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118 Dossiê Warburg A decisão de constituir um pequeno dossiê em torno da obra de Aby Warburg reitera a recuperação crescente da produção desse historiador e a importância atual de seu pen- samento, que articula a história da arte à his- tória cultural. Essa articulação, como bem evi- dencia Agamben em seu texto Aby Warburg e a ciência sem nome, escrito em 1975, não é simplesmente metodologia de história da arte que se possa aplicar indiscriminadamente – o papel da obra de arte no pensamento de Warburg não é o de objeto passivo a ser contextualizado na cultura a partir de uma relação fixa. Ao contrário, o que motiva Warburg e o torna importante para a histó- ria da arte, sobretudo hoje, é que, para ele, compreender a arte demanda transitar seja na dimensão histórica, a partir do conceito de pathosformel , seja na dimensão da cultura, extrapolando, assim, os limites da história da arte tal como a concebemos classicamente. É indicativo que Agamben caracterize essa “ciência sem nome”, formulada por Warburg, a partir de uma figura. Warburg foi o pri- meiro historiador a fazer uso de imagens em suas aulas e palestras. A imagem, no entan- to, não é algo que ilustre o pensamento, mas que o provoca a sair de si mesmo, a partir. A espiral surge no texto de Agamben como figura complexa do duplo trânsito, com a qual se compreende facilmente que a arte não apenas disponibiliza a imagem da sobre- vivência histórica (como fim da espiral), mas, também é imagem do movimento de descentramento da obra como conheci- mento no campo da cultura (como cen- tro da espiral). Essa espiral hermenêutica, constituída na in- terpretação de Agamben, pode ser confron- tada a sua materialização nas pranchas foto- gráficas do atlas Mnemosine, que, seguindo o pioneirismo de Warburg, pode ser consi- derado o primeiro exemplo de uma história visual da arte. É verdade que as pranchas originais, com cerca de mil reproduções de obras, desenhos, esquemas, recortes de jor- nais e de revistas, foram perdidas na mudan- ça do Instituto Warburg para Londres, em 1933. Das 79 pranchas que sobreviveram com base em reproduções fotográficas fei- tas por Warburg em 1929, optamos por reproduzir quatro, de modo a revelar mini- mamente a extrema complexidade do pro- blema historiográfico e – por que não dizer – artístico que Warburg constitui. É de interesse pensar que a figura dessa espi- ral, que indica ao mesmo tempo descentra- mento e aprofundamento histórico agencia- do pela obra de arte, refere tais característi- cas ao problema do arquivo na arte contem- porânea: mais que imagens produzidas con- forme um dispositivo conceitual, as imagens do atlas são o próprio desvirtuamento de qual- quer dispositivo conceitual, exigindo, em suas articulações caracterizadas por essa patologia simbólica que se renova, questionar sua pró- pria posição (qualquer posição de sujeito) no sistema que produz a arte. Organização Cezar Bartholomeu A obra de Aby Warburg (1866-1929) investiga uma “iconologia do intervalo”. Bus- ca-se expor sua obra, publicando a Introdução ao Atlas Mnemosine, bem como quatro das pranchas que constituem visualmente seu pensamento. O dossiê é complementado pelo texto de Giorgio Agamben, que apresenta Warburg enfatizando sua compreensão aberta e negativa da história.

Aby Warburg

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Dossiê Warburg

A decisão de constituir um pequeno dossiêem torno da obra de Aby Warburg reitera arecuperação crescente da produção dessehistoriador e a importância atual de seu pen-samento, que articula a história da arte à his-tória cultural. Essa articulação, como bem evi-dencia Agamben em seu texto Aby Warburge a ciência sem nome, escrito em 1975, nãoé simplesmente metodologia de história daarte que se possa aplicar indiscriminadamente– o papel da obra de arte no pensamentode Warburg não é o de objeto passivo a sercontextualizado na cultura a partir de umarelação fixa. Ao contrário, o que motivaWarburg e o torna importante para a histó-ria da arte, sobretudo hoje, é que, para ele,compreender a arte demanda transitar sejana dimensão histórica, a partir do conceitode pathosformel, seja na dimensão da cultura,extrapolando, assim, os limites da história daarte tal como a concebemos classicamente.É indicativo que Agamben caracterize essa“ciência sem nome”, formulada por Warburg,a partir de uma figura. Warburg foi o pri-meiro historiador a fazer uso de imagens emsuas aulas e palestras. A imagem, no entan-to, não é algo que ilustre o pensamento, masque o provoca a sair de si mesmo, a partir.A espiral surge no texto de Agamben comofigura complexa do duplo trânsito, com aqual se compreende facilmente que a artenão apenas disponibiliza a imagem da sobre-vivência histórica (como fim da espiral), mas,também é imagem do movimento de

descentramento da obra como conheci-mento no campo da cultura (como cen-tro da espiral).Essa espiral hermenêutica, constituída na in-terpretação de Agamben, pode ser confron-tada a sua materialização nas pranchas foto-gráficas do atlas Mnemosine, que, seguindoo pioneirismo de Warburg, pode ser consi-derado o primeiro exemplo de uma históriavisual da arte. É verdade que as pranchasoriginais, com cerca de mil reproduções deobras, desenhos, esquemas, recortes de jor-nais e de revistas, foram perdidas na mudan-ça do Instituto Warburg para Londres, em1933. Das 79 pranchas que sobreviveramcom base em reproduções fotográficas fei-tas por Warburg em 1929, optamos porreproduzir quatro, de modo a revelar mini-mamente a extrema complexidade do pro-blema historiográfico e – por que não dizer– artístico que Warburg constitui.É de interesse pensar que a figura dessa espi-ral, que indica ao mesmo tempo descentra-mento e aprofundamento histórico agencia-do pela obra de arte, refere tais característi-cas ao problema do arquivo na arte contem-porânea: mais que imagens produzidas con-forme um dispositivo conceitual, as imagensdo atlas são o próprio desvirtuamento de qual-quer dispositivo conceitual, exigindo, em suasarticulações caracterizadas por essa patologiasimbólica que se renova, questionar sua pró-pria posição (qualquer posição de sujeito) nosistema que produz a arte.

Organização Cezar BartholomeuA obra de Aby Warburg (1866-1929) investiga uma “iconologia do intervalo”. Bus-ca-se expor sua obra, publicando a Introdução ao Atlas Mnemosine, bem comoquatro das pranchas que constituem visualmente seu pensamento. O dossiê écomplementado pelo texto de Giorgio Agamben, que apresenta Warburgenfatizando sua compreensão aberta e negativa da história.

119D O S S I Ê • A B Y W A R B U R GPrancha 56

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Prancha 56

Ascensão e queda (Michelangelo). Apoteo-se da morte na cruz. Juízo universal e que-da de Fetonte. Rompimento do teto.1 Apoteose de Augusto (na faixa inferior, o troféuque é erguido)Gemma Augustea, cerca de 12 d.C.Viena, Kunsthistorisches Museum2 Nasso e sua futura esposaMichelangeloAfresco (meia-lua), 1508-1511Roma, Vaticano, Capela Sistina3 Grande Juízo UniversalPeter Paul RubensPintura, cerca de 1616Munique, Alte Pinakothek4a Vista da Capela Sistina, Roma, Vaticano4b Juízo UniversalMichelangeloAfresco, 1536-15414c A coluna do flageloDetalhe do Juízo Universal de Michelangelo5 O martírio de São FelipeFilippino LippiAfresco, 1502Roma, Santa Maria Novella, Capela Strozzi, parede sul6 A tentação de Santo AntônioMartin SchongauerGravura sobre cobre, pouco depois de 14707 Cristo no limboAlessandro AlloriPintura, 1578Roma, Galleria Colonna8 A queda de FetonteMichelangeloDesenho, 1533Windsor, Royal Collections9 A queda de FetonteMichelangeloDesenho, 1533Londres, The British Museum, Department of Printsand Drawings10 A queda de FetonteMichelangeloDesenho, 1533Veneza, Accademia11 A queda de FetonteMestre florentinoDesenho, século 16Asta München (Hans Goltz), 29.4.1929, n.152

12 A queda de FetonteDetalhe do teto da Sala de Davide FrancescoCaccianigaPintura sobre teto, 1778Roma, Galeria Borghese, Sala de Davide

Prancha 1

Projeções do cosmo sobre uma parte docorpo com objetivos divinatórios. Fé oficialnos astros na Babilônia. Práticas orientaisoriginárias.1 Fígado em argila para uso didático na hepatoscopiada BabilôniaLondres, The British MuseumDe: Alfred Jeremias, “Handbuch des altorientalischenGeistes”,Leipzig 1913, col. 144, ill. 1032, 3 e 4 Modelos em argila de um fígado para usodidático na hepatoscopia, retornado a Boghazköycom inscrições acádicasIttita-babilônia, primeira metade do século 14 a.C.Berlim, Staatliche Museen, Vorderasiatisches MuseumDe: Ernst F. Weidner, Keilschrifturkunden ausBoghazköy, v. 4, Berlim 1922, n. 71-735 Fígado para uso didático na hepatoscopiacom inscrições etruscasMetade do século 2 a.C.Piacenza, Museu Cívico6 Rei Assurnasirpal IIestela assíria, século 9 a.C.Londres, The British Museum7 O Rei babilônio em adoração a uma divindadeastralRe Meli-Sipak II oferece a filha Hunubat-Nanna àdeusa da Lua NannaKudurru (pedra de fronteira), de Susa, século 12 a.C.Paris, Museu do Louvre8 Da prática orientalizante ao restabelecimento daforma antigaPranchas ilustrativas de uma exposição de AbyWarburg de 1926/27 na KBWLondres, The Warburg Institute9 a-b Documento babilônio em pedra comconstelaçõesKudurru do Rei Marduk-Zakir-Schumi I(851-828 a.C.)Paris, Museu do Louvre

