento, para os seres humanos, imperfeitos e incompletos, restava o desejo de se aproximar da sabedoria, aproximar-se amorosamente, como quem se aproxima dos amigos para poder usufruir aquilo que tm para oferecer. O conceito de filosofia tem mudado no decorrer da histria, mas pode-se perceber que grande parte das concepes ainda guarda o sentido dado por Pitgoras. E, quando proponho que filosofemos, refiro-me sempre a uma busca constante e amorosa de um saber cada vez maior. Na histria da cultura ocidental, percebemos que freqentemente16

se destaca a idia de sophia como algo racional e superior aos outros sabe- no deixo para trs percebo de um jeito novo e procuro ir adiante, quem res, esquecendo-se, s vezes, da philia, da afetividade, da sensibilidade, sem sabe de um jeito novo tambm. a qual a sabedoria perde o significado. preciso, ento, ressaltar que falar Assumir uma atitude crtica procurar ver com clareza, profunde filosofia falar de um gesto que procura unir as capacidades que temos didade e abrangncia a realidade. para refletir sobre a realidade e atuar sobre ela, no sentido de nos fazermos Procurar ver com clareza, porque existem coisas, situaes, que humanos, como queremos ser. essa a perspectiva da filosofia, do gesto podem turvar nosso olhar, embaar nossos culos. Vemos sempre a realifilosfico. dade com os culos da nossa cultura, da nossa classe social, do nosso temCostuma-se considerar a filosofia um conjunto de teorias, de po. Ainda assim, podemos ver com clareza. Mas, s vezes, algo pode embaconcepes; faz-se referncia, ento, filosofia de Plato, Sartre, Des- ar o olhar: os preconceitos, as ideologias. Ento, h necessidade de tomarcartes. Aqui nos interessa mais aquilo que comum a Descartes, Sartre mos conscincia dessa possibilidade para, ao olharmos com clareza, seguire Plato: a atitude de buscar a ampliao do conhecimento de uma mos adiante com mais firmeza e segurana, apesar de nossa precariedade. maneira especfica. Ver com profundidade significa no se Kant afirmava que no se aprende nem se contentar com a superfcie nem com as aparnciComo seres humanos, ensina filosofia, o que se aprende e se ensina a filoas, porque as aparncias podem enganar. Os filsomos livres. E ser livre sofar. Gostaria que nosso exerccio fosse um exercsofos costumam questionar: O que seria da esno significa ausncia de cio de filosofar, de ampliar conhecimentos. Guimasncia, se no fosse a aparncia?. verdade. Enlimites: uma condio res Rosa, meu conterrneo, disse: A cabea da gente tramos em contato com o que aparece, mas o que que permite optar, uma s e as coisas que h e que esto para haver aparece pode, ao mesmo tempo, revelar e ocultar. tomar partido so demais de muitas, muito maiores, diferentes, e a Por isso, a gente diz: Parece legal, mas eu queria gente tem de necessitar de aumentar a cabea para ver o que est por trs. No se pode ficar s nas o total. Recorro a Rosa porque acredito que o mundo do tamanho do manifestaes, preciso buscar o que causa essas manifestaes. A conhecimento que a gente tem dele. Sendo assim, temos o dever de alargar febre, por exemplo, uma manifestao de que algo vai mal no nosso esse conhecimento para alargar o mundo, para ampliar essa realidade. No organismo, mas, se s cuidarmos dela e no buscarmos o que a est significa apenas alargar o meu mundo, uma vez que este um mundo que causando, podemos ter problemas. partilho com outros, mas alargar o nosso mundo, a nossa realidade, criando Hlio Pellegrino, psicanalista mineiro que nos deixou h algum significados novos a cada momento. tempo, contava uma histria interessante, que se deu em Minas Gerais, na Se a filosofia a busca constante de um saber cada vez maior, ela cidade de Nova Lima. se caracteriza tambm como uma atitude crtica diante da realidade. Isso Em Nova Lima fica a mina de Morro Velho, que foi explorada pequer dizer que no se pretende ficar apenas no nvel do senso comum, da los ingleses no passado. L, os operrios eram contaminados com p de opinio. As opinies podem ser corretas, mas tambm podem ser equivo- slica e contraam silicose, uma infeco do pulmo que leva o doente rapicadas; s vezes, at marcadas por interesses duvidosos. Ento, para ampliar damente morte. Uma das manifestaes da silicose uma tosse forte. o saber, preciso superar o nvel das opinies. Quando supero, no nego, Como a tosse dos mineiros incomodasse as senhoras inglesas, os ingleses17ABRIGO As pessoas que a gente no v

No existe natureza humana o que existe a condio humana, que os homens constroem juntos, historicamente. Essa condio humana pode ser boa ou m

montaram uma fbrica de xarope, que era vendido aos operrios. Os operrios paravam de tossir, mas continuavam morrendo de silicose, porque a causa no havia sido tratada. O texto de Hlio Pellegrino primoroso. Ele fala da violncia e da corrupo que se manifestam na sociedade e afirma que, enquanto no nos aprofundarmos nas causas desses problemas, ser muito difcil super-los. Logo, a atitude crtica uma atitude radical. No no sentido de ser extremista, mas de ir s razes, buscar os fundamentos, superar os problemas que nos desafiam constantemente. Alm de ver com clareza e profundidade, preciso ver com abrangncia, porque a realidade contraditria. Ela no sim ou no, mas sim e no. Portanto, precisamos tentar v-la de todos os seus ngulos e de todos os pontos de vista. Gosto muito de um livro infantil, escrito por Jandira Mansur, que se chama O frio pode ser quente?. A autora explora a idia de que as coisas tm muitos jeitos de ser; depende do jeito que a gente as v. Quando se diz isso, imediatamente as pessoas concluem que, ento, tudo relativo: a realidade se mostra de um jeito diferente para cada pessoa. Mas a autora nos salva, afirmando que o importante vermos os vrios aspectos ao mesmo tempo. Esse um grande desafio, porque fomos educados para ver ou isto ou aquilo, e o que temos, na verdade, uma realidade que , ao mesmo tempo, isto e aquilo. Meu marido e eu tivemos uma experincia interessante quando nossos filhos eram pequenos. Fomos a uma reunio de pais, na escola, e a professora falou sobre um garoto da turma que era a alegria do grupo: ele mobilizava o pessoal, inventava brincadeiras E, mostrando um rapaz que estava a nosso lado, disse: o filho de Fulano. Para nossa surpresa, esseABRIGO comunidade de acolhida e socioeducao

rapaz respondeu: Esse menino, de que voc est falando, eu nunca vi em minha casa em casa, tenho um garoto que se fecha no quarto, que se recusa a sair, que no gosta de brincar. No era possvel, ento, afirmar que o garoto era isto ou aquilo ele era isto e aquilo. Restava ao pai conhecer o aluno da professora e, professora, conhecer o filho do pai. Como se pode conhecer as pessoas e os fatos de ngulos diferentes, de pontos de vista diferentes? Colocando-se em um ponto de vista diferente. Ao procurar conhecer o ponto de vista dos outros, ao procurar nos colocarmos no lugar deles, temos a possibilidade de ver diferente. Falamos tanto: Coloque-se no meu lugar. O que significa: Veja do meu ponto de vista. Mas voc j notou que todas as vezes que dizemos: Se eu fosse voc..., Se eu estivesse no seu lugar..., sempre sou eu? H um verso, numa cano da dcada de 1960, que diz: Ah, se eu fosse voc, eu voltava pra mim.... No timo? Embora falemos em experimentar o lugar do outro, acabamos trazendo o outro para o nosso lugar... J estou comeando a acenar com a idia de que nos relacionamos com os outros e de que h muitos outros pontos de vista, muitas outras maneiras de olhar. Se considerarmos essas maneiras de olhar, quem sabe poderemos ver de uma maneira mais clara, mais profunda e mais abrangente. A filosofia nos ajuda nisso: amplia nosso olhar, na tentativa de ver criticamente a realidade. Entretanto, no s a filosofia que se constitui num olhar crtico. Na cincia, por exemplo, tambm prevalece uma atitude crtica. Portanto, h a necessidade de fazer uma pequena e breve distino: quando a cincia olha a realidade de maneira crtica, tem o objetivo de encontrar uma explicao; quando a filosofia olha criticamente, o que ela quer encontrar uma compreenso. Explicar tarefa da cincia e compreender tarefa da filosofia. Talvez um exemplo nos ajude. Perdi um amigo de 33 anos, que18