121D O S S I Ê • A B Y W A R B U R GPrancha 1

122 Prancha 41

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Prancha 41

Pathos da destruição (cfr. Prancha 5). Víti-ma. Ninfa como bruxa. Liberação do pathos1 MedeiaNicolò di Giacomo di Nascimbene, dito Nicolò deBolonhaInicial de um manuscrito da Tragoediae de Sêneca,final do século 14Innsbruck, Universitätsbibliothek, Cod. 87, fol. 120r2 Cena da história de MedeiaLondres, The British Library, Ms. Harley 17662a Oineo frente ao corpo do filho MeleagroJasão e Medeia em fuga, fol. 31v2b Creusa em meio às chamas. Medeia mata os filhos,fol. 33r3 Cena da história de MedeiaEm: Metamorfosi de Ovídio, Veneza (NicolausMoretus) 1586, Lib. 7, p. 1354 Milagres de São BernardinoAgostino di DuccioBaixo-relevo, 1457-1461Perugia, Igreja de São Bernardino, portal5 CaritasMestre Giorgio (Giorgio Andreoli) sobre gravurade Marcantonio Raimondi da RaffaelloPrato, 1520Florença, Museu Bardini6 Cristo chama a si as criançasGeorg PenczGravura sobre cobre, cerca de 15487 A esposa de Asdrúbal acompanha os filhos notemplo incendiado(antes de 1930 intitulado Medeia e seus filhosErcole de’ RobertiPintura, cerca 1480-1490Washington, National Gallery of Art8 FlageloLuca SignorelliPintura, 1480-1481Milão, Pinacoteca de Brera9 Hércules sobe ao GólgotaErcole de’ RobertiDa predela do altar-mor de São João dos Montes,Bolonha.Pintura, 1482-1486Dresden, Staatliche Kunstsammlungen,aGemldegalerie Alte Meister

10 Orfeu encanta os animaisOficina de Michele de VeronaPintura, final do século 15, início do 16Cracóvia, Schloss Wavel, coleções Lanckoronski11 Monte de OrfeuMestre de FerraraGravura sobre cobre, cerca de 1465Hamburger Kunsthalie, Kupferstichkabinett12 Orfeu e EurídiceJacopo del SellaioCassone, depois de 1471Rotterdam, Museu Bojmans Van Beunigen13 Morte de OrfeuBaldassare PeruzziAfresco, 1509-1510Roma, Vila Farnesina, Sala del Fregio14 OrfeuMiniatura de 1480 retirada de uma ilustração de Nicolòd’Antonio degli Agli, “Le admirande magnificentie etstupidissimi apparati delle felice nozze, celebrate daillustre signor di Pesaro, Constantino Sforza, permadonna Camille (...)”, Florença 1475.Roma, Biblioteca Vaticana, Cod. Vat. Urb. Lat.899, fol. 64v15 Duas bruxas ao redor do fogo mágico no trípodeatribuído a Filippino LippiDesenho, 1506Paris, Museu do Louvre, Departamento de Artes Gráficas17a-b Hécate (ou Prudentia)Estatuetas em bronze, Pádua, cerca de 1500Berlim, Staatliche Museen, Skulpturensammlung18 DavideAndrea del CastagnoEscudo de couro, cerca de 1450Washington, National Gallery of Art19 Pirro sacrifica Polissena sobre o túmulo do paiDa chamada Picture Chronicle, fol 38rJá atribuído a Maso FiniguerraDesenho, 1460-1470Londres, The British Museum, Department of Printsand Drawings20 Hércules como vitiorum dominatorGianfrancesco CarotoVerso da medalha de Bonifazio Paleólogo.Marquês de Monferrato, 1517/1821 Cena de combate (Hércules e Caco)Antonio PollaiuoloDesenho de um sarcófago do cemitério de Pisa(século 2), cerca de 1471Turim, Biblioteca Nacional

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Prancha C

Desenvolvimento da re-presentação de Marte.Abandono da representa-ção antropomórfica daimagem – sistema harmô-nico – signo1 Identificação das órbitasplanetárias com os corposregulares do MysteriumCosmographycum (1621)

De: Johannes Kepler, MysteriumCosmographycum, 1621

2 A órbita de Marte segundo asobservações de Johannes KeplerEsquema segundo uma passagemda Astronomia Nova de JohannesKepler

3 As órbitas planetárias de acordocom a concepção modernaBrockhaus’ Konverations-Lexikon,ed.14, v.15, 1895

4 Os filhos do planeta Marte, àesquerda, Perseu,representado metade comoconstelação e metade comoguerreiro europeu(de um manuscrito alemão doséculo 15)Kalendarisches Hausbuch doMestre Joseph, cerca de 1475Tübingen, Universitätsbibliothek,Cod. M.d.2, fol. 269r51 O Conde Zeppelinsobrevoando a costa japonesa

se depara com um avião daguarda costeira. (Desenhado porHugo Huber com base emnotícias jornalísticas)”Müncher Illustrierte Presse, n. 35,1929, p.1.13952 ZeppelinHamburger Fremdenblatt, n. 245,edição da noite, 4.9.1929, p.1753 O Zeppelin sobre Nova YorkHamburger Illustrierte, ano 11, n.36, 7.9.1929

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A criação consciente da distância entre o eue o mundo exterior é aquilo que podemosdesignar como ato fundamental da civiliza-ção humana. Quando o espaço intermediá-rio entre o eu e o mundo exterior se tornao substrato da criação artística são satisfeitasas premissas graças às quais a consciênciadessa distância pode tornar-se uma funçãosocial duradoura que, através da alternânciarítmica da identificação com o objeto e oretorno à sophrosyne,1 indica o ciclo entre acosmologia das imagens e aquela dos sig-nos. Trata-se de andamento circular cujofuncionamento mais ou menos preciso, en-quanto instrumento espiritual de orientação,acaba por determinar o destino da culturahumana. O artista, que oscila entre concep-ções de mundo religiosa e matemática, éportanto amparado de modo particular pelamemória, seja coletiva ou individual. A me-mória não apenas cria espaço para o pensa-mento como reforça os dois polos-limite daatitude psíquica: a serena contemplação e oabandono orgiástico. Ou, melhor, ela utilizaa herança indestrutível das impressões fóbicasem modo mnêmico. Em tal modo, em vezde procurar uma orientação protetora, amemória tenta acolher a força plena da per-sonalidade passional-fóbica abalada entre osmistérios religiosos para criar um estilo ar-tístico. Ademais, a ciência descritiva conser-va e transmite as estruturas rítmicas nas quaisos monstra da imaginação se tornam os gui-

as de vida decisivos para o futuro. Para pe-netrar as fases críticas de tal processo aindanão nos servimos suficientemente dos tes-temunhos da criação figurativa. Eles nos per-mitem conhecer a função polar do ato artís-tico que oscila entre imaginação que tendea se identificar com o objeto e racionalidadeque, ao contrário, procura dele se distanciar.Aquilo que chamamos de ato artístico nãopassa, portanto, de uma manipulação tátil doobjeto para que ele possa ser espelhado demodo plástico ou pictórico. Esse ato artísti-co é equidistante tanto do modo típico daimaginação de colher os objetos quanto da-quele característico da contemplaçãoconceitual. Tal duplicidade se constituiu, porum lado, como luta contra o caos – uma vezque a obra de arte escolhe e esclarece oscontornos de cada objeto – e, por outro,como pretexto, a fim de que o espectadoraceite o culto do ídolo que tem a sua frente.Tal ambivalência é exatamente o que geraincômodo no homem espiritual, um incô-modo que deveria constituir o objeto profí-cuo da ciência da cultura, isto é, de uma his-tória psicológica por imagens que seja capazde ilustrar a distância que se interpõe entreo impulso e a ação. Um processo similar dedesdemonização da herança das impressõesfóbicas abraça, do ponto de vista gestual, ainteira gama de emoções: da prostração iner-me ao canibalismo homicida, conferindo àsmanifestações do dinamismo humano – e

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MnemosyneAby Warburg

A introdução ao Atlas Mnemosine foi primeiro mencionada no texto escrito porErnst Gombrich : Aby Warburg, uma biografia intelectual, e posteriormente publicadaem 1937 pelo Instituto Warburg [WIA 108.9]. Esta tradução foi feita a partir daversão italiana que consta em Mnemosyne. L’Atlante della Memoria di Aby Warburg,Roma: Artemide edizioni, 1998.

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também àqueles estádios que se colocamentre os polos-limite do orgiasmo, tais comocombater, caminhar, correr, dançar, agarrar– o contorno daquela experiência inquietanteque o homem culto do Renascimento, edu-cado à disciplina da Igreja medieval, conside-rava terreno proibido que só os espíritosímpios e de temperamento desenfreadopodiam percorrer livremente. Com seusmateriais visíveis, o atlas Mnemosyne pre-tende justamente ilustrar esse processo quepoderia ser definido como a tentativa de in-corporar interiormente valores expressivosque existiam antes da finalidade de repre-sentar a vida em movimento.Mnemosyne, com a sua base de materialvisual que o atlas anexado apresentareproduzida, deseja sobretudo ser um inven-tário das pré-cunhagens2 de inspiração antigaque concorreram, no período renascentista,para a formação do estilo de representaçãoda vida em movimento.Foi precisamente a ausência, nesse âmbito,de trabalhos sistemáticos, preparatórios esintetizadores que fez com que uma seme-lhante consideração comparativa se tenhalimitado à análise da obra geral de algunspoucos tipos fundamentais de artista. Talconsideração comparativa foi, portanto, obri-gada a tentar compreender, mediante pro-fundo estudo sociopsicológico, o sentidodesses valores expressivos que são conser-vados na memória, pois que eles represen-tam as funções mais significativas de umatécnica espiritual.Já em 1905 o autor tinha sido confortadoem tentativas similares pelo ensaio deOsthoff3 sobre a natureza supletiva das lín-guas indo-germânicas. Substancialmente,Osthoff não demonstrou apenas que umamudança da raiz léxica (para os adjetivos nacomparação e para os verbos na conjuga-ção), mesmo se faltasse a identidade formalda expressão léxica fundamental, não pesa-

va absolutamente sobre a concepção daidentidade energética com respeito à quali-dade (adjetivo) ou à ação (verbo) indicada.Demonstrou, sobretudo, que o ingresso deuma expressão com raiz diversa produziaintensificação do significado originário dapalavra cuja raiz havia sido mudada.Mutatis mutandis, é possível constatar pro-cesso análogo no âmbito da linguagemgestual que dá forma à arte, como, por exem-plo, quando a Salomé dançante da Bíbliaaparece como uma mênade grega ou comoquando uma serva que carrega uma cestade frutas – assim como foi imitada de modoplenamente consciente por Ghirlandaio4 –acorre no estilo de uma Vitória de um arcodo triunfo romano.No âmbito da exaltação orgiástica de mas-sa, faz-se necessário buscar a matriz que im-prime na memória as formas expressivas damáxima exaltação interior, expressa na lin-guagem gestual com tal intensidade, que es-ses engramas da experiência emotiva sobre-vivem como patrimônio hereditário da me-mória, determinando de modo exemplar ocontorno criado pela mão do artista nomomento em que os valores mais altos dalinguagem gestual desejam emergir na cria-ção por sua mão.Os estetas hedonistas conquistam facilmen-te o consenso do público amante da artequando explicam que tal mudança de formaprovém do caráter agradável da linhamarcadamente decorativa. Quem quiserpode mesmo contentar-se com uma florafeita das plantas mais perfumadas e belas,mas com certeza não é disso que se podeextrair uma fisiologia vegetal da circulaçãoda linfa, pois que essa se revela somente aquem é capaz de examinar a vida em seuemaranhamento subterrâneo de raízes.O triunfo da existência, prefigurado plastica-mente pela Antiguidade, em toda a sua

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perturbadora antítese de afirmação da vidae negação do Eu, apresenta-se frente à almados pósteros que, sobre os sarcófagos pa-gãos, avistavam Dioniso no cortejo camba-leante de seu séquito orgiástico e, sobre osarcos da vitória romanos, o cortejo triunfaldo imperador.Em ambas as simbologias nota-se um movi-mento de massas que seguem um dominador.Contudo, enquanto a mênade agita o cabri-to dilacerado na loucura em homenagem aodeus da embriaguez, os legionários romanosentregam a César as cabeças dos bárbaroscomo tributo devido ao Estado (além domais, mesmo nos baixos-relevos, o impera-dor é festejado enquanto representante dozelo imperial com os veteranos).Na realidade, situado a poucos passos doArco de Constantino, o Coliseu relembraimpiedosamente aos romanos da IdadeMédia e do Renascimento que, na Romapagã, o impulso primordial em direção aosacrifício humano obteve com base na for-ça seu lugar de culto e, até os dias de hoje,Roma continua a se mostrar em inquietanteduplicidade: através da coroa triunfante doimperador e através do mártir.Na Idade Média, a normativa eclesiástica, quehavia detectado na divinização dos impera-dores seu feroz inimigo, teria destruído ummonumento como o Arco de Constantinose os heroísmos do imperador Trajano nãotivessem sido preservados pelo manto deConstantino, graças à posterior inserção dealguns baixos-relevos.Por meio de lenda que ainda vive em Dante,a Igreja havia transformado a gloriosa auto-celebração dos baixos-relevos trajanensesem sentimento cristão. O famoso relato so-bre a piedade do imperador para com aviúva que implora justiça reflete muito bema refinadíssima tentativa de transformar opathos imperial em piedade cristã, graças ao

energetismo5 da inversão exegética. O im-perador que, em relevo no interior do Arco,atropela um bárbaro em seu galope torna-se o garantidor de uma justiça que ordenaque o séquito pare quando o filho da viúvase encontra sob os cascos dos cavaleirosromanos.Caracterizar a restituição do antigo como re-sultado de consciência factual emergente ehistoricizante, mas também de empatia artís-tica conscientemente livre, significa limitar-sea um evolucionismo descritivo inadequado, amenos que se procure, ao mesmo tempo,descer na profundidade do entrelaçamentoinstintual que une o espírito humano à maté-ria estratificada de modo acronológico. Comefeito, só aqui é possível vislumbrar a matrizcunhadora dos valores expressivos daexaltação pagã que brotam da experiênciaoriginária orgiástica: o tiaso6 trágico.Para avistar, depois de Nietzsche, o caráterdo Antigo no símbolo da herma bifronteApolo-Dioniso, não é mais necessário ne-nhuma atitude revolucionária. Pelo contrá-rio, o uso cotidiano superficial dessa doutri-na da oposição na avaliação das imagens daarte pagã cria obstáculos para a tentativa deempreender seriamente a compreensão daunidade orgânica da sophrosyne e do êxta-se em sua função polar de cunhar os valo-res-limite da vontade expressiva humana.A soltura desenfreada do movimento ex-pressivo corpóreo, tal como foi realizadoparticularmente na Ásia Menor em acom-panhamento aos deuses da embriaguez, in-clui a escala inteira das manifestações vitaiscinéticas de uma humanidade fobicamenteabalada. Trata-se de escala que abarca des-de o desabamento absorto e inerme até aembriaguez homicida, mas também todas asações mímicas que se encontram entre es-ses dois extremos. Na representação da artefigurativa é perceptível o eco desse abando-

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no abissal durante o culto do tiaso, quandoos indivíduos caminham, correm, dançam,agarram, carregam, transportam. O contor-no “tiasótico” constitui um sinal essencial eperturbador desses valores expressivos, talcomo eles falavam aos artistas renascentistas,seguindo o exemplo dos sarcófagos antigos.O Renascimento italiano procurou interiorizaressa herança de engramas fóbicos emambivalência particular: por um lado, paraos recém-libertados de temperamento mun-dano, ela representou um estímulo agradá-vel que permitiu comunicar o que era indizí-vel àqueles que lutavam contra o destino ea favor de sua própria liberdade pessoal.Por outro, pois já que esse estímulo se davacomo função mnêmica – havia sido comopurificado por formas cunhadas preceden-temente graças a uma criação artística –, talrestituição permaneceu precisamente comoato que acabou por prescrever ao gênio ar-tístico seu lugar espiritual entre aautorrenúncia instintiva ao ego e a consci-ente criação formal delimitadora: entreDioniso e Apolo, justamente. Tratou-se por-tanto de um lugar em que o gênio artísticopôde, de qualquer maneira, dar impostaçãoprópria a sua linguagem formal mais pessoal.A obrigação de confrontar-se com o mun-do das formas constituídas por valores ex-pressivos já cunhados – provenientes ou nãodo passado – assinala a crise decisiva paracada artista que intenta afirmar sua própriapersonalidade. A ideia de que precisamenteesse processo tenha significado extraordiná-rio, até então ignorado, para a formação dosestilos no Renascimento europeu nos levouà hipótese que denominamos Mnemosyne.Antes de mais nada, Mnemosyne deseja, comsua base de material visual, ser um inventá-rio de pré-cunhagens documentáveis quepropuseram a cada artista o problema da

rejeição ou então da assimilação dessa mas-sa compressora de impressões.A fase decisiva no desenvolvimento do esti-lo monumental pictórico do Renascimentoitaliano reflete-se com clareza simbólica,como só a história real nos concede, naque-las obras de arte que nas épocas pagã e cris-tã se unem à figura do imperadorConstantino.Dos baixos-relevos trajanenses do arco dotriunfo que trazem o nome de Constantino,apesar de serem poucos os que remontamaté a época desse imperador (cfr. Wilpert),brota aquele pathos imperial que, com suaeloquência barulhenta e sedutora, conferiumais uma vez à linguagem gestual dosepígonos tardios validade universal, em rela-ção à qual até mesmo as obras mais refina-das e inovadoras do olho italiano acabarampor perder sua função de guia. A Batalha deConstantino, de Piero della Francesa, emArezzo, que pela comoção interior humanaencontrou nova grandeza antirretórica daforma expressiva, foi, digamos assim,pisoteada pelos cascos da horda selvagemque, a pretexto da vitória de Constantino,pôde irromper galopando sobre as paredesdos cômodos.Como, porém, foi possível que a linguagemdas formas artísticas corresse no vazio quan-do as presenças de Rafael e de Michelangeloainda se faziam sentir? Que a complacênciapelo gesto grandioso da escultura antiga,combinado com o despertar de uma seme-lhante sensibilidade com relação à autentici-dade arqueológica, tenha conduzido a do-mínio tão invasivo da fórmula de pathos di-nâmica à antiga, só explica a veemência des-se processo do ponto de vista estético.Com efeito, a nova linguagem gestual paté-tica do cosmo figurativo pagão não haviapenetrado o ateliê só porque obtivera a

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aprovação de refinado olho artístico e degosto antiquário7 consoante e eleito.Com efeito, a caracterização do mundo pa-gão como cosmo olímpico de formas clarashavia sido adquirida sucessivamente e de-pois de um período de corajosa resistênciadaqueles que, não obstante o bárbaroanticlassicismo que manifestavam exterior-mente, podiam todavia considerar-se herdei-ros autênticos e respeitáveis da herança an-tiga. Essa dupla máscara, de origem assazheterogênea, que velava o humano e clarocontorno do mundo dos deuses gregos, eraconstituída, por um lado, por símbolos mons-truosos da astrologia helenista que sobrevi-veram e, por outro, do cosmo de formas doAntigo à francesa tal como se apresentavamno bizarro realismo daquele tempo, isto é,um realismo todo centrado no jogo das ex-pressões do rosto e do vestuário.Na prática da astrologia helenista, a límpidanaturalidade do Panteão grego havia sidoamontoada como bando de figuras mons-truosas. Despertar tais figuras de suaimperscrutabilidade enquanto disformeshieróglifos do destino para reconduzi-las àcredibilidade humana foi precisamente aexigência premente de uma época que, alémda redescoberta da palavra do Antigo, exi-gia também no aspecto exterior domínioorgânico estilisticamente adequado.O segundo desmascaramento requerido àAntiguidade pagã deveria desdobrar-se con-tra uma camuflagem inócua apenas na apa-rência, em direção ao realismo daquele ves-tuário à francesa com que se apresentavam,nas tapeçarias flamengas e nas ilustrações doslivros, os demônios ovidianos8 ou a liviana9grandeza romana.Agora, a história da cultura não está habitu-ada a considerar de modo unitário as con-

cepções oriental prática, nórdica educada eitaliana humanística como componentes queconvergem no processo de nova formaçãodo estilo. Não nos damos conta de que osastrólogos, que reconheciam muito apropri-adamente em seu Abu Ma’sar o verdadeiroherdeiro da cosmologia ptolemaica, podiamcom razão sustentar subjetivamente queeram os autênticos e escrupulosos guardiõesda tradição; assim como os doutos conse-lheiros dos tecelões de tapeçarias10 e dosminiaturistas do círculo intelectual dos Valoispodiam, independente de serem boas oumás as traduções dos escritores antigos deque dispunham, pensar que fariam ressurgiro antigo com precisão pedante.O ímpeto com o qual irrompe a linguagemgestual que tem por inspiração o Antigo11 seexplica indiretamente, portanto, por essaenergia reativa que foi duplamente solicita-da e que pretendeu restabelecer os valoresexpressivos claramente delineados do Anti-go, liberando-os das correntes de uma tra-dição des-homogênea.12Se concebemos a formação do estilo doponto de vista da troca desses valores ex-pressivos, então surge a necessidade impres-cindível de indagar a dinâmica de um tal pro-cesso com relação à técnica de seus meiosde difusão. No período entre Piero dellaFrancesca e a escola de Rafael inicia-se in-tensa migração internacional de imagensentre Norte e Sul cuja violência elementar –violência tanto do impacto quanto da ex-tensão da circulação – permanece velada aosolhos do histórico13 dos estilos europeus da“vitória” oficial do alto Renascimento roma-no. A tapeçaria flamenga é o primeiro tipo,ainda colossal, de transporte de imagens que,uma vez retirado da parede – não apenaspor sua mobilidade, mas também por suatécnica que torna possível a reprodução doconteúdo iconográfico em exemplares iguais