morreu de um sbito infarto. Chorando sua perda, perguntvamos: Por Quando ns perguntamos por que temos de nos comportar de qu?. A resposta do mdico, do cientista, a que se registrava no atesta- uma maneira e no de outra, a moral j tem uma resposta pronta: para o do de bito: Devido a um infarto. Vocs sabem que a resposta que espe- seu bem. para o seu bem, responde-nos a sociedade. Notem que para rvamos no era essa. Ns nos perguntvamos por que tnhamos de ser o seu bem significa que, se voc agir assim, estar sendo aceito, no ser privados de algum que amvamos ou por que, de repente, um jovem marginalizado; portanto, tem de andar na linha. Dentro da faixa, fora do havia sido privado do futuro. A pergunta pela compreenso a pergunta perigo, orienta-nos o cdigo de trnsito. E no s no trnsito; isso vale pelo sentido, pela significao, a pergunta pelo valor. Ento, quando para todos os cdigos que regem nosso comportamento. fazemos uma pergunta moda da filosofia sobre o nosso trabalho, sobre Mas podemos reagir criticamente a algumas imposies e, quanas nossas relaes, estamos indagando: De que vale trabalhar nos abri- do a moral nos diz que para o nosso bem, podemos perguntar: Ser que gos, como ns fazemos?, Qual o sentido de desenvolver uma prtica para o bem, mesmo?. Quando fazemos essa pergunta, j nos encamicomo essa?, Que valor tem, para ns e para a sociedade, o trabalho que nhamos para o terreno da tica. Porque, no terreno em que a moral estafazemos?. Essas so questes filosficas, so quesbelece normas, em que a moral prescritiva, a tica tes ticas por excelncia. aparece como reflexiva. O princpio nuclear da tica A tica um olhar crtico sobre a moralidade. A moral direciona: V por aqui, no v por o respeito ao outro. E, para Eu disse que necessrio distinguir tica e moral. ali. A tica pergunta: Por que ir, por que no ir?, respeitar o outro, preciso Quando menciono moral, refiro-me ao conjunto de Qual o fundamento de ir ou de no ir?. Enquanto que se admita que ele existe, prescries que a sociedade constri para orientar a moral estabelece normas, a tica estabelece prinque se reconhea a nossa vida e que se origina nos costumes. de acorcpios que sustentam as normas ou que as existncia dele do com a moral que se diz: Faa isso e no aquilo, problematizam. em nome dos princpios que se V por aqui e no por ali. Essa a perspectiva da questionam as normas. importante fazer a distinmoralidade. Todos ns temos, queiramos ou no, uma atitude moral quan- o entre tica e moral, porque, de moral, as instituies e toda a sociedade do nos posicionamos diante dessas prescries, quando obedecemos ou j esto encharcadas. O que tem faltado nelas a tica, como atitude desobedecemos ao que est prescrito. s vezes, as pessoas acham que s o questionadora. comportamento de obedincia norteado pela moral. Isso no verdade. Ser que a tica apenas pergunta? Na verdade, a tica responde. Se no pudssemos desobedecer, se no houvesse espao para a transgres- Quando a moral afirma que para o seu bem, a tica replicar que s ser so, no seramos humanos, estaramos revertidos natureza pura e sim- para o bem se for para o bem comum. O bem comum o horizonte norteador ples que compartilhamos com os outros seres. Como seres humanos, so- da tica. O bem comum e a dignidade de todas as pessoas so apontados mos livres. E ser livre no significa ausncia de limites: uma condio como referncia nos princpios da tica. que permite optar, tomar partido. A atitude moral se liga estreitamente O princpio nuclear da tica o respeito ao outro. E, para respeitar atitude poltica. Ser poltico isso: tomar partido. No ser de um o outro, preciso que se admita que ele existe, que se reconhea a existnpartido, tomar partido, dirigir-se para uma direo ou outra. Essa cia dele. Pode parecer estranho, mas temos de nos perguntar se estamos uma deciso moral. efetivamente reconhecendo a existncia das pessoas. Em nossa vida coti19ABRIGO As pessoas que a gente no v

A tica um olhar crtico sobre a moralidade. Eu disse que necessrio distinguir tica e moral. Quando menciono moral, refirome ao conjunto de prescries que a sociedade constri para orientar nossa vida e que se origina nos costumes

diana, costumamos passar pelas pessoas como se elas no existissem. No vemos algumas que esto a nossa volta. Vocs j devem ter entrado num elevador com ascensorista. J notaram como as pessoas se comportam? Elas entram e como se apenas uma cadeira estivesse ali. Infelizmente, as pessoas se acostumam a ignorar as crianas que dormem na rua e os indivduos que prestam servios, uma vez que no os consideram sujeitos como elas. Ns costumamos ignorar os sujeitos que no so como ns, que so os outros. Um cientista social trabalhou em uma tese que abordava essa questo. Ele se vestiu de gari e seus colegas e professores jamais olharam para ele, quando estava com o uniforme. O uniforme torna a gente invisvel disse, certa vez, uma faxineira. Essas so as pessoas que a gente no v, os outros. So outros eus. No so eu, mas so como eu sou, e muito difcil admitir essa existncia, porque Narciso acha feio o que no espelho, como canta Caetano Velloso. Entretanto, importante, pensar que nossa identidade garantida pelos outros, pela presena da alteridade. Mesmo no espelho mais cristalino, a imagem que tenho de mim invertida. Quem fala de mim quem me v, quem est na minha frente o outro, o alter, aquele que me reconhece. Quando deixo de reconhecer o outro, nego ao outro a prpria identidade. Se no levo em conta a alteridade, a presena do outro, instalo algo chamado alienao, porque trato o outro como o alienus, o alheio, aquele que nada tem a ver comigo. Karl Marx discorreu sobre a alienao econmica. Podemos falar numa alienao tica, que o que ocorre quando olhamos os outros sem v-los, ou quando vemos sem crtica, quando no reparamos. A tica nos ajuda a olhar a realidade de maneira crtica, a olhar os outros (que so componentes de ns mesmos) norteados pela construo da realidade e da humanidade que a gente quer. Ethos significa intervenABRIGO comunidade de acolhida e socioeducao