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–, representa um predecessor da folha depapel com imagens impressas via gravurasobre cobre ou xilogravura. Ela permitiu atroca de valores expressivos entre norte esul como um evento vital no processo cíclicode formação do estilo europeu.Um só exemplo é suficiente para ilustrar aimportância e a amplidão desses veículos deimagens importados do norte que invadiramos palácios italianos. Por volta de 1475, cer-ca de 250 metros lineares de tapeçarias deFlandres, com representações da vida emmovimento do passado e do presente, de-coraram as paredes da suntuosa residênciados Médici, conferindo-lhe o cobiçado es-plendor do fausto principesco. Contudo, aolado das tapeçarias, um gênero artístico me-nos vistoso emergiu paralelamente, em con-dições de dissimular sua superioridade inte-rior, enquanto potência capaz de criar umestilo sob a modesta aparência de econômi-cos quadros sobre tela que compensavamcom a “novidade” dos motivos expressivoso que lhes faltava do ponto de vista do valormaterial. O jogo gestual de Pollaiolo,14 quan-do não sobrecarregado pelas armaduras ca-valheirescas borgonhonas, narrou à antiga,nessas pinturas sobre tela, o entusiasmoarrebatador dos trabalhos de Hércules.A tudo isso é preciso acrescentar a nostalgiade uma restauração enraizada no reino pri-mordial da religiosidade pagã. Por outro lado,as constelações helenísticas não seriam sím-bolos de um raptus in caelum do fim dostempos, assim como as fábulas ovidianas, quetransformavam o homem em hyle, simboli-zavam o raptus ad inferos? A tendência arestabelecer a clareza dos contornos da lin-guagem gestual – que só em aparência erameramente exterior e estética – conduziupor si mesma, ou seja conforme à lógica dalibertação das correntes, a uma linguagemformal adequada ao fatalismo do antigo es-tóico e trágico que havia sido sepultado.

Graças à obra milagrosa do olho humanocomum, durante séculos, na Itália, as vibra-ções da alma permaneceram vivas para asgerações sucessivas na sólida obra em pe-dra do passado antigo.Com frequência reforçada pela linguagem dafala que se dirige também ao ouvido com oauxílio de inscrições, a linguagem figurativado gesto é, graças ao ímpeto indestrutívelde sua cunhagem expressiva, forçada areviver, nas obras arquitetônicas (como, porexemplo, arcos de triunfo e teatros) e plás-ticas (do sarcófago à moeda), experiênciasde comoção humana em toda a sua polari-dade trágica: do sofrimento trágico à atitudevitoriosa ativa.Assim, na escultura triunfal é autocelebradade forma pomposa a afirmação da vida, en-quanto nas lendas dos baixos-relevos dastumbas pagãs é narrada, através de símbo-los míticos, a luta desesperada do espíritohumano por sua subida ao céu.A energia com que esses elementos hostis àIgreja acabaram por incidir é demonstradanaquela série de 12 sarcófagos emparedadosnas laterais da Igreja de Santa Maria emAracoeli e que, como visões oníricas que saemda região proibida da terrível “demonicidade”15pagã, acompanham o peregrino devoto emsua saída na direção da igreja.Do ponto de vista da expressão exterior, ocaráter contraditório dessa consciência indi-vidual exige conceber a Idade Média tardiasempre ligada aos conteúdos de umarefiguração, um confronto ético paralelo en-tre o modo de perceber a personalidade pagãe batalhadora e aquele cristão e submisso.A partir do momento em que se impôs odever de representar o movimento da vidahumana, fez parte dos processos criativospropriamente artísticos do denominadoRenascimento o fato de que o predomínioda clareza dos traços dramáticos de cada ges-

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to antigo triunfal da época trajanense nãoapenas fosse percebido de modo distinto daépica de massa dos epígonos de Constantino,mas também fosse posto em circulação demodo exemplar, qual seja, como “fórmulade pathos” canônica adaptada à linguagemformal do Renascimento europeu do século15 ao 17.Aby Warburg (Hamburgo, 1866-1929), historiador daarte alemão, ficou conhecido por seus estudos sobre oressurgimento do paganismo no renascimento italiano.Tradução Barbara SzanieckiRevisão técnica Inês de AraujoNotas

1 Termo grego que representa sanidade moral advinda damoderação, autocontrole e autoconhecimento.

2 O substantivo coniazione, muito empregado por Warburgneste ensaio, pode ser traduzido por cunhagem, cria-ção, invenção, forjamento. Optamos por cunhagem, queserá utilizado em todo o texto. (N.T.)

3 Warburg se refere a “Investigações morfológicas na esferadas linguagens indo-européias”, escrito por HermannOsthoff em 1878.

4 Domenico Ghirlandaio (1449-1494, Florença, Itália. (N.T.)5 Teoria física com implicações energéticas (N.T.)6 Tiaso sm (gr thí-asos) Antig gr. 1) Confraria religiosa, colo-

cada sob o patrocínio de um deus. 2) Festa acompanha-da de banquetes e danças. (http://www.dicionarioweb.com.br)

7 Warburg usa literal e efetivamente a expressão gostoantiquário, que também poderia ser traduzida comogosto pelo antigo. (N. T.)

8 Referência a Ovídio (N.T.)9 Referência ao historiador-filósofo Tito Lívio. (N.T.)10 Warburg usa o termo arazzi que pode referir-se a tapeça-

rias ou a tapetes. (N.T.)11 Não sendo dicionarizado o termo “antiguizante” para tra-

duzir o italiano anticheggiante, optamos por usar a ex-pressão “que tem por inspiração o antigo”. (N.T.)

12 Warburg usa efetivamente o termo “des-homogêneo” quepodemos manter assim, apesar do estranhamento, ouentão usar “heterogêneo”, mas sem obter efeito equi-valente. (N.T.)

13 Warburg usa o termo histórico e não história. (N.T.)14 Antonio Pollaiolo. Pintor e escultor italiano, c. 1432-1498

– Primeiro Renascimento. (N.T.)15 Warburg usa o termo demonicità para se referir à supos-

ta característica demoníaca do pagão.

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Giuseppe Penone,Em direção ao centro daterra, 1969Fonte das imagens:Giuseppe Penone, org.Catherine Grenier, Paris:Centre Pompidou, 2004

Aby Warburg e a ciência sem nomeGiorgio Agamben

O filósofo Giorgio Agamben busca tanto apresentar quanto recuperar aespecificidade da obra do historiador da arte Aby Warburg, evidenciando sua visa-da transdiciplinar em relação à obra de arte.

História, cultura, arte.

Este ensaio visa estabelecer a situação críti-ca de uma disciplina “que, ao contrário detantas outras, existe, mas não tem nome”. Jáque o criador dessa disciplina foi AbyWarburg,1 somente uma análise atenta deseu pensamento poderá fornecer o pontode vista que tornará possível tal situação. Sóassim poderemos nos perguntar se essa“disciplina inominada” é, ou não, suscetível dereceber nome e em que medida os nomespropostos até aqui cumprem bem seu papel.A essência do ensino e do método deWarburg, tal como se manifesta na ativida-de da Biblioteca para a Ciência da Cultura,em Hamburgo, que se tornaria mais tarde oInstituto Warburg,2 é tipicamente identificadacom a recusa do método estilístico-formalque domina a história da arte no final doséculo 19 e como deslocamento do pontocentral de investigação: da história dos esti-los e da valorização estética aos aspectosprogramáticos e iconográficos da obra dearte tais como resultam do estudo de fon-tes literárias e do exame da tradição cultu-ral. A lufada de ar fresco trazida pela visadawarburgiana da obra de arte em meio àságuas estagnadas do formalismo estético éatestada pelo sucesso crescente das pesqui-sas inspiradas por seu método, que conquis-taram, mesmo fora do domínio acadêmico,público tão vasto, que se pode falar em umaimagem “popular” do Instituto Warburg. Ao

mesmo tempo em que aumentava a cele-bridade do Instituto, assistia-se todavia aodesaparecimento progressivo da imagem deseu fundador e de seu projeto originário,enquanto a edição dos escritos e fragmen-tos inéditos de Warburg era constantemen-te adiada, não tendo até o momento sidopublicada.3 Naturalmente, essa caracteriza-ção do método warburgiano reflete umaatitude diante da obra de arte, que foiindubitavelmente a de Aby Warburg. Em1889, enquanto preparava na universidadede Strasbourg sua tese sobre O nascimentode Vênus e A primavera, de Botticelli, per-cebeu que toda tentativa de compreendero espírito de um pintor da renascença erafútil se o problema fosse encarado apenasdo ponto de vista formal,4 e durante toda asua vida ele conservou “franca repulsa” pela“história da arte estetizante”5 e pela consi-deração puramente formal da imagem. Essaatitude, porém, não nascia nem de aproxi-mação puramente erudita ou de antiquárioem relação aos problemas da obra de arte,nem, ainda menos, de indiferença por seusaspectos formais: sua atenção obsessiva, qua-se iconólatra, à força das imagens, prova senecessário que Warburg era quase sensíveldemais aos “valores formais”; e um conceitocomo o de Pathosformel, que torna impos-sível separar a forma do conteúdo, pois de-signa o indissolúvel entrelaçamento de umacarga emotiva e de uma fórmula iconográfica,

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revela que seu pensamento não pode jamaisser interpretado em termos de oposiçõessuperestimadas do tipo forma/conteúdo ouhistória dos estilos/história da cultura. O quelhe é peculiar, em sua atitude científica, é,mais do que uma nova maneira de fazer ahistória da arte, uma tensão voltada para asuperação dos limites da própria história daarte, tensão que acompanha logo de inícioseu interesse por essa disciplina, e assimpodemos acreditar que ele a escolheu uni-camente para semear o grão que a faria ex-plodir. O “bom deus” que, segundo seu cé-lebre ditado, “se esconde nos detalhes” nãoera para ele um deus tutelar da história daarte, mas o demônio obscuro de uma ciên-cia inominada da qual começamos, só hoje,a entrever os traços.

Em 1923, enquanto se encontrava na casade repouso de Ludwig Binswanger emKreuzlingen, durante longa doença mentalque o manteve afastado de sua bibliotecadurante seis anos, Warburg perguntou a seusmédicos se eles aceitariam deixá-lo partircaso ele pudesse provar sua cura, fazendouma conferência aos pacientes da clínica. Otema que ele escolhe para sua conferência,o ritual da serpente dos índios da Américado Norte,6 foi tirado, de forma surpreen-dente, de uma experiência de sua vida queremontava a quase 30 anos mais cedo e quetinha, portanto, deixado marca bem profun-da em sua memória. Em 1895, durante umaviagem para América do Norte, quando nãotinha ainda 30 anos, ficou alguns meses en-tre os índios Pueblo e Navajo do NovoMéxico. O encontro com a cultura primitivaamericana (na qual ele fora iniciado por CyrusAdler, Frank Hamilton Cushing, James Mooneye Franz Boas) o afastou completamente daconcepção de uma história da arte comodisciplina especializada, confirmando seu ra-ciocínio, que ele amadureceu refletindo aolongo de todo o período de estudos deUsener e de Lamprecht cursados em Bonn.Usener (que Pasquali dizia ser “o filólogo maisprolífico de ideias entre os grandes alemãesda segunda metade do século 19”7), e atraiusua atenção para Tito Vignoli, pesquisadoritaliano que, no livro Mythe et science (Mitoe scienza, Milão, 1879), enfatizava a necessi-dade de abordagem conjunta, pela antropo-logia, etnologia, mitologia, psicologia e bio-logia, dos problemas do homem. As passa-gens do livro de Vignoli contendo essas afir-mações foram energicamente sublinhadaspor Warburg. Durante sua estada america-na, essa exigência nascida em sua juventudetorna-se decisão a tal ponto estabelecida, quepodemos afirmar o seguinte: a obra inteirade Warburg “historiador da arte”, incluindoa célebre biblioteca que ele já havia come-çado a reunir em 1886,8 não tem sentido a

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não ser que a compreendamos como esfor-ço, realizado através e além da história daarte, em direção a uma ciência mais vasta; seele não lhe pôde jamais achar um nomedefinitivo, trabalhou com tenacidade, até amorte, em sua configuração. Em suas anota-ções para a conferência de Kreuzlingen so-bre o ritual da serpente, ele definiu sua biblio-teca como “uma coleção de documentosconcernentes à psicologia da expressão hu-mana”.9 Nas mesmas anotações, ele repetesua aversão pela visada formal, aproximação“incapaz de compreender a necessidade bio-lógica da imagem, no cruzamento da religiãoe da prática artística”.10 Essa posição da ima-gem, entre arte e religião, é importante parafixar o horizonte de sua busca: seu objeto éa imagem mais do que a obra de arte, o quea coloca decididamente fora das fronteirasda estética. Já em 1912, na conclusão de suaconferência “Arte italiana e astrologia inter-nacional no palácio Schifanoia em Ferrare”,ele convidava a “uma ampliação metodológicadas fronteiras temáticas e geográficas” da his-tória da arte:

Categorias inadequadas, tomadas de em-préstimo de uma teoria evolucionistageral, impediram a história da arte depôr seus materiais à disposição da “psi-cologia histórica da expressão huma-na”, que, aliás, resta ainda a ser escri-ta.11 Nossa jovem disciplina se proíbede dar uma visão global sobre a histó-ria universal, por causa de sua funda-mental tendência, por demais materia-lista ou por demais mística. Ela tateiaem meio aos esquematismos da histó-ria política e das teorias sobre o gêniopara achar sua própria teoria do de-senvolvimento. Pelo método, que é estede meu ensaio de interpretação dosafrescos do palácio Schifanoia emFerrare, eu espero ter mostrado queuma análise iconológica que não sedeixa intimidar por respeito exagerado

às fronteiras, que considera a Antigui-dade, a Idade Média e os Tempos Mo-dernos uma época interligada, que in-terroga os produtos das artes, quersejam liberais ou aplicadas, como do-cumentos expressivos de igual dignida-de, eu espero ter mostrado que essemétodo, empenhando-se cuidadosa-mente em esclarecer um ponto obscu-ro singular, esclarece também os gran-des momentos do desenvolvimentogeral em suas associações. Tratava-semenos, para mim, de encontrar uma so-lução elegante do que de levantar umproblema novo, que eu gostaria de for-mular assim: “Em que medida se deveconsiderar o evento da transformaçãoestilística da figura humana, na arte ita-liana, o resultado de uma confrontaçãointernacional com as figuras sobreviven-tes da civilização pagã dos povos doMediterrâneo oriental?” O estupor en-tusiasta que suscita o fenômeno incom-preensível da genialidade artística nãopode senão ganhar em vigor se nós re-conhecemos que esse gênio é, ao mes-mo tempo que uma graça, a operaçãoconsciente de uma energia crítica econstrutiva. O novo grande estilo quenos trouxe o gênio artístico italiano seenraizava na vontade social de desem-baraçar o humanismo grego da “práti-ca” medieval e latina de inspiração orien-tal. É com esse desejo de restaurar aAntiguidade que o “bom europeu”empreende seu combate pelas Luzesem certa época de migração internacio-nal das imagens, que nós chamamos –de maneira um pouco mística demais –de Renascença.12

É importante notar que essas consideraçõesfazem parte da conferência em que ele ex-põe uma de suas mais célebres descobertasiconográficas: a identificação do conteúdo da

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Giuseppe PenoneSuturas, 1987-1990

faixa mediana dos afrescos do palácioSchifanoia, sobre a base das imagens dosdecanos descritas no Introductorium maius,de Abu Ma’shar. Segundo Warburg, aiconografia nunca é um fim em si (o que Krausdizia a respeito do artista, a saber, que elesabe transformar a solução em enigma, valepara Warburg também) e tende sempre,além da identificação de um conteúdo e desuas fontes, à configuração de um problemahistórico e étnico, na perspectiva do que elechama às vezes de “um diagnóstico de ho-mem ocidental”. A transfiguração do méto-do iconográfico nas mãos de Warburg lem-bra muito a do método lexicográfico na “se-mântica histórica” de Spitzer, em que a his-tória de uma palavra se torna, ao mesmotempo, história de uma cultura e configura-ção de seu problema vital específico; paracompreender sua maneira de encarar o es-tudo da tradição das imagens, podemos tam-

bém pensar na revolução que conheceu apaleografia nas mãos de Ludwig Traube, queWarburg chamava de “o Grande Mestre denossa Ordem” e que soube tirar, dos errosdos copistas e das influências caligráficas, des-cobertas decisivas para a história da cultura.13Mesmo o tema da “vida póstuma14” dacivil ização pagã, que define uma dasprincipais linhas de força da reflexão deWarburg, não se compreende a não ser queo recoloquemos nesse horizonte mais vas-to: aí, as soluções estilísticas e formaisadotadas a cada vez pelos artistas se apre-sentam como decisões éticas definindo aposição dos indivíduos e de uma época emrelação à herança do passado, e a interpre-tação do problema histórico se torna, porisso mesmo, um “diagnóstico” do homemocidental lutando para se curar de suas con-tradições e para encontrar, entre o antigo eo novo, sua própria moradia vital.

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Se Warburg pôde até apresentar o proble-ma do Nachleben des Heidentums comoseu próprio problema de pesquisador,15 foipor ter entendido, graças a uma surpreen-dente intuição antropológica, que o proble-ma de “transmissão e sobrevivência” é aquestão central de uma sociedade “quente”,como a ocidental, tão obcecada pela histó-ria, que gostaria de fazê-la o próprio motorde seu desenvolvimento.16 Mais uma vez, ométodo e os conceitos de Warburg se es-clarecem se os comparamos com as ideiasque guiaram Spitzer em suas pesquisas desemântica histórica e o fizeram acentuar ocaráter ao mesmo tempo “conservador” e“progressista” de nossa tradição cultural, cujasmudanças aparentemente maiores estãosempre ligadas, de uma maneira ou outra, àherança do passado (o que prova também asingular continuidade do patrimônio semân-tico das línguas europeias modernas, essen-cialmente greco-romano-judaico-cristão).Nessa perspectiva, pela qual a cultura é sem-pre um processo de Nachleben, quer dizer,de transmissão, recepção e polarização, com-preendemos por que Warburg devia fatal-mente concentrar sua atenção no problemados símbolos e de sua existência na memó-ria social.Gombrich evidenciou a influência que exer-ceram sobre ele as teorias de um discípulode Hering, Richard Semon, cujo livro Mnemeele havia comprado em 1908. SegundoSemon,

a memória não é uma propriedade daconsciência, mas a qualidade que dis-tingue a matéria vivente da inorgânica.É a capacidade de reagir a um eventodurante certo tempo; quer dizer, umaforma de conservação e de transmis-são de energia, desconhecida do mun-do físico. Cada evento que age sobre amatéria vivente deixa nela um vestígio,

que Semon chama de engrama. A ener-gia potencial conservada nesse engramapode ser reativada e descarregada emcertas condições. Podemos dizer entãoque o organismo age de uma certamaneira porque ele “se lembra” doevento precedente.17