o na physis, na natureza. No existe natureza humana o que existe a condio humana, que os homens constroem juntos, historicamente. Essa condio humana pode ser boa ou m. Costumamos dizer que gostaramos de tornar as pessoas mais humanas. Isso de pessoa mais humana no existe. O que existe o humano, embora, freqentemente, o humano no tenha a face que gostaramos que tivesse. Por isso, quando algum mata um morador de rua, quando algum violenta um adolescente, dizemos que foi uma ao monstruosa realizada por um monstro , porque, assim, essa pessoa nada tem a ver conosco. O pior de tudo que tem a ver: foi um ser humano que praticou o ato violento. Quero, ento, pensar com vocs na idia de abrir os olhos para adquirir um olhar consciente e crtico. Porque assim j teremos meio caminho andado uma vez abertos os olhos, no se pode mais fech-los. O grande problema que enfrentamos com a conscientizao que, depois de nos abrirmos para ela, no d mais para fingir que no vemos as coisas. Isso pode ser incmodo, mas estimula um novo tipo de ao: abrir os olhos, arregalar os olhos, no s para ver, como tambm para modificar o que o visto nos mostrou, modificar o que precisa ser modificado, construir a histria juntos. Porque a histria feita por ns a cada dia e ter a feio que dermos a ela. Falamos no bem comum. Seu outro nome felicidade. Como canta Tom Jobim: impossvel ser feliz sozinho.... A felicidade algo que se experimenta individualmente, mas tem sentido quando compartilhada. Portanto, o objetivo de qualquer instituio social, de qualquer organizao, do ponto de vista tico, a construo da felicidade. No num sentido romntico, mas no de construir a cidadania, o direito a ter direitos, a ter espao para atuar na sociedade, a ser reconhecido com justia. Justia igualdade na diferena. Somos diferentes homens e20

mulheres, crianas e adultos, pretos e brancos, palmeirenses e corintianos , mas somos iguais em direitos. O contrrio da igualdade no a diferena, e sim a desigualdade, e a desigualdade algo construdo socialmente. Portanto, precisamos ficar atentos para ver se estamos fazendo isso. Por isso, a pergunta tica uma pergunta que nos atormenta. A pergunta : E eu com isso?. Quando vejo a situao de uma perspectiva tica, tenho de me perguntar: O que eu tenho a ver com isso?. No aquele e eu com isso? de dar de ombros, um e eu com isso? que me leva a perceber que tenho a ver, que devo me mobilizar, no sentido da transformao. A tica nos traz uma dimenso utpica, porque a felicidade no est pronta, a cidadania no est garantida. preciso que ela

seja o nosso ideal. O ideal no aquilo que impossvel existir; o que ainda no existe. O ainda no a expresso da esperana. Quando dizemos ainda no, no esperamos, mas esperanamos, mobilizamo-nos. Por isso, quero compartilhar com vocs algo muito bonito, que encontrei em Eduardo Galeano: Ela est na minha frente. (...) Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais a alcanarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para caminhar. O recado da tica abrir os olhos, arregalar os olhos para vermos e, juntos, caminharmos na direo daquilo que Betinho chamou de felicidadania.

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MATERIAL DE APOIO

A surdez da mdia e o despreparo do EstadoA seguir trechos do texto A menina que respira, o Estado que no v e a mdia que no ouve * , de Patricia Smaniotto. O artigo motivado pela histria de Haleigh Poutre, de 11 anos, em coma em um hospital de Massachussetts (EUA), com graves ferimentos causados pelo padrasto e pela tia materna, que a maltratavam constantemente. O estado da garota foi considerado irreversvel pelos mdicos, que pediram autorizao Suprema Corte estadual para retirar os aparelhos que a mantinham viva. Depois que o equipamento foi desligado em janeiro de 2006, ela voltou a respirar sozinha.O despreparo demonstrado na avaliao das condies de segurana de Haleigh no exclusividade dos Estados Unidos. No Brasil, apesar de o Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA) garantir e defender os direitos desse grupo, o desinteresse do Estado se evidencia na falta de preparo das instituies que lidam diretamente com a populao afetada. Embora o ECA tenha tornado imprescindvel a atuao dos Conselhos Tutelares, estes no recebem os recursos materiais, financeiros e humanos necessrios para diminuir a invisibilidade da violncia, praticada atrs das portas dos nossos lares. No falta boa vontade aos milhares de pessoas que atuam em instituies de defesa dos direitos da infncia e da adolescncia. No entanto, apesar de existirem leis e mecanismos para execut-las, falta uma estrutura organizacional eficiente e otimizada, alm de recursos materiais, financeiros e humanos, administrados de forma competente e condizentes com a dimenso social e poltica da misso desses rgos e instituies. Mesmo amadurecidos no tratamento do tema, os meios de comunicao continuam a dar mais ateno aos fatos do que rede de aes e omisses que os causou. Muitas vezes, ouvem apenas as autoridades responsveis pela execuo das polticas pblicas Poder Executivo ou as autoridades policiais. No primeiro caso, a abordagem sobrevoa o reino abstrato das intenes institucionais, longe do cotidiano concreto e dolorido da violncia. No segundo, flagra-se a cena do crime e do abuso, sem considerar o tamanho da sujeira que as famlias, a sociedade e o Estado vm jogando para baixo do tapete durante toda a histria cultural, social, poltica e econmica do pas. A atuao da mdia na divulgao de informaes prescinde de anlises crticas, constantes e adequadas relativas defesa dos direitos da infncia e da adolescncia. Como conseqncia dessa surdez seletiva, no se ouve quem mais precisa ser ouvido: as crianas, os adolescentes, seus pais e responsveis e alguns dos principais atores do Sistema de Garantia de Direitos, diretamente responsveis pela mediao da relao das crianas e dos adolescentes com os demais setores da sociedade, inclusive a prpria mdia. Caso abrisse seus ouvidos a quem no tem dado voz, a mdia poderia perceber seu potencial de transformao social. Mobilizaria a sociedade num debate sobre o despreparo profissional e a ausncia de estrutura que emperram a rede institucional de proteo e a impedem de atingir a eficincia necessria para romper as barreiras da invisibilidade, do silncio e da impunidade. Daria voz e espao, sem preconceitos e prejulgamentos, s crianas e aos adolescentes e, tambm, a seus algozes domsticos, eles prprios, muitas vezes, vtimas de violncia, e assim ajudaria a lhes devolver o direito de acreditar que possvel respirar de novo e construir outra histria de vida, mais justa e pacfica. Poderia ir mais fundo ainda e investigar as razes culturais da violncia familiar. Crianas e adolescentes no podem continuar a ser tratados como cidados de segunda classe, como tem acontecido ao longo da histria social da famlia. Precisam estar em primeiro lugar na lista de prioridades de toda a sociedade e um jornalismo socialmente responsvel uma poderosa ferramenta para se alcanar a prioridade absoluta para crianas e adolescentes, no Brasil e em qualquer lugar do mundo.

*Publicado originalmente na revista Ciranda: Central de Notcias dos Direitos da Criana e do Adolescente. Disponvel em:< http://www.ciranda.org.br/2004/artigos.php>. Acesso em 6 nov. 2006.ABRIGO comunidade de acolhida e socioeducao

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Para refletir Quando refletimos sobre o Programa Abrigar e falamos em acolher, somos remetidos ao princpio tico, que o respeito ao outro nas relaes sociais. Para respeitar, necessrio reconhecer a presena do outro como igual, em sua humanidade. Podemos olhar as relaes e as aes em nossa sociedade pela filosofia e pela tica. Falar em tica falar da vida, mas no de uma vida qualquer, e sim de uma vida boa, de uma vida rica, de uma vida digna. Falamos em tica como instrumento valioso para olharmos a realidade e para nos perguntarmos sobre os valores que esto presentes em nossas aes, para que possamos orient-las na direo dos nossos objetivos. A filosofia uma busca constante e amorosa de um saber cada vez maior. Ela procura unir as capacidades que temos, como seres humanos, para refletir sobre a realidade e atuar sobre ela. Ela tambm uma atitude crtica diante da realidade, superando opinies do senso comum. Assumir uma atitude crtica procurar ver a realidade com clareza, profundidade e abrangncia. Ver com clareza perceber que h coisas e situaes que podem turvar nosso olhar, como os preconceitos e as ideologias. Vemos a realidade com os culos da nossa cultura, da nossa classe social, do nosso tempo. Ver com profundidade no se contentar com as aparncias, porque elas podem enganar. No se pode ficar s nas manifestaes, preciso ir buscar as causas. Ver com abrangncia olhar a realidade por todos os seus ngulos e de todos os pontos de vista. A realidade vista com abrangncia no sim ou no; sim e no. Para conhecer as pessoas e os fatos de um ngulo diferente preciso

As pessoas que a gente no vconhecer o ponto de vista dos outros, procurando colocar-se no lugar deles, para termos a possibilidade de ver diferente. A tica um olhar crtico sobre a moralidade. A moral estabelece normas e prescritiva, enquanto a tica reflexiva. Na tica, o bem comum o horizonte norteador. O princpio nuclear da tica o respeito ao outro. E, para respeitar o outro, preciso que se admita que ele existe, que se reconhea sua existncia. Na vida cotidiana, costumamos passar pelas pessoas como se elas no existissem. comum ignorar os sujeitos que no so como ns, que so os outros. So as pessoas que a gente no v. A tica nos ajuda a olhar os outros (que so componentes de ns mesmos) norteados pela construo da realidade e da humanidade que queremos. De que vale trabalhar no abrigo, qual o sentido de nossa prtica, que valor ela tem, para ns e para a sociedade? O objetivo de qualquer instituio, do ponto de vista tico, a construo da felicidade, da cidadania e a garantia do direito a ter direitos, a ter espao para atuar e ser reconhecido com justia. Justia igualdade na diferena. Somos diferentes, mas somos iguais em direitos. A desigualdade algo construdo socialmente. Quando olho a realidade por uma perspectiva tica, tenho de me perguntar: O que eu tenho a ver com isso? A tica me leva a perceber que estou envolvido nesse contexto, que tenho de me mobilizar no sentido de transformar essa realidade. A felicidade no est pronta, a cidadania no est garantida. preciso que ela se coloque para ns como ideal. O recado da tica abrir os olhos, arregalar os olhos para ver e, juntos, caminharmos na direo daquilo que Betinho chamou de felicidadania.

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Um olhar para a histriaMyrian Veras Baptista*No ser a primeira vez que o saudvel exerccio de olhar para trs ajudar a iluminar os caminhos que agora percorremos, entendendo melhor o porqu de certas escolhas feitas por nossa sociedade.

Este artigo procura esboar a histria da criana Nos tempos da Colnia e do adolescente quanto ao seu lugar na sociedade H relatos que nos contam como os portugueses brasileira e quanto ao tratamento que lhes foi dispenformularam um projeto de explorao das novas terras Mary del Priori sado por essa sociedade, particularmente queles em e de aculturao de seus moradores, quando chegaram situao de vulnerabilidade. ao Brasil, no sculo XVI, e depararam com as naes indgenas que As aproximaes a essa histria nos mostram realidades ocupavam o territrio. A estratgia inclua a vinda dos jesutas para complexas e contraditrias, construdas no contexto das diversas catequizar os nativos e facilitar a colonizao. Diante da resistncia dos conjunturas criadoras e consolidadoras do Estado brasileiro. Essas dife- ndios cultura europia e formao crist, os padres resolveram rentes realidades, no entanto, evidenciam que as dificuldades vividas investir na educao e na catequese das crianas indgenas, consideradas por muitas das crianas e dos adolescentes ocorreram, de um lado, por almas menos duras. eles pertencerem a espaos e tempos marcados por desigualdades sociais Muitas dessas crianas eram deliberadamente afastadas de suas e econmicas e, de outro, por terem sido, ao longo da histria, expresso tribos. Entre 1550 e 1553, foram criadas as Casas de Muchachos dessas desigualdades e, em algumas conjunturas, objeto de cuidados protoforma dos abrigos e internatos educacionais que perduram at aparentes que mascaravam a concretizao de outros interesses. hoje (Sposati, 2004, p. 1) , custeadas pela Coroa portuguesa. Essas*Doutora em Servio Social. Professora da Ps-Graduao em Servio Social e Coordenadora do Ncleo de Estudos e Pesquisas sobre a Criana e o Adolescente (NCA), da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP), e presidente da Associao dos Pesquisadores de Ncleos de Estudos e Pesquisas sobre a Criana e o Adolescente (NECA).

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Foi apenas no sculo XVIII que surgiram as primeiras instituies de proteo criana abandonada. Foram implantadas as trs primeiras rodas de expostos em terras brasileiras: em Salvador (1726), no Rio de Janeiro (1738) e em Recife (1789)

casas abrigavam os curumins ou meninos da terra e se constituam, em consonncia com o projeto colonial portugus, em um posto avanado de transmisso e inculcao dos valores do invasor aos invadidos (os gentios) no processo de colonizao portuguesa (Janice Theodora da Silva, apud Sposati, 1988, p. 62). Esses pequenos indgenas formaram um verdadeiro exrcito de Jesus, que colaborava na pregao crist pelas matas e pelos sertes, servindo de intrpretes para os jesutas. No decorrer dos sculos XVI e XVII, os jesutas fundaram colgios nas principais vilas e cidades da poca: Salvador, Porto Seguro, Vitria, So Vicente, So Paulo, Rio de Janeiro, Olinda, Recife, So Lus do Maranho e Belm do Par (Marclio, 1998). As Casas de Muchachos no eram ocupadas apenas por meninos indgenas; tambm se recebiam rfos e enjeitados, vindos de Portugal, que aprendiam rapidamente a lngua nativa, tornando-se importantes auxiliares no trabalho de converso (Chamboileyron, 2004). No entanto, segundo Marclio (1998, p. 130-131), os jesutas no tinham nenhum interesse na sorte das crianas da Colnia, fossem elas abandonadas, ilegtimas ou escravas, pois nenhum pequeno exposto foi admitido nos colgios jesutas. Marclio (1998) relata ainda que a prtica de abandono dos filhos foi introduzida na Amrica pelos europeus, no perodo da colonizao. A situao de misria, explorao e marginalizao, aliada s dificuldades de apropriao do modelo europeu de famlia monogmica e indissolvel, levou os moradores da terra a seguirem o exemplo dos descendentes de espanhis ou de portugueses, de abandonar seus filhos. Nos sculos XVI e XVII, j podiam ser encontradas crianas brancas e mestias perambulando, esmolando, vivendo entocadas nos matos ao redor das vilas. A infra-estrutura destinada aos cuidados dessas crianas no refletia nenhuma preocupao com elas.ABRIGO comunidade de acolhida e socioeducao

Muitas acabavam sendo assumidas ou agregadas como criadas por famlias da terra: ... a maioria dos bebs que iam sendo largados acabavam por receber a compaixo das famlias que os encontravam. Elas criavam os expostos por esprito de caridade, mas tambm, em muitos casos, calculando utiliz-los, quando maiores, como mo-deobra suplementar, fiel, reconhecida e gratuita (Marclio, 2003, p. 55). Durante o perodo colonial, a proteo criana abandonada no Brasil tinha por referncia as determinaes de Portugal e era prevista nas trs Ordenaes do Reino: formalmente, era responsabilidade das cmaras municipais encontrar os meios para criar as crianas sem famlia, sendo obrigadas a lhes destinar um sexto de seus recursos. Funo que freqentemente era exercida a contragosto, com evidncias de omisso, relutncia, negligncia e falta de interesse: limitavam-se a pagar quantias irrisrias a amas-de-leite para amamentar e criar essas crianas ou delegavam servios especiais de proteo a outras instituies, sobretudo s Santas Casas de Misericrdia. Foi apenas no sculo XVIII que surgiram as primeiras instituies de proteo criana abandonada. Foram implantadas as trs primeiras rodas de expostos em terras brasileiras: em Salvador (1726), no Rio de Janeiro (1738) e em Recife (1789). Marclio (2003, p. 55) nos conta que a quase totalidade desses pequenos expostos nem chegavam idade adulta. A mortalidade dos expostos, assistidos pela roda, pelas cmaras ou criados em famlias substitutas, sempre foi a mais elevada de todos os segmentos sociais do Brasil incluindo neles os escravos. importante assinalar que no era comum, nessa poca, as crianas africanas ou descendentes de africanos ficarem expostas: elas tinham um valor de mercado, eram propriedade daqueles que as haviam adquirido ou a seus pais, para serem seus escravos.26