O símbolo e a imagem têm, segundoWarburg, igual função que, para Semon, é ado engrama no sistema nervoso central doindivíduo: neles se cristalizam carga energéticae experiência emotiva que sobrevêm comoherança transmitida pela memória social eque, como a eletricidade condensada emuma garrafa de Leyden, se tornam efetivasao contato da “vontade seletiva” de umaépoca determinada. É por isso que Warburgfala frequentemente dos símbolos como“dinamogramas” transmitidos aos artistas noestado de tensão máxima, mas não polari-zados quanto a sua carga energética – ativaou passiva, negativa ou positiva –, sua polari-zação, quando se encontram uma nova épo-ca e de suas necessidades vitais,pode causara inversão completa de sua significação.18Logo, para ele, a atitude dos artistas, em facedas imagens herdadas da tradição, não erapensada em termos de escolha estética nemde recepção neutra: tratava-se antes de con-frontação, mortal ou vital dependendo docaso, com as terríveis energias que continhamessas imagens e que em si mesmas tinham apossibilidade de fazer regressar o homem aestéril sujeição ou de orientar seu caminhopara a salvação e o conhecimento. Isso eraverdade, segundo ele, não só para os artis-tas que, como Dürer, tinham humanizado acrença supersticiosa de Saturno, polarizan-do-a no emblema da contemplação intelec-tual,19 mas também para o historiador e osábio. Warburg os concebia como sismó-grafos hipersensíveis que respondem ao tre-mor de agitações longínquas ou como“necromantes” que, de plena consciência,evocam os espectros que os ameaçam.20

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O símbolo pertencia então, em sua opinião,a uma esfera intermediária entre a consciên-cia e a reação primitiva e trazia em si tanto apossibilidade de regressão como a de co-nhecimento mais elevado; ele é umZwischenraum, um “intervalo”, uma espéciede no man’s land no centro do humano, damesma forma que a criação e a fruição daarte requerem a fusão de duas atitudes psí-quicas que de hábito se excluem mutuamen-te (“um abandono de si mesmo apaixonadoe uma fria e distante serenidade na contem-plação ordenadora”); a “ciência sem nome”buscada por Warburg é, como registra umaanotação de 1929, “uma iconologia do in-tervalo”, ou uma psicologia do “movimentopendular entre a posição das causas comoimagens e como signos”.21 Esse estatuto “in-termediário” do símbolo (e sua capacidade, seo dominarmos, de “curar” e orientar o espíritohumano) é claramente afirmado em uma ano-tação da época em que, preparando a confe-rência de Kreuzlingen, ele estava demonstran-do, a si mesmo e aos outros, sua cura:

A humanidade inteira é eternamenteesquizofrênica. No entanto, de um pontode vista ontogenético, é possível, talvez,descrever um tipo de reação às imagensda memória, como primitivo e anterior,ainda que continuando sempre a viver àmargem. Em um estado mais tardio, amemória não provoca mais um movi-mento reflexo imediato e prático, queseja de natureza combativa ou religiosa,mas as imagens da memória são entãoconscientemente estocadas em imagense signos. Entre esses dois estádios tomalugar um tipo de relação com as impres-sões, que podemos definir como a for-ça simbólica do pensamento.22

Só nessa perspectiva é possível perceber osentido e a importância do projeto ao qualWarburg dedicou seus últimos anos e ao qualdera nome pego como emblema de sua bi-

blioteca (e que podemos ler ainda hoje naentrada da biblioteca do Instituto Warburg):Mnemosine. Gertrud Bing descreve esse pro-jeto como “um atlas figurativo ilustrando ahistória da expressão visual na região medi-terrânea”.23 Warburg foi provavelmente con-duzido a escolher esse estranho modelo porsua dificuldade pessoal de escrever, mas so-bretudo pelo desejo de encontrar forma que,ultrapassando os esquemas e os modos tra-dicionais da crítica e da história da arte, teriasido finalmente adequada à “ciência semnome” que ele tinha em mente.Do projeto Mnemosine, deixado inacabadoquando da morte de Warburg em outubrode 1929, restam umas quatro dezenas de te-las de tecido negro em que estão fixadas qua-se mil fotografias; é possível reconhecer seustemas iconográficos preferidos, mas o materialse expandiu até incluir um anúncio publicitáriode companhia de navegação, a fotografia deuma jogadora de golfe, e a do papa e Mussoliniassinando a concordata. Mnemosine, entretan-to, é algo mais do que uma orquestração, maisou menos estruturada, dos motivos que gui-aram a busca de Warburg durante anos. Elea definiu uma vez, de maneira um tanto enig-mática, como “uma história das fantasias parapessoas verdadeiramente adultas”. Se consi-derarmos a função que ele atribuía à ima-gem como órgão da memória social eengrama das tensões espirituais de uma cul-tura, compreendemos o que ele quis dizer:seu “atlas” era uma espécie de gigantescocondensador recolhendo todas as corren-tes energéticas que tinham animado e ani-mavam ainda a memória da Europa, toman-do corpo em suas “fantasias”. O nomeMnemosine acha aqui sua razão profunda.O atlas que tem esse título lembra de fato oteatro mnemotécnico, construído no século16 por Giulio Camillo, que surpreendeu seuscontemporâneos como algo maravilhoso,novo e incrível.24 O autor havia tentado en-cerrar “a natureza de cada uma das coisas

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que podiam ser exprimidas pela palavra”, detal maneira que quem penetrasse o admirá-vel edifício teria imediatamente podido do-minar-lhe a ciência. Da mesma forma, aMnemosine de Warburg é um atlasmnemotécnico – iniciático da cultura ociden-tal, e o “bom europeu” (como ele gostavade dizer, utilizando as palavras de Nietzsche)teria podido, simplesmente olhando-o, to-mar consciência da natureza problemática desua própria tradição cultural e conseguir, tal-vez assim, tratar de uma maneira ou de ou-tra sua esquizofrenia, e “se autoeducar”.Mnemosine, como outras obras de Warburg,incluindo sua biblioteca, poderia certamen-te aparecer como um sistema mnemotécnicode uso privado, no qual o erudito e psicóticoAby Warburg projetou e procurou resolverseus conflitos psíquicos pessoais. É sem dú-vida verdade, mas não impede que seja osigno da grandeza de um indivíduo cujasidiossincrasias, mas também os remédios acha-dos para dominá-las, correspondiam às ne-cessidades secretas do espírito do tempo.As disciplinas filológicas e históricas erigiramdesde então, em dado metodológico essen-cial, o cerco no qual está necessariamentepreso seu processo cognitivo. Esse cerco, cujadescoberta como fundamento de todahermenêutica remonta a Schleiermacher ea sua intuição de que em filologia “o detalhenão pode ser compreendido a não ser atra-vés do todo e que a explicação de um deta-lhe pressupõe sempre a compreensão dotodo”,25 não sendo, portanto, em nada umcírculo vicioso; é antes o próprio fundamen-to do rigor e da racionalidade das ciênciashumanas. O essencial, para uma ciência quequer permanecer fiel a suas próprias leis, nãoé portanto sair desse “cerco da compreen-são”, o que seria impossível, mas “permane-cer dentro da boa maneira”.26 Graças aoconhecimento adquirido a cada passagem, aida e volta, do detalhe ao todo, não faz

retornar jamais ao mesmo ponto; a cada vez,ele aumenta necessariamente seu raio e des-cobre perspectiva mais alta em que se abreum novo círculo: a curva que o representanão é, como frequentemente se disse, umacircunferência, mas uma espiral que se ex-pande de maneira contínua.A ciência que recomendava procurar o “bomdeus” nos detalhes é a que ilustra melhor afecundidade da manutenção em seu própriocírculo hermenêutico. Podemos assim seguiresse movimento de alargamento progressi-vo do horizonte nos dois temas centrais dapesquisa de Warburg: o da “ninfa” e o dorevival astrológico da Renascença.Em sua tese sobre A Primavera e O Nasci-mento de Vênus, de Botticelli, a aparição dafigura feminina em movimento, em vestesflutuantes, tomada de empréstimo dossarcófagos clássicos, e que Warburg nomeia“ninfa” dando fé a certas fontes literárias,discernindo aí um novo modelo iconográfico,serve para esclarecer o assunto das pinturase, ao mesmo tempo, mostrar “como Botticellise confrontou com as ideias que sua épocatinha dos antigos”.27 Descobrir, porém, queos artistas do Quattrocento se apoiavamnum Pathosformel clássico cada vez que setratava de representar um movimento ex-terior intensificado é revelar também o polodionisíaco da arte clássica, que, no rastro deNietzsche, mas talvez pela primeira vez nahistória da arte ainda dominada pelo mode-lo de Winckelmann, Warburg percebe defi-nitivamente. Em círculo ainda mais vasto, aaparição da “ninfa” torna-se o sinal de umprofundo conflito espiritual na cultura daRenascença, que devia conciliar com audá-cia a descoberta dos Pathosformelen clássi-cos, sua carga orgíaca e o cristianismo, emequilíbrio carregado de tensões que ilustramperfeitamente personalidades, tais como omercador florentino Francesco Sassetti, ana-lisadas por Warburg em célebre ensaio. E,

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no círculo supremo da espiral hermenêutica,a “ninfa”, relacionada com a figura jacentecinza que os artistas da Renascença toma-ram emprestado das representações gregasde um deus fluvial, torna-se a marca de umapolaridade perene da cultura ocidental,cindida por trágica esquizofrenia, fixada porWarburg em uma das anotações mais densasde seu jornal: “Me parece às vezes que, comohistoriador da psique, eu tentei fazer o diag-nóstico da esquizofrenia da civilização ociden-tal através de seu reflexo autobiográfico: aninfa estática (maníaca) de um lado e o me-lancólico deus fluvial (depressivo) do outro”.28Podemos seguir ainda igual expansão pro-gressiva da espiral hermenêutica através dotema das imagens astrológicas. O círculo maisestreito, propriamente iconográfico, coinci-de com a identificação do conteúdo dosafrescos do palácio de Schifanoia em Ferrare,nos quais Warburg reconhece, como havía-mos lembrado, as figuras dos decanos doIntroductorium maius, de Abu Ma’shar. Noplano da história e da cultura, essa desco-berta se torna assim a da renascença da as-trologia na cultura humanista a partir do sé-culo 14 e, portanto, da ambiguidade da cul-tura da Renascença, que Warburg foi o pri-meiro a perceber, em época na qual a Re-nascença ainda era considerada a Idade das