No perodo da monarquia casamento legtimo, e outros para indigentes, filhas naturais de mes Depois de proclamada a Independncia (1822), as novas pobres ou rfs desvalidas. Havia ainda divises determinadas pelo conjunturas polticas e econmicas pressionaram a sociedade para critrio racial, ou seja, espaos para rfs brancas e, outros, para que fossem enfrentados os problemas da pobreza e da criana carente. meninas de cor. Sedimentava-se a idia de que o aumento populacional afetava O regime de funcionamento das instituies seguia o modelo negativamente o desempenho econmico, uma vez que a pobreza do claustro (), as prticas religiosas e o restrito contato com o mundo tornava-se onerosa ao Estado e propiciava o aumento do nmero de exterior eram caractersticas fundamentais dos colgios para meninos crianas abandonadas. Essas idias desencadearam iniciativas, tanto rfos e dos recolhimentos femininos, sendo que, no segundo caso, a pblicas quanto privadas, para enfrentar essas questes, efetivando clausura era imposta com maior rigor (Rizzini, 2004, p. 24-7). As crianas um processo que gradativamente substituiu a ateno individual pela que viviam nas Casas de Recolhimento dos Expostos no recebiam asilar, por meio da instituciona-lizao macia, mantendo, em condio nenhuma instruo sistemtica: faltavam planos e objetivos educacionais de rfos e abandonados, aqueles que, carentes e profissionalizantes a essas instituies. Apenas de apoio familiar, foram assumidos como em 1829 foi implantada uma escola de primeiras Em 1927, por meio do Decreto problemas sociais. letras no Recolhimento da Misericrdia da Bahia no 17.943-A, foi constitudo o Em 1828, as obrigaes das cmaras (Marclio, 1998). Em 1855, um novo projeto de Cdigo de Menores, que se municipais foram reformuladas com a Lei dos polticas pblicas resultou na criao de Asylos de tornou conhecido como Cdigo Municpios, que institua que, onde houvesse Educandos, destinados a ministrar ensino Mello Mattos, consolidando as santas casas, as cmaras poderiam lhes transferir profissionalizante em nove provncias. leis de assistncia e proteo oficialmente o seu dever de cuidar dos expostos. A partir de meados do sculo XIX, a menores Foi nesse perodo que, diante da relutncia da profundas mudanas ocorreram na ao das municipalidade em prover as necessidades materiais para os cuidados Misericrdias em relao s crianas atendidas: o sistema de amas de crianas e adolescentes desprovidos de apoio familiar, as assemblias mercenrias foi abolido, acusado de ser a principal causa do alto ndice provinciais acabaram subsidiando as santas casas, para que elas de mortalidade infantil dos expostos; foi adotado um sistema de desempenhassem essa funo. escritrio para admisso aberta, que permitia conhecer quem estava Nesse perodo, por iniciativa da Igreja Catlica, foi fundada a entregando as crianas; a faixa etria se ampliou, e crianas at 7 anos primeira Casa de Recolhimento dos Expostos. Essas casas eram passaram a ser deixadas nos asilos de expostos, onde, antes, somente instituies complementares roda que recebiam crianas a partir de 3 eram admitidos bebs (Marclio, 1998). anos (antes dessa idade, permaneciam com amas-de-leite mercenrias) Durante esse sculo, as Casas de Misericrdia foram at os 7 anos, quando eram procuradas formas de coloc-las em casas gradativamente perdendo a autonomia, ficando a servio do Estado e de famlia (Marclio, 1998). Esse atendimento asilar era organizado sob seu controle, j que dele dependiam financeiramente. Foi sobre essa mediante a diviso por sexo e, em muitos casos, mediante a situao base que se estruturaram as primeiras propostas de polticas pblicas legal havia asilos somente para a proteo de rfs pobres, filhas de voltadas para a criana abandonada.27ABRIGO Um olhar para a histria

Em 1828, as obrigaes das cmaras municipais foram reformuladas com a Lei dos Municpios, que institua que, onde houvesse santas casas, as cmaras poderiam lhes transferir oficialmente o seu dever de cuidar dos expostos

Em 1871 e 1888, com as leis do Ventre Livre e urea, um grande nmero de crianas negras e mestias juntaram-se quelas provenientes de famlias pobres e aos filhos de prostitutas. A pobreza e a misria expandiram-se e, conseqentemente, o abandono acentuou-se (Maricondi, 1997). Nos primrdios da Repblica No final do sculo XIX e incio do sculo XX, as obras filantrpicas dirigidas a crianas se multiplicaram. Foi a partir desse perodo que os mdicos higienistas e os juristas, influenciados pelas novas idias gestadas pelo Iluminismo europeu, passaram a se preocupar com a questo da criana abandonada e a construir propostas de reformulao da poltica assistencial, enfatizando a urgncia na reformulao de prticas e comportamentos tradicionais e arcaicos, com uso de tcnicas cientficas (Marclio, 1998, p. 194). A emergncia de novas categorias sociais em razo da diversificao da economia, do crescimento demogrfico, da concentrao urbana das populaes, do aumento dos ndices de pobreza e sua maior visibilidade punha em evidncia, nos primeiros anos do sculo XX, a criana e o adolescente abandonados, chamados de menores em situao irregular, ou menores infratores, exigindo polticas pblicas que respondessem questo tal como vinha se configurando. Segundo Santos (2004), as obras filantrpicas destinadas ao atendimento de adolescentes se recusavam a receber meninos ou meninas incriminados judicialmente, apesar de terem algumas vagas disponveis para menores encaminhados pelo Estado. Diante da enorme demanda, essa posio pressionava o Estado para a criao de instituies pblicas de recolhimento. Ento, no incio do sculo XX, foram criadasABRIGO comunidade de acolhida e socioeducao

as instituies de regime prisional, para menores de 21 anos e pequenos mendigos, vadios, viciosos, abandonados, maiores de 9 e menores de 14 anos, que l deveriam ficar at completarem 21 anos. A recuperao desses meninos era baseada na pedagogia do trabalho e no combate ao cio. A idia que norteava a criao dessas instituies era a de que para a correo preventiva de meninos viciosos pelo abandono ou pela m educao familiar, seriam necessrias instituies especiais, alm das de pura caridade (Marclio, 1998, p. 218). Por volta de 1920, a questo, que j era estatal, foi transformada em legal. A Lei n 4.242, de 1921, que trata da despesa geral do pas, em seu artigo terceiro, entre outros tpicos, autoriza o governo a organizar o servio de assistncia e proteo infncia abandonada e delinqente e determina a construo de abrigos para o recolhimento provisrio dos menores de ambos os sexos, que fossem encontrados abandonados ou que tivessem cometido crime ou contraveno; nomeao de juiz de direito privativo de menores, assim como de funcionrios necessrios ao respectivo juiz; providncias para que os menores que estivessem cumprindo sentena em qualquer estabelecimento, fossem transferidos para a casa de reforma aps sua instalao (Fernandes, 1998, p. 22). Em 1923, o Decreto n 16.272 regulamentou a assistncia e a proteo de menores. Estabeleceu, em seu artigo primeiro, que o objeto e fim da lei o menor, de qualquer sexo, abandonado ou delinqente, o qual ser submetido pela autoridade competente s medidas de assistncia e proteo nela institudas. No artigo 62, afirma que: subordinado ao Juizado de Menores, haver um abrigo, destinado a receber provisoriamente os menores abandonados e delinqentes at que tenham destino definitivo.28

Em 1924, atendendo s determinaes da Lei n 4.242/21 e econmicas e demogrficas: a populao alcanou 41 milhes de sob a influncia da primeira Declarao dos Direitos da Criana, tambm habitantes, a taxa de entrada de imigrantes estrangeiros reduziu-se chamada de Declarao de Genebra (1923) , foi criado o Juzo Privativo sensivelmente, substituda pela migrao interna e o processo de dos Menores Abandonados e Delinqentes. industrializao acelerou-se e modernizou-se com a construo da Usina Em 1927, por meio do Decreto n 17.943-A, foi constitudo o Siderrgica de Volta Redonda e da Fbrica Nacional de Motores. Cdigo de Menores, que se tornou conhecido como Cdigo Mello Mattos, Segundo Colmn (2004), por essa poca, o discurso de proteo consolidando as leis de assistncia e proteo a menores. O cdigo divide social ganhou espao entre os representantes polticos da nova ordem os menores em abandonados e delinqentes. Trata dos infantes expostos social, estabelecida a partir de 1930 (governo Vargas), e a interpretao crianas de at 7 anos encontradas em estado de abandono e explicita dos problemas dos menores passou a ser feita nessa nova tica. A as caractersticas que identificam essa situao: as condies de Constituio de 1937 introduziu o dever do Estado de prover condies habitao, de subsistncia, de negligncia, de explorao e de maus- preservao fsica e moral da infncia e da juventude e o direito dos tratos. Alm disso, tipifica os menores em vadios pais miserveis de solicitar o auxlio do Estado para (artigo 28), mendigos (artigo 29) e libertinos (artigo garantir a subsistncia de sua prole. 30). No artigo 159, o cdigo determina: Recebendo Em 1948, em So Paulo, concomitanteNo final do sculo XIX o menor, o juiz o far recolher ao abrigo, mandar mente a uma pesquisa realizada pelo movimento e incio do sculo XX, as obras submet-lo a exame mdico e pedaggico, e Economia e Humanismo sobre a situao dos filantrpicas dirigidas a crianas iniciar o processo que na espcie couber. menores institucionalizados, tiveram incio as se multiplicaram O Cdigo Mello Mattos determinava semanas de Estudos dos Problemas de Menores, ainda que o abrigo de menores seria subordinado com o objetivo de debater a questo e buscar ao juiz de menores, responsvel no apenas pelo alternativas para enfrent-la. Os Anais da Primeira encaminhamento das crianas, mas tambm pelo provimento dos cargos: Semana (1948) denunciam o que acontecia em So Paulo: ... no captulo o diretor seria subordinado ao juiz de menores e o regimento interno da assistncia aos menores, ningum h de esprito bem formado que deveria ser aprovado pelo ministro da Justia e Negcios Interiores. O possa conter um frmito de indignao. Os menores abandonados, cuja governo foi autorizado a confiar a associaes civis a direo e a falta foi nascerem em lares desajustados, so realmente abandonados, administrao de institutos subordinados ao juiz, exceto alguns deles, principalmente quando recolhidos aos abrigos oficiais que se destinam nomeados no prprio cdigo. a proteg-los. Neles se transformam em coisas, em quantidades, em seres amorfos que no exigem cuidados e s vezes nem mesmo Em tempos de industrializao alimentao. So apenas tolerados. E o so porque de sua presena O perodo que vai do final da dcada de 1920 at os anos dependem a instituio e seus agregados (). A rigidez da disciplina de1940 foi marcado por profunda crise econmica no pas e no mundo, esmaga qualquer veleidade de ao ou iniciativa. Em autmatos se cuja maior expresso foi o crack da Bolsa de Nova Iorque, em 1929. O transformam as crianas, deformadas psicologicamente para o resto da Brasil viveu momentos de grandes transformaes sociais, polticas, existncia, quando no viciadas, pervertidas, imbudas de um sentimento29ABRIGO Um olhar para a histria

Na dcada de 1980, com o fim da ditadura militar e o fortalecimento da cultura democrtica, teve incio uma articulao dos movimentos populares em defesa dos direitos de cidadania, do poder local, da participao na administrao pblica

falso da vida, como se durante o resto de seus dias carregassem atrs de si o espectro do vigilante ou do diretor, ou a ameaa dos castigos corporais (apud Fvero, 1999, p. 34). A concluso dos participantes era a de que a sada para o problema do menor abandonado ou delinqente estava em auxiliar e reforar a famlia como espao privilegiado para o seu ajustamento e reajustamento. O elevado ndice de internaes em abrigos e reformatrios era condenado, e era defendida a necessidade de desenvolvimento de programas preventivos que pudessem fornecer s famlias as condies necessrias para que exercessem o seu papel na sociedade a partir dos princpios cristos (Colmn, 2004). Como resultado dessas discusses, em 1949, o Juizado de Menores da cidade de So Paulo instituiu o Servio de Colocao Familiar, com o objetivo de evitar a internao de menores, pelo cumprimento da legislao e por medidas de apoio, suprindo a ao do Poder Executivo na implementao de polticas para essa populao (Fvero, 1999, p. 44). Esse servio, segundo Fvero (1999, p. 76), tinha por proposta garantir criana o direito de crescer no interior de uma famlia considerada estruturada ou, como a prtica concretizou posteriormente, permanecer na prpria famlia de origem. Forjava-se assim uma nova compreenso sobre como deveria ser a poltica de ateno na rea. O processo de acelerao da industrializao iniciado nos anos 1940, no governo Vargas, com a construo de Volta Redonda, foi ampliado a partir de 1956, no governo Kubitschek, com a internacionalizao da produo. Esse processo resultou em expanso da economia e em maior dilogo com o pensamento mundial. Por outro lado, foi tambm permeado por crises econmicas, aumento da inflao, ampliao das disparidades regionais e das desigualdades de renda,ABRIGO comunidade de acolhida e socioeducao

acelerao do processo migratrio, com recrudescimento de focos de tenso e misria. Nessa poca, no Primeiro Encontro Nacional de Juzes de Menores, realizado em Porto Alegre, foi formulada uma proposta de reforma do Cdigo de Menores de 1927, cujo sentido, segundo Rizzini (1995), pode ser resumido em quatro pontos principais: a criao de uma fundao de mbito nacional; a instituio de um Conselho Nacional de Menores, para orientar a assistncia e proteo; o restabelecimento da subordinao da instncia executora ao Juzo de Menores e o estabelecimento de uma polcia especial para lidar com os menores. As emendas apresentadas a essa proposta refletiam as idias que vinham sendo debatidas nos fruns nacionais e internacionais reforo da famlia, diante do aumento dramtico do abandono e da delinqncia juvenil, por meio de subsdios e programas de colocao familiar, alm de legislao sobre adoo (Colmn, 2004). Essas idias haviam sido estruturadas na Declarao dos Direitos da Criana, promulgada pelas Naes Unidas em 1959, e contriburam para o aprofundamento do mal-estar reinante em relao s condies subumanas em que se encontrava a maior parte da populao infantojuvenil no Brasil. Durante o governo militar O ano de 1964 foi marcado por mudanas radicais na conjuntura poltica. Os militares assumiram o governo do pas, e o Estado brasileiro deteve plenamente o papel de interventor e principal responsvel pelas medidas referentes criana e ao adolescente pobre ou infrator. Os militares procuraram capitalizar o descontentamento geral, mostrando-se aptos a dar uma resposta radical: em 1964, foi30