Luzes, por oposição ao sombrio período daIdade Média. Na voluta mais extrema da es-piral, a aparição das imagens dos decanos ea nova vida da Antiguidade demoníaca, logono início da idade moderna, tornam-se o sin-toma do conflito no qual se enraíza nossacivilização e de sua impossibilidade para do-minar sua própria tensão bipolar. Na apre-sentação de uma exposição de imagens as-trológicas no Congresso do Orientalismo em1926, Warburg declarou que essas imagensmostravam “além de toda contestação quea cultura europeia é o resultado de tendên-cias conflituosas, um processo no qual, noque concerne a essas tentativas astrológicasde orientação, nós não devemos procuraros amigos nem os inimigos, mas a rigor, sin-tomas de um movimento de oscilaçãopendular entre dois polos distantes, o daprática mágico-religiosa e o da contempla-ção matemática”.29O círculo hermenêutico de Warburg podeser assim representado como uma espiralque se desenrola sobre três níveis principais:o primeiro é o da iconografia e da históriada arte; o segundo é o da história da cultura;o terceiro, o mais vasto, é precisamente oda “ciência sem nome”, que visa a um diag-nóstico do homem ocidental através de suasfantasias, a cuja configuração Warburg dedi-cou toda a sua vida. O círculo no qual serevelava o bom deus escondido nos deta-lhes não era um círculo vicioso, nemtampouco, no sentido nietzschiano, umcirculus vitiosus deus.Se quisermos agora nos perguntar, seguin-do nosso projeto inicial, se a “ciênciainominada”, cujos traços fundamentais nopensamento de Warburg temos procuradoesclarecer, pode receber um nome, deve-mos imediatamente observar que nenhumdos termos que ele utilizou no curso dosanos (“história da cultura”, “psicologia daexpressão humana”, “história da psique”,

Giuseppe PenoneAnatomia 2, 1993,Anatomia 5, 1994

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“iconologia do intervalo”) parece tê-lo satis-feito completamente. A tentativa mais im-portante que foi feita, depois de Warburg,para nomear essa ciência é certamente a quePanofsky elaborou no âmbito de suas pes-quisas, nomeando “iconologia” (por oposi-ção a iconografia) a abordagem da imagema mais profunda possível. A difusão dessetermo (que já fora empregado por Warburg,como vimos) foi tal, que o utilizamos hojepara fazer alusão não só aos trabalhos dePanofsky, mas a todo trabalho que se colo-que na esteira de Warburg. No entanto,basta uma análise sumária para mostrar oquanto os objetivos que Panofsky atribui àiconologia estão longe daqueles queWarburg tinha em mente para sua ciênciado “intervalo”. Panofsky, como sabemos, dis-tingue três momentos na interpretação daobra, que correspondem, por assim dizer, atrês camadas de significação. À primeira, a do“conteúdo natural ou primário”, correspondea descrição pré-iconográfica; à segunda, a do“conteúdo secundário ou convencional”,constituindo “o mundo das imagens, das his-tórias e das alegorias”, corresponde a análi-se iconográfica. A terceira camada, a maisprofunda, é a da “significação intrínseca ouconteúdo, constituindo o mundo dos valo-res simbólicos”. “A descoberta e a interpre-tação desses valores simbólicos são objetodo que poderíamos chamar de iconologia,por oposição à iconografia”.30Mas se procurarmos precisar o que são paraPanofsky esses “valores simbólicos”, veremosque ele os considera às vezes “documentosdo sentido unitário da concepção do mun-do”, às vezes “sintomas” de uma personali-dade artística. No ensaio O Movimentoneoplatônico e Michelangelo, ele parecedefinir os símbolos artísticos como “sinto-mas da essência íntima da personalidade deMichelangelo”.31 A noção de símbolo, queWarburg tomou dos pintores de emblemasda Renascença e da psicologia religiosa, cor-

re, assim, o risco de ser reduzida ao domí-nio da estética tradicional, que consideravaessencialmente a obra de arte expressãoda personalidade criadora do artista. A fal-ta de uma perspectiva teórica mais amplaem que colocar os “valores simbólicos” di-ficulta realmente o alargamento do círculohermenêutico além da história da arte e daestética (o que não significa que Panofskynão tenha sido frequente e brilhantementebem-sucedido).32Quanto a Warburg, ele jamais teria podidoconsiderar a essência da personalidade doartista o conteúdo mais profundo de umaimagem. Os símbolos, a serem compreendi-dos como esfera intermediária entre a cons-ciência e a identificação primitiva, lhe pareci-am significantes não tanto (ou ao menos nãosomente) para a reconstrução de uma per-sonalidade ou de uma visão do mundo, maspelo fato de não serem, dizendo propria-mente, conscientes nem inconscientes: ofe-recem, assim, o espaço ideal para aproxima-ção unitária da cultura capaz de superar aoposição entre história, ou estudo das “ex-pressões conscientes”, e antropologia, ouestudo das “condições inconscientes” emque, mais de 20 anos depois, Lévi-Straussviu o núcleo central das relações entre essasduas disciplinas.33A palavra antropologia poderia ter apareci-do com mais frequência ao longo de todoeste estudo. Sem dúvida, o ponto de vistado qual Warburg considerava os fenôme-nos humanos coincide singularmente com odas ciências antropológicas. A forma menosinfiel de caracterizar sua “ciência sem nome”seria talvez inseri-la no projeto de uma futu-ra “antropologia da cultura ocidental”, paraa qual convergirão a filologia, a etnologia, ahistória e a biologia, com vistas a uma“iconologia do intervalo”: o Zwischenraum,em que trabalha sem cessar o tormento sim-bólico da memória social. A urgência de tal

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ciência, para uma época que deve decidir-se, algum dia, a participar do que Valéryconstatava já há 30 anos, ao escrever “a ida-de do mundo acabado começa34”, essa ur-gência não tem necessidade de ser acentua-da. Só essa ciência poderia de fato permitirao homem ocidental, saído dos limites de seuetnocentrismo, munir-se do conhecimentolibertador de um “diagnóstico do humano”,podendo curá-lo de sua esquizofrenia trágica.A essa ciência que, após quase um século deestudos antropológicos, ainda está, infelizmen-te, apenas em seu começo, Warburg, “a suamaneira erudita, um pouco complicada”,35trouxe contribuições não negligenciáveis, quenos permitem inscrever seu nome ao ladodos de Mauss, Sapir, Spitzer, Kerenyi, Usener,Dumézil, Benveniste e alguns outros, pouconumerosos contudo. É provável que talciência deva permanecer sem nome, até odia em que sua ação tenha penetrado tãoprofundamente nossa cultura, que terá pos-to abaixo as falsas divisões e as falsas hierar-quias que mantêm separadas não só as dis-ciplinas humanas entre si, mas também asobras de arte e os studia humaniora, a cria-ção literária e a ciência.Essa fratura que separa, em nossa cultura, apoesia e a filosofia, a arte e a ciência, a pala-vra que “canta” e a que “recita”, é apenasum aspecto da esquizofrenia da civilizaçãoocidental, que Warburg havia reconhecidona polaridade da ninfa estática e do melan-cólico deus fluvial. Seremos realmente fiéisaos ensinamentos de Warburg sabendo verno gesto dançante da ninfa o olharcontemplativo do deus e compreendendo,enfim, que a palavra que canta recita, domesmo modo que canta aquela que recita.A ciência, que terá então recolhido em seugesto o conhecimento libertador do huma-no, merecerá realmente ser chamada por seunome grego Mnemosine.Giorgio Agamben é filósofo, ensina na Universidade deVeneza e no Colégio Internacional de Filosofia em Paris.

É autor de diversos livros, entre eles Image et memoiree Stanze, e os recém-traduzidos para o português O queresta de Auschwitz e A linguagem e a morte.

A tradução foi realizada a partir da versãofrancesa publicada pela editora Desclée deBrouwer em 2004 no livro Image et memoire,écrits sur l’image, la danse et le cinéma.Tradução Cezar BartholomeuRevisão técnica Ângela Leite Lopes e Gui-lherme DelgadoNotas

1 A tirada sobre Warburg, criador de uma disciplina “que, aocontrário de tantas outras, existe, mas não tem nome” éde Robert Klein (La Forme et L’Intelligible, Paris:Gallimard, 1970:224).

2 Em 1933, na ascensão do nazismo, o Instituto Warburg foi,como se sabe, transferido para Londres, onde foi inte-grado em 1944 à universidade de Londres. Cf. Saxl, Fritz.The history of Warburg’s library. In Gombrich, E. H. AbyWarburg. An Intellectual Biography. Londres: TheWarburg Institute, 1970:325.

3 A publicação da bela “biografia intelectual” de Warburg,escrita pelo atual diretor do Instituto Warburg, E. H.Gombrich, cobre apenas em parte essa lacuna; constituihoje a única fonte para o conhecimento dos inéditos deWarburg. Nos permitimos mencionar a obra de Philippe-Alain Michaud Aby Warburg, et l’image em mouvement,Paris: Macula, 1998. (N.E.)

4 O testemunho é de Saxl, op. cit.:326.5 Asthetisierende Kunstgeschichte. Podemos ler a expressão,

entre outras, em uma nota inédita de 1923. Cf. Gombrich,op. cit.:88.

6 A conferência foi publicada em inglês em 1939. A lectureon Serpent Ritual, Journal of the Warburg Institute, v. II,1939:277-292.

7 Pasquali, G. Aby Warburg, Pegaso, 1930, retomado emPasquali, G. Pagine stravaganti, Florença, 1968, v. I:44.

8 A constituição de sua biblioteca ocupou Warburg por todaa sua vida e foi, talvez, a obra à qual ele consagrou amaior parte de suas energias. Em sua origem existe umepisódio dicisivo: aos 13 anos Aby, que era o primogênitode uma família de banqueiros, ofereceu a seu irmãomenor, Max, deixar-lhe o direito de primogenitura, emtroca da promessa de que este comprasse todos os li-

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vros que ele pedisse. Max aceitou, sem imaginar que abrincadeira infantil iria tornar-se realidade. Warburg clas-sificava seus livros não apenas por ordem alfabética ouaritmética utilizada nas maiores bibliotecas, mas segun-do seus interesses e seu sistema de pensamento, a pon-to de trocar a ordem a cada variação de seus métodosde pesquisa. A lei que o guiava era a do “bom vizinho”,segundo a qual a solução de seu problema estaria con-tida não no livro que ele procurava, mas naquele queestava ao lado. Dessa forma ele fez de sua bibliotecauma espécie de imagem labiríntica de si mesmo, cujopoder de fascinação era enorme. Saxl relata a históriade Cassirer que, entrando pela primeira vez na bibliote-ca, declarou que se tinha ou que fugir imediatamente,ou lá ficar trancado durante anos. Tal qual um verdadei-ro labirinto a biblioteca conduzia o leitor ao destino,levando-o de um “bom vizinho” a outro por uma sériede desvios no final dos quais ele reencontrava fatalmen-te o Minotauro, que o esperava desde o início e queera, em certo sentido, o próprio Warburg. Os que tra-balharam na biblioteca sabem o quanto tudo isto é ver-dade ainda hoje, apesar das concessões que no cursodos anos foram feitas às exigências da biblioteconomia.

9 Cf. Gombrich, op. cit.:222.10 Cf. Gombrich, op. cit.:89.11 É característica da forma mentis de Warburg apresentar,

frequentemente, seus escritos como contribuição aciências ainda não fundadas. Seu grande estudo sobre aadivinhação na época de Luther é anunciado como con-tribuição a um “manual”, ainda hoje inexistente, Da ser-vidão do homem moderno supersticioso, que deveriaser precedido por uma pesquisa científica, ela tambéminacabada, A renascença da Antiguidade demoníaca naépoca da Reforma Alemã. Desse modo ele conseguia,de um lado, produzir em seus escritos uma tensãodirecionada à autossuperação, o que em parte constituiseu charme e, por outro lado, fazer aparecer seu proje-to global, através de uma espécie de “presença pela fal-ta” que nos lembra o princípio aristotélico segundo oqual “a privação, ela também, é uma forma de posses-são” (Mét. 1019 B, 5).

12 Arte italiana e astrologia internacional no palácio Schifanoiaem Ferrare in L’Italia e l’arte straniera. Atti del X Con-gresso Internazionale de Storia dell’Arte, 1912; tradu-ção italiana in Warburg, A. La Rinascita del paganesimoântico. Florenze: La Nuova Itália, 1996:268; tradução fran-cesa de Sibylle Muller, revista por D. Loayza, in Warburg,A. Ensaios florentinos. Paris, 1990:215-216.

13 Ver também L. Spitzer, em particular os Essays in HistoricalSemantics, New York: SF Vianni, 1948. Para um julga-mento sobre a obra de Traube, ler o que escreve Pasquali

em Paleografia quale scienza dello spirito, Nuova Anto-logia, I giugno 1931, retomado in G. Pasquali, op. cit.:115.

14 A palavra alemã Nachleben utilizada por Warburg nãosignifica exatamente “renascimento”, como é por ve-zes traduzida, tampouco “sobrevivência”. Implica a ideiadessa continuidade da herança pagã, que era essencialpara Warburg.

15 Em carta a seu amigo Mesnil, que tinha formulado o pro-blema de Warburg de maneira tradicional (“O que re-presentava a Antiguidade para os homens da Renascen-ça?”), Warburg especificou “que mais tarde, ao longodos anos, o problema se amplia para tentar compreen-der o sentido da vida póstuma do paganismo para acivilização europeia inteira”. Cf. Gombrich, op. cit.:307.

16 Sobre a oposição entre sociedade “fria” (ou sem história)e sociedade “quente” que multiplica a incidência de fa-tores históricos, ver o que escreveu Lévi-Strauss in LaPensée sauvage. Paris: Plon, 1962:309-310.

17 Cf. Gombrich, op. cit.:242.18 “Os dinamogramas da arte antiga são transmitidos aos

artistas que imitam, lembram ou respondem em um es-tado de tensão máxima, sem que eles tenham ainda po-larizado suas cargas ativas ou passivas; somente o conta-to com a nova época produz a polarização. Ela podelevar a um desarranjo radical (inversão) da significaçãoque eles tinham para a Antiguidade clássica (...) A essên-cia dos engramas tiasóticos é como as cargas concen-tradas em uma garrafa de Leyden antes de seu contatocom a vontade seletiva da época.” Cf. Gombrich, op.cit.:248-249.

19 A interpretação warburgiana da Melancolia de Dürer como“tábua do alento humanista contra a crença de Saturno”,que transforma a imagem do demônio planetário, de-terminou fortemente as conclusões do estudo dePanofsky-Saxl: Dürers Melencolia I, Eine quellen- undtypengeschichtliche Untersuchung, Leipzig, 1923.

20 As páginas em que Warburg desenvolve essa visão so-bre as figuras de Burckhardt e de Nietzsche estão en-tre as mais belas que escreveu: “Nós devemos apren-der a ver Burckhardt e Nietzsche como captores deondas mnemônicas e compreender que eles tomaramconsciência do mundo de duas formas fundamentalmen-te diferentes (...) Ambos são sismógrafos muito sensí-veis, cujas fundações tremem quando eles devem ver etransmitir as ondas. Mas há uma diferença importanteentre eles: Burckhardt recebia as ondas que vinham dopassado, ele sentia o inquietante abalo e procurava re-forçar as fundações de seu próprio sismógrafo (...) Sen-tiu claramente o perigo de sua profissão e o risco desucumbir, mas não se rendeu ao romantismo (...)Burckhardt era um necromante plenamente consciente;evocou os espectros que o ameaçavam serenamente,

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mas os venceu construindo para si uma torre de obser-vação. Foi vidente como Lyncée: ele ocupa sua torre efala (...) era e é ainda um iluminador, mas não quis sernada além de um simples mestre (...) Que gênero devidente é Nietzsche? Ele é do mesmo tipo que o deNabi, o antigo profeta que corria na rua, rasgava suasvestes, ameaçava e arrastava algumas vezes o povo comele. Seu gesto deriva daquele do portador de tirso queobriga todo mundo a segui-lo. Daí as observações so-bre a dança. Nas figuras de Nietzsche e Burckhardt, doisantigos modelos de profetas se confrontam no lugar deencontro das tradições latina e alemã. A questão é sa-ber qual dos dois suporta melhor o peso de sua voca-ção. Um procura transformá-la em chamado. A ausên-cia de resposta ameaça sempre suas fundações: afinalele era um mestre. Dois filhos de pastor reagem de duasmaneiras opostas ao sentimento da presença divina nomundo.” Cf. Gombrich, op. cit.:254-257.

21 Gombrich, op. cit.:253.22 Gombrich, op. cit.:223. A concepção warburgiana dos sím-

bolos e de sua vida na memória social pode lembrar aideia de arquétipo em Jung. O nome de Jung, entretanto,não aparece nunca nas anotações de Warburg. Não sepode esquecer, de resto, que as imagens são para Warburgrealidades históricas, inseridas em um processo de trans-missão da cultura, e não entidades a-históricas.

23 Na introdução a Aby Warburg, La rinascita, op. cit.:XVII.24 Sobre Giulio Camillo e seu teatro, ver Frances Yates, L’Art

de la memoire, tradução francesa de Arasse, D. Gallimard,1975:chap. VI.

25 Sobre o cerco hermenêutico, ver as belíssimas observa-ções de L. Spitzer, in Linguistics and Literary History,Princeton, 1948, tradução italiana in Critica stilistica esemântica storica, Bari, 1966, p. 93-95.

26 Observação de Heidegger, que fundou filosoficamente ocírculo hermenêutico in Sein und Zeit, Tübingen, 1927(L’être et le temps, tradução francesa de Rudolph Boehme Alphonse de Waelhens, Paris: Gallimard, 1964:187-190).

27 Warburg, A. Sandro Botticelli “Geburt des Venus” und“Frühling”, Hamburgo/Leipzig, 1893; tradução emWarburg, La Rinascita, op. cit.:58.

28 Gombrich, op. cit.:303.29 Orientalisierende Astrologie, Zeitschrift der Deutschen

Morgenländischen Gesellschaft, N. F. 6, Leipzig, 1927. Jáque se deve sempre, e de novo, preservar a razão dosracionalistas, é bom precisar que as categorias que utili-za Warburg para seu diagnóstico são infinitamente maissutis do que a oposição corrente entre racionalismo eirracionalismo. O conflito é, de fato, interpretado porele em termos de polaridade e não de dicotomia. A

redescoberta da noção de polaridade, que vem deGoethe, utilizada com vistas a uma compreensão globalde nossa cultura, está entre as heranças mais fecundasdeixadas por Warburg à ciência da cultura. É de extre-ma importância pelo fato de a oposição do racionalismoe do irracionalismo ter frequentemente falseado a inter-pretação da tradição cultural do Ocidente.30 Panofsky, E. L’Œuvre d’art et ses significations. Paris:

Gallimard, 1969, tradução francesa de Bernard e MartheTeyssèdre. Esse texto foi posto no início da edição fran-cesa de Essais d’iconologie, em versão ligeiramente dife-rente da citada por Agamben. (N.E.)

31 Panofsky, E. Essais d’iconologie, Paris: Gallimard, 1967; tra-dução francesa de Claude Herbette e Bernard Teyssèdre.

32 Nem Panofsky, nem outros pesquisadores que, mais doque ele, conviveram com Warburg e asseguraram de-pois de sua morte a continuidade do Instituto, tais comoF. Saxl, G. Bing e E. Wind (quanto ao atual diretor, E.Gombrich, ele entrou no Instituto depois da morte deWarburg), jamais pretenderam ser os sucessores deWarburg em sua busca de uma ciência sem nome, alémdas fronteiras da história da arte. Cada um delesaprofundou, quase sempre com genialidade, a herançadeixada por Warburg na fronteira da história da arte,mas sem nunca dar lugar à superação temática dessafronteira, em aproximação global dos feitos gerais dacultura. Isso correspondia provavelmente também a umaobjetiva necessidade vital para a organização do Institu-to, cuja atividade marcou, de toda forma, incomparávelrenovação dos estudos da história da arte. Não deixan-do também de ser verdade no que concerne à “ciênciasem nome”, o Nachleben de Warburg espera ainda oencontro polarizador com a vontade seletiva da época.A propósito da personalidade dos pesquisadores liga-dos ao Instituto Warburg, ver Ginzburg, C. Da A.Warburg a E. H. Gombrich, Studi Medievali, v.VII, n.2,1966; tradução francesa de Christian Paolini in De A.Warburg à E. H. Gombrich, Mythes, Emblèmes, Traces,Paris: Flammarion, 1989.

33 Lévi-Strauss, C. Histoire et ethnologie, Revue demétaphysique et de morale, n.3-4, 1949. Retomado inLévi-Strauss, Anthropologie structurale, Paris: Plon,1958:24-25.

34 A afirmação de P. Valéry (in Regards sur le monde actuel,Paris: Gallimard, 1945) vai bem além do simples sentidogeográfico.

35 Der Eintritt des antikisierenden Idealstils in die Malerei derFrüh Renaissance, Kunstchronik, v.XXV, 8 maio 1914;tradução in Warburg, A. La Rinascita, op. cit.:307.

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