aprovada a Lei n 4.513, que criou a Fundao Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem), com o objetivo de formular e implantar uma poltica nacional nessa rea. O problema da criana e do adolescente passou a ser abordado como questo de segurana nacional e, portanto, enfrentado de forma estratgica, por meio de um conjunto de medidas legislativas, administrativas e polticas. O artigo sexto da Poltica Nacional do Menor assegurava prioridade aos programas de integrao do menor na comunidade, por meio de assistncia famlia e da colocao de menores em lares substitutos. Alm disso, incentivava a criao de instituies ou a adaptao daquelas j existentes, de modo que os menores nelas abrigados tivessem vida bastante aproximada da familiar, devendo o internamento restringir-se aos casos em que no existissem instituies desse tipo no lugar ou por determinao judicial. Em pouco tempo, ficou claro que essas diretrizes no se concretizariam, principalmente em razo da estrutura altamente centralizadora da Funabem e da permanncia da priorizao da internao como medida de segregao dos menores marginalizados. Em 1979, foi aprovado um novo Cdigo de Menores (Lei n 6.697), que, da mesma maneira que o Cdigo Mello Mattos, no era universal no trato das crianas e dos adolescentes brasileiros; era voltado apenas queles que se encontravam em situao irregular, ou seja, queles que estivessem privados de condies essenciais sua subsistncia, sade, instruo obrigatria; em perigo moral; privados de representao ou assistncia legal, pela falta eventual dos pais ou responsvel; com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptao familiar ou comunitria; respondendo por prtica de ato infracional. Esse novo Cdigo acabou com a clssica separao entre abandonados e delinqentes e ampliou sensivelmente os poderes do juiz de menores, dando-lhe, entre outras atribuies, a de determinar, por meio de portarias, medidas de ordem geral. Oficializava o papel da Funabem e estabelecia que ela, alm de atender aos desvalidos, abandonados e infratores, deveria adotar meios para prevenir ou corrigir as causas dos31

desajustamentos. Determinava a criao, pelo poder pblico, de entidades de assistncia e de proteo ao menor: centros especializados destinados recepo, triagem, observao e permanncia de menores carentes e infratores. As unidades da Fundao Estadual do Bem-estar do Menor (Febem) ficariam sob a responsabilidade dos governos estaduais, sujeitas superviso das polticas gerais estabelecidas pela Funabem. Muitas das instituies que operavam essas polticas j existiam e funcionavam h muito tempo. Elas foram repassadas para os governos estaduais, que assumiram a incumbncia do abrigamento dos menores. Nessa poca, era comum as crianas e os adolescentes serem abrigados em complexos de atendimento, semelhantes aos antigos reformatrios e orfanatos, isolados da malha urbana e distantes da vida em comunidade. Suas estruturas eram montadas de forma a impedir o contato com o mundo externo, mantendo, no seu interior, escolas, quadras esportivas, piscinas, ncleo profissionalizante, alm de atendimento mdico, odontolgico e enfermarias. Seu sistema de funcionamento era baseado na segregao por gnero e por idade, e na massificao: as crianas e os adolescentes eram distribudos por mdulos (com capacidade para abrigar mais ou menos 100 em cada um), de acordo com o sexo e a faixa etria, separando irmos e parentes. A superlotao era constante, bem como as sadas no autorizadas (fugas). Barbetta (1993, p. 39) aponta, nos anos 1970 em um processo cujo pano de fundo foi a abertura regulada, encetada pelo governo militar , trs iniciativas importantes para a reestruturao do pensamento da sociedade brasileira em relao a suas crianas e seus adolescentes: o surgimento da Pastoral do Menor, no mbito das pastorais populares talvez a instituio fundamental de todo o movimento social em defesa da criana e do adolescente que disseminou a concepo de sujeito da histria, assimilada da Teologia da Libertao; a realizao, em 1979, do Ano Internacional da Criana, em comemorao aos 20 anos da Declarao Universal dos DireitosABRIGO Um olhar para a histria

da Criana (1959), que pr-configura a Doutrina de Proteo Integral nesse contexto que o Unicef (Fundo das Naes Unidas para a Infncia) se fortalece e amplia seu campo de ao no Brasil, redirecionando seu trabalho para as comunidades e grupos que comeam a despontar como problematizadores da problemtica do menor e defensores dos direitos; a fundao do Movimento de Defesa do Menor em So Paulo, liderado por Lia Junqueira, cuja atuao se destaca, nessa primeira etapa, na denncia de maus-tratos e violncia cometidas contra crianas. A caminho de um novo tempo Na dcada de 1980, com o fim da ditadura militar e o fortalecimento da cultura democrtica, teve incio uma articulao

dos movimentos populares em defesa dos direitos de cidadania, do poder local, da participao na administrao pblica. A movimentao de diferentes grupos possibilitou a criao do Frum Permanente de Defesa da Criana e do Adolescente (Frum DCA), em que eram discutidas questes relativas inexistncia de polticas pblicas de atendimento, democratizao precria das instituies e necessidade de reverter o quadro de abandono deste segmento da populao. Esse frum, ento, organizou-se em torno da necessidade de incluso, na nova Constituio, de clusulas que garantissem uma nova legislao para essas crianas e esses adolescentes. As presses possibilitaram a incluso de artigos especficos na Constituio Federal de 1988 (artigos 226 a 230). Gestava-se assim o movimento pelo Estatuto da Criana e do Adolescente.

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MATERIAL DE APOIO

No sculo XVIII surgem rodas de expostos, pertencentes s primeiras instituies de proteo criana abandonada no Brasil. Criada na idade mdia, a roda permitia o recolhimento da criana sem que a identidade dos pais fosse revelada

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Exemplos de Asilos dos Expostos e a grande quantidade de crianas atendidas. As imagens fazem parte do acervo do Museu da Irmandade da Santa Casa de Misericrdia de So Paulo

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Para refletir Um olhar para a histria das crianas e dos adolescentes no Brasil mostra que muitas de suas vulnerabilidades ocorreram por pertencerem a espaos e tempos marcados por desigualdades sociais e econmicas. Em algumas conjunturas, os cuidados que essas crianas e adolescentes recebiam freqentemente mascaravam interesses de outras pessoas, os quais pouco ou nada tinham que ver com o seu bem-estar. No sculo XVI, os portugueses chegaram ao Brasil tendo por projeto a explorao das terras e a aculturao dos moradores. Com eles vieram tambm os jesutas, que criaram as Casas de Muchachos, misto de escola e casa de permanncia para curumins e rfos portugueses. A inteno era a de catequizar os nativos e facilitar a colonizao. No perodo colonial, j se encontravam crianas brancas e mestias esmolando e vivendo entocadas nos matos. A ausncia de infraestrutura destinada aos cuidados dessa populao refletia o descaso com ela. Algumas dessas crianas acabavam sendo agregadas como criadas por famlias. Em muitos casos, o intuito era utiliz-las, quando maiores, como mo-de-obra suplementar, fiel, reconhecida e gratuita. No sculo XVIII, surgiram as rodas dos expostos como meio de proteo criana abandonada. No entanto, muitas crianas assistidas pela roda, pelas cmaras municipais ou criadas em famlias substitutas morriam ainda bebs. No sculo XIX, com as leis do Ventre Livre e urea, a pobreza e a misria expandiram-se, e o abandono, a perambulao de crianas e as pequenas infraes acentuaram-se.

Um olhar para a histria Essa situao levou multiplicao das obras filantrpicas, tendo em vista que grande nmero de crianas negras e mestias juntaram-se s provenientes de famlias pobres e aos filhos de prostitutas engrossando o grupo que necessitava de auxlio. Nos primeiros anos do sculo XX, foram criadas instituies de regime prisional, voltadas para a correo de meninos considerados da classe perigosa ou voltados para o crime. Essas instituies eram baseadas na pedagogia do trabalho e no combate ao cio. No ano de 1964, com os militares assumindo o governo do pas, o Estado passou a ser o principal responsvel pelas medidas referentes criana e ao adolescente pobre ou infrator, tomados como questo de segurana nacional. Priorizou-se a internao como medida de segregao. Essas internaes eram feitas em Complexos de Atendimento, isolados da malha urbana e distantes da vida em comunidade. No interior desses complexos, havia escolas, quadras esportivas, piscinas, ncleo profissionalizante, alm de atendimento mdico, odontolgico e enfermarias. Na dcada de 1980, com o fim da ditadura militar e o fortalecimento da cultura democrtica, houve uma articulao dos movimentos populares para reverter o quadro de abandono de crianas e adolescentes e para incluir na nova Constituio clusulas que garantissem uma nova legislao para esse segmento da populao. Gestava-se assim o movimento pelo Estatuto da Criana e do Adolescente.

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A histria comea a ser revelada: panorama atual do abrigamento no BrasilRita de Cssia Oliveira*Nenhum mora em casa. Nenhum mora na rua. Esto escondidos em orfanatos espalhados por todo o pas. Ningum os conhece porque no incomodam. No fazem rebelies nem suplicam esmolas. So personagens invisveis de uma histria jamais contada.

Finalmente a temtica das crianas e dos adoinclusive, a explicitao de suas contradies. lescentes que vivem em abrigos ganha destaque. DuCom a promulgao do Estatuto da Criana e do rante muito tempo, a vivncia em instituies foi consiAdolescente (ECA), as instituies antigamente Correio Braziliense, 2003 derada resultante de determinadas situaes individuais conhecidas como obras, orfanatos, educandrios ou e familiares que mereciam poucos estudos e aes que garantissem os colgios internos , alm de passarem a ser denominadas abrigos, viramdireitos dessas pessoas. Mesmo o nmero de crianas e adolescentes se diante de novas diretrizes de funcionamento que rompem com um brasileiros afastados do convvio familiar ainda desconhecido. passado em que crianas e adolescentes eram, legalmente e por tempo Hoje sabemos que milhares dessas crianas e adolescentes bastante prolongado, afastados da vida comunitria e familiar. esto em abrigos no apenas por motivos relacionados ao seu histrico Quinze anos aps a promulgao do estatuto, ainda coexistem familiar, mas tambm por questes de ordem macroestrutural, que tanto os abrigos propriamente ditos quanto as histricas entidades requerem novas providncias do poder pblico e da sociedade civil. Pes- filantrpicas, alm de resqucios das unidades da Fundao Estadual do quisas recentes, de abrangncia local e nacional, contriburam para traar Bem-Estar do Menor (Febem) que atendiam carentes e abandonados. um panorama dessa realidade e colocar o abrigamento na pauta das Com base na articulao de dados relativos a dois levantamentos preocupaes do poder pblico e da sociedade civil, possibilitando, sobre abrigos um de abrangncia nacional e outro realizado na cidade*Mestre em Servio Social pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP). Assistente Social do Tribunal de Justia de So Paulo e coordenadora da pesquisa sobre abrigos, realizada na cidade de So Paulo, em 2003.

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De um lado, cresce, a cada dia, o nmero de pessoas que se candidatam adoo e se angustiam por aguardar durante muitos anos a possibilidade de se realizarem como pais; de outro, enquanto o tempo passa, as crianas e os adolescentes (...) crescem e continuam aguardando a chance de conviverem em meio familiarde So Paulo , este texto discute as situaes de abrigamento, visando contribuir para que se efetive a convivncia familiar para essas pessoas. Pesquisas recentes contriburam para revelar que o abrigamento de crianas e adolescentes, antes considerado conseqncia apenas de seu histrico familiar, tambm est relacionado a problemas macroestruturais. Assim, colaboraram para compor um quadro dessa realidade, cujas solues e responsabilidades cabem principalmente ao poder pblico e sociedade civil. Pesquisas: retrato da atual situao O objetivo das pesquisas era conhecer o perfil das instituies que abrigam crianas e adolescentes, como funcionam e quem so as pessoas que vivem ali, afastadas da convivncia familiar. Realizadas em 2003 e divulgadas a partir de 2004, as duas pesquisas consideraram que o abrigo se configura como um local de moradia de crianas e adolescentes afastados da convivncia familiar. O Levantamento Nacional foi realizado pelo Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada (Ipea) e promovido pela Subsecretaria de Promoo dos Direitos da Criana e do Adolescente e pelo Conselho Nacional de Direitos da Criana e do Adolescente (Conanda), com o apoio da Secretaria de Estado de Direitos Humanos do Ministrio da Assistncia Social, do Comit de Reordenamento da Rede Nacional de Abrigos para Infncia e Adolescncia e do Fundo das Naes Unidas para a Infncia (Unicef). Atingiu 589 instituies em todo o pas que recebiam recursos federais da Rede de Servios de Ao Continuada (SAC) do Ministrio da Assistncia Social, para a manuteno do atendimento a crianas e adolescentes nos programas de abrigos. A pesquisa da cidade de So Paulo foi feita pelo Ncleo deABRIGO comunidade de acolhida e socioeducao

Estudos e Pesquisas sobre a Criana e o Adolescente (NCA) do Programa de Estudos Ps-Graduados da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP) e pela Associao dos Assistentes Sociais e Psiclogos do Tribunal de Justia do Estado de So Paulo (AASPTJ-SP), com financiamento da Fundao Orsa e da Secretaria de Assistncia Social da Prefeitura de So Paulo. Foi detectada a existncia de 190 abrigos na cidade, dos quais 185 foram visitados. A pesquisa contabilizou 4.847 crianas e adolescentes vivendo nesses espaos. Conforme revela o Levantamento Nacional da Rede SAC, a Regio Sudeste se destaca no panorama nacional de abrigamento pelo maior nmero de instituies (49,1%), sendo So Paulo o estado com maior incidncia: dos 589 abrigos que tm convnio federal, cerca de 200 esto situados em So Paulo (34,1% do total), 58 no Rio Grande do Sul (9,8%), 45 no Rio de Janeiro (7,6%) e 41 no Paran (7%). Quanto ao tempo de funcionamento, a Pesquisa NCA/AASPTJ constatou que mais de 55% dos abrigos paulistanos iniciaram suas atividades a partir de 1990, ou seja, aps a promulgao do ECA. Esses dados coincidem com os 58,6% encontrados no Levantamento Nacional. Em algumas regies, o levantamento localizou instituies bastante antigas. No municpio de So Paulo, a Pesquisa NCA/AASPTJ verificou que 2,2% iniciaram suas atividades entre o fim do sculo XIX e incio do sculo XX, o que indica um cenrio no qual coexistem as antigas entidades filantrpicas e os abrigos propriamente ditos. Dos grandes complexos aos abrigos: atendimento personalizado A proposta do atendimento personalizado que se reproduza um cotidiano similar ao de um ambiente residencial, o que no significa40

substituir a famlia ou imit-la. Para a concretizao desse princpio, Segundo o Levantamento Nacional, cerca de 57,6% dos abrigos devem-se considerar, entre muitas questes, a capacidade de esto dentro do parmetro estabelecido pelos CMDCAs e atendem a abrigamento da unidade, o imvel em que ela funciona, a possibilidade at 25 crianas e adolescentes, porcentagem semelhante aos 61% de um relacionamento contnuo entre abrigados e funcionrios e o plano encontrados em So Paulo. Porm, em 4% dos abrigos de algumas de trabalho, dirigido a cada criana ou adolescente, que, com base no regies do pas e em 4,2% dos de So Paulo, a mdia por abrigo bastante resgate de sua histria, procurar encontrar alternativas para a superior ao recomendado, chegando a mais de 100 crianas e reintegrao familiar. adolescentes acolhidos. H, portanto, uma pequena parcela de A capacidade dos abrigos, associada arquitetura do imvel instituies que requer ateno no reordename